Antologia Documental

LIVRO DAS PLANTAS DE TODAS AS FORTALEZAS*

António Bocarro

António Bocarro nasceu em 1594 e, depois de seguir estudos no colégio jesuíta de Santo Antão, embarcou para a Índia em 1622. Em Cochim teve problemas com a Inquisição, em virtude das suas origens judaicas, mas acabou por beneficiar da protecção de D. Miguel de Noronha, conde de Linhares, que tomou posse do governo do Estado da Índia em 1629 e que pouco depois o nomeou para o cargo de "cronista e guarda-mor" da Torre do Tombo de Goa.

No exercício das suas funções, Bocarro preparou a Década 13, extensa crónica dos feitos portugueses no Oriente entre 1612 e 1617, que pretendia continuar as obras de João de Barros e de Diogo do Couto, mas que permaneceu manuscrita na época. Além disso, redigiu também o precioso Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, vasta e rigorosa compilação dirigida a Filipe IV de Espanha e III de Portugal, onde se fazia um levantamento exaustivo das posses-sões portuguesas no Oriente, assim como de todas as rendas de lá provenientes. Bocarro teve nesta última obra a valiosa colaboração de Pedro Barreto de Resende, secretário do conde de Linhares, que se encar-regou de elaborar o conjunto de desenhos que ilustram o Livro.

Fonte utilizada: BOCARRO, António, Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoa-ções do Estado da Índia Oriental, edição de Isabel Cid, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992, vol. 2, pp. 260-272. O texto foi modernizado, colocando-se entre parênteses rectos algumas pala-vras que esclarecem o sentido de passagens mais obscuras.

DESCRIÇÃO DA CIDADE DO NOME DE DEUS DA CHINA.

Fortaleza de Macau, 1635 (Biblioteca Pública de Évora), in BOCARRO, António, Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, edição de Isabel Cid, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1992, est. XLVII.

A Cidade do Nome de Deus está em altura de vinte e dois graus e meio da banda do norte, sita na ponta austral duma península, na costa do rei-no da China, à fralda do mar, na província de Quantão, uma das quinze em que se divide este grande reino do estado de Noanxan.1 Esta ponta da dita península é chamada pelos nossos e pelos naturais Macau.2 Tem a península uma légua de comprido e no mais largo quatrocentos passos. A cidade fica tendo meia légua de comprimento, e onde mais estreita cinquenta paços e onde mais alar-ga trezentos e cinquenta. Fica participando de dois mares, do levante e ponente.3 É uma das mais no-bres cidades do Oriente, por seu rico e nobilíssimo trato para todas as partes, de toda a sorte de rique-zas e coisas preciosas em grande abundância, e de mais número de casados4 e mais ricos que nenhuns que haja neste Estado [da Índia].

D[esde] o ano de mil quinhentos e dezoito, em que os portugueses a primeira vez vieram à China, com uma embaixada do sereníssimo Rei Dom Ma-nuel,5 contrataram em vários portos deste reino, e finalmente no porto e ilha de Sanchoão, onde esta cidade tomou seu primeiro princípio e onde, no ano de mil quinhentos [e] cinquenta e dois, faleceu São Francisco Xavier, segundo apóstolo da Índia6 e pa-droeiro desta cidade [de Macau]. E no ano de mil quinhentos [e] cinquenta e cinco se passou o trato à ilha de Lampacau. E no de mil quinhentos [e] cin-quenta e sete se passou para este porto de Macau, onde, com o trato e comércio, se foi fazendo uma populosa povoação. E no [ano] de mil quinhentos [e] oitenta e cinco, sendo vice-rei da Índia Dom Francisco Mascarenhas,7 foi feita cidade por Sua Majestade, com título do Nome de Deus, dando-lhe por armas a cruz de Cristo e outras liberdades, de que goza com privilégios da cidade de Évora. É porta por onde veio da Índia à China por mar o após-tolo São Tomé8 e por onde, nestes tempos, o Santo Evangelho, levado pelos religiosos da Companhia de Jesus, entrou nestes reinos e no de Japão e Cochinchina, com grande glória sua e aumento de sua Igreja.9

Os casados que tem esta cidade são oitocentos [e] cinquenta portugueses e seus filhos, que são muito mais bem dispostos e robustos que nenhuns que haja neste Oriente, os quais todos têm, uns por outros, seis escravos de armas, de que os mais e melhores são cafres e de outras nações. Com [o] que se considera que, assim como têm ba-lões10 que eles remam, pequenos, em que vão a recrear-se por aquelas ilhas, seus amos poderão também ter manchuas11 maiores, que lhes ser-virão para muitas coisas de sua conservação e serviço de Sua Majestade.

