Centenário

RELAÇÕES ENTRE MACAU E O BRASIL NO SÉCULO XIX

Carlos Francisco Moura*

Macau no Século XIX, num óleo de George Chinnery. Col. HSBC.

A história das relações entre Macau e o Brasil está por ser escrita. Muito há que pesquisar na documentação brasileira, macaense, portuguesa e de outras origens.

Mais numerosas do que se julga geralmente são as referências a artigos chineses no Brasil, na documentação e crônicas, principalmente do século XVIII e início do XIX. Chá, remédios (raiz da China, ruibarbo, etc.), tecidos de várias qualidades (sedas em geral, seda de Nanquim, lenços, cobertas, véstias, colchas de setim, gangas de Nanquim, etc.), pinturas em papel e em seda, leques, adereços para senhoras, caixas de charão, louças em geral, jarras, porcelana, "louça de Macau", móveis, objetos de arte, fogos de artifício, etc.

Mais de meio século depois da independência do Brasil, um dos componentes da missão diplomática que foi à China negociar o primeiro tratado entre os dois impérios espantou-se ao ver em Cantão móveis que lhe eram familiares: "colossais camas que ainda se vêem em Portugal e no Brasil, trazidas de Macau por nossos avós".1

Como teria ido parar à Paraíba aquela bela e estranha escultura de leão chinês que, mostrando os dentes, monta guarda no adro da igreja do Convento de Santo Antônio dos franciscanos?2

NOTÍCIAS DO CRONISTA GONÇALVES DOS SANTOS NAS SUAS MEMÓRIAS

As relações entre Macau e o Brasil se intensificaram no período em que a corte portuguesa permaneceu no Brasil (1808-1821). O cronista carioca Padre Luís Gonçalves dos Santos (1767-1844), conhecido pela alcunha de "Padre Perereca", na sua importante obra Memórias para servir à história do reino do Brasil, dá várias notícias sobre o assunto, que passamos a resumir.3

Em 1809 chegou ao Rio de Janeiro um navio transportando grande quantidade de portugueses que, aprisionados pelos franceses e mantidos na ilha de França, no oceano Índico, conseguiram não só negociar sua saída para o Brasil, como adquirir furtivamente grande quantidade de sementes de plantas orientais cultivadas no jardim botânico local. Entre eles estava Rafael Botado de Almeida, Senador de Macau, que muito contribuiu para o sucesso da operação de repatriamento e para a arriscada aquisição dos novos espécimes vegetais.

O cronista dá notícia do alvará assinado pelo príncipe regente D. João, em 13 de Maio de 1810, "pelo qual se dignou isentar dos direitos de entrada nas Alfândegas do Brasil as mercadorias da China, de propriedade, e em navios portugueses, exportados diretamente de Macau para este Estado do Brasil. Outrossim, pelo alvará de 7 de Julho, concedeu isenção dos dízimos e dos direitos de entrada".4

A respeito desse alvará, acrescenta as seguintes reflexões:

"Por estes régios diplomas se vê com toda a evidência quais sejam as medidas que o Príncipe Regente Nosso Senhor constantemente adota para enriquecer, e fazer prosperar o seu vasto Império do Brasil, já animando o comércio, já favorecendo a agricultura, já fomentando a indústria. Com efeito, se o Rio de Janeiro, e a Bahia forem os interpostos das mercadorias da China, que lucros se não podem esperar para o futuro deste ramo de comércio asiático? Os estrangeiros, achando em qualquer destes grandes mercados o que com tão longa viagem, maior despesa, e risco vão buscar a Macau, ou a Cantão, preferirão certamente vir ao Brasil; e os portugueses de um e outro hemisfério poderão carregar estas mesmas mercadorias chinesas nos seus próprios navios, e levá-las para os portos da Europa com grande vantagem, e lucro, visto estarem isentas de pagar direitos de entrada nos portos do Brasil."5

Refere-se ainda o Padre Gonçalves dos Santos ao alvará com força de lei, datado de 4 de Fevereiro de 1811 que, para fomentar o comércio e a navegação, revogou o alvará de 8/1/1783, o decreto de 29/1/1789 e os alvarás de 17/8/1795 e 25/11/1800:

"Por inaplicáveis às atuais circunstâncias, não correspondendo aos grandes fins, que o mesmo real senhor se tem proposto pela organização de um plano, e sistema geral de comércio, que haja de abraçar todos os reinos, e domínios nas quatro partes do mundo, e soltar as prisões, que impediam, e fechavam parte dos portos dos seus domínios ao comércio direto, com outros portos de seus próprios domínios; e considerando Sua Alteza Real que a posição geográfica do Brasil é por si mesma a mais favorável, e apropriada para se constituir o empório do comércio de entreposto entre a Europa, e Ásia, foi servido, pelo mesmo alvará, liberalizar por amplas concessões aos seus fiéis vassalos o comércio, e navegação direta nos mares da Índia, China, enseadas, rios, ilhas, e portos, assim nacionais, como estrangeiros, além do Cabo da Boa Esperança, como também nos portos de Portugal, Brasil, Ilhas dos Açores, Madeira, Ilhas de Cabo Verde, portos da África Ocidental, e ilhas adjacentes pertencentes à sua Real Coroa; abolindo todas as restrições, que por muitos anos obstruíram os canais da prosperidade, opulência, e poder, que em outros tempos elevaram a nação portuguesa ao maior auge da glória."6

Em nota de 1815, mas concernente à abertura dos portos brasileiros, o cronista se refere aos "chinas, que em grande número vieram de Macau, e se estabeleceram na corte" (então, o Rio de Janeiro). Noutra, refere-se à sua presença nos festejos da aclamação de D. João VI - "aí se viam, misturados com os portugueses, estrangeiros de muitas nações, ingleses, franceses, alemães, italianos, espanhóis e até chinas, anelando todos serem testemunhas da gloriosa aclamação do nosso augusto rei".7

Finalmente, queremos mencionar a transcriação, pelo cronista, de dois documentos de mesma data, que equivalem à geminação da cidade do Rio de Janeiro com a de Macau. Em 6 de Fevereiro de 1818, dia da aclamação, no Rio de Janeiro, do rei D. João VI, ele assinou dois al-varás, um, concedendo o tratamento de Senhoria à Câmara Municipal de Lisboa, e outro, concedendo o mesmo trata-mento ao Leal Senado de Macau:

"ALVARÁ - Eu ElRei faço saber aos que este Alvará virem que, querendo distinguir com assignalada mercê a Câmara desta Cidade do Rio de Janeiro, que, além de ser a da Capital do Reino do Brasil, teve a honra de assistir à Minha Gloriosa Coroação, e jurar pelos habitantes da mesma Cidade, que me deram as mais fiéis, e decisivas provas da sua lealdade, e amor à Minha Real Pessoa: Hei por bem, e Me praz fazer-lhe mercê do Tractamento de Senhoria. E Este se cumprirá como nele se contém."8

O alvará referente a Macau revela que a cidade enviou ao Rio de Janeiro um deputado para representá-la nas cerimônias de aclamação do rei:

"ALVARÁ - Eu ElRei faço saber aos que este Alvará virem, que, querendo dar um autêntico testemunho ao leal Senado da Câmara da Cidade de Macau da consideração que ele merece pelos serviços, que Me tem prestado no desempenho das comissões, de que se acha encarregado, e especialmente pelos fiéis sentimentos de amor, lealdade, que mostrou à Minha Real Pessoa mandando de tão longe um Deputado para felicitar-Me pela Minha Exaltação ao Trono, e para prestar por ele o juramento de preito, e homenagem neste faustosíssimo dia da Minha Coroação: Hei por bem fazer-lhe mercê do Tractamento de Senhoria. E Este se cumprirá como nele se contém."9

MACAU E O JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO

Segundo o barão do Rio Branco, o Jardim Botânico do Rio de Janeiro foi criado por alvará datado de l de Março de 1811.10

Antes dessa data, entretanto, chegavam ao Rio de Janeiro "as primeiras espécies vindas do estrangeiro": as sementes trazidas da ilha de França, com a colaboração do Senador Rafael Botado de Almeida, como refere o cronista Gonçalves dos Santos. O navio que as conduzia aportou à Guanabara em Junho de 1809.

