Macaenses / Redefinições

A COMPOSIÇÃO ÉTNICA DE MACAU

João de Pina Cabral*

Muito tem sido escrito sobre a rica história da cidade de Macau, pouca atenção porém, tem sido dedicada ao seu presente igualmente fascinante. Pre-sos pelos nossos interesses quotidianos, num contex-to social em que os desafios são constantes e em que a mudança social ocorre perante os nossos próprios olhos, é-nos mais confortável olhar para o passado que para o presente. Ora, na história, quem não fala é esquecido.

Urge conhecer melhor a Macau que, nas últi-mas duas décadas, surgiu perante os nossos próprios olhos como uma nova cidade. O presente texto é uma breve introdução à questão da complexidade étnica de Macau dos nossos dias, baseado sobre o trabalho mais substancial apresentado em Em Terra de Tufões: Dinâmicas da Etnicidade Macaense.1

1. O QUE ENTENDEM OS CIENTISTAS SOCIAIS POR ETNICIDADE

Tanto no Ocidente como no Oriente, as socie-dades urbanas modernas são caracteristicamente compostas por pessoas que têm diferentes origens, distintos passados familiares, línguas diversas, dife-rentes religiões, etc.. A noção de identidade étnica responde a esta diversidade. Trata-se de um fenó- meno muito heterogéneo cuja única base comum é a construção social de uma origem que funciona como um campo de acção para a vida em comunida-de. O que a define é não depender de formas de associação baseadas em interesses estritamente económicos. Pelo contrário, a identidade étnica de-pende da inserção da pessoa num processo histórico complexo e é normalmente adquirida como parte das solidariedades primárias adquiridas no seio da famí-lia. Quando falamos de uma etnicidade, portanto, temos em mente a identificação de culturas particu-lares como modos de vida ou de identidade que são baseadas numa noção histórica de origem ou destino comum quer este seja mítico ou 'real'.

Como fenómeno relacional que é, a identida-de étnica não é necessariamente unitária. Podem existir identidades étnicas dentro de identidades ét-nicas, criando fenómenos de subdivisão étnica (ver, por exemplo o famoso estudo que E. Honig fez da etnicidade em Xangai). Nas palavras de Abner Cohen: "a etnicidade na sociedade moderna é o re-sultado da interacção intensa de diferentes grupos culturais e não o resultado de uma qualquer tendên-cia para a separação."

2. A ESPECIFICIDADE HISTÓRICA DE MACAU

A cidade de Macau tem características únicas que lhe conferem uma grande especificidade, nome-adamente ao nível da sua composição étnica. De fac-to, os súbditos do Rei de Portugal que se estabelece-ram em Macau na segunda metade do século XVI constituíam já uma população bastante complexa, que integrava elementos dos mais diversos povos de toda esta região dos Mares do Sul da Ásia — malaios, japoneses, indianos, timorenses e até afri-canos, como indicam as próprias fontes históricas portuguesas, chinesas e coreanas. Assim se formou a sociedade católica lusófona de Macau. Com o passar dos séculos, criou-se ali uma população com uma cultura que, sendo essencialmente portuguesa, tinha características especificamente locais: os macaenses, conhecidos em cantonense pela expressão to2 saangl (lit. terra nascido).

Criou-se aquilo que os cientistas sociais cha-mam uma cultura crioula — com a sua forma de falar própria (o patuá), a sua forma de vestir, a sua   culinária e as suas instituições. Entre estas últimas, o Leal Senado é, sem dúvida, a mais importante. Até aos últimos anos do século passado, a ingerência por parte do Estado Português sobre esta população lo-cal de súbditos do Rei de Portugal foi sempre relati-vamente ténue.

Macau era uma cidadela portuguesa. Por princípio, os súbditos do Imperador da China não participavam na vida própria da cidadela. Eram go-vernados por magistrados sujeitos à legislação impe-rial. Administrativamente, não pertenciam a Macau, já que, para a administração chinesa, Macau não ti-nha uma existência autónoma, fazendo parte do dis-trito de Heungsan (hoje Jungsan, Mand. Zhongshan). Aliás, o significado histórico, etnica-mente restrito, da palavra macaense, radica-se nesta característica: os chineses, que viviam tecnicamente fora de muros, não se consideravam membros da cidadela católica que era Macau. Assim, ainda hoje, é frequente ouvir pessoas chinesas dizerem em cantonense que moram em 03 Moon4 Caail (lit. a estrada de Macau).

