Depoimento

MACAU -- CIDADE UNIVERSITÁRIA ESBOÇO DE UMA INTERPRETAÇÃO

Francisco Figueira *

Slide de Mica Costa-Grande.

Tal como para o pugilista que, encostado às cordas, aguarda o soar do gong final, o tempo, que o destino concedeu à presença portuguesa para administrar Macau', está a chegar ao fim.

Mais de quatro séculos durou essa presença e as opiniões sobre o valor do nosso envolvimento nessa parcela longínqua dividem-se apaixonadamente:

"Não fizemos nada de jeito".

"Não se podia ter feito melhor".

Para se avaliar o mérito ou falhanço da nossa actuação não há, talvez, objecto de análise mais apropriado do que cidade que à China legamos.

E então que cidade é essa?

A resposta é complicada, pois não podemos falar de uma Macau mas sim de duas, uma a de antes e outra a de depois, de tal maneira a velha se alterou no seu crescimento dos últimos 20 anos. Apetece-me dizer que acima de outros juízos, à cidade de hoje lhe falta alma, ou seja, uma personalidade dominante que a caracterize e a torne diferente, alma que já teve e perdeu.

Nunca Macau foi um corpo inteiramente harmonioso. Se é verdade que ela é hoje igual a todas as cidades que, num instante, se constroem de raiz, se é verdade que percorrer os seus modernos bairros é uma experiência de pesadelo, se o trânsito não funciona, ou se a segurança é preocupante, é também verdade que, quando ela era a tal cidade mítica das calçadas à portuguesa, calma, adormecida, como o farol da Guia elevando-se na linha do horizonte para dar as boas vindas aos escassos turistas que pelas suas ruas se passeavam, de fato branco e chapéu colonial, ela continha, dentro de si, situações de notória injustiça social. Mas quem, à sombra das árvores, percorria o longo e sinuoso passeio marginal, quem se perdia no dédalo da zona do porto, que passava em frente dos seus palacetes pejados de colunas desnecessárias, facilmente reconhecia estar em presença de uma jóia cultural, produto da colaboração de dois povos que ai se encontraram e que, num processo de "agora tu, agora eu", lhe foram dando forma.

E essa paternidade era tão valiosa quanto a sabemos única. De facto, nunca essas duas comunidades, que durante mais de quatro séculos se cruzaram nas suas ruas, se conheceram em amizade. As relações entre portugueses e chineses não ultrapassaram nunca o estádio da indiferença. A China sempre desconfiou de nós, do nosso comportamento, das nossas artimanhas, das nossas promessas interesseiras e, ao fim de viver ao nosso lado todo este tempo, continua a não nos compreender, a não confiar em nós -- ia a dizer, a não nos aceitar.

E, pelo nosso lado, nós também nunca morremos de amores pelos chineses, mais virados, que estamos, para o relacionamento imediato e fácil que temos com os povos do Sul, africanos e brasileiros.

Nesse contexto, fácil se torna aceitar que, ao fim dos tais quatro séculos que o destino iaos concedeu, não haja frutos de colaboração entre os dois povos, que não tenhamos tido um único sinólogo, nem, da parte chinesa, um estudioso das nossas coisas. Nunca houve tentativas, quer nossas quer chinesas, de nos compreendermos ou, sequer, de nos procurar entender; não há notícias de qualquer tipo de influências nas variadas vertentes culturais, seja pintura, música ou literatura. O tão badalado relacionamento entre as duas comunidades não passa, a meu ver, de uma construção cosmética para uso político.

E voltamos ao que dissemos já: este deserto de incompreensão num único ponto foi quebrado, na edificação da cidade. É certo que, mesmo aqui, não se pode falar de colaboração ao mesmo nível; são do nosso esforço as decisões urbanísticas, chamemos-lhe assim, aqui uma igreja, ali um forte, acolá uma rua a unir este ponto àquele; pertencem aos chineses o risco da quase totalidade dos edifícios.

Desfasada, embora, no momento da intervenção e na escala da decisão, a construção de Macau assume, mesmo assim, a extraordinária importância cultural de ter sido o único acto de gestação comum, o único filho de convivência, tantas vezes secular, das duas comunidades. A cidade física, as suas ruas, as suas casas, os seus jardins, a sua escala, o seu carácter, seria, assim, um legado irrepetível em terras do Catai, produto cultural que não teve paralelo em qualquer outro campo.

