Artes

O ARTISTA FUGITIVOE O "SALVADOR" DE MACAU ANTIGO

Robin Hutcheon*

A Praia Grande, vista do nordeste. Aguarela. Colecção privada.

Se tivesse vivido 100 anos mais tarde, George Chinnery seria, talvez, mais lembrado como foragido internacional do que como um artista britânico digno de respeito, a quem a vida proporcionou maus momentos.

Em 1825, quando chegou a Macau, desembarcou confiante de que, nesta cidade, a sua reputação estava intacta.

Não havia polícia à sua espera com ordem de prisão. Ninguém o conhecia, a não ser os que tinham vivido ou que tinham ligações em Calcutá ou Madrasta, onde Chinnery viveu e trabalhou durante os 23 anos anteriores ao seu embarque para Macau.

Começou a sua carreira artística durante a adolescência como aluno do grande pintor inglês Sir Joshua Reynolds, e chegou a ser -- na opinião deste, pelo menos -- um dos cinco maiores retratistas britânicos. À procura de novas inspirações foi viver para a índia, no inicio do séc. XIX, onde tinha relações familiares no ramo dos negócios.

No decorrer da sua estadia na Índia, fez nome como pintor, conhecido e protegido pela classe dirigente indiana.

Mas depois de uma agitada vida social, este bon viveur deixou o país devendo avultadas somas de dinheiro, isto para não citar compromissos não assumidos na totalidade e uma reputação manchada.

Chinnery era principalmente um fugitivo, se não da justiça, certamente dos credores e dos seus pares sociais.

A imprensa local de Calcutá, então sede da Companhia das Índias Orientais, foi suficientemente elegante para abafar este pequeno assomo de escândalo, garantindo aos leitores que ele tinha abandonado o país por questões de saúde e, em férias de trabalho, para desenhar e pintar cenários novos.

Igreja de S. Paulo, antes do incêndio, 1834. Lápis e sépia sobre papel.

Mas deixou escapar esta alusão indirecta de que "esperamos que as circunstâncias permitam o seu regresso" -- da mesma forma intencional como a Polícia menciona que gostaria de entrevistar certas pessoas que lhe poderiam ser úteis nas suas investigações.

Não que Chinnery o pudesse fazer, contudo. Não só tem grandes dívidas por saldar, como deixa atrás de si, em Calcutá, uma mulher odiosa de quem o pintor se quer manter o mais possível distante.

Foi muito para se afastar dela e das tragédias familiares -- a morte do seu filho e herdeiro e a revelação de dois filhos anglo-indianos -- que fugiu do pais.

Chinnery sofria, naquele momento da sua vida, de uma depressão profunda. Mas, ao toMar a resolução de vir para o território português de Macau, o que fazia, na realidade, era fugir do longo braço da justiça britânica.

Apesar de a Companhia das índias Orientais manter negócios em Macau, as sentenças judiciais da lei britânica não tinham, aqui, qualquer poder ou influência. Portugal era certamente o mais velho aliado da Grã-Bretanha, mas o que quer que fosse que implicasse expansão colonial e comércio, era o salve-se quem puder. Se os credores queriam que ele pagasse as dívidas, então teriam de o vir apanhar.

Gruta de Camões, c. 1883-38. Aguarela em papel (sem data).

Em 1825, ainda não existia a colónia de Hong Kong, e a presença britânica mais próxima, ficava muito distante, a sul, na ilha de Singapura que Sir Stanford Raffles tinha comprado ao sultão de Johore para a Companhia das Índias Orientais, seis anos e meio antes.

Portugal, naquela época já podia reivindicar uma presença de quase 300 anos em Macau e, nesse tempo, a pequena península -- com uma superfície que não excedia as duas milhas quadradas -- tinha construido, senão uma comunidade próspera, certamente uma infraestrutura comercial de reputação firmada.

Tinha desenvolvido o comércio das sedas e das pratas com os japoneses, nos primeiros tempos, e negociado em especiarias com Timor Oriental, Goa e Malaca. Os barcos e veleiros portugueses largaram para oriente, para Manila em busca de algodão, cobalto, tabaco e cera.

Os ricos tinham construido mansões sumptuosas, em Macau. Uma diversidade de igrejas, mantidas pelos Jesuítas, Dominicanos, Agostinhos e Franciscanos, ocupavam lugar de destaque na cidade, que crescia entre a Colina da Penha a sul, e a Fortaleza do Monte a norte, deixando, a seguir, uma zona rural, tampão, até às Portas do Cerco.

