Antologia Documental

SUMA ORIENTAL*

Tomé Pires

Jomé Pires era boticário de profissão e embarcou para o Oriente em 1511, com o encargo de seleccionar as drogas que deveriam ser enviadas para Portugal. Após alguns meses de residência em Cananor, o governador Afonso de Albuquerque despacha-o para Malaca em meados de 1512, atribuindo-lhe nos anos imediatos diversas funções relacionadas com o seu mester. Em princípios de 1515 voltou à Índia, com planos para regressar definitivamente a Portugal. Entretanto, nos portos do Industão, Tomé Pires concluía a redacção da Suma Oriental, um extenso e bem informado tratado de geografia, onde descrevia com grande riqueza de pormenores todo o litoral da Ásia, desde as margens do Mar Vermelho, nas cercanias do Mediterrâneo, até aos mais longínquos arquipélagos das Léquias e do Japão. Dotado de um singular poder de observação, de uma curiosidade insaciável e de evidentes capacidades inquiridoras, o nosso autor conseguiu reunir em escassos anos um prodigioso conjunto de dados sobre muitos povos e culturas orientais até então perfeitamente desconhecidas dos europeus. O seu trabalho de compilação de notícias ligava-se de forma íntima ao projecto albuquerquiano de consolidar a presença portuguesa nos mares asiáticos, plano esse que exigia um apurado conhecimento do terreno, em termos geográficos, económicos, políticos e religiosos. A Suma Oriental inclui a primeira descrição da China registada por um observador português. Tomé Pires revela alguma surpresa -- que indicia a absoluta novidade das suas informações -- ao descrever a fama gozada pelo Celeste Império entre os povos do Extremo Oriente. Mas nem por isso deixa de dedicar algumas páginas à descrição da China, apontando não só elementos de natureza comercial, mas também dados sobre as principais características da civilização chinesa.

O autor da Suma, curiosamente, haveria de ser o primeiro embaixador português enviado a Pequim. Com efeito, quando em 1515 se preparava para regressar a Portugal, foi destacado pelo governador da Índia, então Lopo Soares de Albergaria, para chefiar uma missão diplomática ao Celeste Império. A embaixada desembarcou em Cantão em 1517, mas, depois de uma rápida visita à capital imperial, em princípios de 1521, os seus membros acabaram por ser detidos pelas autoridades cantonenses, numa altura em que ocorreram os primeiros confrontos entre portugueses e chineses. O embaixador Tomé Pires veio a desaparecer em circunstâncias ainda não esclarecidas, supondo-se que terá falecido num cárcere chinês por volta de 1527.

Fonte utilizada: CORTESÃO, Armando, A Suma Oriental de Tomé Pires e o Livro de Francisco Rodrigues, Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis, 1978, pp. 252-255 e 359-369. Esta edição foi confrontada com o manuscrito completo da obra, que se conserva em Paris (Bibliothéque de l'Assemblée Nationale, Ms. 1248, fls. 117-178v), e com uma recente edição do manuscrito incompleto de Lisboa (Rui Manuel Loureiro, O Manuscrito de Lisboa da "Suma Oriental" de Tomé Pires, Macau, Instituto Português do Oriente, 1966, passim). O texto foi modernizado, aparecendo entre parênteses rectos as palavras ou expressões acrescentadas para esclarecer o sentido do texto original.

REINO DA CHINA.

Segundo o que as nações de cá deste Levante con-tam, fazem as coisas da China grandes,1 assim na terra como [em] gentes, riquezas, pompas, estados e coisas outras, que mais se creriam com verdade haverem-se em nosso Portugal,2 que não na [terra da] China.3 É grande a terra da China, de formosos cavalos e mulas, segundo dizem, e em grande nú-mero.

O rei da China é gentio,4 [senhor] de grande terra e gente.5 É a gente da China branca, da nossa alvu-ra.6 Vestem os mais [deles] panos pretos de algo-dão e disso trazem saios de cinco quartos, de nesgas, assim como nós, somente são muito largos. Tra-zem na China, nos Invernos, feltros nas pernas, à maneira de peúgas, e em cima botas bem obradas, que não chegam do joelho para cima, e trazem suas roupas forradas de peles cordeiras e doutras peletarias. Trazem [alguns] deles pelicas, trazem coifas de rede de seda redondas, como peneiras pre-tas de nosso Portugal.7 Têm um jeito de alemães. Têm na barba trinta [ou] quarenta cabelos. Calçam sapatos franceses de ponta de ladrilho, muito bem feitos.