Além deste número de casados portugueses, tem mais esta cidade outros tantos casados entre natu-rais da terra, chineses cristãos, que chamam jurubaças,12 de que são os mais, e outras nações, todos cristãos. E assim os portugueses como estes têm suas armas muito boas, de espingardas, lanças e outras sortes delas, e raro é o português que não tem um cabide de seis ou doze mosquetes e peder-neiras, e outras tantas lanças, porque os fazem dou-rados, que juntamente lhe[s] servem de ornamento das casas.

Tem, além disto, esta cidade muitos marinhei-ros, pilotos e mestres portugueses, os mais de-les casados no Reino, outros solteiros, que an-dam nas viagens de Japão, Manila, Solor, Macáçar,13 Cochinchina. Destes, [há] mais de cento e cinquenta, e alguns são de grossos cabedais, de mais de cinquenta mil xerafins,14 que por nenhum modo querem passar a Goa, por não lançarem mão deles ou as justiças [reais] por algum crime ou os vice-reis para serviço de Sua Majestade. E assim [há] também muitos mercadores solteiros, muito ricos, em que mili-tam as mesmas razões.

Tem mais esta cidade capitão-geral, que governa as coisas de guerra,15 com cento e cinquenta solda-dos, em que entram dois capitães de infantaria e outros tantos alferes, e sargentos e cabos de esqua-dra e um ajudante, um ouvidor e um meirinho, que administra[m] justiça. Vence o ouvidor cem mil réis de ordenado, consignados na alfândega de Malaca. E [quanto a] ministros eclesiásticos tem um bispo, que hoje é morto e ainda não está provido,16 que vence dois mil xerafins de ordenado, pagos na al-fândega de Malaca.

FORTE DE SANTIAGO.

No tocante às fortificações, tem esta cidade logo na entrada da barra um forte que chamam o Forte de Santiago, que tem cento e cinquenta paços de comprido e cinquenta e cinco de lar-go, com que faz uma formosa plataforma, que fica alevantada do mar cinco braças, com um muro fundado em vinte e oito palmos de largo e acabado em dezassete; e esta dita altura é até [a]os parapeitos, que levantam só três palmos da dita plataforma, com [o] que não podem guar-dar a gente nem [a] artilharia, fazendo conta de lhe porem cestões na ocasião de briga. Está no meio desta praça uma cisterna, aberta no cônca-vo da rocha, capaz de [guardar] três mil pipas de água, de que tem a maior parte. As casas que lhe ficam nas costas, pela banda de terra, são bastantes para alojar um capitão com sessenta homens, e aqui por baixo do chão estão casas de munições e mantimentos. Na entrada que tem pela banda da varela17 está uma casa de quatro águas, grande e formosa. E tem esta praça outra que lhe fica por cima, pegada com ela, a que se tolhe por quinze degraus, onde também está ar-tilharia, e numa e noutra [fortaleza] é grossa [a artilharia]. E no andar de cima estão as ditas casas de gasalhado para capitão e soldados. Deste forte que está na praia fica lançada uma cortina de muro [até] ao alto do monte, que aca-ba em uma casa, onde, quando aqui vivia o ca-pitão-geral, fazia corpo de guarda.

BALUARTE DE NOSSA SENHORA DO BOM PARTO.

O outro baluarte é de Nossa Senhora do Bom Parto, um baluarte pequeno, em forma de triân- gulo, capaz de jogar dez ou doze peças de arti-lharia, de que tem seis, convém a saber: uma colubrina18 de metal de vinte libras, um canhão de metal de trinta [libras], uma meia colubrina de dez [libras], dois terços de canhão de dezoi-to libras, tudo de metal e [com] pelouros de fer-ro, e uma peça de ferro de oito libras, de pelouro de ferro.

