Antologia Documental

TRATADO DAS COISAS DA CHINA*

Fr. Gaspar da Cruz

Fr. Gaspar da Cruz terá nascido em Évora, em ano que não se consegue apurar, sendo mais tarde, também em data incerta, admitido no convento de Azeitão da Ordem dos Pregadores. Partiu para o Oriente em 1548, integrado num grupo de missionários dominicanos, dedicando-se durante cerca de seis anos ao trabalho apostólico no litoral hindustânico. Em 1554 encontrava-se em Malaca, fundando uma casa da sua Ordem, e demorou-se na cidade até Setembro do ano imediato, pois nesta data embarcou num navio de mercadores portugueses com destino ao reino do Camboja. O incansável missionário permaneceu duran-te cerca de um ano em território cambojano, viajando um pouco através do reino, mas em Dezembro de 1556 estava já no litoral da China, tendo oportunamente conseguido autorização para visitar Cantão, onde estanciou durante cerca de um mês.

Apesar de se gorarem por completo os seus eventuais projectos de missionação, Fr. Gaspar não perdeu tempo, e parece ter aproveitado ao máximo a curta estada no litoral chinês, calcorreando exaustivamente toda a cidade, observando ruas, casas e templos, trocando impressões com gente oriunda de variados estra-tos sociais, frequentando audiências dos mandarins, avaliando hábitos e costumes, documentando-se sobre práticas culturais e religiosas, enfim, recolhendo preciosas informações sobre os mais variados aspectos da realidade chinesa. Paralelamente, o nosso dominicano entrevistou portugueses bem experientes nas "cousas da China", "pessoas dignas de fé", como ele próprio referirá, chegando mesmo a obter uma cópia de "um compêndio de um homem fidalgo que cativo andou pela terra dentro". Fr. Gaspar referia-se ao "tratado" de Galiote Pereira, antigo prisioneiro que chegara a Sanchoão em finais de 1552 ou princípios do ano seguinte, depois de passar vários anos em prisões chinesas (cf. supra, pp. 50 - 56). Em princípios de 1557 estava novamente de partida, e, depois de escalar Malaca, iniciou um périplo pela Insulíndia, antes de regressar ao litoral do Industão quase três anos mais tarde. Passou ainda por Ormuz, antes de embarcar em Goa em 1564 com destino a Portugal.

Anos mais tarde, em Fevereiro de 1570, duas semanas após a morte de Fr. Gaspar da Cruz, o impressor André de Burgos publicava em Évora o célebre Tratado das Coisas da China, que era a primeira monografia exclusivamente dedicada ao Celeste Império a conhecer na Europa as honras da impressão. A escolha da oficina tipográfica parece sugerir que o missionário, após o regresso do Oriente, se teria estabelecido no mosteiro eborense da Ordem de São Domingos. E aí, o padre domi-nicano procedera a uma exaustiva compilação dos materiais sobre a China até então reunidos pelos portugueses. O Tratado de Fr. Gaspar, de uma forma brilhante, sistematizava as notícias, as imagens e as vivências resultantes de um longo, e nem sempre pacífico, convívio lusitano com a realidade chinesa. A obra do nosso autor, contudo, não se destacava apenas pela riqueza do conteúdo, pelo rigor da informação e pela variedade das fontes utilizadas, já que o Tratado é atravessado do princí-pio ao fim por uma atitude de flagrante simpatia em relação às "coisas chinesas". O missionário, ao longo de muitas páginas, elogia quase sem medida a eficácia das formas de go-verno, a imparcialidade da justiça, a exemplaridade dos castigos, o respeito pelas hi-erarquias, a habilidade ma-nual extrema, que desenvol-ve as soluções mais inespe-radas para os problemas da vida quotidiana, a caridade e a benevolência das institui-ções de assistência, o apura-do ordenamento urbano, a organização meticulosa do sistema produtivo, etc. En-fim, a China é apresentada aos leitores da obra como um verdadeiro "modelo social", digno da maior admiração e interesse, que apenas é man-chado pelo facto de os chi-neses viverem na "ignorân-cia da verdade", totalmente apartados da "fé de Cristo".

Frontispício do Tratado em que se Contam Muito por Extenso as Coisas da China, de Fr. Gaspar da Cruz, Évora, 1569-1570.

Fonte utilizada: CRUZ, Gaspar da, Frei, Tratado das Cousas da China e de Ormuz, edição de Damião Peres, Barcelos, Portucalen-se, 1937, pp. 123-146. Transcrição parcial. O tex-to foi modernizado, apare-cendo entre parênteses rec-tos palavras ou expressões que visam clarificar as pas-sagens de interpretação mais problemática.

CAPÍTULO 23

DE COMO TRATAVAM OS PORTUGUESES

NOS TEMPOS PASSADOS

COM OS CHINESES E DE COMO ARMA-

RAM SOBRE ELES

Porque falámos muitas vezes acima em portugue-ses cativos na China,1 será conveniente coisa que se saiba a causa de seu cativeiro, onde se dirá mui-tas coisas notáveis. Há-se de saber que desde o ano de cinquenta e quatro a esta parte, se fazem as fa-zendas na China muito quietamente e sem nenhum perigo. E desde então até agora não se perdeu ne-nhum navio, senão por algum grande desastre, ha-vendo-se perdido no tempo passado muitos. Por-que, como andavam quase de guerra os chineses com os portugueses, quando vinham as armadas sobre eles, alevantavam-se e saíam-se ao mar e es-tavam em lugares mal amparados dos tempos.2 Posto que, vindo as tempestades, perdiam-se mui-tos dando à costa ou em alguns baixos. Mas do ano de cinquenta e quatro a esta parte, sendo capitão-mor Leonel de Sousa, natural do Algarve e casado em Chaul, assentou com os chineses que pagariam seus direitos e que lhes deixassem fazer suas fa-zendas nos seus portos.3 E de então para cá as fa-zem em Cantão, que é o primeiro porto da China, e ali acodem os chineses com suas sedas e almíscar, que são as fazendas principais que na China fazem os portugueses. Ali têm portos seguros, onde estão quietos sem risco e sem os inquietar ninguém. E assim fazem já agora os chineses bem seus tratos, e agora folgam muito os grandes e os pequenos com a contratação dos portugueses, e corre a fama deles por toda a China. Pelo que alguns principais da corte vieram a Cantão só para os ver, por haverem ouvi-do a fama deles.

Antes do tempo sobredito, e depois do alevantamento que causou Fernão Peres de Andrade,4 faziam-se as fazendas com muito traba-lho, [pois] não consentiam os portugueses na terra, e por ódio e aborrecimento lhe[s] chamavam fancui, que quer dizer "homens do diabo".5 Agora não nos comunicam debaixo de nome de Portugueses, nem este nome foi à corte quando assentaram pagar di-reitos, senão debaixo de nome de fangim,6 que quer dizer "gente doutra costa".

