Macaenses / Redefinições

A COZINHA CRIOULA DE MACAU

Graça Pacheco Jorge*

Nos últimos vinte anos, Macau, os macaenses e a sua cultura, têm sido divulgados, nas mais diver-sas facetas, tentando compensar, de uma forma tar-dia e apressada a falta de informação e o silêncio de décadas...

Quando, nos anos sessenta, cheguei a Lisboa para aqui acabar por me instalar, as pessoas tinham uma informação de Macau como uma parte de um Ultramar indefinido afro-ásio-americano onde ainda os homens usavam "rabicho" e a comida tinha um gosto a "febre amarela"...

As ilustrações que se referiam a Macau, ex-ceptuando as publicadas em jornais e revistas mais eruditas, mostravam invariavelmente uma rapariga de quimono com o Fujiama ao fundo e uma cerejeira entre ambos. A diferença entre a China e o Japão, tão bem sublinhada por Venceslau de Morais, nunca foi fácil para o português comum e muito menos o pode-ria ser a evidência de um terceiro elemento sócio-cultural no oriente lusitano: o Macaense.

Nos últimos vinte anos, embora duvide que com informação alargada, as dissemelhanças e, em consequência, a caracterização dos vários aspectos ét-nicos, sociais e culturais das gentes ultramarinas, tem sido mais bem divulgada.

No que respeita a Macau, quer a nível local, quer a nível central, os estudos, as publicações, os livros, as palestras, as conferências, têm vindo a multiplicar-se em todos os seus aspectos. As pessoas que o fizeram têm tido possibilidades de acesso que eram anteriormente impossíveis.

Quanto à Cozinha, embora não existam em Portugal Continental restaurantes onde se possam apreciar as diferentes iguarias, têm pelo menos apa-recido alguns livros, algumas crónicas, alguns arti-gos em jornais e revistas ou "itens" em livros de culinária que vão esclarecendo os portugueses, e de uma forma geral quem as leu, de que existe um sa-bor próprio da Gastronomia Macaense que nada tem a ver com a "febre amarela" ou os "rabichos" dos chineses das ilustrações...

Um dos trabalhos de divulgação da Cozinha Macaense foi assinado por mim e publicado pelo Instituto Cultural de Macau em 1992, e intitula-se A Cozinha de Macau de Casa de Meu Avô.

É-me pois difícil escrever um artigo que não contenha parte apreciável do que disse na introdução e ao longo das páginas desse meu livro.

Quando me convidaram para escrever este pe-queno trabalho, foi-me claro que, para o fazer, iria reproduzir algumas das páginas que escrevi em 1992. Como no entanto pensei que muitas pessoas, que irão ter acesso a este número da Revista de Cul-tura, não possuem o livro a que me referi, achei que mais uma forma de divulgar este particular da cultu-ra macaense — a culinária — a um maior número de pessoas. Por isso aceitei o convite.

Gastronomia é a Arte de cozinhar e preparar as iguarias de forma a tirar delas o máximo prazer gustativo.

Este conceito é universal e, em todo o Mun-do, cada povo tem os seus condimentos preferidos e prepara as suas refeições de acordo com os mesmos e os seus recursos alimentares.

No entanto, muitos são os povos que percor-reram o Mundo, descobrindo e conquistando outras terras e dessa forma viram e aprenderam muitas coisas novas e, paralelamente, levaram consigo e mostraram os costumes e a cultura das suas regi-ões. A Gastronomia foi um dos capítulos dessa di-fusão.

Como nem sempre era possível encontrar os condimentos habituais para confeccionar os seus pratos, esses povos viajantes tiveram de experimen-tar e usar os recursos de cada local, o que deu ori-gem às cozinhas crioulas. Nasceram assim cozinha-dos que, tendo uma raiz estrangeira, continham in-gredientes locais, utilizados de forma a tirar deles o melhor proveito.

Acompanhemos pois o percurso dos nossos marinheiros e conquistadores pelas terras onde pas-saram até chegar à longínqua China:

— Índia, Ceilão, Malaca e Timor, entre as que mais se vieram a encontrar numa gastronomia crioula comum.