BALUARTE DE NOSSA SENHORA DA PENHA DE FRANÇA.

Em Nossa Senhora da Penha de França, que fica num monte superior a este, está também feito um baluarte pequeno, onde estão dois sagres19 de me-tal, que tira cada um com bala de sete libras de ferro.

BALUARTE DE SÃO FRANCISCO.

O baluarte de São Francisco, que está em forma oval, tem seis peças de metal, convém a saber: duas colubrinas de vinte libras de bala, um canhão de trinta [libras], dois meios canhões de vinte [libras] cada um, um terço de canhão de dezoito [libras], todas peças de metal e [com] os pelouros de ferro. Ao pé deste baluarte de São Francisco está uma pla-taforma onde está uma colubrina, que atira trinta e cinco libras de pelouro de ferro, [sendo] a maior peça que há nesta cidade. Na Praia Grande está uma plataforma, que tem um terço de canhão de metal, que atira bala de dezoito libras de ferro.

BALUARTE DE NOSSA SENHORA DA GUIA.

O monte de Nossa Senhora da Guia é o mais alto que há nesta cidade, por cuja causa se faz no cume dele um baluarte que tem cinco peças, convém a saber: uma colubrina bastarda que atira bala de oito libras de ferro, um pedreiro20 que atira bala de seis libras, três sagres que atira[m] cada um com bala de nove libras de ferro, todas peças de metal. Estão em cima neste monte casas para se poder alojar uma companhia de soldados, e também [uma] cisterna de água, mas como fica cavaleiro ao forte de São Paulo tem-se por melhor arrasá-lo, como se pôs já em preço com os chineses, que se obrigam a o fa-zer por sete mil taéis.21

FORTE DE SÃO PAULO.

A força de mais consideração e importância que há nesta cidade é a de São Paulo, vivenda dos capi-tães-gerais, chamada por outro nome a Madre de Deus, que é um monte natural, eminente e cavalei-ro a toda a cidade, onde, no cume dele, está feito um muro, começado no alicerce em vinte palmos de largura, com pedra mármore, até que sai em cima da terra em altura de seis palmos, donde começa a ser só de terra e cal, misturada com alguma palha, batida com batedores tão fortemente que fica fortíssimo, e para a bateria muito melhor [do] que se fora de pedra, porque não o abala tanto. Sendo que fica tão dura a parede [feita] desta terra e cal, como se fazem todas as casas nesta cidade, que, para lhe abrirem as janelas depois de feitas, o fa-zem com muitos picões de ferro, com grande força e trabalho. Vão os ditos muros estreitando pela medida de seu escarpe, até ficarem em quinze pal-mos de grossura em cima, no andaime dos parapei-tos. A altura deste muro é de cinquenta palmos, que é o mesmo que cinco braças. Está feito o dito forte em quadro perfeitamente, ficando-lhe em cima uma praça de cem passos de cada lado, e tantos tem de comprimento cada lanço de muro, que vão a fazer nos quatro cantos quatro baluartes em forma de espigão, como da planta se vê.22 Fica mais em cima, no meio da dita praça, a que cercam quatro renques de casas, umas em que moram os [capitães-]gerais e as três para os soldados, uma torre cavaleira de três sobrados, que em cada um tem artilharia, em a qual e nos ditos quatro baluartes estão repartidas dezoito peças de artilharia de metal, toda grossa, convém a saber: uma colubrina real, que atira trinta e cinco libras de bala, outra colubrina que atira vin-te [libras], duas meias-colubrinas de doze [libras], uma meia-colubrina de dezoito [libras], dois ca-nhões de trinta [libras], sete meios canhões de vin-te [libras], um meio canhão de vinte e cinco [li-bras], três terços de canhão de dezoito [libras], to-dos [atirando] pelouros de ferro, e cavalgadas estas peças em seus reparos ferrados, muito bem concer-tados. Tem este forte à porta, da banda de dentro, um corpo de guarda. E por uma e outra banda se sobe ao monte, que fica igual com o muro, e no côncavo dele estão abertas casas de munições, que tem bastantes para qualquer guerra, mas não para um cerco de mais de dois anos, a respeito da muita pólvora que gasta esta artilharia grossa, posto que podem ter materiais de que a vão fazendo, pelos muitos que há na terra.