O chefe de divisão da armada real, Luís de Abreu Vieira e Paiva, que comandou o repatriamento, foi louvado por D. João por ter trazido as sementes:

"Sua Alteza Real mandou louvar este chefe, não somente pelo serviço exposto, mas também pela importante aquisição, que o país recebia, de vinte caixotes de plantas exóticas, e árvores de especiarias, que ele ofertara a Sua Alteza, a fim de enriquecer os seus Estados do Brasil com as preciosidades asiáticas, que outrora M. M. Poivre e Menonville, em 1770, haviam aclimatado na ilha de França."11

Entre as sementes trazidas, figuravam as de moscadeira, canforeira, abacateiro, liche, mangueira, cravo da Índia, Toranjeira. As sementes foram imediatamente remetidas para a Real Quinta e para "o jardim da lagoa de Freitas" por ordem de D. João. Esse jardim era um local, próximo à Fábrica de Pólvora da lagoa Rodrigo de Freitas, que o príncipe regente mandara reservar para aclimação de plantas e onde, posteriormente, seria instalado o Jardim Botânico.

Logo a seguir à chegada das sementes das plantas orientais e, sem dúvida, devido ao entusiasmo causado pela sua chegada, a Junta do Comércio expediu um edital, datato de 27/7/1809, fazendo público que o príncipe regente autorizara "o sobredito tribunal a estabelecer prêmios pelo seu cofre às pessoas, que fizerem climatizar em qualquer lugar dos meus Estados, e Domínios, árvores de especiaria fina da Índia, e que introduzirem a cultura de outros vegetais, ou indígenas ou forasteiros, que são precisos pelos usos, que têm na farmácia, tinturaria e mais artes."12

Resumindo, em Junho de 1809 chegam as sementes das plantas orientais. Em 27 de Julho do mesmo ano, o alvará estabelece prêmios para quem climatizasse plantas. Em l de Março de 1811, criado o Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Em relatório datado de 4 de Março de 1813, publicado no jornal "O Patriota" nesse mesmo ano, o chefe de divisão Luís de Abreu faz questão de destacar a colaboração do Senador Botado de Almeida e de outros companheiros para conseguir as sementes:

"Devo de justiça mencionar o quanto contribuíram para o bom êxito de uma tão interessante aquisição para este Estado, as diligências, o segredo, e dinheiro do referido Senador Botado de Almeida, de Francisco João da Graça, Religioso da 3a Ordem, e de Antônio José de Figueiredo, cirurgião de embarque; os nomes destes três bons portugueses são dignos de passarem à posteridade, não só pelo espendido, mas por muitos outros factos patrióticos por eles praticados naquela colônia durante a nossa prisão."13

Mas não se limitou a essa ação a colaboração do Senador de Macau para o Jardim Botânico. De volta a Macau, enviou, em 1812, a pedido de Luís Abreu, sementes de chá, como consta no citado relatório:

"Também julgo dever participar-lhe, para que conste, que pedindo eu ao meu particular amigo Rafael Botado de Almeida, Senador de Macau, me remetesse as sementes do arbusto do chá, ele me mandou o ano próximo passado um grande número delas, as quais distribuí, dando-as ao referido Ilmo. e Exmo. Tenente General, ao Deputado da Real Junta do Comércio José Caetano Gomes e a vários particulares."14

O tenente general a que se refere era Carlos Antônio Napion, diretor da Fábrica de Pólvora da lagoa Rodrigo de Freitas e, cumulativamente, também do Jardim Botânico, que lhe ficava anexo.

Mas ainda não ficou por aí a colaboração de Macau. Através da Cidade do Nome de Deus vieram também os primeiros imigrantes chineses para cultivar chá no Jardim Botânico.

CHINESES CULTIVAM CHÁ NO JARDIM BOTÂNICO DO RIO DE JANEIRO

Segundo vários historiadores, o projeto de introdução de colonos chineses no Brasil é devido ao conde de Linhares, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, que foi Ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, no Rio de Janeiro, de 11/3/1808 até seu falecimento, em 26/1/1812. Alguns viajantes estrangeiros que chegaram ao Brasil anos depois da morte do ministro também lhe atribuem a iniciativa. Entretanto, falta ainda encontrar a documentação referente à vinda dos primeiros chineses, para esclarecer várias dúvidas, como data exata da chegada, quantos eram, de que região da China provinham, condições de contratação, etc.15

Spix e Martius, que chegaram ao Rio de Janeiro em 1817, visitaram e descreveram o Jardim Botânico e mencionam os chineses que ali trabalhavam:

"Diversas belas alamedas de árvores-do-pão do oceano Pacífico (Artocarpus incise), itus de folhagem cerrada (Guarea trichilioides) e mangueiras cortam a plantação, dividida em quadrados regulares, cujo mais importante objeto de cultivo é o arbusto do chá chinês. Até agora estão plantados seis mil pequenos pés, a três pés de distância um do outro, em filas. O clima parece ser favorável ao seu crescimento; florescem nos meses de Julho até Setembro, e as sementes amadurecem perfeitamente. Também este exemplo confirma, além de outras tentativas da cultivação de plantas asiáticas na América, que sobretudo a igualdade da latitude é importante para a prosperidade das mudas. O chá é aqui cultivado, de modo ao da própria China, todo igual, colhido e torrado. O governo português dedicou especial atenção à cultura desse vegetal, cujo produto da China é anualmente exportado para a Inglaterra, no valor de 20 milhões de escudos. O ex-ministro, conde de Linhares, mandou vir umas centenas de colonos chineses, a fim de tornar conhecidas as vantagens do cultivo e do preparo do chá. Esses chineses, diz-se, não eram dos habitantes da costa, que por sua miséria se exilam da pátria para Java e as ilhas vizinhas, e ali, como os galegos da Espanha e Portugal, procuram trabalho; eram gente escolhida do interior, perfeitamente a par do cultivo do chá."16

Quando esses dois cientistas alemães visitaram o Jardim Botânico, só uns poucos chineses permaneciam ali, cuidando da plantação, da colheita e do preparo das folhas de chá, fiscalizados pelo diretor da Fábrica de Pólvora, coronel João Gomes Abreu. A maioria deles passara a residir na fazenda de Santa Cruz.

As folhas eram colhidas duas vezes por ano, submetidas a secagem em fornos de barro e depois enroladas. O diretor ofereceu-lhes, para provar, chá de diferentes espécies, de acordo com a época da colheita:

"O sabor era forte, porém longe de ser tão finamente aromático como o das melhores qualidades chinesas, era um tanto áspero e terroso. Esta desagradável propriedade não deve, entretanto, desaminar em nenhum ramo da incipiente cultura, pois é natural consequência da aclimação ainda não completada."17

Outro viajante alemão, o desenhista Johann Moritz Rugendas, que quase uma décda depois visitou o Jardim Botânico, começa sua descrição, afirmando:

"É, principalmente, ao antigo ministro conde de Linhares que se devem as tentativas feitas até agora em prol da cultura do chá. Há alguns anos fez ele vir quantidade de mudas, alguns chineses para tratá-las e formou uma plantação atrás do Corcovado, à beira da lagoa Rodrigo de Freitas, perto do Jardim das Plantas. Era de seis mil o número de arbustos em 1825."18

Em muitas passagens Rugendas repete praticamente as mesmas informações de Spix e Martius, como distância dos arbustos, colheitas, secagem em fomos de barro, etc. Até o sabor: "não tem o gosto requintado e aromático das espécies de primeira qualidade na China; ao contrário, tem ele um gosto acre de terra". Também acha que isso era devido ao fato de a planta ainda não estar aclimada, e apresenta mais duas hipóteses - falhas no tratamento das folhas, principalmente na secagem, e o pouco cuidado na escolha dos chineses (talvez nem todos tivessem trabalhado anteriormente com chá). Louva a experiência tentada pelo governo e diz que, embora os resultados até então tivessem sido insufi-Ocientes, deveriam melhorar dentro de pouco tempo.