Comem todos os chineses porcos, vacas e de to-das [as] outras alimárias.8 Bebem gentilmente de toda a sorte [de] beberagens,9 gabam muito [o] nos-so vinho, embebedam-se grandemente. É gente fra-ca e para pouco, esta que se vê em Malaca, são de pouca verdade e furtam, isto a gente baixa. Comem com dois paus [na mão direita]10 e altamia ou por-celana11 na mão esquerda, junto com a boca, e com os dois paus [se] servem. Esta é a guisa da China.

MULHERES DA CHINA.

As mulheres parecem castelhanas. Têm saias de refegos e coses, e sainhos mais compridos que em nossa terra. [Têm] os cabelos compridos, enrodilhados por gentil maneira em cima da cabe-ça, e lançam neles muitos pregos de ouro para os ter, e ao redor de pedraria, quem a tem, e sobre a moleira. [Usam] jóias de ouro nas orelhas e pesco-ço. Põem muito alvaiade nas faces e arrebique so-bre ele.12 E são alcoforadas, que Sevilha lhes não leva a vantagem, e bebem como mulheres de terra fria. Trazem sapatos de pontilha de seda e broca-dos. Trazem todas abanos nas mãos.13 São da nos-sa alvura e [algumas] delas têm os olhos pequenos e outras grandes. E [têm] narizes como hão-de ser.

ONDE O REI ESTÁ.

A terra da China é de muitas cidades [e] fortale-zas, todas de pedra e cal. A cidade onde o rei está chama-se Cambara. 14 É de grande povo e de mui-tos fidalgos, de infindos cavalos. O rei nunca é vis-to do povo nem dos grandes, salvo de muito pou-cos, por assim estar em costume. Dizem que mulas têm sem conto, como se fosse em nossa terra.

REIS VASSALOS AO REI DA CHINA.

El-rei de Champa,15 el-rei de Cochinchina, el-rei dos Léquios, el-rei do Japão. Adiante se fará men-ção destes.16 El-rei de Java, el-rei do Sião, el-rei de Pacém,17 el-rei de Malaca. Estes mandam seus embaixadores com o selo da China a el-rei da Chi-na, de cinco em cinco anos e de dez em dez anos, e cada um lhe manda do melhor de suas terras, do que sabem que lá querem.18

De Malaca lhe mandavam pimenta e sândalos brancos, algum pau de boa grandura, e assim de garo, 19 que é lenho-aloés de botica, anéis de pedras finas, pássaros que vêm de Banda mortos,20 e coi-sas a estas semelhantes, [como] chamalotes. E cada um segundo tem. Estes embaixadores podem en-trar na China e sair.

MANEIRA DOS EMBAIXADORES COM O REI.

Estes embaixadores, quando vão ao rei, não o vêem, somente [divisam] o vulto do corpo detrás [de] uma cortina, e dali responde, estando sete escrivães escrevendo a palavra, quando a diz. Assi-nam aquilo os oficiais mandarins,21 sem o rei pôr a mão nem ser visto. Tornam-se a vir, e se levam de presente mil faz-lhe[s] mercê do dobro. E os em-baixadores, em peitas, deixam tudo lá e tornam-se sem verem o rosto nem a pessoa do rei. Donde esta é a verdade, e não como diziam, que estavam qua-tro homens assentados à vista e [os embaixadores] falavam com todos, sem saberem qual e[ra] o rei.22 E estes embaixadores podem ancorar em a cidade de Quantom, 23 como se dirá no diante.

COMO FAZEM REI.

O rei da China não sucede de pai a filho, nem [a] sobrinho, somente por eleição do conselho de todo o reino, [que] anda sempre na cidade de Cambara, onde o rei está, e o mandarim que se por estes apro-va fica rei.24

REGIMENTO DO REINO ACERCA DOS QUE NAVEGAM PARA OUTROS REINOS.

Não pode sair nenhum chinês para a banda do Sião, Java, Malaca, Pacém e daí adiante sem licen-ça dos regedores de Quantom. E pelas assinaturas da licença de poder sair e tomar lhe levam tanto, que o não podem suportar e não saem.25 E se al-gum estrangeiro está na terra da China, já não pode sair, somente se não é por licença do rei. E por esta licença, se é rico fica sem nada. E qualquer junco ou nau que passa os termos que lhe são postos para ancorar perde-se a fazenda para el-rei e a gente morre por isso.