Carta de Fernão Vaz Dourado, 1571, in MARQUES, Alfredo Pinheiro, A Cartografia Portuguesa do Japão (Séculos XVI-XVII), Lisboa, Fundação Oriente, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1996, p. 147.

De mantimentos não é tão provida esta cidade, com haver na terra dentro muitos e bons e baratos, porque, como os esperamos da mão dos chineses, em tendo qualquer sentimento de nós, logo nô-los tolhem, sem terem aqueles moradores modo para os irem buscar a outra parte, havendo-os em Cochinchina, que está de Macau cem léguas ao su-doeste, e também [havendo] alguns nas muitas ilhas que cercam a península onde está a cidade, de que as mais são habitadas. Porém, o que têm é só gado, porco, galinhas e marrecas.23

Os muros que tem esta cidade estavam quase aca bados por Dom Francisco Mascarenhas, o primeiro capitão-geral que teve e que lhe fez as mais destas obras. Porém, os chineses, como são tão desconfia-dos, fizeram derrubar grande parte deles,24 dos que estão para a banda da terra, que iam correndo do dito forte de São Paulo, parecendo-lhes que contra eles é que se faziam. E assim ficaram só as [mura-lhas] que correm em frente do mar e da banda do poente, e uma tranqueira na praia de Caçilhas, onde desembarcou o inimigo quando acometeu esta ci-dade.25 A altura destes muros é de duas braças até [a]os parapeitos e a largura fica sendo neles de oito palmos, advertindo que, como o chão por onde vai correndo não é todo igual, senão em partes desce e sobe, também assim fica sendo o muro, ora mais alto ora mais menos,26 para ficar por cima corren-do todo ao nível. É feito da mesma matéria que te-mos dito, de terra e cal entressachada, alguma pa-lha, e tudo muito calcado, com [o] que são muito fortes.

Na plataforma que têm na Praia Grande, está um terço de canhão de dezoito libras, e noutros dois baluartes, [n]um chamado São Pedro, dois sagres, cada um de bala de sete libras, e noutro chamado São João, um terço de canhão de dezoito libras e uma meia-colubrina bastarda de oito [libras], tudo [de] pelouros de ferro. Em toda a dita artilharia re-ferida têm mais quatro trabucos27 de metal de vinte e cinco libras cada um, três peças de ferro de sete libras, cinco falcões28 de bronze, três berços29 de bronze, dois falcões de ferro, um trabuco de ferro, que estão para se porem onde for necessário.

Há na dita cidade de Macau setenta e três peças de artilharia, afora muitas de particulares e de Sua Majestade, de ferro, que estão feita[s]. Porque tem esta terra uma fundição das melhores que há no mundo, assim de bronze, que antigamente tinha, como de ferro, que o conde de Linhares, vice-rei, lhe mandou fazer,30 onde se está sempre fundindo artilharia para todo este Estado [da Índia], em pre-ço muito acomodado, que é o de que tem mais ne-cessidade, donde todo ele se proverá, a estar de-simpedido o estreito de Singapura, que continua-mente nas monções está cercado dos holandeses, como atrás fica dito.31