Há-se de saber mais que é lei na China que ne-nhum chinês navegue para fora do reino, sob pena de morte, só lhe [s] é lícito navegar ao longo da cos-ta da mesma China. E ainda ao longo da costa, nem de uma parte para outra na mesma China lhe[s] é lícito ir sem certidão dos loutias7 da terra donde partem, na qual [certidão] se relata para onde vai [o portador] e o negócio a que vai, e os sinais de sua pessoa e a idade que tem.8 Se não leva esta certi-dão é degredado para as partes fronteiras. O merca-dor que leva fazenda, leva certidão da fazenda que leva, e como pagou direitos dela. Em cada alfânde-ga que há em cada província, paga uns direitos, e não nos pagando perde a fazenda e degredam-no para as partes fronteiras.

Sem embargo das sobreditas leis, não deixam al-guns chineses de navegar para fora da China a tra-tar, mas estes não tomam mais à China. Destes, vi-vem alguns em Malaca, outros em Sião, outros em Patani, e assim por diversas partes do Sul9 estão espalhados alguns destes que saem sem licença. Pelo que destes que já vivem fora da China, alguns tor-nam em seus navios a navegar para a China debai-xo do amparo dos portugueses; e quando hão-de despachar os direitos de seus navios, tomam um português seu amigo a que dão algum interesse, para que em seu nome lhe[s] despachem os direitos. Al-guns chineses, desejando ganhar o remédio para sua[s] vida[s], saem muito escondidos nestes navi-os destes chineses a contratar fora, e tomam muito escondidos, que o não saibam nem seus parentes, por que se não divulgue e não incorram na pena que os tais têm. Pôs-se esta lei porque achou el-rei da China que a muita comunicação das gentes de fora lhe podia ser causa dalguns alevantamentos, e porque muitos chineses, com achaque de navega-rem para fora, se faziam ladrões e salteavam as ter-ras de longo do mar. E nem com este resguardo deixa de haver muitos chineses ladrões ao longo da costa do mar.

Estes chineses que vivem fora da China e para ela navegam com os portugueses, depois do escân-dalo de Fernão de Andrade,10 começaram a enca- minhar os portugueses a que fossem a Liampó11 fazer fazenda, porque não há naquelas partes cida-des nem vilas cercadas, senão muitas e grandes al-deias ao longo da costa, de gente pobre, a qual fol-gava muito com os portugueses, porque lhe vendi-am seus mantimentos, com que faziam seu provei-to. Nestas aldeias eram estes mercadores chineses que com os portugueses navegavam aparentados, e por serem conhecidos recebiam ali por sua causa melhor os portugueses, e por eles negociaram com que os mercadores da terra trouxessem suas fazen-das a vender aos portugueses. E como estes chine-ses que andavam entre os portugueses eram os que terçavam12 entre os portugueses e os mercadores da terra nas compras e vendas, tinham deste negó-cio muito grande proveito. Os loutias pequenos de longo do mar recebiam também muito grandes pro-veitos deste trato, porque recebiam grossas peitas de uns e doutros, por os deixarem contratar e lhe[s] deixarem trazer e levar as fazendas. Pelo que este-ve este trato entre eles muito tempo encoberto d'el-rei e dos loutias grandes da província. Depois de se haverem feito por algum tempo assim encoberta-mente as fazedas em Liampó, foram-se pouco a pouco estendendo os portugueses e começaram a ir fazer fazenda ao Chincheu13 e às ilhas de Cantão.14 E também já outros loutias, pelas peitas, o iam con-sentindo por todas as partes, pelo que chegaram al-guns portugueses com a contratação até além de Namquim,15 que é já muito longe de Cantão, sem nunca el-rei ser sabedor deste trato.16

Sucederam as contratações de maneira que co-meçaram os portugueses a invernar nas ilhas de Liampó,17 e [a] estarem nelas tanto de assento e com tanta isenção, que lhe[s] não faltava mais que ter[em] forca e pelourinho.18 Os chineses que an-davam entre os portugueses, e alguns portugueses com eles, vieram-se a desmandar de maneira que começaram a fazer grandes furtos e roubos, e ma-tar alguma gente. Foram os males em tanto cresci-mento e o clamor dos agravados foi tão grande, que chegou não somente aos loutias grandes da provín-cia [de Chequião] mas tambem a el-rei.19 O qual mandou logo fazer uma armada muito grossa na província de Fuquiem, para que lançasse todos os ladrões da costa, principalmente os que andavam em Liampó, e todos os mercadores, assim portu-gueses como chineses, entravam na conta dos la-drões.20

Fazendo-se prestes a armada, saiu-se ao longo da costa do mar. E porque os ventos lhe não serviam já para poder ir a Liampó, foram-se [os navios] para a banda do Chincheu, onde, achando navios de por-tugueses, começaram a pelejar com eles, e de ne-nhuma qualidade deixavam vir nenhuma fazenda aos portugueses.21 Estiveram [estes] assim muitos dias, pelejando às vezes, para verem se podiam ter remédio para fazerem suas fazendas. Passados mui-tos dias, e vendo que não tinham remédio, determi-naram de se ir sem ela. O que sabendo os capitães da armada [chinesa], mandaram-lhe[s] de noite muito secretamente um recado, que se queriam que lhe[s] viesse fazenda, que lhe[s] mandassem algu-ma coisa. Folgando muito os portugueses com este recado, fizeram-lhe[s] um grosso e honrado presen-te, e mandaram-lho de noite, por assim serem [de-les] avisados. Dali por diante vieram-lhe[s] muitas fazendas, fazendo os loutias que não atentava nis-so, e dissimulando com os mercadores. E assim desta maneira se fizeram as fazendas aquele ano, que foi de quarenta e oito.