LUGARES DO MAR DO REINO DA CHINA.

Começando dos termos de Cauchi26 para a costa da China, há [várias] fortalezas. A primeira [é] Ainão, onde se acha o aljôfar27 que vai à China; e [depois] Nantó e Quantom e Chancheu28 e outras. Somente digamos de Quantom, que é mor que to-das e onde é o trato todo destas partes. Este Ainão é enseada em costa sem rio. Tem umas ilhas ao mar, perto, onde se pesca o aljôfar, e grã soma dele.

A cidade de Quantom é onde o reino todo da Chi-na descarrega suas mercadorias todas, e assim da terra firme como do mar muitas. A cidade de Quantom é à boca da foz de um grande rio, que tem de preia-mar três braças e quatro. A cidade que se vê da foz está assentada em terra chã sem monte. Tem toda a casaria de pedra e [é] cercada de muro, que dizem que é de sete braças de largo e outras tantas de alto. E da banda da cidade dizem que é alcantilado. Isto dizem luções que já ali estiveram.29 E tem portos onde estão muitos juncos grandes. Vigia-se a cidade, fecham-se as portas, [que] são fortes. Estes reis que dissemos que têm selos, quan-do mandam seus embaixadores, fazem a mercado-ria em a cidade dentro, e se não fazem[-na] fora, obra de trinta léguas de Quantom, e de Quantom lhe levam a mercadoria. De Quantom à cidade [ca-pital] uns dizem que há quatro meses de andadura e outros dizem quatro e [meio]. Assim, a verdade é que em vinte dias a bom andar podem andar o dito caminho.

ILHAS ONDE ANCORAM OS JUNCOS DE MALACA.

Aquém de Quantom para Malaca, trinta léguas, estão umas ilhas junto com a terra firme de Nantó,30 onde estão os portos já determinados de cada na-ção, a saber, Pulo Tumom 31 e outros. E tanto que os ditos juncos ali ancoram, o senhor de Nantó o faz saber a Quantom, e vêm logo mercadores estimar a mercadoria e tomam seus direitos, como se dirá ao diante. Então lhe trazem a mercadoria. Feita [esta] de uma parte e da outra, torna-se cada um para sua casa.

MANEIRA DOS CAPITÃES DA TERRA E MAR EM QUANTOM.

Afirmam que todos os que trazem mercadorias de Quantom às ilhas ganham três, quatro [ou] cin-co por dez. E os chineses têm este costume, as-sim por lhes não tomarem a terra, como por re-ceberem os direitos das saídas das mercadorias, além [dos] da entrada. E o principal é por medo de lhes não tomarem a cidade, porque se diz que é rica cidade a de Quantom, e vêm corsários muitas vezes junto com ela. É capitão desta ci-dade [o] aitão, 32 pessoa principal, e cada ano é [nomeado] um capitão por ordenança do rei e não pode mais estar.33 Há outro capitão do mar qua-se como o da terra, com jurisdição sobre si. Am-bos são mudados cada ano.

Dizem que os chineses fizeram esta ordenan-ça de não poderem ir a Quantom por receio dos jaus e malaios, que é certo que um junco des-tas nações desbarata vinte juncos de chineses. Dizem que a China é de mais de mil juncos, que cada um trata onde lhe bem vem. Mas é gente fraca e, segundo o medo que têm a malaios e jaus, bem certo será que uma nau de 400 tonéis faria despovoar Quantom, a qual despovoada teria a China grande perda.

Não tirando a glória a cada terra, bem pare-cem as coisas da China serem de terra honra-da e boa e rica muito. E para a subjugar o go-vernador de Malaca a obediência nossa, ha-via mester não tanto como dizem, porque é gente muito fraca e ligeira de desbaratar.34E afirmam as pessoas [e] capitães que muitas vezes foram lá que com dez naus subjugaria o governador das índias, que tomou Malaca, toda a China nas beiras do mar.35 E a China, para as nossas naus, é viagem de vinte dias. Partem daqui [de Malaca] no fim de Junho para boa viagem, e em quinze dias irão com vento de monção. Da China há novamente na-vegação para Burnei,36 e dizem que vão lá em quinze dias, e que isto será de quinze anos a esta parte.