A sua preservação ou, pelo menos, o respeito pela manutenção de determinadas características essenciais, deveria ter constituído uma das preocupações centrais dos governos a quem ela foi entregue. A verdade, porém, apesar de alguns esforços nesse sentido, e aqui louve-se especialmente a actuação pioneira do governador Garcia Leandro, é que não o foi.

A partir dos meados dos anos 60 Macau assistiu à destruição de um dos seus principais valores, a longa e belíssima fila de casarões que marginalizava a baía da Praia Grande, desde o Jardim de S. Francisco até à Meia Laranja, com particular sanha no seu troço mais urbano, entre os palácios do Governo e o das Repartições. Foi o início, que podia ter sido só um aviso, de que a velha cidade se encontrava sobre o fio de uma navalha.

Na pausa de espera que se seguiu, nessa terrível pausa que prenuncia as tempestades, 10 anos que vão desde a década de 60 até meados da de 70, três factos, três momentos houve em que os deuses mandaram a sorte bater à porta dos destinos da cidade, como se para testar se ela merecia, ou não, continuar a ser única e harmoniosa.

O primeiro momento foi quando se decidiu aproveitar a zona de aterros do porto exterior, então só terrenos de hortas e barracas. A urbanização desta vasta zona teria sido exemplar para a formação de uma consciência profissional e teria servido de válvula de escape para as ambições dos construtores, que então se começavam a movimentar.

E os planos foram feitos; sei da existência de quatro, tendo um deles trazido a Macau em 1963, uma equipa de seis arquitectos, entre eles o Manuel Vicente, que então iniciou uma estadia que já vai em 34 anos! Os planos foram, portanto, feitos; só que o desleixo com que foram recebidos levou a que nunca nenhum tivesse tido seguimento.

O 2. ° momento foi a criação da Comissão de Defesa do Património. Na euforia da saída da lei que a criou, pensou-se que a manutenção dos valores essenciais da cidade estava, a partir daí, assegurada.

Mas os construtores tinham já ganho uma força demasiado grande para os poderes do governo. À falta de terrenos disponíveis nos aterros e sem que houvesse qualquer plano para disciplinar a sua actuação, a especulação tinha já tomado nas suas mãos as rédeas da construção da cidade.

Com a vinda para Macau, em 1974, do professor Almerindo Lessa, o destino levava ao velho território, a derradeira e mais interessante hipótese de desenvolvimento harmónico e coerente com a especial atmosfera do seu ambiente construído: tornar Macau o pólo universitário que faltava, de todo, à região. Ao converter-se num "campus" estudantil, o velho casco histórico passaria a encher-se, não de jogadores e executivos de 2), mas de estudantes que o procurariam pelas suas universidades, conservatórios, salas de concertos, bibliotecas, galerias, museus e teatros, instalados nos vários palacetes que teriam voltado a ser células vivas e em diálogo com o ambiente em que estavam inseridos. O governo, porém, aceitou com muito pouco entusiasmo as ideias do professor Almerindo Lessa e a iniciativa gorou-se.

Mas o destino foi paciente e -- se sou fiel às conversas que então tive com o velho professor -- deu à cidade uma nova oportunidade, oferecida numa verdadeira bandeja de ouro: a vinda para Macau da UNESCO, que se queria instalar no Oriente e que aqui, território neutro, encontrava processo de escapar às rivalidades das grandes potências da região. Mas o governo, definitivamente, não estava para aí virado e fechou as portas às sondagens que lhe chegaram a ser feitas.

A ideia de Macau-Cidade Universitária morria assim, ingloriamente, nos conturbados anos" da década de 70.

Perdidas estas oportunidades nada mais restava aos governos de Macau do que seguir ao sabor do vento, quer dizer da especulação que, livre de regras e condicionamentos, ficou com o campo aberto e as mãos livres para fazer o que quis e muito bem lhe apeteceu.

Como foi isto possível, porquê nesses momentos cruciais os governos não foram bafejados pela sorte, por que falharam sempre na escolha do caminho certo?

Quanto a mim não cabem culpas aos homens. Elas vão inteiras para a fragilidade das estruturas governativas, que só muito tarde foi combatida de frente. A rarefacção e o quase vazio de técnicos eram demasiado grandes para se poder entender como se tornaram possíveis. Hospital sem médicos, O. P. sem arquitectos, Finanças sem economistas, Rádio sem locutores, jornais sem jornalistas, Tribunal sem juízes, Marinha sem marinheiros e Liceu sem professores. Tudo isto marcava a Macau a que eu cheguei em 1973.