Este sistema, que o historiador K. C. Fok chama a Fórmula Macau, foi instaurado na segun-da metade do século XVI. Na altura, ele dependeu de uma negociação altamente ambivalente, mas que acabou por durar muitos séculos: "As relações comerciais [...] tornaram-se possíveis pela conivên-cia dos magistrados provinciais. A troca era volun-tária. A sua continuidade dependia tanto da boa vontade dos Portugueses, que respeitavam as suas obrigações para com os magistrados locais, quanto da aceitação por parte dos magistrados chineses de correrem o risco de virem a ser censurados por Pe-quim. Em termos realísticos, dependia de saber se ambos os lados tinham uma necessidade suficiente-mente forte dos proveitos que podiam retirar da troca. Mas a fórmula, para funcionar, dependia so-bretudo da boa vontade e tranquilidade dos Portu-gueses em Macau."

Para compreendermos Macau, assim, há que perceber a história desta separação negociada entre uma população chinesa que vive aqui, mas não se distingue em nada de essencial do resto da popula-ção do Império, e uma população crioula local (to2 saangl) que se distingue, no entanto, do resto do Império por duas características diferenciadoras: se- rem súbditos do Rei de Portugal e serem católicos.

Dr. Carlos Correia Paes D'Assumpção, a mais proeminente figura das últimas gerações macaenses. Anos 70. (Foto do Arquivo Histórico de Macau).

Esta população integrava membros de grupos não-portugueses através essencialmente de dois pro-cessos: o casamento (ou o concubinato) e a conver-são. No que se refere ao primeiro caso, algo que parece ter caracterizado as relações sexuais interétnicas em quase todos os contextos ultramari-nos portugueses é a facilidade com que os portugue-ses perfilhavam os frutos de relações suas com mu-lheres de outras sociedades — mesmo quando essas relações eram temporárias ou não eram tratadas com a dignidade do casamento religioso.

O contrário era característico dos meios anglo-saxónicos — por isso as situações étnicas em Hong Kong e Macau devem ser nitidamente diferen-ciadas. Como dizia um velho macaense: "A um mes-tiço de português chama-se português. A um mestiço de inglês, chama-se half-cast". Os ingleses de Hong Kong não estavam prontos a aceitar como seus fi-lhos de pleno estatuto, os seus filhos biológicos de mãe chinesa. Assim, em Hong Kong, até aos anos 1970, era prática corrente distinguir entre Europeans, Eurasians e Portuguese — estes últimos eram praticamente todos oriundos de Macau e, por-tanto, resultado de vários séculos de mestiçagem.

Uma segunda forma pela qual a sociedade portuguesa integrava pessoas com origens étnicas distintas era através da conversão ao Catolicismo — particularmente quando se tratava de pessoas que eram educadas desde jovem como portugueses. Até 1841, o governo da Dinastia Qing proibia que qual-quer chinês se convertesse ao Catolicismo. Assim, até então, todos os chineses que se convertiam, per-diam a sua identidade étnica chinesa, cortavam o rabicho (simbolizando assim a sua desvinculação da Dinastia Qing), envergavam roupas ocidentais, adoptavam um nome português e eram integrados de uma forma ou outra dentro da comunidade lusófona.

Para a população chinesa, esta opção era con- siderada como uma profunda traição, não só à etnia chinesa como tal, mas especialmente aos antepassa-dos da pessoa em causa — o que, aos olhos da tradi-ção confuciana, era ainda mais revoltante. A "paró-quia pessoal" (missionária) de São Lázaro foi funda-da em 1846 precisamente para responder às exigên-cias do número crescente de católicos chineses que passaram a existir a partir do momento em que o govemo da Dinastia Qing, como resultado das Guer-ras do Ópio, passou a permitir que pessoas de etnia chinesa se convertessem ao Cristianismo sem para tal terem que perder a sua referência étnica.

Contudo, o preconceito confucionista contra os católicos resultante do facto da Igreja Católica impedir os conversos de continuarem os rituais de reverência ancestral manteve-se surpreendentemente forte até há bem pouco tempo. As atitudes da Igreja mudaram nos anos 60, mas também o sentido de vergonha que a tal estava associado também se di-luiu, agora que tantos dos chineses urbanizados dei-xaram de realizar sistematicamente muitas dessas práticas.

3. A COMPOSIÇÃO ÉTNICA DE MACAU GRANDES CATEGORIAS ÉTNICAS

Ao seu nível mais geral, a vida social em Ma-cau tende a estruturar-se em torno de dois universos linguísticos: o cantonense e o português. Cada um destes universos tem os seus meios de comunicação social, o seu sistema educativo e as suas formas es-pecíficas de sociabilidade. Apesar de corresponderem a um certo sentimento de identifica-ção pessoal, não trataremos estes universos como comunidades étnicas, até porque a mesma pessoa tem frequentemente acesso a mais do que um.

Existem três categorias étnicas principais em Macau que têm uma longa história no Território: os portugueses, os macaenses e os chineses. Contudo, as relações entre estes grupos não são do mesmo tipo e os próprios grupos estruturam-se internamente de forma diferenciada.