MERCADORIAS QUE VALEM NA CHINA QUE VÃO DE MALACA.

A principal mercadoria é pimenta, de que com-prarão dez juncos cada ano, se tantos lá forem; de cravo [e] noz [moscada] pouca; pucho [e] ca-cho mais alguma coisa;37 incenso comprarão muito; dentes de elefantes, estanho, lenho-aloés de botica, [também]; comprarão muita cânfora de Burnei; [e ainda] contaria vermelha, sândalos brancos, brasil infindo, pau do que nasce em Singapura, preto; compram muitas alaquecas de Cambaia;38 chamalotes, escarlatas, panos de lãs de cores. Deixando a pimenta, tudo o resto são coisas de benesse.

Vão os ditos juncos de Malaca ancorar à ilha de Tumom, como já é dito, [a] vinte ou trinta léguas de Quantom. Estão estas ilhas junto com a terra de Nantó, uma légua ao mar da terra fir-me. Ali ancoram os de Malaca no porto de Tumom e os de Sião no porto de Hucham.39 O nosso porto é mais perto para a China três lé-guas que o de Sião, e primeiro vêm as mercado-rias a ele que ao outro.40

O senhor de Nantó, vendo os juncos, faz logo saber a Quantom como são juncos entrados nas ilhas. Saem os estimadores de Quantom a esti-marem as mercadorias, recebem seus direitos,41 trazem mercadoria tanta que abasta, que assim a terra está em costume de tanto valer tanto. Sa-bem de vós as mercadorias que quereis e trazem-nas.

DIREITOS NA CHINA AOS MERCADORES QUE VÃO DE MALACA.

De pimenta pagam vinte por cento; de brasil cinquenta por cento e do pau de Singapura ou-tro tanto. E isto estimado: tanto poderá ter um junco soldo à libra. Recebem seus direitos das outras mercadorias a dez por cento, e não vos fazem apresar. Têm verdadeiros mercadores em seus tratos, são grandemente ricos. Todo [o] seu intento é pimenta. Vendem seus man-timentos honestamente. [Depois de] despa-chados, torna-se cada um a sua terra. A gente baixa é pouco chegada à verdade e as coisas baixas de seus ofícios são todas falsas e con-trafeitas.

PESOS DA CHINA, GRANDES E PEQUENOS.

[N]a China o nome de cem cates chama-se pico. Então fazeis vosso preço, quantos picos de pi-menta por um de seda, ou quantos de tal merca-doria por um de pimenta. E assim é no almíscar, quantos cates de pimenta por um de almíscar. [No] aljôfar [o mesmo]. O pico tem cem cates, cada cate tem dezasseis taéis, cada tael tem dez mazes, cada maz tem dez pom. Cada cate tem vinte e uma onças de nosso peso; cada trezentos [e] doze cates de vinte e uma onças fazem um baar de Malaca de romã pequena.42

MANTIMENTOS DE ARROZ, TRIGO, CARNES GROSSAS, PESCADOS.

Todas estas mercadorias se vendem a peso, a sa-ber, tantos pesos de tal por um de pimenta. E os mercadores, quando a levam, hão na terra entre eles tantos pesos de tal mantimento por um de caixas de fuseleira,43 que correm na terra como ceitis. E nas mercadorias grandes e outras compras [usam] ouro e prata por moeda.

MERCADORIAS QUE VÊM DA CHINA.

[Vêm os ditos juncos da China a Malaca e não pagam direitos, somente presentes, e estes presen-tes assim os dão segundo for ordenança dos xabandares das tais nações.44 [O] xabandar da Chi-na, Léquias, Cauchi [e] Champa era o Lasamane. E deste ofício são ricos os xabandares, porque despeitam45 os mercadores grandemente. E por os ganhos serem grossos, tudo suportam, e também por a terra estar em costume de assim fazer e su-portar.]46