Comenta a grande despesa da Inglaterra com a aquisição de chá da China (três milhões de libras, tudo pago em piastras), e considera benéfica a entrada do Brasil nesse mercado:

"O número de chineses estabelecidos perto da lagoa Rodrigo de Freitas e da fazenda de Santa Cruz é de mais ou menos trezentos e nesse número poucos há que se dediquem à cultura de chá; muitos são mascates, outros cozinheiros. Os chineses se adaptam muito bem ao clima do Brasil e muitos deles até se casam."19

Outro viajante alemão, Carl Seidler, também se refere, pela mesma época (1825), ao cultivo do chá:

"O chá, que o rei português D. João VI para cá fez transplantar por volta de 1816, é o único produto que fez exceção, pois é colhido em regra. Com imensas dificuldades e extraordinárias custas mandaram vir chineses de sua longínqua pátria, para cultivarem o chá no Brasil à maneira da China. A idéia foi feliz e teve êxito. O chá aqui produzido é pouco inferior ao chinês."20

A informação colhida por Seidler, de que os chineses vieram por volta de 1816, é corrigida por documentação que revela a presença de chineses em Agosto de 1814, na Bahia e no Rio de Janeiro, e em Setembro do mesmo ano, na Real Fazenda de Santa Cruz, como veremos adiante.

Seidler critica a falta de fiscalização na plantação e diz que se fosse realizada com algum cuidado e inteligência, em pouco tempo o Brasil estaria produzindo todo o chá necessário ao seu consumo, e economizando anualmente muito. Entretanto, o governo, apesar de estar com as "finanças completamente derrocadas, acha que não vale a pena um melhoramento dessa espécie, que podia trazer um dia as maiores consequências". E acrescenta: "Naturalmente os ingleses também fazem quanto podem para estorvar tais plantações; mas será possível que um grande império independente como o Brasil, por meio de medidas enérgicas, não possa combater esse vil espírito de especulação de seus hóspedes não convidados?"21

A inglesa Maria Graham, que esteve no Jardim Botânico em 21 /12/1821, regista no seu diário de viagem ligeira referência:

"Este jardim foi destinado pelo rei para cultivo de especiarias e frutos orientais e, acima de tudo, para o do chá, que ele mandou vir da China juntamente com algumas famílias acostumadas à sua cultura. Nada pode ser mais próspero do que o conjunto das plantas (...) Notei particularmente o jambo (Jambo malacca) da Índia, e longona (Euphoria longona), espécie de litchi da China."22

CHINESES NA REAL FAZENDA DE SANTA CRUZ

O Arquivo Nacional, do Rio de Janeiro, conserva documentos sobre os chineses enviados para a Real Fazenda de Santa Cruz, antiga propriedade dos jesuítas incorporada aos bens da Coroa, na segunda metade do século XVIII, e adaptada a palácio de verão, depois que a Corte se transferiu de Lisboa para o Rio de Janeiro em decorrência da invasão de Portugal pelas tropas napoleônicas.23

Em Setembro de 1814, foram os chineses levados a Santa Cruz, para escolher os terrenos onde se deveriam estabelecer:

"Recolheu-se o alferes Antônio Gomes da Costa da digressão que foi fazer com os Chinas, para lhes mostrar as terras e sítio desta Real Fazenda, a fim de escolherem o que mais lhes agradasse para as suas plantações, me representou terem eles agradado-se em primeiro lugar do Morro do Ar, e em segundo do Chaperó, e eu conversando igualmente com eles, me repetiram o mesmo. O Morro do Ar é muito perto dos Hespanhóis e das roças dos escravos e o Chaperó está povoado de foreiros, porém como os ditos Chinas querem pouco terreno, pois as suas plantações e culturas são por outra maneira do que se usa neste país, em qualquer dos sítios desejados que V. Exa. determinar, se poderão estabelecer."24

Em 24 de Dezembro de 1814, o Ministro da Marinha e Ultramar, Antônio de Araújo e Azevedo (depois conde da Barca), escrevia a João Fernandes da Silva, tesoureiro da fazenda de Santa Cruz: "Fazendo-se neces- -sário mandar para aí alguns Chinas, é preciso que venha me avisar quando estiver pronta a casa à entrada do café, que se mandou preparar para os alojar".25

A 7 de Janeiro de 1815, respondia de Santa Cruz o tesoureiro, comunicando que "a casa à entrada do café, para alojamento dos Chinas, Segunda-feira, 9 do cor-rente mês, fica pronta; ainda não está, pelas continuadas chuvas, que tem havido".26

A contabilidade da Real Fazenda de Santa Cruz regista várias despesas com os chineses. Uma conta de 31 de Janeiro de 1816 relaciona os gastos com "tintas para os portões dos Chinas" (vermelhão da China, alvaiade, óleo de linhaça, etc.). Com os próprios chineses foram gastos:48 sacos de arroz em casca (432,00), 3 arrobas de toucinho (120,00), 3/4 de arroba de sal (13,20) e "mesadas pagas a 45 Chinas a 32,00" (1.440,00).27

Outra conta de 31 de Março desse ano relaciona 75 sacos de arroz em casca, 5 arrobas e pouco de toucinho, sal e "salários mensais pagos a 72 Chinas a 32,00- 2.304,00".28

A 30 de Abril do mesmo ano são contabilizados os mesmos gêneros: arroz em casca (7 1/2 alqueires), toucinho e sal, e "salários mensais de 69 Chinas a 32,00- 2.208,00".29

A Conta de diversos gêneros de ordem do conde da Barca, Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos, datada de 28 de Fevereiro de 1819, toma a mencionar os mesmos gê-neros e "pagamento dos salários de 54 Chinas a 32,00 - 1.718,00".30

O último documento contábil que consultamos, a Receita corrente da administração da Real Fazenda de Santa Cruz, de lo de Maio a 31 de Dezembro de 1821, menciona, entre os salários a ocupados na fazenda, "2295840 aos Chinas".31

De 6 de Outubro de 1816 é a descrição das festas e cerimônias realizadas no dia anterior pelos chineses de Santa Cruz, contida em relatório enviado pelo tesoureiro João Fernandes da Silva ao conde da Barca. Tão interessante é, que vai aqui publicada pela primeira vez:

"(...) e tendo ido já de manhã, convidado pelos Chinas para ir à sua festa, e mui principalmente para cumprir com que V. Exa. me determinava, fui ao meio dia com os meus familiares, e o alferes Antônio Gomes da Costa, deixando ficar a patrulha na fazenda para lhes não causar novidade, achei os do café com uma mesa posta fora da casa defronte ao portão do café fazendo frente ao nascente da lua, com a metade de um porco assado em cima da mesa, um marreco de uma banda, e um prato com miúdos de porco da outra, duas garrafas com aguardente, dois castiçais com velas acesas, e algi-mas xícaras, e tendo estendida no chão uma esteira ao pé da mesa, vinham aos três, tiravam os sapatos, ajoelhavam-se em cima da esteira, beijavam a terra, levantavam-se, um cortava um pedaço dos miúdos do porco, punha dentro de uma xícara, e com dois pauzinhos, de que usam quando comem, dava hissopadas no chão ao redor da mesa, largavam a xícara em cima, e vindo para o seu lugar, faziam outra vez as mesmas genuflexões e retiravam-se, seguiam-se outros em igual forma; e depois de acabado, levantaram a mesa, e foram todos comer daquilo mesmo, no chão, oferecendo-nos com muita alegria; e acabando de comer trouxeram uns livros escritos à chinesa, ofereceram-me um e outro ao alferes, que pegamos e tornamos a lhes entregar, sentaram-se em esteiras estendidas no chão, e com os ditos livros cada um com o seu, entraram em um coro com vozes mui dissonantes, isto já de noite. Saí dalí fui aos da casa nova onde estavam os do chá, achei-os muito alegres, e tinham já comido, e ofereceram-nos chá e mendobim, estando alta a lua retirei-me para casa, e mandei a patrulha que fosse observar de longe, se havia alguma desordem sem que eles percebessem, assim fez a patrulha, e os Chinas acabaram os seus divertimentos sem novidade. Hoje de tarde faço retirar a patrulha por não ser mais precisa para este caso, em observância da ordem de V. Exa."32

A 10 de Dezembro de 1817 chegaram à fazenda os cientistas alemães Spix e Martius:

"Para beneficiar a fazenda de Santa Cruz havia o precedente ministro, conde de Linhares, disposto habitações para uma grande parte dos colonos chineses mandados vir ao país."33

Observaram que poucos chineses ainda residiam ali. A maioria tinha ido para a cidade, e vivia do comércio ambulante de "pequenas bugigangas chinesas", especialmente tecidos de algodão e foguetes. Muitas baixas, observam, causaram nos chineses as doenças, a saudade da pátria e a inadaptação ao novo ambiente. Os que permaneciam, "faziam pequenas plantações de café e de suas flores preferidas, jasmim e alfavaca, em roda de suas cabanas baixas, muito asseadas no interior".34

Sendo os chineses famosos pelo esmero e dedicação à agricultura e à jardinagem, Spix e Martius estranharam encontrar tão poucos vestígios de seu trabalho nas plantações de Santa Cruz. Sobretudo, tendo em vista ter estado ali considerável número deles. Admiraram, entretanto, a técnica e a habilidade com que executavam enxertias, para apressar o desenvolvimento das plantas.