CAPÍTULO 24

COMO ARMARAM OUTRA VEZ

OS CHINESES SOBRE OS PORTUGUESES,

E DO QUE SE SEGUIU DESTA ARMADA

O ano seguinte, que foi de quarenta e nove, foi [de] mais rigoroso resguardo na costa pelos capi-tães de armada, e maior vigilância nos portos e en-tradas da China, de maneira que nem fazendas, nem mantimentos vinham aos portugueses. Mas por mais resguardo e vigia que houve, como as ilhas ao lon-go da terra sejam muitas, que todas correm em cor-da ao longo da China, não puderam as armadas [chi-nesas] ter tanta vigilância e resguardo que não vi-essem algumas fazendas escondidas aos portugue-ses. Mas não foram tantas que pudessem acabar de carregar os navios e desbaratar as fazendas que ha-viam trazido à China. Pelo que, [foi] deixada a fa-zenda que lhes ficou por desbaratar em dois juncos chineses, dos chineses que andam já fora da China desmembrados e tratam à sombra dos portugueses, em os quais deixaram trinta portugueses encarre-gados dos navios e das fazendas, para que eles de-fendessem os navios e em algum porto da China onde melhor pudessem vendessem as fazendas que lhe[s] ficavam, a troco das fazendas da China. E ordenado isto se partiram [a] caminho da Índia.22

Como a gente da armada dos chineses viu que ficavam os dois juncos sós, sendo idos os demais navios, vieram sobre eles, sendo induzidos por al-guns mercadores da terra, que descobriram aos da armada a muita fazenda que em aqueles juncos fi-cava, e os poucos portugueses que haviam ficado para guarda dela. Armaram-lhe[s] pois [uma] cila-da, fazendo querena alguns chineses em terra,23 que postos em armas faziam que queriam cometer aos navios para pelejarem com eles, porquanto estavam pegados com terra, para que provocados os portu-gueses se saíssem dos navios a pelejar com eles e assim ficassem os navios sem defensão [d]a arma-da que estava perto para os cometer detrás de uma ponta que a terra fazia ao mar. Provocados desta maneira os que estavam para defensão nos navios, sendo incautos à cilada que deveriam cuidar poder-lhe[s] estar armada, saíram alguns a pelejar com os da terra. O qual vendo os da armada, que estavam vigiando em cilada, arremeteram muito rijo e mui-to prestes aos dois juncos, e [depois de] mortos al-guns portugueses que neles acharam e feridos ou-tros, tomaram os navios.

Ficou o capitão-mor, que é o lutici,24 tão glorioso e tão contente com esta vitória que foi coisa de ad-miração ver sua alegria. E logo fez muito graves crueldades em alguns chineses que com os portu-gueses tomou. Trabalhou de induzir quatro portu-gueses que tinham mais aparência em suas pessoas que os outros que dissessem que eram reis de Malaca. E o acabou [de combinar] com eles porque lhe[s] prometeu fazer melhor tratamento que aos demais, e com isso os provocou. E como achasse entre o fato que tomou um roupão e uma gorra, e perguntando a um daqueles chineses que com os portugueses foram tomados que trajo era aquele, meteram-lhe em cabeça que era trajo de reis de Malaca, pelo qual mandou logo fazer três roupões por aquela bitola, e três gorras, e desta maneira ves-tiu a todos [os] quatro uniformemente, para mos-trar verdadeiro seu fingimento, e mais gloriosa [ser considerada] sua vitória. Ajuntou-se a este lutici a cobiça de ver se lhe podiam ficar as muitas fazen-das que nos navios tomara. De maneira que junta-mente queria triunfar de reis de Malaca, para que com o povo ganhasse grande nome e glória e para com el-rei fazer-lhe grandes mercês pelo serviço que queria mostrar haver-lhe feito, e juntamente se queria ajudar das fazendas que tomara, para com elas fazer mais mostra aos povos da China de glori-osa vitória. E para poder fazer isto mais a seu sal-vo, e não ser tomado em mentira, fez grandes justi-ças nos chineses que com os portugueses tomou, e matando alguns deles, determinava matar aos de-mais.

Vindo estas coisas à notícia do aitão,25 que era seu superior, estranhou-lhe muito o que fizera, e logo lhe mandou que mais não matasse a nenhum dos que ficavam,26 mas que logo se viesse ver com ele, trazendo consigo toda a presa, assim da gente que ainda era viva, como da fazenda. Ordenando o lutici seu caminho para ir ao aitão, como lhe era mandado, mandou dar quatro cadeiras aos quatro [a] que pusera títulos de reis, para nelas com mais honra serem levados. E os outros portugueses iam metidos em capoeiras, com as cabeças saídas fora, metidos os pescoços pelas tábuas, de maneira que não podiam recolher as cabeças para dentro, mas levando-as alguns feridas, assim as levavam des-cobertas ao sol e ao sereno. Assim comiam e bebi-am, e ali faziam seus feitos, o que lhes não era pequeno tormento e pena. E iam assentados den-tro nas capoeiras e eram levados às costas de ho-mens. Ia este lutici com esta presa pela terra den-tro, com muito grande majestade, e levava diante de si quatro bandeiras estendidas, nas quais iam escritos os [alegados] nomes dos quatro reis de Malaca. E quando entrava nas povoações, entra-va com grandes estrondos e aparatos, com som de trombetas e com pregoeiros diante, que iam apregoando a grande vitória que houvera o lutici Foão dos grandes quatro reis de Malaca.27 E todos os principais dos lugares o saíam a rece-ber com grandes festas e honras, concorrendo todos os povos a ver a nova vitória.

Tanto que chegou o lutici com seus aparatos e glória aonde estava o aitão,28 depois de lhe dar conta pelo miúdo de todas as coisas passadas e de sua vitória, manifestou-lhe seu intento e concertou-se com ele que dividissem as fazendas entre si ambos, e que perseverasse o fingimento dos reis de Malaca, para que ambos recebessem d'el-rei honras e mer-cês. Isto assentado, determinaram ambos, para se isto conservar em segredo, que se levasse adiante o que o lutici havia começado, que era que fossem mortos todos os chineses que ali vinham cativos. E logo o mandara pôr tudo em efeito, pelo que mata-ram noventa e tantos chineses, entre os quais foram mortos alguns moços pequenos.

Deixaram todavia três ou quatro moços e um ho-mem, para por eles, fazendo-os à sua mão, fazerem certo a el-rei tudo o que queriam, que era fazerem dos portugueses ladrões e encobrirem as fazendas que tomaram. Fazendo certo também por esses [pri-sioneiros chineses] como os quatro [portugueses] eram reis de Malaca. E os portugueses, como não sabiam falar a língua da terra, nem tinham pessoa alguma em aquela terra que por eles terçasse e os favorecesse, pereceriam, e eles, como poderosos, fariam a sua [versão dos acontecimentos] boa, se-guindo o fim por eles intentado. E por esta causa, e por maior triunfo da vitória, não mataram os portu-gueses, mas deixaram-nos vivos.