A principal mercadoria da China é seda branca crua em muita quantidade e sedas soltas de cores muitas em quantidade, cetins de todas as cores, da-mascos enrolados de tabuleiro de todas as cores, tafetás e outros panos de seda ralos, a que chamam xás, e doutras sortes muitos de todas [as] cores. [Existe também] aljôfar [em] grande cópia, de di-versas feições, pela maior parte desigual; trazem[-no] também redondo e grosso. E esta, a meu pare-cer, é tão principal mercadoria na China como a seda, posto que eles contam a seda por cabeça de mercadoria. Almíscar em pó e em papos muito e bom, certamente que não deve nada ao de Pegu.47 Cânfora de botica em grande quantidade, abarute,48 pedra-ume, salitre, enxofre, cobre, ferro. Ruibarbo, e todo não vale nada, o que até ao presente tenho visto vem podre; dizem que dantes vinha fresco, eu o não vi.49 Vasos de cobre de fuseleira, tachos de ferro fundido, bacios, bacias, destas coisas sem número. Cofres, abanos, agulhas de cem maneiras, delas muito subtis e bem obradas em abastança, é boa mercadoria. E coisas muito de baixa sorte, como de Flandres vem a Portugal, manilhas de cobre infindas. Vem ouro e prata, e não vi muito. E broca-dos à sua guisa muitos. De porcelanas não se fala no número.

Destas coisas que da China vêm, delas são da ter-ra da China, delas de fora, e umas de lugares nome-ados melhores que doutros. Destas tais mercadori-as, empregais nas que quereis vosso dinheiro, so-mente no almíscar não se acha tanto; dizem que poderá vir cada ano até um baar da China em todos os juncos. Tem grande quantidade de açúcar a terra da China, e bom. Há aí um lugar que se chama Xanci, 50 em que há almíscar; tem pouco e bom. A cidade de que vem o almíscar se chama Xambu, 51 a qual é na China, e dizem que em Xanci há as alimárias de que [se] tira o almíscar.52

OS PORTOS DAS MERCADORIAS.

A seda branca crua é de Chancheu; sedas de co-res, de Cauchi; damascos, cetins, brocados, xás, lós53, de Nanquim e de Anquém54; aljôfar, de Ainão; cânfora de botica, de Chancheu. Neste Nanquim há todos os panos de algodão e grandes mercadores. Há de Pequim a Nanquim, por rios, um mês de an-dadura. E porque os portos não satisfazem, porque as tais mercadorias têm seu conhecimento à vista, não vou por aqui mais discorrendo.

O sal é grande mercadoria entre os chineses. Da China se espalha para estas partidas e é trato de quinhentos juncos que o vêm comprar, e da China se carrega para outros cabos. São os tratantes dele muito ricos, e entre si dizem [uns] a outros: "Sois vós mercador de sal para falardes?"

Além do porto de Quantom está outro porto que se chama Oquém55. É andadura por terra de três dias e por mar um dia e uma noite. Este é o porto dos Léquios e de outras nações. Muitos portos têm além, que será larga coisa de contar, que ao presen-te não fazem em nosso caso, somente até Quantom, porque esta é a chave do reino de China.

Dizem que na terra de China anda gente da Tartária, e chamam-lhe tartal, e a tal gente é branca muito, de barbas ruivas, andam a cavalo, são guer-reiros. E dizem que da China vão à terra dos tárta-ros em dois meses e que na Tartária trazem cavalos ferrados com ferraduras de cobre. E isto deve ser porque a China vai-se estendendo [para] a banda do norte. E bombardeiros nossos dizem que em Alemanha ouvirão já dizer daquela gente e de uma cidade que os chineses nomeiam Quesechama56 e que lhes parece que poderão ir pela tal via a suas terras em pouco tempo, e afirmam-no. Mas a terra, por razão do frio, dizem que é despovoada em cer-tos lugares. Entre os chineses e os tártaros são os gores, e depois da Tartária [é a] Roxia, [segundo] dizem os chineses.57

NOTAS

* Ms., Malaca / Cochim, c. 1515.

1 Tomé Pires limita-se a repetir informações alheias, obtidas junto de mercadores malaios e chineses, e talvez também junto de Jorge Álvares, o primeiro português que visitou o litoral de Cantão em 1513.

2 O manuscrito de Lisboa regista: "haverem-se na Europa".

3 O autor manifesta alguma surpresa perante a fama de grande-za de que a China gozava entre os povos do Sueste Asiático.

4 Ou seja, não é cristão, nem muçulmano, nem hebreu.

5 A China era então governada por Zhengde (1506-1521).

6 A "alvura" dos chineses -- traço analógico -- é repetidamente sublinhada nos primeiros textos portugueses sobre a China.