Toda a dita artilharia que tem esta cidade e obras de muros e fortes fez ela à sua custa, sem a Fa-zenda Real entrar nisso com coisa alguma, em tempo que a viagem de Japão corria quase por sua conta, e particularmente os direitos [a] que chamavam o caldeirão, que são hoje a oito por cento de todas as fazendas que vão para [o] Ja-pão, e antigamente eram a três e a quatro [por cento], e ainda assim lhe rendiam muito. Porém, foram tão largas as despesas que, além da via-gem de que Sua Majestade lhe fez mercê, que está hoje empenhada em grandes quantias, a cujo respeito lhe são concedidos os ditos direitos -- porém, com um exacto regimento que o dito con-de de Linhares lhe mandou fazer das despesas, que hão-de fazer só as que forem forçosamente necessárias, e para lhe tomarem contas como nunca deram --, de sorte que, conforme o regi-mento adiante lançado para o administrador da viagem de Japão e este para a cidade, e outras ordens que lhe fez guardar, a fez o dito conde vice-rei muito obediente a todas as [determina-ções] de Sua Majestade, que dantes não era, a pôs em modo de se tirar dela muito proveito para sua real Fazenda, com a grande cópia de artilha-ria de ferro e cobre para a Índia, que se manda vir todos os anos.

Não tem Sua Majestade outra renda alguma nes-ta cidade mais que a das ditas viagens, porque o rei da China, em cuja terra está, lhe arrecada os direi-tos de tudo o mais, convém a saber: da entrada de todo o género de embarcação que ali venha com fazendas pagam a medição dela conforme o tama-nho da embarcação (os patachos32 de quinhentos ou seiscentos candis,33 a quinhentas ou seiscentas patacas, pouco mais ou menos), tirando que se, quando vão medir as embarcações, há modo de irem peitando aos medidores que o façam favoravelmen-te, vem a render muito menos, porque eles buscam o seu proveito mais que o d'el-rei, e não reparam em ir a embarcação carregada do que quer que seja.

Da saída, os direitos que pagam é em Quantão, uma cidade dos chineses onde se vai por um rio dentro, [30] léguas de Macau, onde se faz a feira das fazendas, afora muitas que vêm à formiga. E não é coisa certa, porque fica sendo muito menos quando os chineses não têm algum sentimento dos portugueses de alguma coisa que lhe hajam feito ou dado, ou morto a algum chinês, como acontece muitas vezes, porque tudo lhe[s] fazem pagar a di-nheiro, prendendo a lanteia,34 que é a embarcação onde se vão buscar as fazendas, com alguns cida-dãos de consideração que abram a feira. Onde tam-bém lhe[s] fazem os chineses muitas avexações, não sendo as menores os furtos e roubos que são notá-veis, e os chineses tão inclinados a isso que até as mais miúdas coisas que vendem trabalham sempre por ser com enganos.

DESCRIÇÃO DO REINO DA CHINA.

Este grande reino ou império da China é a derra-deira terra firme da Ásia. Pela parte do meio dia a rodeia o oceano e da [parte] ocidental tem a Índia Citerior, e aparta-se dos reinos de Camboja e Sião pelo de Cochinchina. E antigamente estes reinos e o de Pegu lhe foram sujeitos. Pela parte do norte con-fina com os tártaros e castrânios,35 onde se dividem uns dos outros por umas altíssimas serras, tão íngre- mes que parecem cortadas ao picão, e algumas que-bradas que tinham, as continuaram os reis da China com grossos e fortíssimos muros, que continuam [por] muitas léguas, e assim se defendem dos tárta-ros. Nos muros há contínuas vigias e uma só porta por que entram para dentro da China, e além desta porta há uma cidade de muros, onde as cáfilas vão descarregar, e ali lhes escrevem as fazendas e pagam os direitos, e tomam os sinais dos homens que hão-de entrar para dentro, e desta porta ao Pequim, onde está o rei, há quatrocentas léguas.36 [...]

RENDAS DO REI DA CHINA.

De prata, tem o rei da China de renda três mi-lhões e cento e cinquenta mil taéis. As pérolas e aljôfar lhe importam os direitos cada ano dois mi-lhões e seiscentos [e] trinta mil taéis. A pedraria, um milhão e quatrocentos mil taéis, só de direitos, afora o que se tira para o rei das minas. O almíscar e [o] âmbar, um milhão e trinta e cinco mil taéis. A louça lhe rende noventa mil taéis. A seda, quando não há peste nos bichos, dão cada ano de novidade trinta e seis para trinta e sete mil picos, que cada pico, como fica dito, é um quintal e quatro arratéis.37 Destes, se gastam na terra vinte e quatro para vinte e cinco mil picos, e os doze mil saíam para fora quando havia viagens correntes para a Índia. Hoje, que as não há, não saem tantos, posto que Japão e Manila levem sua parte, que está esmada em seis mil picos. Não se sabe a renda que desta cidade [de Cantão] tem el-rei, que deve ser grandíssima.