Não puderam estes loutias fazer isto tão secreto e tanto a seu salvo que se não manifestassem suas frau-dulentas malícias e se não estranhassem geralmente. E principalmente foram por todas as partes estranha-das as mortes e crueldades que tinham feitas, por ser coisa desacostumada na China matar-se ninguém sem autoridade d'el-rei, como já acima temos dito. E ain-da no matar é a justiça nesta terra muito vagarosa e atentada, como também acima fica manifesto. Além de tudo isto, muitos dos que mataram tinham paren-tes na terra, que se doeram das mortes dos seus. Pelo que assim por estes, como por alguns loutias que foram zelosos da justiça e não quiseram dar consen-timento a tamanhos males e fraudulências, chegou este negócio à notícia d'el-rei e lhe foi manifestado como os portugueses eram mercadores que vinham à China com suas fazendas a tratar e não eram la drões, e como falsamente [o aitão e o lutici] a quatro deles puseram títulos de reis, a fim que el-rei lhes fizesse grandes mercês e honras, e de como tinham usurpado muito grande cópia de fazendas. E por fim, para encobrirem estes males, mataram homens e meninos sem culpa. O que sabido por el-rei foi disso muito enojado e muito pesaroso, e logo com muita presteza e diligência mandou nisso prover com jus-tiça, como se poderá ver neste capítulo seguinte, que disso dá larga conta.

CAPÍTULO 25

DA DILIGÊNCIA QUE SE FEZ EM SABER

QUE GENTE ERAM OS PORTUGUESES,

E COMO FOI TIRADA A DEVASSA SOBRE

SUAS PRISÕES

Tanto que el-rei foi informado de todo o sobredito, logo despachou de sua corte um quinchai,29 de que dissemos acima que quer dizer chapa de ouro e que não se mandam semelhantes homens senão a negó-cios muito importantes. E com este mandou outros dois, também de muita autoridade, dos quais um havia sido pochanci e outro anchaci,30 estes dois como inquiridores deste negócio.31 Encomendan-do também ao chaém32 que aquele ano ia visitar a província do Fuquiem e ao pochanci e anchaci da mesma província que todos ajudassem o quinchai e os dois inquiridores em tudo o que lhes fosse ne-cessário neste negócio, encarregando a todos mui-to que neste caso o fizessem como bons servos e amigos da boa justiça e bom governo de seu reino. E como isto aconteceu em tempo que as províncias todas eram providas de novos ofícios, vieram to-dos os sobreditos juntos da corte e todos entraram na cidade do Fucheu com muito grande aparato.

E logo em chegando todos juntos, começaram com muito grande diligência e cuidado a entender no negócio a que vinham e que tanto lhes era enco-mendado. Os dois que vinham com o quinchai como inquiridores, logo se foram a umas casas grandes que no meio tinham um grande pátio; e de uma ban-da do pátio estavam uns grandes aposentos e muito galantes, e da outra banda estavam outros da mes-ma maneira. Cada um dos inquiridores se meteu em uma das sobreditas casas. Foram logo trazidos os presos e foram apresentados a um deles; aquele, por cortesia o remeteu ao outro que inquirisse ele primeiro, com muitas palavras de cortesia. O outro lhos tornou a mandar com muitos agradecimentos. E assim foram por vezes levados de um ao outro, querendo cada um dar a mão ao outro para que co-meçasse primeiro, até que um se deu por vencido e começou. E como o negócio era de muita impor-tância e muito encomendado, tudo o que diziam os réus e os acusadores escreviam estes oficiais por suas próprias mãos.

Tiveram os portugueses por grande contrário um chinês piloto de um dos navios que se tomou e um moço chinês cristão que desde menino se criara entre os portugueses, porque estavam ambos feitos da mão dos loutias contrários, movidos por dádi-vas e promessas, estando já os loutias depostos dos ofícios e havidos por delinquentes, pelo qual esta-vam diante de el-rei acusados; mas ainda que esta-vam desta maneira, eram tão poderosos e tão favo-recidos que puderam tirar de entre os portugueses e de seu poder um moço chinês que lhes servia de língua, para que, não tendo quem os entendesse, não pudessem defender sua justiça. O qual torna-ram os portugueses a haver à mão por uma petição que lhes fez um chinês preso, que apresentaram aos inquiridores, a qual, vista por eles, logo lho manda-ram entregar. E este moço lhe foi causa a eles de seu livramento, porque, como por ele se entendiam com os oficiais da justiça, puderam mostrar muito bem ser sem culpa.

Inquiriam-nos por esta ordem: eram primeiro tra-zidos os acusados e perguntados por um destes ofi-ciais, levavam-nos ao outro para que os tornasse a reperguntar; e entretanto o outro reperguntava os acusados, eram trazidos os acusadores ao que pri-meiro perguntara. E assim os acusados como os acusadores todos eram perguntados por ambos os oficiais, para depois vistos por ambos os ditos de uns e dos outros, vissem se se encontravam.33 E primeiro faziam as perguntas a cada um à parte. Depois, tornavam-nos a perguntar a todos jun-tos, para que vissem se se contrariavam uns a outros, ou se altercavam e se arguiam uns com os outros, para assim irem pouco a pouco coli gindo a verdade do caso.

Nestas perguntas foram os dois contrários, a sa-ber, o piloto e o chinês moço cristão, e foram servi-dos de muitos açoites, porque se encontravam em algumas coisas e mostravam sempre os loutias que folgavam de ouvir os portugueses em sua defesa, o qual lhes foi causa de muito grande alívio. Foi-lhes também grande ajuda, para se não encontrarem, falarem todos por uma língua. E porque os portu-gueses alegaram em sua defesa que, se quisessem saber quem eles eram e como eram mercadores e não ladrões, que mandassem devassar deles ao lon-go da costa do Chincheu34 e que ali saberiam a ver-dade, o qual poderiam saber dos mercadores da ter-ra com os quais havia muitos anos que tratavam, e que também de aquela gente saberiam que não eram reis, porque reis não se abaixavam tanto que vies-sem com tão pouca gente a mercadejar, e que se antes disseram o contrário, que foi por enganos do lutici e por receberem dele melhor tratamento em suas pessoas.

Tendo esta informação dos portugueses, logo, com parecer do quinchai e dos outros oficiais, se parti-ram a caminho do Chincheu, ambos a inquirir a verdade do que lhe diziam os portugueses, nem se fiou esta inquirição de outrem senão destas duas pessoas. Tanto que estes loutias acabaram de tirar a devassa no Chincheu, como por ela souberam a verdade do que os portugueses diziam e as menti-ras do lutici e do aitão, despacharam logo um cor-reio em que mandaram pôr o lutici e o aitão em prisões a muito bom recado. Aqui se pode ver quanto poder estes homens traziam, pois podiam prender tão grandes homens, coisa que fez admiração por toda a terra, e diziam muitos aos portugueses que grande era sua ventura, pois por sua causa prendi-am tão grandes homens, pelo que daí por diante todos os começaram a favorecer muito. Se todavia esta devassa se tirara em Liampó como se tirou no Chincheu, não deixar[i]am os portugueses de pas-sar muito mal, segundo os males que ali tinham fei-to eram grandes.35