Na sua bagagem os Portugueses levavam, para além do "biscoito" e dos seus conhecimentos, alguns temperos, tais como o louro, o azeite de oli-veira, alguns enchidos e o vinho e, enquanto os mes-mos durassem, iam preparando as suas refeições em "versão original".

Mas, consoante iam passando por outros portos, recolhiam o que podiam e, muitas vezes apenas por uma questão de curiosidade, utilizavam outros legumes, tubérculos, bolbos e ervas aromáticas.

Sala de jantar da casa do ilustre macaense e sinólogo José Vicente Jorge (primeiras décadas do Século XX).

Depois, era o desafio de os cozinhar e de achar a melhor maneira de apreciar todos os novos sabores que os recém adquiridos condimentos lhes ofereciam.

Uma vez aprovada a nova especialidade, logo um nome lhe era dado, ora inventado, ora traduzido, ora adaptado do seu nome original.

Enquanto a extraordinária saga continuava, mais rica de novas experiências, conhecimentos e descobertas, alguns ficavam nos pontos de passagem e neles mantinham a tradição e os costumes que se misturavam com os da terra onde iam enraizando e daí nascia uma nova gastronomia, uma nova cultura, uma nova forma de viver.

Nas famílias mais antigas de Macau, a culiná-ria sempre ocupou um lugar de relêvo e era com orgulho que se preparavam pratos que, embora se-melhantes entre si, eram apresentados em cada casa com um "toque" muito pessoal e segredos que iam ficando dentro de cada família.

O "chá gordo", refeição emblemática dos macaenses, era a altura indicada para cada família mos-trar os seus dotes culinários, dando a provar e causando admiração aos convivas, que teriam de se esmerar quando lhes chegasse a vez de ser em anfitriões.

Não era pois comida chinesa nem japonesa a que se saboreava nas casas macaenses, muito poucas das quais sobreviveram até hoje, mas uma culinária própria, de raiz portuguesa e com alguns "enxertos" de Goa, de Malaca ou de Timor.

Entre as coisas que me chegaram da minha avó, Matilde Pacheco Jorge, há dois livros que con-servo preciosamente:

Um, de autor desconhecido por lhe faltar a primeira página, publicado em Pangim em 1 de Março de 1892 e intitulado O Recreio Económico; outro que tem por nome Recipes de Confeição e Iguarias por Maria Luisa Garcez e Mallo editado em Bombaim por B. X. Furtado e Irmão no ano de 1901. Ambos lhe foram oferecidos pelo primo An-tónio Pacheco, residente em Mapuçá.

O que nesses livros recolhi de interessante é que, para além de algumas receitas com forte mar-cação da culinária portuguesa e que fizeram poste-riormente o trajecto até Macau, há também imensas palavras portuguesas que foram assimiladas pelo vocabulário indiano e que possivelmente daquele vice-reino se espalharam pelo Sueste asiático.

Mais tarde, algumas das receitas destes li-vros foram introduzidas na família Jorge, em Ma-cau, e adaptadas às ementas quotidianas.

Em casa de José Vicente Jorge, bem como em outras casas das antigas famílias macaenses, as re-feições eram uma reunião permanente do grande "clã"; do pequeno almoço à ceia, a cozinha funcio-nava em ritmo de locomotiva, saciando e, ao mesmo tempo, ocupando todo o grupo.

A comida parecia servir assim de asserção so-cial, catalizadora da sociabilidade da casa em torno da mesa.

Cada casa de Macau conservava as suas re-ceitas antigas, utilizando-as como emblemas ou como brazões, baptizando algumas com o próprio nome da família.