O ouro é tanto que se não deixam abrir as minas e, só do que [recolhem] nos rios se tira quanto quiserem levar, que é muito mais quantidade do que se leva em nenhuma outra fazenda, porque todos os empregos da Índia são em ouro, a respeito dos inimigos do Estrei-to. Para Japão vai também muita cópia, e para outras muitas partes. Não se sabe o rendimento que tenha o rei do ouro, que assim deve ser avantajado de todos.

Não se fala aqui em pau-da-china, que é uma grande veniaga para Japão e toda a parte do mun-do, vermelhão, azougue, tutenaga, ferro, o melhor e mais brando que há neste Oriente, e outras fazen-das de muita importância, de que tudo há grande cópia na China, nem em todo o género de manti mentos, todos excelentes e tantos que nunca esgo-tam, pois, só de açúcares carregam o lastro muitas embarcações. E, enfim, de tudo o que a natureza produziu em muitos reinos, há neste só muita có-pia, que parece que só nele se dá. E nunca houve tanto cabedal de mercadores que lhes faltasse em Quantão empregos senão duma sorte doutras mui-tas de fazendas, e todas que servem, de maneira que se possuíssemos livre só o comércio da China, bastava sem nenhum outro, porque para todo este Oriente serve o que nela há, e para todo o mundo.

A paz que temos com o rei da China é conforme ele quer, porque, como está tão desviado da Índia e tem um poder tão avantajado a todo o maior que os portugueses poderão lá juntar em número de gente, nunca, por mais escândalos que tivéssemos deles, houve nem pensamento de chegarmos a rompimen-to, porque só com nos tolher o mantimento consu-mira a nossa cidade, por não haver parte nem com que os ir buscar, que, posto o reino de Cochinchina fica[r] à distância referida de Macau e ali haja sem-pre patachos com que se navega para várias partes, contudo é só em monções. E ainda que houvessem fragatas e fustas de remo, nunca nos está bem le-vantarmos guerra à China, porque só com nos ne-garem o comércio, ainda que alcançáramos gran-des vitórias, é o maior mal que nos podem fazer, quanto mais que o vulgo desta nação são inclinadíssimos a furtar, que não é mais que em enganos no comprar e vender. Que no mais pre-zam-se todos de guardarem tão inteiramente a jus-tiça os seus juízes, que chamam mandarins, [e são] notavelmente severos e graves, que dizem que pela observância dela conserva Nosso Senhor estes in-fiéis, porque além de serem gentios e alguns mouros, são grandemente dados ao pecado mau,38 e se não castiga nem estranha entre eles.

As mulheres chinesas são tão retiradas que não há português ver nenhuma, e as criam desde pe-quenas com os pés tão amarrados que vêm depois a ficar quase trôpegas no andar. São castíssimas para connosco (entenda-se a gente grave e mulheres dos mercadores, que chamam queves,39 que são entre eles dos mais estimados). E destes há muitos que fiam dos portugueses grandes quantias de dinheiro e fazendas, e os portugueses pelo conseguinte de- les, e já se viu e vê cada hora quebrarem estes queves com o dinheiro dos portugueses e fugirem sem mais lho tornarem. E como pela terra dentro não pode ir nenhum português, o ficam perdendo, porque, ain-da que pudessem, é a terra tão larga como fica dito para os poderem achar (o que não é assim dos por-tugueses para com eles, porque nunca se lhe alevantam nem quebram com nada, antes lhe[s] pagam tudo muito à risca).