Depois que os loutias tornaram do Chincheu, mandaram trazer os portugueses diante de si e con-solaram-nos muito, mostrando-lhes muito boa von-tade e dizendo-lhes que já sabiam que não eram ladrões, mas que eram bons homens, e tornaram outra vez a inquirir, assim a eles como aos contrári-os, para ver se se contrariavam em coisa alguma do que antes tinham dito. Nestas reperguntas, o chinês piloto que antes muito se havia mostrado contrário aos portugueses e havia sido por parte dos loutias, vendo que já os loutias estavam presos e que já lhe não podiam ser bons e que os portugueses eram já favorecidos e a verdade se manifestava, tornou-se a desdizer de quanto tinha dito e disse que era ver-dade que os portugueses não eram ladrões nem reis, senão que eram mercadores e muito bons homens, e descobriu a muita fazenda que o lutici tomara quando prendera aos portugueses; e que se até en-tão tinha dito o contrário, que era pelas grandes pro-messas que lhe fizeram os loutias e pelos grandes medos que lhe punham se assim o não fizesse; mas que, pois eles já eram presos e já sabia que lhe não podiam fazer mal, queria agora dizer a verdade. Foi isto coisa que pôs os loutias em grande admiração e como atónitos e fora de si estiveram um grande espaço, olhando um para o outro sem falarem pala-vra. E tomando sobre si o mandaram atormentar e açoitar muito rijo, para ver se se desdizia, mas sem-pre perseverou na mesma confissão.

Acabados de fazer todos os exames e diligênci-as que eram neste caso necessárias, querendo-se já o quinchai com seus companheiros ir para a corte, quis primeiro ver os portugueses e dar uma vista de si à cidade. E foi amostra de muito gran-de majestade a maneira com que saiu pela cida-de, porque foi acompanhado por todos os gran-des dela e com muita gente bem armada e com muitas bandeiras estendidas muito louçãs e com muitas trombetas e com muitos atabales e outras muitas coisas que em semelhantes negócios, ca-sos e aparatos se costumam. E assim acompanha-do foi até umas muito nobres e grandes casas. E depois de despedidos todos os grandes dele, man-dou chegar os portugueses a si e depois de pou-cas palavras os despediu, porque não era isto para mais que para os ver. Antes que se partissem es-tes loutias, mandaram aos loutias da terra e aos tronqueiros que todos favorecessem os portugue-ses e lhe[s] fizessem muito bom tratamento e lhe[s] mandassem dar todo o necessário para suas pessoas. E mandaram a todos que pusessem seu sinal em um papel, para que, enquanto eles iam à corte e se despachavam seus feitos, manhosamente não fizessem faltar algum. E mandaram ter em muito bom recado o lutici e o aitão, e que os não deixassem comunicar com nenhuma pessoa.

Saídos fora da cidade, recolheram-se em um lu-gar pequeno, no qual concertaram muito bem to-dos os seus papéis, tirando a limpo só o que era necessário; e porque eram os papéis muitos e ha-via muito que escrever, ajudaram-se de três ho-mens. E tirado a limpo tudo o que haviam de levar à corte, queimaram tudo o demais. E para que es-tes três homens que tomaram por ajudadores não divulgassem coisa alguma do que tinham visto e escrito, deixaram-nos encerrados com muita vi-gia, [para] que ninguém pudesse falar com eles, mandando-lhes administrar todo o necessário mui-to abundantemente até que a sentença viesse da corte e se declarasse. Apresentados os papéis na corte e visto tudo por el-rei e por todos seus ofici-ais, pronunciou a sentença da maneira seguinte.

CAPÍTULO 26

QUE CONTÉM A SENTENÇA QUE EL-REI

DEU CONTRA OS LOUTIAS

EM FAVOR DOS PORTUGUESES

Primeiro que ponhamos a sentença, convém no-tar algumas coisas. A primeira é que a sentença era muito mais extensa e larga do que aqui está referi-da, e com os portugueses que a tinham em seu po-der a terem encurtada, eu a encurtei mais, tomando só as principais forças dela e cortando tudo o mais.36 Há-se de notar secundariamente, para que se en-tendam alguns pontos escuros dela, que poutós37 são as vigias do mar e serem alguns condenados a "capacetes vermelhos",38 é condenarem-nos por homens de armas para as partes fronteiras. Além disto, os direitos da China, há-se de saber que se não pagavam como entre nós, senão como se pa-gam em Sião, que é medirem-se os navios que le-vam fazendas à China de popa a proa aos côvados; e segundo os côvados, assim têm a paga, um tanto por côvado. E pagar-se agora na China a tantos por cento, foi concerto que se fez pelos portugueses com os regedores de Cantão, por aviso dos chineses que tratam entre os mesmos portugueses; pelo que são os direitos mais grossos do que houveram de ser se se pagaram pelo costume da terra.39 Estas coisas avisadas, a sentença é a seguinte:

"Pimpu,40 por mandado d'el-rei. Porque Chaipu Huchim41 tutão sem meu mandado nem mo fazer saber, depois de ser tomada tanta gente, a mandou matar. Querendo eu nisso prover com justiça, mandei primeiro saber a verdade por Quinsituão,42 meu quinchai, o qual levando consigo os loutias que mandei que me soubesse a verdade dos portugueses, e assim do aitão e lutici, os quais me tinham informado que os portugueses eram ladrões e que vinham a toda a costa de minha terra a furtar e a matar. E sabida a verdade de tudo, vieram de fazer o que lhes mandei. E vistos os papéis pelo meu Pimpu e pelos loutias grandes de minha corte, e depois de bem vistos por eles, me vieram a dar conta de tudo. E assim os mandei ver por Ahimpu e Atuchaém,43 e por Athailissi Chuquim, 44 aos quais mandei que revissem muito bem os papéis, por serem coisas de muito peso, nas quais eu queria prover com justiça.

O qual, assim visto por todos, foi manifesto que os portugueses vinham ao mar de Chincheu havia muitos anos a fazer fazenda, a qual não convinha que fizessem da maneira que a faziam, senão nas minhas praças, como sempre foi costume em todos os meus portos. Estes homens de que até aqui não soube, já sei que a gente de Chincheu ia a seus navios ao mar a fazer fazenda, pelo que já sei que são mercadores e não ladrões, como me tinham escrito que eram. Eu não ponho culpa mercadores ajudarem mercadores, mas ponho muita culpa a meus loutias do Chincheu, porque, tanto que chegara um navio a meus portos, houveram de saber se eram mercadores e se me queriam pagar direitos, e, querendo-os pagar, escreverem-me logo. Se assim o fizeram,45 não fora feito tanto mal. Ou, como foram tomados, se mo fizeram saber, mandara-os logo soltar. E ainda que seja costume em meus portos os navios que a eles vêm medirem-se para pagar os direitos, estes, por serem de longe, não era necessário mais que deixarem-lhe[s] fazer fazenda e irem-se para suas terras.