Num trabalho feito por Elsa Coimbra, uma estudante de Antropologia Social, em Junho de 1993, na cadeira de Etnografia Portuguesa, há uma passagem que ilustra bem a realidade cultural da Co-zinha macaense: "[...] serve de marco de identidade, quer para o interior, quer para o exterior; sem ser portuguesa, não é estrangeira e de facto o discurso de identidade não procura afirmar-se a partir de um autoridade ex-tra-portuguesa mas antes uma variação sobre o mes-mo tema centrada na interpretação de uma família. "[...] Pensar o passado é um manifesto que reivindica um duplo movimento de antecipação ima-ginativa do passado mas também do futuro; pressu-põe a consciência do Eu, de uma identidade." Possuo um livro intitulado A Ilha Verde e Ver-melha de Timor da autoria de Alberto Osório de Cas-tro e editado em 1943 pela Divisão de Publicações e Biblioteca da Agência Geral das Colónias que, em fls. XIV e XV do seu "Antefácio", contém alguns pará-grafos e quatro quadras em perfeita sintonia com o que atrás escrevi. Passo pois a divulgá-los: "[...] Ainda copiei folhas soltas de um seu Receituário Doméstico e lá rebrilham como estra-nhas flores dos trópicos nomes de finas doçarias do Extremo-Oriente, o samisurabe, o aluá, a bebinca, os bitchu-bitchu... "[...] Eis o poema que à lembrança de Batávia aflorou um dia na minha emotividade lírica: ^^DOÇARIAS DO PASSADO Tenho de minha Avó receitinhas caseiras Que dizem a saudade e o gosto da exilada; Acepipes gentis, doçarias ligeiras, Do queimor da sua terra olente e nacarada. Embaciou-se-lhe o olhar de um azul de pervinca, As receitas a ler, de "sutates" e "achares", "Bitchos-Bitchos", "ládú", "siricaia" e "bebinca", Caril de Java, que é o manjar dos manjares. Lá vêm pudins, "aluá" o "panicuque" forte Que às crianças daria o vigor dos Avós, E os "genetes" que têm cuidadoso recorte... De tudo isso veio um suco para nós! Onde floriram os jardins de sua infância? Jardins coloniais de crótones, jasmins! Como a saudade vai a tamanha distância, E como sempre lembra o olor dos mogorins!... E passaram-me ainda pelos olhos cartinhas de minha Avó a seu marido ausente, escritas em tão lindo português, numa letrinha miúda, firme e igual, e com a fraseologia do tempo da Nova Heloísa, das Recreações de um Homem Sensível, e... da invenção e exercício da Guilhotina: 'meu coração sensível'... ^^SAIAN, AI QUI SAIAN, ALMA, VIDA, COREÇAN! como diz a doce canção de Macau. Tal como referi no início — ao escrever em 1992 o meu livro de Cozinha Macaense e este artigo que, de qualquer forma, lhe dá continuidade — pre-tendo precisamente ajudar a definir a identidade ma-caense que irá prevalecer na memória dos que a co-nheceram para além de qualquer data-limite que a História e a evolução das sociedades venham marcar. Para terminar estas notas, vou transcrever al-gumas receitas "da casa do meu Avô" que mais bem ilustram as ligações da Culinária Macaense à passa-gem dos Portugueses pela Índia, Ceilão, Malaca e Timor, terminando o receituário com o minchi que, quanto a mim, é o ex-libris da Cozinha de Macau.

Língua de vaca à indiana. Prato confeccionado por Graça Pacheco Jorge.

(Foto de Paulo Lima)

Na véspera:

Lava-se muito bem a língua de vaca e coze-se em água e sal. Guarda-se a água de cozer.

Depois de cozida, corta-se em fatias que se colocam numa travessa. Deitam-se por cima das fati-as as malaguetas cortadas às rodelas e uma mistura feita com azeite, metade da quantidade do molho in-glês, a mostarda e o sumo dos limões. Deixa-se re-pousar.

No dia:

Frita-se o tomate cortado às rodelas em mais um pouco de azeite, deitando-se por cima as fatias de carne que se regam com o resto do molho inglês e um pouco da água em que a língua foi cozida. Coze--se em fogo lento até ficar mole.