Comércio com nações estrangeiras não têm hoje nenhum os chineses, posto que até agora os holan-deses da ilha Formosa o tinham muito grande no Chincheu, defronte da mesma ilha; mas de presen-te ficam em grande guerra com eles.40 E são os chi-neses tão inimigos de lhe[s] entrarem nações es-trangeiras em suas terras que, com conhecerem a muita ajuda que recebem dos portugueses nas guer-ras que trazem com os tártaros,41 e os obrigar o aper-to em que se viram há três anos a mandarem pedir socorro à cidade de Macau, que lhe[s] mandou ela de perto de trezentos espingardeiros e alguns arti-lheiros,42 depois de lhe[s] fazerem grandes pagas os mandaram tornar do caminho e pediram o di-nheiro que lhe[s] deram, porque são todos os chi-neses de ânimo muito cativo de interesse, e onde este se interpõe a nenhuma outra coisa têm respei-to. E como têm uma professia de que os há-de con-quistar uma gente de olhos de gato, e estes tinham os holandeses, fazem mais dificuldade em os ad-mitirem em seus reinos, e particularmente pelos terem por ladrões piratas do mar, nome que eles grandemente abominam. E assim, é preceito e lei do rei da China que nenhum seu vassalo navegue pelo mar a outros reinos, que, como têm no seu tudo em tanta abundância, não quer que levem o que nele há senão vindo-lho buscar com outras coisas, e muito mais por não dessangrar os vassalos para outras nações, porque tendo antigamente senhoreado e conquistado muitos reinos deste Ori-ente, os largou todos e se recolheu ao seu com o dito preceito.

As armas de que usam é todo o género de-las, tirando espingarda e artilharia, que posto [que] começam a exercitá-la, contudo não têm nenhuma ciência de cada qual destas coisas, a cujo respeito puxavam pelos portugueses. [...]

PORTO DE MACAU.

A barra desta cidade de Macau era antigamente muito larga, porém, os portugueses moradores dela entupiram a maior parte, a respeito dos holandeses não poderem entrar com suas naus senão por um canal que lhe fica ao longo do dito Forte de Santia-go, coisa de seis braças de largura e com fundo de três, ficando lá dentro em muito mais fundo. Desde a dita barra para dentro, até [à] ilha Verde, que fica dentro nela, estão continuamente seis bancões43 de chineses da armada, que são as suas embarcações, que trazem de lá para vigiar e saber o que fazem os portugueses, se metem nações estrangeiras [em Macau], que é o de que mais se ciam e resguardam.

Entra-se para esta barra por entre muitas ilhas, quase infinitas, as mais delas habitadas, como fica dito. A costa deste reino e terra corre não perfeita-mente ao nordeste-sudoeste, porque faz grandes enseadas e nunca vai direita a um rumo. Os ventos que nela cursam, o mais ordinário é o leste, que é o que aqui reina, e com que dão grandes tormentas. De Outubro até meado de Março cursam nortes e nordestes, com que se navega para Malaca e todas as partes a que se vem por ela; e para Japão de me-ado [de] Maio até todo [o] Agosto com sul, sudoes-te e sueste; e para Manila todo o ano. E estas são as monções de ventos e navegações que há nesta cos-ta. Antigamente davam nela grandes tormentas de ventos, que chamam tufões, que arrancavam árvo-res muito grandes e arrebatavam os homens do chão com grande fúria; depois que para lá levaram um braço do glorioso São Francisco Xavier, dão já muito menos.

Frontispício da l.a edição da Relatione della Grande Monarchia della Cina, do P.e Álvaro Semedo, Roma 1643.

NOTAS

* Ms., Goa, 1635.

1 Bocarro parece ser o primeiro autor português a utilizar esta designação para o Celeste Império.

2 Original: "Machao".

3 O autor quereria dizer que a cidade tinha acesso ao Índico e ao Pacífico.

4 Os casados eram antigos soldados que se haviam sedentarizado, fixando-se em algum dos estabelecimentos portugueses e aí constituindo família, normalmente com mulheres asiáticas.

5 Os portugueses chegaram pela primeira vez à China em 1513, enquanto a embaixada de Tomé Pires teve lugar em 1517 (cf. supra, pp. 18 - 25 e 32 - 35).

6 O primeiro apóstolo da Índia teria sido São Tomé.

7 D. Francisco de Mascarenhas governou o Estado da Índia entre 1581 e 1584, sucedendo-lhe D. Duarte de Meneses, vice-rei entre 1584 e 1588.