Além disto, os meuspoutós, que sabiam que eram estes homens mercadores, não mo diziam, mas tinham-mo encoberto, pelo qual foram causa de ser tomada e morta tanta gente. E os que ficavam vivos, como não sabiam falar [chinês], olhavam para o céu e pediam de seus corações justiça ao céu (não conhecem outro Deus supremo senão o céu).46 Além destas coisas, sei que o aitão e o lutici fizeram tanto mal por cobiça da muita fazenda que tomaram aos portugueses e não atentaram se os que prenderam, aos quais tomaram a fazenda, se eram bons ou maus. Assim mesmo os loutias do longo do mar sabiam que estes homens eram mercadores e não mo disseram. E todos como maus foram causa de tanto mal.

Soube mais pelo meu quinchai que o aitão e lutici tiveram cartas pelas quais souberam que os portugueses eram mercadores e não ladrões; e, com saberem isto, não se contentaram com os tomarem, mas escreveram-me muitas mentiras, e não se contentaram com matar homens, mas mataram meninos, cortando a uns os pés e a outros as mãos e por derradeiro a todos as cabeças, escrevendo-me que tomaram e mataram reis de Malaca. A qual coisa, cuidando eu ser verdade, me doeu o coração. E porque até aqui sem meu mandado se fizeram tantas cruezas, daqui por diante mando que se não façam.

Além disso, os portugueses resistiram à minha armada, sendo melhor deixarem-se tomar que matar[em]-me gente. Além disto, há muito tempo que vêm ao mar da minha terra a fazer fazenda à maneira de ladrões e não como mercadores, pelo qual, se foram naturais como são estrangeiros, tinham pena de morte e perdiam a fazenda, pelo que não são sem culpa. O tutão, por cujo mandado foram mortos os que se mataram, dizia que por esse feito o havia eu de fazer maior e a gente que mandou matar, depois de não ter cabeças, seus corações, a saber, a alma e seu sangue, pediam justiça ao céu.

Eu, vendo tamanhos males serem feitos, meus olhos não podiam acabar de ver os papéis com lágrimas e o meu coração tinha grande dor. Não sei os meus loutias, já que tomavam esta gente porque a não soltavam, para que eu não viesse a saber tamanhas cruezas."

Notai a natural clemência de el-rei gentio, a qual se provoca ainda mais pelas piedosas leis de sua terra, que, como dissemos, são muito piedosas acerca das mortes dos malfeitores e vagarosas nelas. Segue-se adiante a sentença.

"Pelo que, vistas todas estas coisas, faço Senfuu loutia grande, porque fez o que devia em seu cargo e me falou verdade. Faço também loutia grande Qunchiu, porque me escreveu a verdade dos poutós que iam fazer fazendas às escondidas ao mar com os portugueses. Os que são maus, eu os farei mais baixos que os que semeiam arroz. Assim mais: porque [o] pachou 47 fazia fazenda com os portugueses e por peitas deixava também ir os mercadores da terra a fazer fazenda com os portugueses, e com fazer estas coisas escrevia-me que os portugueses eram ladrões e que vinham a minha terra só a furtar, e isso mesmo disse aos meus loutias, que logo responderam que mentia, porque já sabiam o contrário."

E com este Fuão e Fuão nomeia dez loutias: "Todos vós outros não é nada serdes degredados para 'capacetes vermelhos', para os quais vos condeno, mas mereceis que vos faça mais baixos, como vos faço. Chaém, por tomares estes homens dizias que serias maior, e sendo em se fazer tanto mal, dizias não haveres medo de mim."

Fuão e Fuão, nomeia nove: "Por tomardes estes homens dizieis que os faria grandes, e não havendo medo de mim, todos mentistes."

Fuão e Fuão, nomeia muitos: "Também sei que tomáveis peitas. Mas, pois assim o fizeste[i]s, eu vos faço baixos." Priva-os de dignidades de loutias.

Fuão e Fuão, nomeia muitos: "Se o aitão e [o] lutici queriam matar tanta gente, porque lho consentistes. Mas, pois, consentindo, fostes com eles a matá-los, todos tendes a mesma culpa. Chifu 48 e chanchifu, 49 também fostes conformes com as vontades do aitão e lutici, e fostes com eles a matar, assim os que tinham culpa, como os que a não tinham. Pelo que todos os sobreditos condeno a 'barretes vermelhos'. Lupu tinha bom coração, porque querendo o tutão mandar matar esta gente, disse que mo fizessem primeiro a saber. A este não farei mal, senão bem, como ele merece, e mando que fique loutia. Sanchi, faço meu anchaci da cidade de Cansi.50 O Antexeu mando que seja deposto de sua honra. Assão, pois sabe falar com os portugueses, tenha honra e ordenado e será levado para Chaqueam, donde é natural." Este é o moço com que os portugueses se defenderam servindo de língua, deram-lhe título de loutia e comedias.

"Chinque, cabeça dos mercadores que iam fazer fazenda com os portugueses ao mar e os enganava trazendo muita fazenda a terra, ser-lhe-á pedida [a fazenda] e pôr-se-á em boa arrecadação, para o comer e gasto dos portugueses, e ele e seus quatro companheiros condeno para 'barretes vermelhos', e serão degredados para onde parecer bem a meus loutias. Aos mais culpados e presos por este caso, mando a meus loutias que dêem a cada um a pena que merecer.

Ao chaém mando que me traga cá o tutão para que, vistas suas culpas pelos grandes de minha corte, mande fazer dele a justiça que me bem parecer. Este tutão foi juntamente consentidor nos males do aitão e lutici, porque o lutici e [o] aitão o fizeram participante e lhe deram parte dos interesses que tomaram aos portugueses, para que, como cabeça houvesse por bem o que eles faziam, porque [n]a verdade eles não se atreveram a fazer o que fizeram se ele não dera consentimento e interviera com seu parecer." Este, ouvindo o que era sentenciado contra ele, se enforcou, dizendo que, pois o céu o fizera inteiro, que lhe não havia ninguém de tirar a cabeça.