A visita a Santa Cruz proporciou aos dois cientistas a oportunidade de comparar os chineses com os indígenas brasileiros:

"A fisionomia dos chineses imigrados foi-nos de especial interesse, e com o tempo ainda mais notável pelo fato que julgamos descobrir nela o tipo básico, que também se observa nos índios. (...) Pela comparação da fisionomia mongólica com a americana, tem o observador bastante ocasião de encontrar vestígios reveladores para a série de desenvolvimentos, pelos quais devem ter passado os asiáticos orientais, sob o influxo de outro clima, para finalmente se transformarem em americanos."35

O médico Johann Emanuel Pohl, natural da Boêmia, que veio ao Brasil com vários outros cientistas que acompanhavam o séquito da princesa Leopoldina, esteve na Real Fazenda de Santa Cruz em 19 de Fevereiro de 1818 e faz referência aos chineses no seu livro Viagem ao interior do Brasil:

"Primeiro se alcança uma linda casinha com lanternas coloridas e objetos similares com inscrições chinesas. Na realidade, é uma colônia de uns trinta chineses, que o Rei chamou da sua pátria para cá com o sábio intento político de introduzir aqui o chá."36

Viu cerca de 150 arbustos de quase 1,00 metro de altura, que lhe pareceram uma variedade do Thea bohea que se cultiva na província de Fuquiém. A planta medrava bem mesmo em terreno arenoso, em canteiros de 20 metros de comprimento por 45 de largura. Diante da plantação ficava "de sentilena um chinês de cara importante, andando de cima para baixo".

Pohl observa que o solo e o clima, sem dúvida, eram convenientes ao chá, mas que, "infelizmente houve engano na seleção dos plantadores e, além disso, parece que, por um ponto de vista errado, deixaram de fazer suas vantagens dependerem inteiramente da prosperidade das plantações de chá. Estas lhes importam muito menos do que a lucrativa cultura do café e o tranquilo negócio da venda de artigos usados que fazem no Rio de Janeiro e outras cidades".37

Acrescenta ainda que, devido à pequena extensão da plantação, a renda obtida era desproporcionadamente inferior à despesa, e o rei viu-se logo compelido a despedir os chineses e a entregar a exploração a outros trabalhadores.

A inglesa Maria Graham esteve na Real Fazenda em 24/8/1823 e deixou uma simpática descrição da "China de Santa Cruz", no seu diário de viagem:

"Fui às plantações de chá, que ocupam muitos acres de um morro cheio de pedras, tal como suponho que seja o habitat da planta na China. A introdução da cultura do chá no Brasil era um projeto favorito do rei Dom João VI, que trouxe as plantas e os tratadores da China com grande despesa. O chá introduzido aqui e no Jardim Botânico é tido como de qualidade superior. Mas a quantidade é tão pequena que até agora não há a mais leve promessa de pagar a despesa com a cultura. Contudo estão as plantas tão viçosas, que não tenho dúvida de que em breve se espalharão e provavelmente ficarão nativas. Sua Majestade construiu portões chineses e cabanas para corresponder ao destino destes jardins; colocados onde estão, entre os belos arbustos da erva, cujas folhas escuras e brilhantes e flores semelhantes à murta, as fazem adequadas para um canteiro, não produzem efeito desagradável. Os caminhos são bordados de cada lado de laranjeiras e rosais, e as sebes são de uma linda espécie de mimosa. De modo que a China de Santa Cruz é realmente um delicioso passeio. O imperador, porém, que compreendeu ser mais vantajoso vender café e comprar chá, do que obtê-Io com tais despesas, não continuou a platanção."38

O pintor e desenhista austríaco Thomas Ender,que também viera na comitiva da princesa Leopoldina, e permaneceu no Brasil entre 1817 e 1818, deixou dois trabalhos que interessam à história dos chineses em Santa Cruz. Um desenho a lápis intitulado Chineses das plantações de chá de Santa Cruz, em que aparecem dois com seus trajes e chapéus característicos, conduzindo, aos ombros, uma vara, da qual pendem um cesto e outros objetos. E uma aquarela intitulada Vista da fazenda de Santa Cruz do Oeste do Jardim Chinês. Os títulos foram escritos em alemão, pelo autor, nos respectivos trabalhos.

CHINESES NA BAHIA

A presença de chineses é documentada na Bahia. na região de Caravelas, Alcobaça e Mucuri.39

Um códice de registo de estrangeiros, existente no Arquivo Nacional, contém a anotação, datada de 10 de Agosto de 1814, da chegada, ao Rio de Janeiro, de quatro chineses provenientes de Caravelas:

"Apresentaram-se quatro Chinas vindos de Caravelas, vão morar para casa do Exmo. Sr. Araújo, nenhum deles tem nome e apresentaram passaporte e assinaram (...)."40

Seguem-se as assinaturas dos 4, em caracteres chineses. Ao dizer que "nenhum deles tem nome", o documento certamente queria dizer "nome em português".

Maximiliano, príncipe de Wied, no livro Viagem ao Brasil: 1815-1817, dá notícias dos chineses que viviam na região. Esteve na fazenda chamada Ponte do Gentio, pertencente ao conde da Barca, situada às margens do rio Alcobaça, ao norte de Caravelas. Ali viviam algumas famílias de índios, seis famílias de açorianos, escravos negros e nove chineses. Eles faziam parte do grupo que tinha sido trazido da China para o Rio de Janeiro para cultivar chá. Foram enviados alguns para a Ponte do Gentio e outros para Caravelas, para trabalhar como jornaleiros, mas só executavam serviços extremamente leves:

"Viviam conjuntamente em uma casinhola; um deles se fez cristão e casou-se com uma índia. Conservam os costumes do seu país natal; celebram-lhe as festas, apreciam toda espécie de caça plumada, e parece não serem muito exigentes na escolha do alimento. Guardam o maior asseio e ordem em seu rancho de pal--ha. As camas, por exemplo, são guarnecidas de finos cortinados brancos, dispostos com bom gosto, e suspensos, dos lados, a lindos ganchos de cobre. Essas camas contrastam de maneira estranha com o miserável casebre de palha em que estão colocadas. Os chineses dormem em delicadas esteiras de palha e descansam a cabeça num pequeno travesseiro redondo. Vimo-los comer arroz à típica moda chinesa, com dois pauzinhos. Alegraram-se muito com a nossa visita, contaram-nos, em péssimo português, coisas do seu caro país, e como lá tinham muito mais conforto do que no Brasil. Abriram também as malas, onde guardavam sofríveis porcelanas chinesas e grande número de leques de diversas variedades que trazem para vender."41

"Chineses das plantações de chá de Santa Cruz" Thomas Ender In: FERREZ, Gilberto, O Brasil de Thomas Ender. 1817, Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles, 1976, p. 233.

Em outra obra, Acréscimos, correções e notas à descrição de minha viagem pelo leste do Brasil, o príncipe de Wied refere-se a um chinês que morava em Mu-curi, que ele encontrou, quando se dirigia de Belmonte para essa localidade. O oriental havia sido mordido no pé por uma cobra que se acreditava fosse venenosa. Maximiliano não chegou a ver o réptil, mas empregou todos os meios ao seu dispor para salvá-lo. Durante a noite, as dores diminuiram e o chinês sarou, o que o levou a observar que talvez a cobra não fosse venenosa.42

Ao príncipe de Wied devemos também uma documentação icono-gráfica, datada, dos chineses na região: Chinês pescando no rio Alcobaça, Janeiro 1816.43

OS CHINESES DO RIO DE JANEIRO REQUEREM A D. JOÃO VI UM CÔNSUL E INTÉRPRETE, EM 1819

Na seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro existem dois manuscritos que foram publicados por nós pela primeira vez no "Boletim do Instituto Luís de Camões", de Macau.44

Trata-se de uma petição e de um abaixo-assinado com data de ó de Setembro de 1819. A petição refere-se às dificuldades linguísticas dos chineses, e pede a nomeação de um Intérprete e Director, indicando o chinês Domingos Manuel Antônio, "pessoa em quem concorrem os requisitos necessários para o desempenho de tal cargo".