8 Ainda não está hoje Antologia DocumentalAntologia DocumentalLivro das Plantas de Todas as FortalezasLivro das Plantas de Todas as Fortalezaserfeitamente esclarecido o âmbito geográfico das pregações do apóstolo São Tomé; mas é pouco provável que tivesse alcançado a China, ao contrário do que vulgarmente se supunha na época de Bocarro.

9 Macau, com efeito, para além de ser um entreposto mercantil de primeira grandeza, desde cedo se tornou numa estratégica base de apoio à missionação no Extremo Oriente, que era praticamente monopolizada pela Companhia de Jesus.

10 Balão: pequena embarcação de remos, cujo fundo é feito de uma única peça.

11 Manchua: pequena embarcação a remos, que também podia armar uma vela quadrangular.

12 Jurubaça, em sentido estrito, é um termo de origem malaia que designa um "intérprete".

13 Importante porto no litoral meridional das Celebes.

14 Xerafim: moeda de ouro ou prata, valendo 300 réis.

15 O primeiro governador de Macau, D. Francisco Mascarenhas, tomou posse em 1623.

16 O bispo Diogo Correia Valente faleceu em 1633, ficando a diocese de Macau vaga durante longas décadas.

17 Varela: templo budista.

18 Colubrina: antiga peça de artilharia, comprida e de pequeno calibre.

19 Sagres: antiga peça de artilharia a que também se dava o nome de "falcão".

20 Pedreiro: peça de artilharia de grande calibre, que atirava projécteis de pedra.

21 Tael: moeda de prata chinesa valendo cerca de 540 réis.

22 O autor refere-se a uma das plantas que acompanham a sua descrição.

23 Marreca: ave palmípede.

24 Cf. supra, pp. 152 - 158 e 159 - 167.

25 Referência ao ataque holandês de 1622. Cf. supra, pp. 152 - 158.

26 Leia-se "mais baixo".

27 Trabuco: antiga peça de artilharia.

28 Falcão: antiga peça de artilharia.

29 Berço: antiga peça de artilharia.

30 António Bocarro refere-se à célebre fundição de Manuel Tavares Bocarro.

31 Por estes anos, os holandeses hostilizavam sistematicamen-te a navegação portuguesa no Extremo Oriente. Em 1622 ha-viam tentado sem sucesso conquistar Macau; mas em 1641 haveriam de conseguir tomar Malaca. Como refere Bocarro, os navios holandeses tinham por hábito bloquear o estreito de Singapura, por forma a impedir a passagem de embarca-ções portuguesas.

32 Patacho: navio de dois ou três mastros, com armação seme-lhante à da nau.

33 Candil: medida de capacidade que oscilava entre 218 e 245 litros.

34 Lanteia: espécie de lancha chinesa, com seis ou sete remos, usada no transporte de mercadoria.

35 Curioso antropónimo, que se refere decerto aos que "vivem em castros".

36 Curiosamente, António Bocarro parece ter recolhido grande parte das suas informações sobre a China na obra de Juan González de Mendoza (cf. supra, pp. 108 - 113).

37 Pico: medida de peso oriental, equivalente a 61 kg.

38 Isto é, a sodomia.

39 Queves: palavra de etimologia controversa, que talvez deri-ve do chinês Guanghang, e que designa nas fontes portugue-sas do século xvII os grandes mercadores chineses de Can-tão.

40 Os holandeses, depois da fracassada tentativa de se estabe-lecerem em Macau, mantiveram uma base na ilha Formosa durante alguns anos.

41 Bocarro escreve na altura em que os tártaros tentavam hegemonizar todo o Celeste Império.

42 A cidade de Macau, em 1630, enviou uma expedição mili-tar, composta por espingardeiros e artilheiros, em auxílio dos Ming, que nas fronteiras setentrionais do império se debati-am com fortes investidas dos tártaros.

43 Bancão: embarcação pequena, cujos remos são manobrados por dois homens em pé.

desde a p. 169
até a p.