Anos mais tarde, a sul da igreja da Penha, erguer-se-ia, majestosamente, a residência do Governador. Aquela igreja, construida, inicialmente, em acção de graças, pelos passageiros e tripulação de um navio português que tinha escapado às investidas dos holandeses, inimigos temidos, tornou-se um santuário a Nossa Senhora, protectora dos marinheiros e de todos os que navegassem nos mares da China, infestados de piratas.

Macau, naquele tempo, tinha um nome que bem reflectia o orgulho e grandeza de Portugal --"Cidade do Santo Nome de Deus de Macau. Não há outra mais leal." -- em testemunho da sua fidelidade, quando a bandeira azul e branca de Portugal continuou hasteada durante o domínio espanhol, na Europa.

Antes disto era apenas designada por "Porto do nome de Deus na China".

Na sua grandeza veria, não só, erguer-se uma catedral e mais belas igrejas, mas também o florescer do espírito missionário, incutido pelos primeiros colonizadores portugueses.

Durante algum tempo, comerciantes, marinheiros e soldados, homens violentos e duros, manobravam as primeiras caravelas rumando as proas às águas lamacentas do estuário do Rio das Pérolas. Homens de Fé eram, também, eles.

Degraus da Igreja de S. Francisco, c. 1835-38. Lápis sobre papel (sem data).

O venerado e santo espanhol, Francisco Xavier partiu em busca duma tentativa de estabelecimento da presença cristã, na China continental. Após ter chegado a Kagoshima e erguido uma cruz no Japão, desembarcou na ilha chinesa de Sanchoão, tendo aí encontrado a morte -- não foi, exactamente, em terra continental chinesa, mas tinha o seu objectivo à vista. Mais tarde, outros missionários, divulgariam os ensinamentos do evangelho na China.

O Porto Interior, visto da Casa Garden. Óleo sobre tela. Colecção privada.

A igreja foi tão importante no crescimento de Macau como os comerciantes, homens de negócios e funcionários. Havia, frequentemente, mais padres e monges do que soldados, e eram os padres que, por vezes, conduziam a luta contra pretensos invasores. Quem se pode esquecer da corajosa defesa da cidade pelos canhões da Fortaleza do Monte em 1622, e do tiro feliz (ou inspirado) de Fr. Jerónimo Rho, que destruiu o barco de munições holandês? Não fora isso, outra bandeira poderia ter sido hasteda por cima da cidade.

Quando Chinnery chegou em 29 de Setembro de 1825, Macau era uma cidade mergulhada em lenda e história. Embora tivessem visto melhores dias, as suas fortalezas, igrejas, casas, terraços, acampamentos, templos e ruas empedradas transpiravam história. Tal como as ubíquas raízes da figueira-de-bengala, eram artefactos vivos preservados, num tempo, que nos transporta aos primeiros anos do colonialismo português.

As influências na arquitectura do séc. XVI e príncipios do séc. XVII, em Macau, têm origem em Goa, Moçambique, Malaca e Timor.

As igrejas românticas do sul da Europa foram transplantadas para a América do Sul e Central, e também para o Extremo Oriente.

Chinnery, quando chegou a Macau, deve ter sentido que esta era uma comunidade mais intrigante do que a manta de retalhos que constituia a nação indiana, com os seus contrastes de opulência principesca e miséria extrema.

Embora a sua primeira necessidade fosse assegurar um tecto para viver, ele tinha consciência de que o que lhe faria mais falta seria o dinheiro.

Depressa descobriu que as patacas não cresciam das árvores e que as promessas não valiam nada para os altivos comerciantes, que tinham residência sazonal em Macau. Nem havia empréstimos fáceis para artistas sem dinheiro. Ele tinha que demonstrar capacidade e talento.

Tendo chegado em Setembro, Chinnery verificou que os seus potenciais clientes se tinham mudado para as, assim chamadas, fábricas em Cantão, na margem do rio, a fim de fazerem negócios durante o Inverno. Teve de os seguir para com eles travar conhecimento, e oferecer os seus serviços.

Felizmente, que as suas relações na Índia lhe proporcionaram acesso às casas de alguns dos mais importantes comerciantes de chá e ópio, e, assim, nos meses seguintes, obteve alojamento e sustento em troca dos seus desenhos e pinturas.