MINCHI

O nome é provavelmente uma adaptação do termo inglês minced meat (carne picada), mas qualquer semelhança acaba quando se trata do melhor prato sino-europeu e o favorito dos macaenses.

Não se sabe quando foi inventado. Mas sabe-se que este prato foi aperfeiçoado em Hong Kong após a primeira dispersão dos macaenses, em 1840, de Macau para Hong Kong, quando este Ter-ritório ficou sob a administração britância e os nos-sos recursos trilingues eram muito procurados, bem como os nossos conhecimentos euro-orientais dos povos, costumes e comércio.

MINCHI COM BATATA FRITA

250 gr. de carne de vaca picada

250 gr. de carne de porco picada

(as carnes devem ser picadas juntas)

2 dentes de alho

2 cebolas médias ou 1 alho francês

1/2 copo de sutate

2 colheres de chá de açúcar

1 colher de sopa de banha de porco sal e pimenta q. b.

Numa frigideira chinesa wok, aquecer a ba-nha e fritar nela a cebola e os alhos picados. Juntar a carne e mexer bem até que a carne fique toda passada.

Regar com o sutate onde se misturou o açú-car e um golo de água. Temperar de sal e pimenta, tapar e deixar cozinhar um pouco em lume brando.

Acompanha-se com arroz branco cozido sem sal e batatas fritas cortadas em cubos. Pode-se tam-bém acompanhar com couve salgada.

As batatas fritas cortadas aos cubos devem ser misturadas com o minchi na altura de servir.

NOTA: Para cozer o arroz de modo a que fique solto:

— Utilizar de preferência um tacho de barro.

— Utilizar sempre arroz agulha.

— Não lavar previamente o arroz.

— Para cada medida de arroz juntar 2 medidas de água fria.

— Pôr tudo ao mesmo tempo no tacho que se leva a lume forte até começar a borbulhar. Aí, reduz-se o lume ao mínimo, tapa-se o tacho e deixa-se cozer bem, até secar.

MINCHI COM ALETRIA E "ORELHAS DE RATO"

Utilizam-se as mesmas quantidades e o mes-mo método da receita anterior mas, em vez de se juntarem as batatinhas fritas em cubos, adiciona-se:

"Orelhas de rato" e aletria chinesa a gosto. A aletria chinesa fan-si que se encontra à venda no mercado sob o nome da sua similar italiana vermicelli, tem um aspecto translúcido e apresenta-se à venda em meadas. Tal como as "orelhas de rato" deve--se pôr de molho em água morna antes de utilizar.

NOTA: Em casa do meu avô havia sempre à mesa, em qualquer refeição e qualquer que fosse a ementa, minchi, arroz branco (cozido solto e sem sal e com couve frita)

BADJI OU BAJI**

250 gr. de arroz carolino ou outro que seja gomoso (arroz "pulu")

125 gr. de coco ralado

300 gr. de açúcar

Coze-se em, banho-maria o arroz com o coco ralado e deixa-se arrefecer depois de cozido. Leva--se o açúcar a derreter em lume brando e, quando estiver em ponto baixo, junta-se-lhe o arroz cozido com o coco, mexendo bem para não deixar queimar.

Quando estiver em ponto alto, tira-se do lume e estende-se numa travessa para arrefecer.

Badji ou baji. Prato confeccionado por Graça Pacheco Jorge.

(Foto de Paulo Lima).

"Macaense, 1999"

Ilustração de Rui Calçada Bastos

**Espécie de arroz doce feito com arroz pulu provavelmente de origem malaia- wajek.

*Maria da Graça Pacheco Jorge nasceu em Macau onde passou os primeiros anos da sua vida. Fez estudos em Moçambique, África do Sul e Lisboa. Foi iniciada no conhecimento e estudo da cultura macaense por duas vias familiares: o avô, grande sinólogo e coleccionador de arte, José Vicente Jorge; e o sogro, o investigador Dr. Danilo Barreiros. Publicou o livro "A Cozinha de Macau de casa de meu Avô". (Ed. ICM, 1992).

desde a p. 235
até a p.