Antologia Documental

CRÓNICA DO DESCOBRIMENTO E PRIMEIRAS CONQUISTAS DA ÍNDIA PELOS PORTUGUESES*

Anónimo

A anónima Crónica cujo manuscrito se conserva no Museu Britânico, e que foi há poucos anos revelada por Luís de Albuquerque, resulta da reunião de alguns dos mais antigos escritos produzidos pelos portugueses sobre o Oriente. O desconhecido compilador teve acesso a materiais hoje desa-parecidos, preparando a partir deles, por volta de 1521, uma documentada crónica das primeiras duas décadas de presença portuguesa em terras orientais. Ao narrar a expedição de Diogo Lopes de Sequeira a Malaca, que teve lugar em 1508-1509 e que abriu o Extremo Oriente à nossa navegação, o autor-com-pilador registou interessantíssimas observações a respeito dos chineses que então se encontravam naquela praça malaia. Estas curtas notícias, muito pouco divulgadas, foram certamente re-colhidas junto de um dos tripulantes da referida expedição, e reflectem as primeiríssimas impressões portuguesas sobre a gen-te da "terra dos chins".

Fonte utilizada: Crónica do Descobrimento e Primeiras Conquistas da Índia pelos Portugueses, edição de Luís de Albuquerque, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986, pp. 370-371. O texto foi modernizado, aparecendo entre parênteses rectos palavras ou expressões acrescentadas para esclarecer o sentido do texto original.

Retrato de Diogo Lopes de Sequeira, in GUIMARÃES, João Pedro de Campos, FERREIRA, José Maria Cabral, O Bairro Português de Malaca, Porto, Afrontamento, 1996, p.41.
Planta de Malaca, c. 1640, in SILVEIRA, Luís, ed.. Livro das Plantas das Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Oriental, Lisboa, Instituto de Investigação Científica Tropical, 1991, p. 105.

OS CHINESES EM MALACA.

Nesta ilha estavam três naus de chineses.1 Tanto que os nossos chegaram, saiu o capitão dos chineses em um batel bem remado, e com ele outro homem honrado, ambos já de dias, assentados em cadeiras de pau, e atrás deles outro, como pajem, que com um sombreiro lhes tolhia o Sol, com umas gaitas, da feição de charamelas, que tangiam bem. E foram contra a nau do Capitão-mor,2 o qual os recebeu alegremente e com as trombetas, e artilharia também. Os quais [chineses], tanto que entraram na nau, se puseram em joelhos, as mãos alevantadas ao céu, e beijaram o chão. Alevantados, fizeram reverência ao Capitão-mor e capitães desta maneira: as mãos cruzadas postas nos peitos [e] as cabeças baixas. Isto feito, os fizeram assentar. E porque a língua3 os não entendia, mandaram por um mouro a Malaca que sabia a língua. Tanto que veio, falaram em muitas coisas, perguntando-se uns aos outros pelas coisas de seus reis e de seus reinos.

São homens alvos e bem dispostos, não têm barba, salvo no bebedoiro, [têm] os olhos pequenos e os lagrimais afastados dos narizes, [os] cabelos compridos, quase pretos e ralos, metidos em crespinas de seda pretas, e sobre as crespinas uns barretes altos que parecem de sedas, de bordos lavrados, em maneira de rede. [Andam] vestidos de camisas e pelotes de quartos de estameta branca, e em cima outros pelotes de cinco quartos, franzidos, de cetim e damasco amarelo, e suas petrinas baixas, e as mangas largas abaldocadas,4 com suas ceroulas e botas soladas à mourisca. Dizem que são cristãos,5 comem toda [a] vianda,6 trazem consigo mulheres.

Depois de falarem um bom pedaço, o capitão chinês pediu ao Capitão-mor e capitães que ao outro dia, em suas naus, quisessem aceitar dele o jantar. Aprouve-lhes disso [e] foram lá. Acharam nove mesas postas e sem toalhas, [nas quais] os fizeram assentar de uma banda, e logo foram cheias de muitos manjares de galinhas, adens e porco assado e cozido, e bolos feitos com mel e açúcar, e muitas frutas de conservas, e manjares de escudela e suas colheres de prata, e muito vinho de palma branco em porcelanas.7

São homens que comem muito e bebem amiúde, pouco [de cada vez], e tudo com muita especiaria e alho em conserva, e comem com garfos. Em começando de comer, lhes deram uns guardanapos lavrados para se limparem, e acabando de comer festejaram, até que foi horas, que se os nossos despediram. E o capitão chinês os acompanhou até às naus e dali se tornou para as suas.

Cópia de uma carta escrita de Cantão por Cristóvão Vieira em 1534 (Biblioteca Nacional de Paris), in Visiteurs de l'Empire Celeste, coordenação de Jean-Paul Desroches, Paris, Musée National des Arts Asiatiques - Guimet, 1994, p. 91.

NOTAS

* Ms., Goa?, c. 1521.

1 Referência à Ilha das Naus, fronteira ao porto de Malaca.

2 Diogo Lopes de Sequeira.

3 Isto é, o "intérprete".

4 Palavra desconhecida, que talvez signifique "largas, em forma de fole".

5 Esta afirmação surpreendente ficou decerto a dever-se a algum erro de comunicação.

6 O facto de os chineses comerem todo o tipo de carnes, notado por outros observadores portugueses da época, significava que não obedeciam a interditos alimentares, não sendo portanto muçulmanos nem hebreus.

7 O "vinho de palma branco" seria na verdade aguardente de arroz.

desde a p. 30
até a p.