"Os poutós que ainda estão presos serão outra vez perguntados e logo serão despachados. Cuichum será logo tirado de loutia sem ser mais ouvido. Chibee, cabeça de vinte e seis, mando que ele e os seus sejam todos soltos, porque eu acho que têm muito pouca culpa. Os que deverem dinheiro será logo deles arrecadado. Famichim e Toumicher morrerão, se bem parecer a meus loutias, e se não, façam o que lhes melhor parecer. Afonso de Paiva e Pêro de Ceia — estes eram portugueses —António e Francisco — estes eram escravos —, por acharem serem culpados em matarem gente de minha armada, serão com o lutici e aitão metidos no tronco, onde, segundo costume de meu reino, todos morrerão devagar. Os mais portugueses que são vivos, com todos os seus moços, que são por todos cinquenta e um, mando que sejam levados à minha cidade de Cansi, onde mando que sejam bem tratados, pois meu coração é tão bom para eles que por sua causa castigo desta maneira a gente da minha terra. E o faço assim com eles, porque é meu costume fazer justiça a todos. Os loutias da armada, por achar que têm pouca culpa, mando que sejam soltos; uso-o desta maneira com todos, para que vejam os meus loutias que tudo o que faço, que o faço com bom zelo. Estas coisas todas mando que sejam feitas com brevidade." Até aqui é a sentença.51

Claro se há mostrado no processo desta sentença o bom processo e ordem de justiça que a seu modo têm estas gentes idólatras e bárbaras e a natural clemência que Deus pôs em um rei que vive sem ter conhecimento de Deus, e quanta diligência pôe e com quanto peso trata negócios graves.52 o bom governo que há nesta terra e a muita justiça dela parece ser causa, porque com ser a China um reino tão grande como temos mostrado é sustentado há muito grande número de anos em paz, sem levantamentos, e a sustenta Deus, para que os inimigos dela não façam entradas e danos, e porque comum-mente a sustenta em muita abundância, prosperidade e fartura.53 E a rigorosa justiça desta terra é causa de freio das más inclinações e desassossegos que a gente dela tem, que, com ser tão rigorosa como é, estão todavia todos os troncos comummente cheios de presos, com serem tantos como temos dito. E se acerta algum ano de haver fome, é necessário, assim pela terra dentro como ao longo do mar, continuamente haver muitas armadas para refrear as solturas dos muitos ladrões que se levantam.

Os portugueses que foram livres pela sentença, quando os levavam onde el-rei mandou, achavam no caminho tudo o necessário em muita abundância, nas casas que dissemos acima que el-rei tinha em todos os lugares para os loutias quando caminham. Levavam-nos em magotes sobre cadeiras de canas em costas de homens, e iam encarregados a loutias pequenos, que lhes faziam dar tudo o que lhes era necessário por todas as partes por onde iam, até serem entregues aos loutias da cidade de Cansi. Dali por diante, não tiveram d'el-rei mais que cada mês um fom de arroz,54 que é uma medida quanto um homem pode levar às costas; o mais que haviam mister, cada um o buscava segundo sua indústria. Depois os tornaram a espalhar de dois em dois e de três em três por diversas partes, para atalharem que por tempo não se fizessem poderosos juntando-se a outros. Os que foram condenados à morte foram logo metidos no tronco dos condenados. E o Afonso de Paiva pôde ter maneira com que fez a saber aos portugueses livres que de boa entrada lhe deram logo quarenta açoites, que o trataram muito mal, mostrando-se em Deus confortado. Os que ficaram soltos, poucos a poucos se vieram para os navios dos portugueses, por indústria de alguns chineses que os traziam mui escondidos, movidos pelos mui grossos interesses que recebiam dos mercadores portugueses que faziam suas fazendas em Cantão.

Retrato de Afonso de Albuquerque, meados do século xvI (Museu Nacional de Arte Antiga), in GARCIA, José Manuel, Portugal e os Descobrimentos, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1992, p. 151.

NOTAS

* 1.a edição: Évora, 1570.

1 Fr. Gaspar refere-se ao grupo de prisioneiros portugueses capturados em 1549 ao largo de Fuquiém pelas armadas chine-sas, do qual fazia parte Galiote Pereira, entre muitos outros. O dominicano recorre amiúde, ao longo do seu Tratado, a uma relação sobre a China preparada por este fidalgo, após a sua libertação (cf. supra, pp. 50 - 56).

2 Entre 1530 e 1554 os portugueses frequentaram regularmen-te o litoral da China, dedicando-se ao tráfico com mercado-res chineses em lugares desertos do litoral. Chegaram mes-mo a fundar estabelecimentos temporários, bem atestados na nossa cartografia quinhentista, dos quais o mais célebre foi certamente Liampó, nas proximidades da cidade de Nimpó (Ningbo).

3 Leonel de Sousa (c. 1500-c. 1572), capitão algarvio com lon-gos anos de seviço no Oriente, estabeleceu em 1554 um acordo informal com os mandarins de Cantão, passando os portu-gueses, a partir de então, a comerciar livremente nas ilhas do estuário do rio das Pérolas, primeiro em Lampacau (Lanbaijiao) e depois em Macau.

4 Tradicionalmente, atribui-se a Simão de Andrade, irmão de Fernão Peres de Andrade, que visitou a ilha de Tamão em 1519, a responsabilidade pelos primeiros confrontos luso-chineses. Contudo, a interrupção de relações com os portu-gueses só foi decretada pelas autoridades cantonenses em 1522.

5 Fancui (chinês fangui [zi]): literalmente, "diabos estrangei-ros".

6 Fangim (chinês yangren): literalmente, "gente de além-mar".

7 "Loutia" (chinês laodie): literalmente, "venerável pai", uma das designações atribuídas aos mandarins chine-ses. Galiote Pereira utiliza o mesmo termo (" loutea" ). Cf. supra, pp. 50-56.

8 Fr. Gaspar refere-se ao sistema de passaportes internos que vigorava na China dos Ming.

9 As "partes do Sul" dos autores quinhentistas abrangiam uma vasta área geográfica que se estendia para leste de Malaca, à qual poderíamos dar hoje o nome de Extremo Oriente.

10 Leia-se "Simão de Andrade".

11 Este termo designa aqui, de uma forma genérica, o litoral da província de Chequião.

12Isto é, "serviam de terceiros" ou de "intermediários".

13 Chincheu designa aqui a região da baía de Amói, nas proxi-midades da cidade de Zhangzhou.

14 Isto é, ilhas das imediações da cidade de Cantão.

15 É duvidoso que os portugueses tenham nesta época atingido a região de Nanquim.

16 É duvidoso que a corte imperial chinesa não tivesse conhe-cimento da situação agitada que se vivia nas regiões mais meridionais do Celeste Império. Por um lado, as autoridades chinesas eram extremamente ciosas da mínima parcela do seu vasto território; por outro lado, é quase certo que minuci-osos relatórios sobre a intensa pirataria que assolava as pro-víncias costeiras teriam chegado a Pequim.

17 Liampó desina aqui as ilhas de Shuangyu, no arquipélago de Zhoushan, nas proximidades da cidade chinesa de Nimpó, onde os portugueses, juntamente com outros mercadores es-trangeiros, fundaram um estabelecimento mercantil tempo-rário, de onde foram definitivamente expulsos em 1549.