"Chinês pescando no Rio Alcobaça. Janeiro 1816" Príncipe Maximiliano de Wied In: RÖDER, Josef: BALDUS. Herbert. Maximiliano, Príncipe de Wied: Viagem ao Brasil, 1815-1817: excertos e ilustrações, São Paulo, Melhoramentos, 1969, p. 35.
"Vista da fazenda de Santa Cruz" Thomas Ender In: FERREZ, Gilberto, O Brasil de Thomas Ender, 1817, Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles, 1976, p. 227.

O abaixo-assinado refere-se à necessidade de "uma pessoa de probidade da nossa Nação, que entendendo a língua portuguesa, nos possa servir de intérprete, director e cônsul", e reconhece "na pessoa do nosso Compatriota Domingos Manuel Antônio todas as circunstâncias precisas para o bom desempenho do dito emprego". Seguem-se as assinaturas de 51 chineses. As firmas são em caracteres chineses, e têm ao lado a transliteração portuguesa, e também o nome português que cada um adotou. Assim, o primeiro subscritor é Pan-Qin-Linn, que adotou o nome de Luís Caetano, e o último é Chau-A-Son, ou José António Sousa. Os dois documentos, assim como a transliteração dos nomes dos requerentes, e seus nomes em português, vêm em tinta parda, portuguesa, ao passo que os caracteres chineses em maior parte vêm em tinta preta, tinta china ou, como se diz no Brasil, tinta nam-quim.

PETIÇÃO Senhor Dizem os Chinezes residentes nesta Corte, e seo Districto, q'. havendo V. Mag. de por Sua Real Bondade permittido, q'. elles viessem de seo remoto Paiz estabelecer-se nesta Corte, e seo Districto por assim ser util á população, agricultura e Commercio do Reino do Brazil acontece, q'. os Supp. es, como Estrangeiros, e de huma Nação, cujo idioma he nada vulgar, se vêm nas tristes circunstancias de não ter hum Interprete, que possa transmittir perante os Tribunaes, e Justiças de V. Mag. de aquillo q'. he de seo direito, e justiça representar, tornando-se assim mais desgraçada a sorte dos Supp. es do q'. a de nenhuma outra das Naçoens, q'. tem concorrido á esta mesma Corte, pois q'. sendo impraticavel aos Supp. es adquirirem na sua Patria conhecimento das Lingoas, q'. são vulgares entre as Naçoens cultas, e sendo-lhes difficilimo o estudo da Portugueza por falta de Interprete, q'. entendendo a Lingoa Chineza possa explicar-lhes os correspondentes vocabulos Portuguezes, se tem da falta originado gravissimos prejuizos aos Supp. es não só físicos como moraes. Pelo q'. certos os Supp. es da Augusta Bondade e Clemencia de V. Mag. de muito humildemente implorão a V. Mag. de Queira Fazer-lhes a Graça de Nomear para Interprete e Director dos Supp. es á Domingos Manoel Antonio da mesma Nação, pessôa em quem concorrem os requesitos necessarios p. a o dezempenho de tal encargo, como o reconhecem os Supp. es no Documento junto, sem q'. com tudo por elles o nomeado vença ordenado algum da Real Fazenda de V. Mag. de porem somente alguns emolumentos pagos pelos Supp. es. P. a V. Mag.de. Nesta página e na segulnte: Petição dos chineses a D. João VI In: MOURA, Carlos Francisco, Os chinesos do Rio de Janeiro requerem a D. João VI um cônsul e intérprete, "Boletim do Instituto Luís de Camões", Macau, 8(1) 1974, pp. [8]-11.

Ra V. Mag. de que por Effeito de Sua Real Clemencia, Haja por bem deferir benignamente a humilde pertenção dos Supp. es mandando para o effeito requerido expedir as Ordens necessarias.

E. R. M. ce

ABAIXO ASSINADO

Nos abaixo assignados todos de Nação Chineza residentes nesta Corte, e seo Destricto, conhecendo a necessidade de huma pessoa de probidade da nossa Nação, q'. entendendo a lingua Portugueza nos possa servir de interprete, director e consul, e á que recorramos, p. a nos dirigir nos requerimentos, e negocios, q'. temos, e poderémos ter necessidade, á S. Mag. e, e perante os Tribunaes, e mais Justiças; reconhecemos na pessoa do nosso Compatriota Domingos Manoel Antonio todas as circunstancias precizas p. a o bom dezempenho do dito emprego, e por isso desejamos muito, que S. Mag. e nos Faça a Graça de o Nomear por Interprete, Director, e Consul dos da nossa Nação domiciliarios nesta Corte, e seo Destricto, conferindo-lhe p. a isso os poderes, e titulos necessarios, e p. a firmeza do referido nos assignamos.

Rio de Jan. ro aos 6 de Septembro de 1819.

(seguem-se 51 assinaturas).

Como vimos pelos depoimentos de viajantes estrangeiros, em pouco tempo os chineses que vieram para cultivar chá pas--saram, em sua maioria, a dedicar-se ao comércio ambulante, no centro do Rio de Janeiro. Talvez os descendentes deles tenham dado origem ao verdadeiro "bairro chinês" que muito tempo depois se formou no antigo Beco dos Ferreiros, no depois demolido Morro do Castelo.

Ao citado artista Thomas Ender devemos mais um documento iconográfico de 1817, sobre os chineses no Brasil: a aquarela Um chinês e a arte de fumar, na qual o requinte do narguilé e o aprumo do vestuário revelam um status urbano, bem distanciado dos colonos do chá e dos modestos vendedores ambulantes.

ARTIGOS ESCRITOS EM MACAU E PUBLICADOS NA IMPRENSA DO RIO DE JANEIRO

As relações entre Macau e o Brasil possibilitaram, na segunda década do século XIX, a publicação, na imprensa do Rio de Janeiro, de artigos escritos em Macau.

No jornal "O Patriota: Literário, Político, Mercantil, etc.", um dos primeiros periódicos fundados no Brasil, e que foi publicado no Rio de Janeiro, de Janeiro de 1813a Dezembro de 1814, encontramos dois artigos.

O primeiro saiu no número 5 e se intitula Gramá-tica filosófica, "remetido de Macau ao Redactor da Gazeta desta cidade, por Joaquim José Leite, Reitor do Real Colégio de S. José em 14 de Janeiro de 1813". O artigo teve continuação no nú-mero 6.45

O segundo, com o título Discurso sobre as palavras novas, saiu no número 5 do ano seguinte, e era do mesmo J. J. Leite, "professor das línguas latina e portuguesa do Colégio de S. José".46

José Joaquim Leite (1764-1853), natural de Vila Nova dos Infantes, Guimarães, foi enviado como missionário a Macau. Mestre do seminário local e. durante 46 anos, superior do Colégio de S. José das Missões. Foi membro da Sociedade Asiática Britânica e Cavaleiro da Ordem de N. Sra. da Conceição. Escreveu Lusitana, ou luso-latina, isto é, gramática portuguesa e latina, a que acede mitologia e versificação portuguesa, Cartilha macaense e Modo de aprender a ler em poucos dias,47 além de obras devocionais. Quando morreu, em 1853, uma Oração fúnebre em sua homenagem foi publicada em Cantão.

"Um chinês e a arte de fumar"

Thomas Ender

In: FERREZ, Gilberto, O Brasil de Thomas Ender;

1817, Rio de Janeiro, Fundação João Moreira Salles,

1976, p. 117.

MACAU POR VOLTA DE 1820, NA MEMÓRIA DE UM BRASILEIRO

José de Aquino Guimarães e Freitas nasceu na capitania de Minas Gerais "pelo ano de 1780", segundo Sacramento Blake.48 Foi oficial de artilharia e, por volta de 1815, foi para Macau, onde serviu no Batalhão do Príncipe Regente, sob as ordens do brigadeiro Francisco de Melo da Gama Araújo. Tendo chegado a Macau, em 1822, a notícia do regresso de D. João VI a Portugal, o governador José Osório de Castro Cabral e Albuquerque nomeou o coronel José de Aquino para a missão de se dirigir a Lisboa e "felicitar a S. Majestade e sua Real Família pela sua feliz chegada a seu país natal, e ao so-berano congresso pela sua instalação e progressivo empenho pelo bem material, devendo ao mesmo tempo dar conta da maneira satisfatória com que se tinha recebido e solenizado em Macau o novo sistema constitucional".49

O Leal Senado aprovou a nomeação de José de Aquino e conferiu-lhe "os poderes de seu deputado".