Mas, de regresso a Macau -- um dos seus primeiros esboços tem a data de 10 de Dezembro de 1825.-- os rendimentos mantinham-se fracos. Chinnery, não era, e ainda bem, um indolente, e, assim, todos os dias se aventurava para fora dos seus aposentos, ao tempo na Rua Inácio Baptista, n° 8, até encontrar um lugar à sombra, onde desenhava tudo o que lhe passasse por perto.

Foram estes desenhos, às centenas, que se tornaram a matéria prima dos álbuns de esboços, tão populares entre os comerciantes de Cantão como entre os visitantes que passavam por Macau. Um dos seus primeiros álbuns foi compilado dois meses após a sua chegada, em 1825, e retrata na capa a fachada da igreja de S. Domingos.

Durante os 27 anos seguintes, desde que o tempo e a saúde o permitissem, Chinnery fez disso uma regra; passar uma parte do dia na rua, de bloco em punho, para desenhar tudo o que aparecesse à vista.

Com o decorrer dos anos, conseguiu reunir uma tal colecção de desenhos, que nos deixou testemunhos surpreendentemente detalhados dos edifícios, igrejas, fortalezas, pessoas, comércios e ocupações.

Curiosamente, existem poucos retratos conhecidos de funcionários portugueses, das suas esposas e familiares. Mas há muitos, de britânicos, americanos e comerciantes estrangeiros. Há também excelentes pinturas de importantes comerciantes chineses Hong. Sentavam-se à sua frente, em magníficas vestes oficiais de mandarim. Uma, de Hoqwa, foi escolhida para uma exposição importante em Londres, e obteve comentários muito elogiosos.

Num outro desenho a tinta, Chinnery retratou duas mulheres veladas passando perto da igreja de S. Domingos, acompanhadas por um criado transportando uma grande sombrinha, para as proteger do sol e da chuva. Noutro, desenha o que parece ser uma comitiva de clérigos em vestes sacerdotais, subindo as escadarias de S. Paulo.

Sem dúvida, que os embelezou e completou, nos seus estúdios, nos muitos dias de chuva e vento que o impossibilitavam de sair de casa.

Mas devido ao preço das telas e tintas e às ocasionais dificuldades em encomendar material novo, Chinnery depositou grande parte das suas impressões, no papel, usando lápis e tinta.

Há milhares de desenhos seus que sobrevivem até hoje. Frequentemente, desenhava várias cenas na mesma folha de papel. Raramente, ou nunca, as deitava fora, mas como bom coleccionador de tudo o que aparecia, colocava-as numa grande arca no quarto. É difícil imaginar a quantidade incrível de documentação guardada.

Muitos dos seus desenhos são encontrados em colecções em Londres, Lisboa, Tóquio e Hong Kong. Os seus esboços inacabados não tinham outro valor senão o de servir de guia para os seus desenhos finais. Hoje uns simples traços de lápis atingem centenas e por vezes milhares de dólares, em vendas e leilões.

Raras vezes estão assinados ou datados, poucas vezes traçados a tinta, ainda mais raro é estarem pintados ou sombreados. Mas a mão de Chinnery é inconfundível e embora ele tivesse tido alunos, incluindo o famoso filho artístico de Macau Marciano Baptista e encorajado outros a desenhar, nenhum foi capaz de competir com ele no estilo.

Altamente cotados como esboços de uma época passada, seria, hoje, difícil reunir uma cena de rua completa, de tão espalhados que estão.

Mas imagens de igrejas, tais como as de S. Lourenço, Seminário de S. José, Sto. Agostinho, mesmo as ruínas de S. Paulo, existem em, praticamente, todas as principais colecções. Uma aguarela particularmente bela da colecção de Toyo Bunk (anteriormente pertença de G. E. Morrisson, em Pequim) mostra o portal do seminário de S. José com uma cúpula rodeada de uma abóbada estilizada.

Na mesma colecção há uma aguarela da Gruta de Camões, onde se podem ver rochas enormes encimadas por um pavilhão chinês, num cenário frondoso e isolado.

Templo de Á-Má. Óleo sobre tela. Colecção privada.

A fortaleza de S. Paulo, a Santa Casa da Misericórdia, a fortaleza do Bomparto (mais tarde Hotel Belavista), a fortaleza de Santiago, o templo de Á-Má, a praia e a marginal do porto exterior são temas a que Chinnery volta vezes sem conta.