7 O manuscrito de Lisboa acrescenta: "e panos de cores".

8 O manuscrito de Lisboa escreve aqui: "maneira de aves".

9 Provável referência ao chá (cf. infra, pp. 66 - 74).

10 Primeira referência portuguesa aos pauzinhos.

11 "Altamia" é um pequeno alguidar de barro vidrado; "porce-lana" equivale aqui a alguidar, tendo a palavra mantido um duplo significado durante algum tempo, designando alternadamente um recipiente ou a respectiva matéria-prima.

12 "Alvaiade" e "arrebique" são cosméticos.

13 "Abano" é o mesmo que leque. Esta última palavra, aliás, tem a sua origem na expressão "abanos léquios", isto é, abanos oriundos das ilhas Léquias (que têm sido identificadas com o arquipélago de Riú-Kiú).

14 Uma nota à margem do manuscrito de Paris regista aqui "a qual se chama Pequim". O curioso topónimo registado na Suma Oriental tem sido identificado com a "Cambalu" de Marco Polo, capital da China mongol, que se situava nas pro-ximidades da actual Pequim. Mas é mais provável que se tenha ficado a dever a um erro de copista, pois Tomé Pires parece ter desconhecido a descrição que o famoso viajante veneziano fez do Cataio.

15 "Champa": antigo reino da faixa oriental da península da Indochina.

16 Com efeito, Tomé Pires trata na Suma Oriental de todas estas regiões.

17 "Pacém": sultanato da extremidade setentrional da ilha de Samatra.

18 Tomé Pires apresenta aqui um esboço do "sistema tributário" que regia as relações externas da China nesta época. O "selo" de que fala o nosso autor, concedido a países tributários, era o símbolo da dependência formal em relação a Pequim.

19 "Garo": o mesmo que águila ou lenho-aloés, madeira odorí-fera da Aquilaria Agallocha, utilizada como incenso e como estimulante.

20 As célebres "aves-do-paraíso" ou manucodiatas, de colorida plumagem, originárias das ilhas mais orientais da Insulíndia.

21 Tomé Pires parece ter sido o primeiro português a aplicar a designação de "mandarins" (palavra de origem malaia) aos altos funcionários públicos chineses.

22 O autor da Suma Oriental contrapõe aqui as informações recolhidas em Malaca, que não parecem muito fidedignas, aos conhecimentos que adquirira talvez por via literária, em-bora seja difícil determinar a respectiva fonte.

23 Isto é, Cantão. Repare-se que o topónimo utilizado por Tomé Pires reproduz aproximadamente a fonética da palavra chi-nesa Guangdong, nome da província; por isso mesmo se manteve aqui essa leitura. A cidade de Cantão chama-se de facto Guangzhou.

24 A dinastia Ming, ao contrário do que afirma o nosso autor, seguia um método de sucessão basicamente hereditário. Mais uma vez Tomé Pires recolheu notícias algo deturpadas. Tra-tar-se-ia de algum eco das formas de eleição praticadas pelos mongóis? Este trecho, evidentemente, remete para a passa-gem de Os Lusíadas onde Luís de Camões afirma que o rei da China era eleito (X-130).

25 Tomé Pires refere-se aqui às pesadas restrições que na Chi-na desencorajavam todo o tipo de comércio externo que não fosse realizado no contexto de embaixadas tributárias.

26 "Cauchi" equivale aqui a Cochinchina.

27 "Aljôfar" é pérola miúda.

28 "Chancheu" designa aqui decerto a cidade de Zhangzhou, no litoral da província de Fuquiém.

29 Os "luções" eram originários das ilhas dos Luções, mais tarde chamadas Filipinas. Tomé Pires encontrou estes mer-cadores em Malaca.

30 Tomé Pires refere-se aqui a Nantou, povoação que se situa-va defronte da ilha de Lintim (Lingding), na margem esquer-da do estuário do rio das Pérolas.

31 Ilha também conhecida pelo nome de Tamão, ou muito simplesmente como "ilha da veniaga", da homónima palavra malaia utilizada para designar a actividade mercantil.

32 Original: "hitaão". O aitão (haidao [fushi]), na realidade, era o comandante da guarda costeira, com jurisdição sobre os estrangeiros. Tomé Pires deveria estar aqui a referir-se ao tutão ([xunfu] dutang), vice-rei ou governador geral de uma província.