"Para quem vive em Macau o panorama da Administração portuguesa salta aos olhos. É possível viver-se numa grande cidade e não se ter uma ideia definida de como a vida administrativa está organizada; o tamanho da cidade, a vida que ela proporciona, as distracções que oferece, podem toldar, a quem nela vive, a percepção da rede em que está inserido. Em Macau isso não é possível, a realidade é imediatamente evidente e as carências humanas, a desproporção entre as tarefas e as pessoas que as executam, dramaticamente claras. Em vez dos mil cérebros por tarefa que propõe Paolo Soleri, mil tarefas por cérebro. E ao fim de meses em que o arquitecto projecta, tira cópias, dobra cópias e encapa processos; em que o médico opera cérebros, dá injecções contra a gripe e renova pensos; em que o professor de matemática ensina também geografia e, se for necessário, canto coral; é impossível que a gente não se encontre, num dia cinzento, a pensar se não será a este tipo de situação que o português deve a sua conhecida característica improvisação, se não serão estas condições uma explicação possível para a falta de qualidade do seu trabalho.

Que pode fazer um médico operador se desacompanhado de uma equipa que enquadre o radiologista, o analista, o anestesista e os enfermeiros? Que pode fazer um tenor se não se lhe dá, ao menos, o acompanhamento de um pianista? Qual o papel do urbanista desligado do sociólogo e do economista?

Usando de novo as palavras de Soleri: não haverá pele a mais para tão pequeno corpo?"

Estas, são palavras que escrevi, logo que cheguei, no "Notícias de Macau", ao tempo dirigido pelo José Maneiras.

Lembro-me de quando o governador Garcia Leandro adoeceu e precisou de cuidados médicos, o seu chefe de gabinete ter passado o dia a telefonar para Hong Kong, a ver se encontrava um anestesista que lá tinha ido passar o dia -- não havia outro em Macau!

Lembro-me de uma reunião com uma delegação de técnicos americanos que vinham apresentar o projecto para um aeroporto --já em 1975 -- arquitectos, engenheiros e economistas, cheios de volumosas pastas de cálculos e planos, e de, no outro lado da mesa imensa, estarem, para receber o processo e iniciarem as primeiras trocas de impressões, o governador Garcia'Leandro, o chefe dos Serviços de Fomento e... eu, pessoas que, ao todo, de aviões só sabiam que voavam e que, de vez em quando, caíam.

Lembro-me da chegada à Biblioteca de Macau de gigantescos caixotes carregados das últimas novidades editadas em Lisboa e que permaneciam empilhados meses a fio por não haver quem os abrisse e sequer quem os lesse...

Lembro-me do pianista Andor Foldes, que eu conhecia das belas gravações de Debussy, ter tocado numa sala com 10 pessoas a assistir.

Lembro-me de às 6 horas da tarde se fecharem as portas nobres do Palácio do Governo, com trancas de madeira, como se o palácio fosse um simples armazém de aldeia.

Estas situações dramáticas, este vazio de pessoal na administração, só veio a atenuar-se no governo do almirante Almeida e Costa, quando várias levas de dezenas de técnicos chegaram ao território para preencher tão depauperados quadros.

Mas era já muito tarde para a tal cidade/ produto único da colaboração luso-chinesa. Restava, aos governos que se seguiam, aceitar a liderança dos empresários, e actuar apenas na execução de grandes empreendimentos, aeroporto, pontes e portos.

E a cidade? Ela aí fica.

Bela? Amável? Acolhedora? Harmoniosa?

Ou desorganizada, caótica, incompreensível, viciosa?

São horas de fazer as contas...

* Curso de Arquitectura concluído em 1961. Em 1964, vence, em equipa, o concurso nacional para o anteprojecto da Sé de Bragança. De 1961 a 69, trabalha no GTH, Lisboa, em projectos para Olivais e Chelas. Nos quatro anos seguintes, exerce a sua actividade em Lourenço Marques (Maputo), onde projecta o edifício da Embaixada de Portugal em Moçambique. De 73 a 90, trabalha em Macau, tendo, a partir de 1982, dirigido o Departamento de Acção Cultural do ICM.

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