Um dos seus primeiros esboços foi "A cidadela do bispo e o forte franciscano", provavelmente desenhado nas imediações do que anos mais tarde seria conhecido como Jardim de S. Francisco, com a Fortaleza do Monte ao fundo.

Pintou e desenhou o convento e igreja de S. Francisco de muitos pontos estratégicos. Um desenho a tinta particularmente impressionante foi feito a partir duma praia, num dia de tal modo calmo que as águas mal se agitavam.

Chinnery evitava subir a pontos altos difíceis e mostra-nos mais a vista do solo do que a vista aérea de uma fortaleza ou duma igreja. Contudo, as paisagens mais impressionantes da cidade são as desenhadas do alto.

Colunas jónicas, dóricas e coríntias, postos de sentinela fora dos grandes edifícios públicos, muitos com grandes escadarias de granito conduzindo aos gabinetes de altos funcionários, embebidos na leitura de documentos, e indiferentes ao cidadão comum que arrasta os pés no empedrado da rua.

Na colecção da Sociedade de Geografia de Lisboa existe um desenho da sede da antiga Companhia das Índias Orientais, desenhado no verão de 1832, na Praia Grande, e um esboço inacabado feito seis anos mais tarde, das antigas Portas do Cerco, com o seu conjunto de dai pai dong para os viajantes cansados, que procuram uma tijela de massa e um jarro de chá ao entrarem na cidade.

Ao lado dos locais lendários conhecidos e das magníficas mansões, estavam as casas humildes da gente do povo. Deve ter conhecido cada telha e tijolo, cada fachada, o desenho distintivo de cada janela e casa, as grandes persianas escuras fechadas para proteger dos tufões e do sol abrasador de verão, os beirais de madeira, recuados, para protecção do sol, de cada porta de entrada.

Curioso é o facto de Chinnery raramente se ter aventurado para os interiores -- quem sabe se terá sido avisado que poderia haver perigo -- nem mesmo uma nave ou altar de uma igreja. Excepção feita, quando expõe o seu álbum de esboços no interior das ruínas de S. Paulo, pouco depois do incêndio de 1835.

Era, antes de tudo, um artista de exteriores e, juntamente com os seus cadernos de esboços, deixou-nos apontamentos em estenografia sobre cor, sombra e por vezes auto-criticas -- "não muito bem" foi uma das notas deixadas ao lado da mão de um calígafo.

Como artista de exteriores, era certamente uma personalidade muito conhecida. Os chineses era evidente que o ignoravam -- apesar do tabu no que diz respeito a serem desenhados -- e as suas ilustrações incluiam pessoas de muitas condições sociais.

Também desenhou muitos esboços, excelentes e detalhados, de templos chineses incluindo o Templo de Á-Má, na margem sudoeste. Mas, estranhamente, havia poucos portugueses reconhecíveis, e raramente soldados, nos seus desenhos. Contudo, a bandeira nacional aparece em ponto destacado.

Chinnery, por vezes, alugava uma sampana e desenhava a bela baía de Macau com a Praia Grande ao fundo, e a sua fileira de casas coloniais. Estes desenhos eram tão apreciados, que ele usava muitas vezes, aguarelas e óleos para captar este cenário grandioso, infelizmente perdido para as gerações actuais, devido ao aterro da baía.

Foi um artista tão fecundo, que alguém que tivesse acesso a toda a sua obra, tinha possibilidades de fazer um compósito de grandes áreas urbanas de Macau, no príncipio do séc. XIX. E, a partir das datas, era possível seguir as suas deambulações diárias. No fim da vida, devido à sua corpulência, recorreu a uma cadeira de rodas, que fazia empurrar por um criado.

Revisitar o passado através de imagens é comum, mas raras vezes, uma comunidade foi tão minuciosa e sistematicamente registada como Macau, pelos seus artistas do séc. XIX.

Lamentavelmente, Chinnery não tinha a coragem do jovem artista e viajante francês, Auguste Borget, que em 1839 pegou no lápis e num caderno de apontamentos e os levou para um acampamento vizinho, de soldados chineses, para os desenhar em treinos e manobras.

Quando o perigo espreitava, Chinnery punha a segurança em primeiro lugar. Numa carta fala em "ter passado uma noite de horror e pressentimentos" e que "no meio do maior sofrimento" receou "ser passado a fio de espada".

Isto passou-se nos dias negros de 1840, quando as tensões anglo-chinesas aumentavam, e aos portugueses não lhes agradava a presença britânica na sua cidade.