Na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, na Coleção Matias, existe o manuscrito Memória sobre Macau por José de Aquino Guimarães e Freitas, Cavaleiro da Ordem de Cristo, Coronel d'Artilharia Comandante do Batalhão Príncipe Regente, e Procurador da Cidade de Macáo, em Lisboa.50

A obra foi publicada em Coimbra, em 1828, com a seguinte folha de rosto: Memória sobre Macáo por José de Aquino Guimarães e Freitas, Natural da Província de Minas Gerais, Coronel de Artilharia, ex-Procurador da mesma Cidade, e actualmente Governador da de Coimbra. Na Real Imprensa da Universidade. 1828. Com Licença da Real Comissão de Censura.51 Os temas abordados nessa publicação são os seguintes: posição geográfica, extensão, natureza do solo, agricultura, ictiologia, fontes, porto, clima, moléstias, aspecto topográfico, edifícios, população cristã, população sínica, caráter físico dos habitantes cristãos, fisionomia moral dos mesmos, caráter físico e moral dos Chins, origem do estabelecimento, governo, comércio, receita pública, consuno público, fortificações, tropa, estabelecimentos de instrução, estabelecimentos de filantropia, atitude política do estabelecimento.

O coronel José de Aquino publicou em Lisboa, em 1826, outro trabalho que interessa à história de Macau: Elogio do Sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira.52

Diz Sacramento Blake que José de Aquino "faleceu em Coimbra, segundo penso, pelo ano de 1835, sendo governador militar desta cidade".

A CIDADE DO NOME DE DEUS EM 1880, VISTA POR UM BRASILEIRO: HENRIQUE C. R. LISBOA E SUAS RECORDAÇÕES DE VIAGEM

Henrique C. R. Lisboa, Secretário da Missão Especial do Brasil à China, "encarregada de abrir as relações entre os dois impérios antípodas", escreveu um interessante livro intitulado A China e os Chins, publicado em Montevideu, em 1888.53

Na introdução, datada de Janeiro desse ano, o autor, que pertencia à Sociedade Central de Imigração, informa que visava dois fins ao dar a público a obra: descrever suas impressões sobre o Império do Meio, e "concorrer, na medida de minhas forças e de conformidade com minhas convicções, para a resolução do árduo problema que há alguns anos conserva em crise permanente a sociedade brasileira: a transformação do trabalho".

Ele era apologista da imigração chinesa para o Brasil, assunto que na época provocava acirrada polémica: de um lado os partidários de colonos europeus, e de outro os de colonos chineses.

"Depois de uma penosa navegação de três meses, avistei finalmente, numa bela tarde do mês de Junho de 1880, as costas da China Florida, daquela terra que se tornava para mim da promissão, pelo anhelo de deixar o incomodo barco que me transportava, e satisfazer a curiosidade, desde a infância alimentada, de conhecer a pátria dos pacientes fabricantes de mil admiráveis artefactos."

Começa assim a obra que é, seguramente, um dos primeiros livros de viagem brasileiros sobre a China.

Macau mereceu de Henrique Lisboa uma interes--sante descrição.

Os aspectos urbanísticos e arquitetônicos estabeleciam um vivo contraste entre a Cidade do Nome de Deus e as cidades chinesas. Suas "ruas escabrosas", com escadinhas, lembravam as velhas calçadas lisboetas. As casas eram ornadas de "balcões de madeira verde, estilo árabe, ou de janelas engraçadas". As numerosas igrejas e os conventos empoleirados em montes, o contínuo repique dos sinos e o retumbar dos tambopres da guarnição davam a Macau uma fisionomia que a diferençava das outras cidades, "onde predomina o espírito prático dos ingleses e em que a atividade comercial absorve todas as outras manifestações de vida".

Não poderiam faltar referências à Gruta de Camões e aos principais edifícios.

O empenho dos janotas em se trajarem à européia era outra originalidade macaense: em nenhuma outra cidade da China ocorria o mesmo.

Henrique Lisboa, depois de discorrer sobre a música chinesa, aborda a pintura, e faz referência ao pintor inglês Chinnery, que estabeleu em Macau no início do século XIX, uma escola "da qual sairam alguns chins verdadeiros artistas".

Dois aspectos da vida macaense mereceram comentários desfavoráveis do autor: o jogo, sobre o qual se alonga por 5 páginas em descrições e considerações moralistas, e os bairros pobres chineses, que já o haviam surpreendido em Hong-Kong.

Passemos, portanto, a palavra a C. R. Lisboa,54 para que nos descreva o que de mais interessante viu na Cidade do Nome de Deus.55

A CIDADE DO NOME DE DEUS

A "Cidade do Nome de Deus Não Há Outra Mais Leal"** occupa a parte sul da pequena península que termina a ilha de Hiang-Chang. Nove morros a dominam do lado do mar, erguendo-se em quatro deles outras tantas fortalezas armadas de antiga artilharia. O bairro onde se albergam 4.000 europeus que vivem em Macáu acha-se situado na parte leste da cidade e apresenta um alegre aspecto, com suas construcções pintadas de vivas e variadas cores, seus seculares conventos e igrejas e seu belo passeio a beira mar, que recordou-me a "Prome-nade des anglais" de Niça ou a praia de Botafogo.

A "Praia" é o nome desse passeio onde, à tarde, saem a respirar a suave brisa do mar morenas européias ou amarelas mestiças, trajando vistosas saias que procuram imitar as modas um pouco atrasadas de Paris.

Carros antiquados, cadeirinhas e pedestres cruzam-se constantemente em uma e outra direcção, parando de vez em quando para permitir alguns cumprimentos ou confidências de amor, arte a que se dedicam assiduamente os mancebos de Macau por não encontrarem, talvez, outra ocupação. Não se pode, porém, negar que empreguem grande engenho para ostentar uma toilette sempre cuidada. Nada mais interessante do esses moços de fisionomia chinesa e cabelo naturalmente lustroso, trajando elegantes fraques, com os pequenos e bem formados pés apertados em brilhantes botinas e o pescoço encerrado em altos e duros colarinhos rodeados de coloridas gravatas. É Macau a única cidade da China em que se mantém a pretenção dos trajes europeus ainda que adulterados pelo gosto e a distância e pela especulação do commércio, que encontra aí cômodo mercado para os artigos passados de moda. Em outras partes, os residentes estrangeiros adaptam o seu traje à comodidade de movimentos ou às condições do clima: Macau, porém, conserva aquela originalidade, que não deixou de produzir-me grata impressão, ainda que certa estranheza, depois, que os meus olhos se tinham habituado, na minha longa viagem desde o istmo de Suez, a só ver como excepção a comprida sobre-casaca e o chapéu de copa.

É verdade que os ingleses nunca abandonam a casaca e a gravata branca para sair à noite: mas, durante o dia chegam a suprimir a camisa e só usam daquele chapéu de formas extravagantes que chamam a atenção dos fluneurs da nossa rua do Ouvidor, quando aporta ao Rio de Janeiro algum vapor da Austrália.

Não são, porém, somente os janotas e as elegantes de Macau que lhe dão um cunho especial entre as cidades da China. As suas ruas escabrosas, com suas escadinhas que lembram as velhas calçadas lisbonenses; as suas casas de construcção irregular, ornadas de balcões de madeira verde, estilo árabe, ou de janelas engradadas; as numerosas igrejas e os conventos empoeirados, residências de padres que circulam gravemente, como quem tem consciência da sua influência, vestindo amplas batinas e deitando a bênção sobre os transuentes; o contínuo repique dos sinos e o retumbar dos tambores da guarnição, tudo dá a Macau uma fisionomia que contrasta com a das outras cidades, onde predomina o espírito prático dos ingleses e em que a actividade comercial absorve todas as outras manifestações da vida. Mas o comércio de Macau está em constante decadência e não parece longe de limitar-se às necessidades locais. Em vinte anos, o número anual das saídas de navios do seu porto caiu de 1000 a 200, sendo estes, pela maior parte, embarcações de cabotagem que transportam a Hong-Kong o chá ainda exportado da colônia portuguesa no valor de dois mil e quinhentos contos. (...)