18 A forca e o pelourinho, em Portugal, eram símbolos tradici-onais da autoridade municipal.

19 Os portugueses, de facto, deverão ter cometido algumas de-predações no litoral de Liampó, em circunstâncias ainda mal esclarecidas, mas que parece terem estado ligadas a roubos cometidos por intermediários chineses.

20 A corte imperial chinesa despachou para as províncias meri-dionais de Fuquiém e Chequião o vice-rei Zhu Wan em 1548, com o encargo de debelar o surto de pirataria que afectava aquelas regiões.

21 Ao contrário do que afirma Fr. Gaspar, a armada chinesa, a instâncias de Zhu Wan, atacou na realidade o entreposto de Liampó em 1548, interrompendo o intenso tráfico ilegal que os estrangeiros ali realizavam. Depois do assalto a Liampó, o comissário imperial Zhu Wan desencadeou uma violenta cam-panha contra a navegação estrangeira na região de Chincheu, onde os portugueses se tinham entretanto refugiado.

22 Diogo Pereira, o conhecido mercador português, era o pro-prietário dos dois juncos deixados no litoral chinês, a bordo dos quais se encontrava Galiote Pereira, um dos principais informadores de Fr. Gaspar (cf. supra, pp. 50 - 56).

23 A expressão "fazer querena", pelo contexto, significa algo como "provocação". Querena é parte do navio que fica submersa; mas "dar querena" equivale a "destruir", o que se aproxima do sentido em que Fr. Gaspar utiliza a palavra.

24 Lutici (chinês ludusi): comandante do exército.

25 Aitão (chinês haidao): comandante da guarda costeira.

26 Como o próprio Fr. Gaspar referira anteriormente, em tem-po de paz todas as sentenças de morte tinham de ser confir-madas pelo imperador, e apenas eram executadas em datas fixas, uma vez por ano. Assim, os mandarins de Fuquiém tinham incorrido em gravíssima infracção.

27 O lutici responsável pela captura dos dois juncos de Diogo Pereira chamava-se Lu Tang.

28 O aitão que então desempenhava funções no litoral de Fuquiém chamava-se Kejia.

29 Quinchai (chinês qinchai): comissário ou legado imperial, nomeado em situações de emergência, com amplos poderes.

30 Ponchaci (chinês buzhengshi): tesoureiro provincial; anchaci (chinês anchashi): juiz provincial.

31 Os dois censores imperiais eram Du Ruzhen e Chen Zongkui, que deveriam certamente ser acompanhados por outros fun-cionários de estatuto inferior.

32 Chaém (chinês chayuan): censor investido de funções de comissário imperial, que anualmente era enviado em visita de inspecção às diferentes províncias.

33 Isto é, "se contradiziam".

34 Chincheu designa aqui o litoral de Fuquiém.

35 Na região de Liampó, segundo se deduz das declarações deFr. Gaspar, os portugueses haviam sido responsáveis por im-portantes desacatos.

36 Fr. Gaspar da Cruz, segundo parece, obteve de algum dos antigos prisioneiros portugueses uma cópia da sentença emi-tida pela justiça imperial.

37 "Poutó" não está atestado nos glossários luso-asiáticos, mas derivará talvez do chinês butou, "cabeça de turbante".

38 A expressão "capacetes vermelhos" ou "barretes vermelhos" designava homens que por algum crime eram condenados a prestar serviço militar em regiões fronteiriças.

39 Os direitos alfandegários nos portos chineses, tradicional-mente, eram pagos em função do volume dos navios. Depois do acordo de Leonel de Sousa, segundo parece, os mandarins de Cantão passaram a cobrar taxas alfandegárias em função do valor das próprias mercadorias transportadas e não do res- pectivo volume.

40 Fr. Gaspar refere-se ao Bingbu, o Tribunal da Guerra, um dos principais ministérios chineses, situado em Pequim.

41 Este nome parece referir-se ao tutão Zhu Wan, responsável máximo pela captura dos dois juncos portugueses.

42 Embora a transcrição de Fr. Gaspar não corresponda, sabe-se que a comissão imperial de inquérito foi chefiada por Du Ruzhen, funcionário superior do Tribunal da Guerra, um dos principais ministérios chineses.

43 Fr. Gaspar refere-se respectivamente ao Xingbu, Tribunal da Justiça, e ao Duchayuan, Censorato, dois dos mais importan-tes organismos governamentais chineses, ambos sediados em Pequim.

44 Este título, que não foi ainda identificado, poderia transcre-ver o nome de algum outro organismo governamental chi-nês.

45 Isto é, "se assim o tivessem feito".

46 Referência à crença chinesa no Céu (Tian) como princípio e fim de todas as coisas.

47 Pachou (chinês bazong): comandante de uma guarnição de cerca de três mil homens.

48 Chifu (chinês zhifu): prefeito de uma cidade.

49 Outras fontes portuguesas da época registam o termo cancheufu (zhangzhoufu), "sala de audiências da prefeitu-ra"; poderia tratar-se de algum funcionário ligado a este último organismo.

50 Isto é, Guilin.

51 Termina aqui o memorial resumido por Fr. Gaspar. Como o autor referiu, o principal responsável pelo apresamento dos dois juncos portugueses, Zhu Wan, suicidou-se antes de ter conhecimento da sentença imperial. Muitos dos seus colabo-radores, que foram condenados a penas variadas, seriam pos-teriormente indultados pelo imperador. Os sobreviventes por-tugueses foram desterrados para a cidade de Guilin, na provín-cia de Guangxi. Nos anos seguintes, alguns deles conseguiri-am alcançar a liberdade, graças à cumplicidade de mercadores chineses devidamente gratificados pelos portugueses que de-pois de 1549 começaram a frequentar o litoral cantonense.

52 Os observadores portugueses que seguiram o desenrolar do processo contra os seus compatriotas ficaram extraordinaria-mente bem impressionados com a justiça chinesa, que tinha favorecido os estrangeiros, castigando altos funcionários pro-vinciais. Como mais tarde se viria a apurar, o desfecho do processo dos dois juncos não dependeu apenas da imparcia-lidade da justiça chinesa, mas também de fortes pressões de importantes interesses locais, que haviam sido lesados pela campanha anti-estrangeira de Zhu Wan.

53 Na realidade também a China conhecia na época perturba-ções internas e ataques vindos do exterior, embora as dimen-sões do território chinês, em confronto com as dos estados europeus coetâneos, pudessem introduzir uma impressão de estabilidade inabalável.

54 A identificação desta medida coloca alguns problemas, pois autores portugueses quinhentistas referem o fen, antiga moe-da chinesa equivalente à centésima parte do tael ou onça de prata chinesa. A medida subjectiva mencionada por Fr. Gaspar não parece estar atestada noutras fontes.

desde a p. 75
até a p.