33 Os ofícios públicos, de facto, eram trianuais.

34 Esta passagem ecoa debates entre os portugueses de Malaca, a que Tomé Pires teria assistido, sobre as possibilidades de conquista do litoral chinês.

35 Os primeiros portugueses subestimaram de forma óbvia as capacidades militares do Celeste Império, insistindo no tópi-co da fraqueza dos chineses.

36 Esta designação pode aqui aplicar-se quer a Brunei, sultanato do norte da ilha de Bornéu, quer à própria ilha.

37 O "cacho", ou catechu, é a goma amarela-clara da Acacia catechu, que é utilizada na composição do bétele, masticatório muito comum no Sueste Asiático; "pucho" é uma raiz aromá-tica, procedente da Saussurea lappa, utilizada como incenso.

38 A "alaqueca" é uma pedra preciosa, também conhecida como cornalina, à qual se atribuía a propriedade de estancar o san-gue.

39 Tratar-se-á das ilhas de Laowanshan, mais tarde conhecidas por ilhas dos Ladrões ou Marianas?

40 A expressão "o nosso porto" revela que Tomé Pires escrevia já depois de realizada a primeira viagem portuguesa à China, que ocorreu em 1513.

41 Nos portos chineses, os direitos alfandegários eram pagos em função do volume estimado do navio.

42 O "cate" era um peso utilizado em Malaca, que variava en-tre 600 g. e 1 kg.; o "pico", outra medida de peso, equivalia a cerca de 60 kg.; o "tael" equivalia a cerca de 40 g.; o "maz" valia 2,5 g.; o "pom" parece ser uma medida ínfima; e o "baar" podia variar entre 140 e 330 kg. As medidas de peso orientais variavam muito de região para região; às vezes, num mesmo porto, uma mesma medida podia ter valores diferentes, con-forme o tipo de mercadoria a pesar.

43 A "caixa" era uma moeda de valor ínfimo, com um orifício no meio, para correr em fiadas, composta de "fuseleira", uma amálgama de estanho e cobre. O ceitil era uma moeda portuguesa de pouco valor.

44 "Xabandar" é um termo de origem persa, utilizado em mui-tas regiões orientais para designar o capitão do porto. O ter-mo podia também aplicar-se ao representante ou responsável de uma determinada comunidade estrangeira. Em Malaca existiam diversos xabandares, cada um dos quais responsá-vel pelos mercadores de determinada nação.

45 Isto é, exigem "peitas".

46 Esta passagem apenas figura no manuscrito de Lisboa.

47 O Pegu era um antigo reino da parte ocidental da Indochina, ocupando parte do actual território de Miamar (antiga Birmânia).

48 Mercadoria não identificada.

49 O "ruibarbo" é uma planta rizomatosa (Rheum officinale) com vastas aplicações medicinais, mas que era usada sobre-tudo como purgante.

50 "Xanci" deve referir-se aqui à província de Shaanxi.

51 Talvez uma referência a Xian, capital da província de Shaanxi.

52 O "almíscar" é um produto fortemente aromático, segrega-do nos folículos prepuciais do gato almiscarado (Moschus moschiferus), um ruminante vulgar nas regiões do Tibete.

53 Diferentes tipos de panos de seda.

54 Local desconhecido, mas que talvez possa ser uma referên-cia à cidade de Nanchang, na província de Jiangxi.

55 Foi já sugerido que este porto de "Oquém" se poderia iden-tificar com Macau. Neste caso, Tomé Pires teria sido o pri-meiro escritor português a fazer-lhe referência.

56 É evidente que o copista cometeu aqui um lapso, tomando a expressão "que se chama" pelo nome da cidade referida. Anote-se, a propósito, que os portugueses empregavam fre-quentemente bombardeiros oriundos do norte da Europa.

57 Os conhecimentos portugueses sobre a geografia do interior da Ásia eram ainda bastante rudimentares. De qualquer for-ma, Tomé Pires tem uma noção vaga de que a China confron-ta com a Rússia, esboçando a possibilidade de uma via ter-restre para a Europa, pelas regiões mais setentrionais. A ex-tensão do caminho, porém, é bastante subestimada. Quanto aos enigmáticos "gores", poderiam ser quer os mogores ou mongóis, quer os coreanos.

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