Mas, a estas reflexões do economista podem-se opor, e talvez com vantagem, as do moralista. A imensa riqueza comercial que, a custo de ingente trabalho e de uma vertigiosa ambição, atesouram anualmente Hong-Kong e outros centros europeus na China, poderá por acaso compensar o ideal bem estar em que vivem os modestos habitantes de Macau, à sombra dos seus pitorescos morros, no gozo de um clima privilegiado e embalados pelas gloriosas recordações do passado? Esta pergunta faz meditar o filósofo sobre o verdadeiro sentido da palavra felicidade. Onde encontrá-la no judeu ávido de ouro, a quem o afã de amontoar faz desprezar aqueles mesmos gozos que lhe poderia proporcionar o cobiçado metal, ou no sentimento trovador, cuja própria miséria exalta as inefáveis expansões d'alma! É este um problema que não é dado à humanidade resolver a menos de admitir que a felicidade reside aí onde cada um julga encontrá-la; mas, nos próprios europeus que habitam aquelas longínquas regiões temos um exemplo de que não há quem esteja contente da sua sorte. Com efeito, os moradores de Macau vivem sonhando com a sua mudança para Hong-Kong e, em compensação, muitos residentes desta última cidade só almejam enriquecer para retirar-se a Macau. Alguns já aí se estabeleceram definitivamente, outros pos--suem na colônia portueuesa bonitas chácaras, onde vêm passar o verão, muito mais suave do que em Hong-Kong.

Não são, entretanto, somente os europeus os que dão merecido apreço às qualidades de Macau; muitos chins acomodados aí fixam sua residência, seja para procurar o amparo do pavilhão português contra as tendências acapa-radoras das autoridades imperiais ou para entregar-se à sua paixão favorita, o jogo.

A GRUTA DE CAMÕES E OUTROS MONUMENTOS

Acha-se situada essa gruta dentro de uma propriedade particular, cujo dono tem prazer em franquear acesso ao pitoresco sítio onde, à sombra de frondosa vegetação, cantava o vate lusitano as glórias da pátria ingrata. Numa cavidade, entre dois rochedos, vê-se um busto do autor d'Os Lusíadas, rodeado das inscrições com que os visitantes prestam justa homenagem a uma glória hoje universalmente reconhecida. Obtém-se daí uma esplêndida vista de Macau e da sua plácida baía e compreende-se que se prestasse esse ameno refúgio a tão sublimes inspirações. Ainda depois, os modernos poetas e pintores que o destino atira a essas praias frequentam carinhosamente esse delicioso retiro, seja para respirar nas perfumadas auras da tarde os eflúvios da poesia ou para roubar com o pincel, no esplendor de um tropical por de sol, os encantos dessa natureza privilegiada. (...)

"Henrique C. R. Lisboa em traje chinês"

In: LISBOA, Henrique C. R., A China e os Chins: recordações

de viagem, Montevideo, Typographia a Vapor de A. Godel

Cerrito, 1888, [pp. 238-9].

O Palácio do Governo de Macau é um vasto edifício cuja arquitectura nada tem de notável. A mobília que o guarnece merece, porém, atenção dos amantes de cousas antigas, e algumas peças obteriam, certamente, como tais, preços fabulosos em Paris ou Londres. Também admirei ali o magnífico serviço de porcelana chinesa antiga, com a qual ofereceu o amável Governador Graça um banquete à Missão de que eu fazia parte.

Entre outros edifícios, sinão elegante, ao menos respeitáveis pela sua idade, notam-se a Catedral, o Paço municipal, o Senado e a igreja de São Paulo, construída em 1594. Esses edifícios estão ornados exteriormente de estátuas de mármore e granito, deformadas pela intempérie, e interiormente, de pinturas a fresco, quasi destruídas pela incúria. Ao sair desses monumentos seculares. acorda o viajante como de um sonho, sentindo-se na China, depois de ter sido transportado em espírito a alguma antiga basílica de Portugal ou Hespanha.

A CIDADE CHINESA

Deixando esse lado da península, onde se ostentam como funebre memento as recordações da passada glória lusitana, chega-se, depois de uma marcha de dois quilômetros à cidade chinesa. Não é gradual, como em Hong-Kong, a transição de uma cidade à outra; Macau, com sua construcção européia, suas ruas calçadas de pedra, suas igrejas, conventos e imensos quartéis, não parece estar na China. Si, encostado à muralha do cais, numa das extremidades do arco de circulo descrito pela Praia, deixa-se absorver o viajante pelas reflexões que lhe sugere a contemplação dessa relíquia dos séculos, não é sem sobresalto que verá interrompida a sua meditação pela fantástica aparição de um san-pan em forma de ovo, resvalando mansamente sobre o espelho das aguas, ao esforço de uma estranha mulher coberta de enorme chapéu pontudo. Os carregadores de cadeirinhas, interpelando-se vivamente em gutural dialecto, não lhe parecerão, nesse momento, menos fenomenais hóspedes caidos do céu ou do inferno. Mas, atravessada a estreita superfície que ocupam essas velhas ruas, galgadas as escadinhas e ladeiras e transpostas as chácaras, que vão escas--seando pouco a pouco, entra-se de repente em outro mundo, em outra atmosfera.

"Teatro popular chinês"

In: LISBOA, Henrique C. R., A China e os Chins: recordações

de viagem, Montevideo, Typographia a Vapor de A. Godel-Cerrito, 1888, [pp. 162-3]

Não é somente no sentido figurado que se sente essa variação do ambiente. Os viajantes que têm percorrido as regiões da terra terão notado os cheiros especiais que se desenvolvem nas aglomerações de população dos diversos paises que visitam. Atribui-se, e com razão, essa particularidade às emanações dos artigos de maior uso ou consumo. Ouvi dizer a alguns chins que os europeus não escapam à regra geral a esse respeito,nem é extraordinário que assim suceda e que o hábito nos inabilite a reconhecê-lo praticamente. Tive disso uma incômoda prova quando, em excursões que fiz nas cidades chinesas, fui insistentemente olfateado e perseguido por ladridos e ameaças de cães, que não se deixavam lograr pelo escrupuloso traje chinês que eu ostentava com a dignidade de um letrado.

A densidade da população da China estende mesmo aos campos o seu cheiro composto de almíscar, ópio, verniz, azeite, peixe, esterco e provavelmente muitos outros ingredientes menos voláteis. Em toda a China sente-se esse cheiro especial que ainda se nota nos objetos chineses que chegam ao Ocidente. No bairro europeu de Macau porém, é ele menos pronunciado, por se confundir, talvez com o forte cheiro português antigo, e isso permite ao viajante antecipar a sua chegada à cidade chinesa onde os hábitos pouco asseados da população e a sua principal ocupação, a pesca, dão preferente desenvolvimento às emanações das duas últimas matérias primas que citei.

Nada de especialmente curioso tem essa parte de Macau. As mesmas ruas tortuosas e estreitas de Cantão, sem as ricas lojas ou os interessantes edifícios daquela cidade, casas baixas e amontoadas em uma irregularidade que perturba a vista pelos inúmeros páus, táboas, roupas, cordas e utensílios de toda sorte, dispostos nas fachadas ou através das ruas.

A PINTURA CHINESA E A ESCOLA DE CHINNERY

Em idênticas circunstâncias acha-se a pintura. As composições desse gênero ressentem-se de uma falta absoluta de perspectiva linear ou aérea, e apenas são notáveis pelo seu brilhante colorido que não apresenta, contudo, sinão mui vagas noções do claro-escuro. Nas cópias são porém exímios. Do mesmo modo que aquele alfaiate de Macau citado por alguns viajantes, o qual, devendo fazer um par de calças pelo modelo de outro usado, copiou até os remendos, assim o pintor chinês reproduzirá escrupulosamente os próprios defeitos da tela.

A especialidade do retrato é antiquíssima na China e não dá tanto lugar à crítica, principalmente depois que os que a ela se dedicam puderam observar e imitar os processos dos pintores europeus que frequentaram aquele Império. Entre estes, merece ser citado o retratista e paisagista inglês Chinnery, que se estabeleceu em Macau no princípio deste século e ali fundou uma escola da qual sairam alguns chins verdadeiros artistas.

Publicado in Revista de Cultura,

N° 22, II Série, Janeiro/Março de 1995.

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RÖDER, Josef; BALDUS, Herbert, Maximiliano, Príncipe de Wied: Viagem ao Brasil, 1815-1817: excertos e ilustrações, São Paulo, Melhoramentos, 1969.

RUGENDAS, Johann Moritz, Viagem pitoresca através do Brasil, trad. de Sérgio Milliet, São Paulo, Livraria Martins, 1940.