Um ano antes, o comissário Lin Zexiu avançou com as suas tropas através das ruas da cidade numa demonstração de força. Não admira que Chinnery se tivesse trancado no quarto, embora devesse ser uma cena espectacular para desenhar ou pintar, que ficaria, certamente, para a posteridade.

Claro que mesmo Chinnery arriscou uma olhadela furtiva através das persianas entreabertas. Talvez o tenha feito mesmo, pois há um esboço delicioso de um "Mandarim com comitiva" na colecção de Lisboa, infelizmente sem data. Esta comitiva, precedida por uma escolta de tambores e estandarte, mostra duas liteiras conduzidas por uma guarda armada. É uma cena cheia de movimento e quase se ouvem os passos na rua. Não é indicado o lugar onde se passa a cena. Mas um lance de escadas sob uma grande árvore, sugere-nos o Templo de Á-Má.

No desfile, Lin, esplendorosamente vestido, era transportado numa liteira por oito carregadores, precedidos por um oficial a cavalo e por uma companhia de homens tocando tambor e segurando em bandeiras.

Nessa altura, a maioria da comunidade britânica tinha embarcado para Hong Kong, onde passou um Verão muito desagradável, vivendo em barcos, enquanto os marinheiros iam a terra comprar vegetais frescos, carne e peixe.

As poucas imagens de Chinnery, desta época, sugerem que não se terá juntado aos refugiados --a vida a bordo era outra das suas aversões.

Fez uma visita, aparentemente a convite de um dos seus ricos protectores, para desenhar a nova colónia, então a desenvolver-se na ilha de Hong Kong.

Mas a sua estadia reduziu-se a alguns meses. O calor do verão e a humidade não se coadunavam com ele: os mosquitos fizeram da sua vida um inferno e sentiu-se feliz por voltar à civilização de Macau, mesmo que para isso tivesse de escapar-se incógnito e passar por funcionário de alfândega, quando desembarcava de um junco.

Voltou aos seus desenhos, mas após a fundação de Hong Kong, os seus protectores diminuiram em número. Os comerciantes e mercadores que costumavam passar os verões em Macau, nunca mais voltaram. Uma nova concessão chamada Shameen cresceu nas margens do Rio das Pérolas, fora das muralhas arruinadas de Cantão.

Em pouco tempo, novas residências ocupariam esta área, e já não seriam registadas em desenho por artistas como Chinnery, Borget, Baptista, Warner Vanham e Lamqua, mas captadas em fotografia.

A morte de Chinnery em 1852, foi rapidamente seguida pela era da máquina fotográfica. Esta nova técnica marcada, de início pelo registo de figuras rígidas, formais, de pé, junto a aspidistras, e mais tarde, de grandes vistas gerais, substituiu o pequeno grupo de artistas e pintores que ganhava a vida a pintar e desenhar.

Os pintores chineses de caras, do Cantão antigo, deram lugar a estúdios fotográficos equipados com o mágico caixote preto. Nesta arte, podiam competir com os seus correlativos europeus em termos de igualdade, no que diz respeito a contraste, perspectiva, luz e sombra, agora capta dos pelo obturador da máquina, com apenas um clique.

Isto iria revolucionar o modo de registar a vida e o tempo de um mundo novo, que, em breve, assistiria à chegada da luz eléctrica, comunicação telegráfica, telefones, rádio e finalmente da televisão.

O Macau de Chinnery sobreviveu por muitos anos à sua morte em 1852, mas ninguém serviu tão bem a cidade como este fiel anotador, nunca a sua essência, encanto e beleza ou a arquitectura ibérica foram tão bem captados como nos desenhos e pinturas de Chinnery.

Por fim, foi com o leilão destes desenhos, após a sua morte, que se pagou aos seus credores na Índia, ficando, assim, as dívidas saldadas. Chinnery, o fugitivo no seu tempo, tornou-se Chinnery, o respeitado "'salvador" de Macau.

Cena do quotidiano de Macau, com a Igreja do Seminário de S. José ao fundo, 1840. Sépia sobre papel.

Os Fotógrafos e o Património

* Escritor e jornalista. Nasceu em Xangai e viveu 35 anos em Hong Kong, onde foi editor do jornal South China Morning Post. Escreveu vários livros históricos incluindo as biografias de Chinnery e Borget, tendo realizado conferências sobre a China, Hong Kong e Macau.

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