SANTOS, Luís Gonçalves dos, Memórias para servir à história do Brasil, Zélio Valverde, 1943, 2 vol.

SANTOS, Luís Gonçalves dos, Memórias para servir à história do Reino do Brasil, Lisboa, 1825.

SEIDLER, Carl, Dez anos de Brasil, trad. de Bertoldo Klinger, São Paulo, Martins, 1825.

SPIX, Johann von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von, Viagem pelo Brasil: 1817-1818, trad. de Lúcia Furquim Lahmeyer, 3a ed., São Paulo, Melhoramentos, 1973.

WIED-NEUWIED, Maximiliano, príncipe de, Acréscimos, correções e notas à descrição de minha viagem pelo leste do Brasil, trad. de Olivério Mário de Oliveira Pinto, Rio de Janeiro, CNP, 1969.

WIED-NEUWIED, Maximiliano, príncipe de, Viagem ao Brasil: 1815-1817, trad, de Edgard Sussekind de Mendonça, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1958.

** " Inscrição que figura na fachada do Paço do Senado desde 1654." (HCRL)

NOTAS

1 LISBOA, Henrique C. R.. A China e os chins, pp. 66-7.

2 O autor foi, provavelmente, o primeiro pesquisador a estudar, sistematicamente, as relações entre Macau e o Brasil. De seu trabalho resultaram várias publicações em Portugal, em Macau e no Brasil. Várias tratam também das relações de Macau com o Japão. Esses trabalhos realizados quando integrava os quadros do Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, da Universidade de Brasília, sob a direção do ilustre Mestre Agostinho da Silva, não puderam ter prosseguimento em virtude da extinção desse Centro. Na Bibliografia deste artigo relacionamos as principais publicações dessa fase de estudos. Julgamos da maior oportunidade a retomada dessas pesquisas.

3 Cf. MOURA, Carlos Francisco, Relações entre o Brasil e Macau no início do século XIX segundo as Mémorias para servir à história do Brasil, pp. 261-70.

4 SANTOS, Luís Gonçalves dos. Memórias para servir à história do reino do Brasil, 1825, vol. l, p. 350.

5 Idem, pp. 33 1-2.

6 Idem, pp. 351-2.

7 Idem, vol. 2, p. 619.

8 Idem, p. 651.

9 Idem, pp. 651-2.

10 RIO BRANCO, Barão do, Efemérides brasileiras, p. 138.

11 SANTOS, op. cit., vol. l, pp. 300-2.

12 Idem, p. 303.

13 ABREU, Luís de, Botanica, pp. 16-8.

14 Idem, ibidem.

15 MOURA, Carlos Francisco, Colonos chineses no Brasil no reinado de D. João VI, pp. 185-91.

16 SP1X, Johann von; MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von, Viagem pelo Brasil: 1817-1818, vol. l, p. 75.

17 Idem, ibidem.

18 RUGENDAS, Johann Moritz, Viagem pitoresca através do Brasil, p. 153.

19 Idem, p. 156.

20 SEIDLER, Carl, Dez anos de Brasil, p. 57.

21 Idem, ibidem.

22 GRAHAM, Mary, Diário de uma viagem ao Brasil, 1956, pp.179-80.

23 MOURA, Colonos chineses...

24 Caixa 507, doc. 57, datado de 3 de Setembro de 1814. Ministério do Reino, Real Fazenda de Santa Cruz, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro.

25 Idem, doc. 19, 24 Dez. 1814, p. 81. O café já era cultivado em Santa Cruz pelo menos desde os fins do século XVIII, como refere documento datado de 12.03.1795.

26 Idem, doc. l.

27 Idem.

28 Idem.

29 Idem, doc. 28.

30 Idem, doc. 58.

31 Idem, doc. 14.

32 Idem, doc. 15, 1816, p. 86.

33 SPIX; MARTIUS, op. cit., p. 96.

34 Idem, ibidem.

35 Idem, p. 97.

36 POHL, Johann Emanuel, Viagem ao interior do Brasil, p. 55.

37 Idem, pp. 55-6.

38 GRAHAM, op. cit., p. 324.

39 MOURA, Carlos Francisco, Os chineses do Rio de Janeiro requerem a D. João VI um cônsul e intérprete, p. 5.

40 Códice 370, Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, vol. l, fls. 178 v. O livro Registro de estrangeiros, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1960, que publica as informações contidas nesse códice, dá a chegada erroneamente em Setembro: "Vieram 4 chineses de Caravelas no dia 10.09.1814, cód. 370, livro l, fls. 178 v". O códice regista Agosto.

41 WIED-NEUWIED, Maximiliano, príncipe de, Viagem ao Brasil: 1815-1817, p. 182.

42 WIED-NEUWIED, Maximiliano. príncipe de, Acréscimos, correções e notas.... p. 280.

43 RÖDER, Josef; BALDUS, Herbert, Maximiliano, Príncipe de Wied: Viagem ao Brasil, p. 35.

44 MOURA, Os chineses do Rio de Janeiro... op. cit., 1974, pp.75-82.

45 LEITE, Joaquim José, Gramática filosófica, "O Patriota", Rio de Janeiro, (5-6) Maio-Jun. 1813.

46 LEITE, Joaquim José, Discurso sobre as palavras novas, "O Patriota", Rio de Janeiro, (5) Set.-Out. 1814.

47 LEITE, Joaquim José, Lusitana, ou luso-latina, isto é, gramática portuguesa e latina, a que acede mitologia e versificação portuguesa, Lisboa, na Typographia de José Baptista Morando, 1833.

LEITE, Joaquim José, Cartilha macaense, Lisboa, Imprensa Nacional, 1850.

LEITE, Joaquim José, Modo de aprender a ler em poucos dias, Lisboa, Imprensa Nacional, 1852.

48 BLAKE, Augusto Victorino Alves Sacramento, Diccionario bibliographico brazileiro, vol. 4, p. 13.

49 INOCÊNCIO, Francisco da Silva, Diccionario bibliographico portuguez, t. 12, pp. 240-1.

50 FREITAS, José de Aquino Guimarães e, Memoria sobre Macáo, Lisboa, BNRJ, 76 p., manuscrito, 1-28, 28 (Coleção Matias).

51 FREITAS, José de Aquino Guimarães e, Memoria sobre Macáo, Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1828.

52 FREITAS, José de Aquino Guimarães e, Elogio do Sr. Miguel de Arriaga Brum da Silveira, Lisboa, António Rodrigues Galhardo, 1826. Cf. INOCÊNCIO. op. cit., t. 12.

53 LISBOA, op. cit.

54 Os trechos agrupados por nós, para facilidade de leitura, em subtítulos, foram extraídos das seguintes páginas da obra citada em 53: "A cidade do Nome de Deus" - pp. 108-12: "A Gruta de Camões e outros monumentos" - pp. 118-20; "A cidade chinesa" - pp. 120-1: "A pintura chinesa e a escola de Chinnery" - p. 165.

55 O objectivo da missão, como se disse, foi o estabelecimento de relações entre o Brasil e a China, com a assinatura do primeiro tratado. A este assunto voltaremos em outra oportunidade.

* Arquitecto, professor e investigador; membro da Academia Portuguesa da História e da Academia da Marinha de Lisboa. Trabalhou no Centro Brasileiro de Estudos Portugueses, da Universidade de Brasília, sob a direcção do Prof. Agostinho da Silva. Especialista da presença portuguesa no Oriente, publicou, entre outros: O descobrimento do Japão pelos portugueses: 1543, Rio de Janeiro, 1943; Nagasaki: cidade portuguesa no Japão, Lisboa, 1969; Notícias da visita feita a algumas terras do Alentejo pela primeira embaixada japonesa à Europa (1584-1585), Évora, 1969; Roteiros do Japão I: o primeiro roteiro de Nagasáqui, Évora, 1970; O galego Pero Diez, um dos primeiros europeus que descreveram o Japão, Vigo, 1971; Os roteiros do Japão do Códice Cadaval, Lisboa, 1972; Tristão Vaz da Veiga, capitão-mor da primeira viagem Macau-Nagasáqui (IV centenário 1571-1971), Macau, 1971; Macau e o comércio português com a China e o Japão nos séculos XVI e XVII, Macau, 1973; O Namban-ji, Templo dos Bárbaros do Sul, de Kyoto, Macau, 1976.

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até a p.