3.1. OS PORTUGUESES EM MACAU

Os portugueses que estabeleceram vida em Macau no período anterior à grande mudança social e política dos meados dos anos 1970, estão maioritariamente integrados nas redes sociais dos macaenses. Os que chegaram posteriormente e parti-cularmente os que foram chamados ao Território para integrar o crescimento do aparelho administra-tivo que ocorreu na segunda metade dos anos 1980, tendem a diferenciar-se dos macaenses.

A grande maioria destas pessoas passa pou-cos anos em Macau. Alguns deles, porém, criam la-ços no Território, estabelecendo-se de forma perma-nente. Neste último caso, trata-se geralmente de pes-soas que se encontram em profissões liberais e que se casam com macaenses ou chineses de Macau. Ainda é muito cedo para julgar sobre as opções identitárias étnicas dos seus filhos. A experiência do passado indicaria que, nos casos em que os filhos ficam em Macau, estes acabarão por se integrar na vida social macaense.

3.2. OS MACAENSES

Não é possível saber quantos são os habitan-tes de Macau que se consideram macaenses (to2 saangl); em primeiro lugar, porque há uma real es-cassez de informações estatísticas e, em segundo lu-gar, porque a própria natureza dos macaenses como grupo que ocupa um espaço intermédio entre a mai-oria chinesa e a minoria administrativa portuguesa, dá azo a um número importante de situações de defi-nição incerta.

Uma estimativa aproximativa a partir de um estudo da administração do Território sugere que o número actual de pessoas que se integram na comu-nidade étnica macaense presente no Território será entre 6 e 7 000.

Urge insistir que existem numerosos macaen-ses em Hong Kong, assim como espalhados por todo o mundo. É provável que, neste momento, o número de pessoas que se originaram nesta comunidade e que vivem no estrangeiro seja igual ou mesmo superior aos que habitam no Território. Esta dispersão não deve ser interpretada como algo de recente — como resposta às alterações políticas que se avizinham.

Talvez a melhor forma de caracterizar os principais termos da sua auto-identificação seja ci-tando a forma como um macaense me apresentou a questão no decorrer de uma entrevista:

"Fundamentalmente, ser macaense é ser na-tural de Macau, mas para uma interpretação desta comunidade, a palavra significa todo aquele que nasce em Macau mas tem cultura portuguesa. [...].

"O macaense é um bocadinho difícil, não é fácil. O que é certo é que, para se encontrar uma definição concreta, nós sabemos se fulano-de-tal é macaense ou não porque ele tem certas coisas, cer-tas maneiras de ser, certa maneira de falar, de pensar, que o identifica integralmente como maca-ense [...].

"Ser macaense é fundamentalmente ser de Macau, descendente de portugueses. Mas não é ne-cessariamente ser descendente luso-chinês. A comu-nidade local nasceu do homem português, [...] mas a mulher foi inicialmente goesa, siamesa, indo-chine-sa, malaia e vieram nos nossos barcos para Macau — e, esporadicamente, chinesas.

"Quando nos estabelecemos aqui, os chineses ostracisaram-nos. Os portugueses tinham as suas mulheres, então, que vinham de fora, mas não podi-am ter contactos com as mulheres [chinesas], excepto as pescadoras, as tancareiras, e as próprias escravas vendidas. Foi a classe mais baixa dos chi-neses que contactou, nos primeiros séculos, com os portugueses. Mas depois a força da cristianização, dos padres, começou a convencer os chineses a se tornarem católicos. [...] Mas, quando começam a ser católicos, baptizam-se com nomes portugueses e são ostracizados pelos chineses budistas. Então re-colhem-se à comunidade portuguesa e os filhos co-meçam a ter educação portuguesa sem uma única gota de sangue português."

Fotografia de Ondina, Rubyie e Alberto Senna Fernandes, filhos dos 3osCondes de Senna Fernandes, apelido de uma das mais distintas famílias da aristocracia tradicional macaense. Macau, 1933, Fotógrafo "Catela".

No decurso da investigação encontrei três vectores principais de auto-identificação que são utilizados pelas pessoas para se classificarem a si próprias ou aos outros como macaense; a ordem como estes vectores serão aqui apresentados não deve ser vista como expressão de uma importância relativa.

Grupo de jovens macaenses com o actor Clark Gable. durante um jantar oferecido pelo comendador chinês Ko Ho Neng. no Hotel Central (ca. 1950).

Um destes vectores é a língua e refere qual-quer tipo de associação de um indivíduo ou da sua família com a língua portuguesa. Outro vector é a religião e inclui qualquer forma de identificação in-dividual ou familiar com o Catolicismo. Finalmente, o terceiro vector é a miscigenação entre sangue eu-ropeu e asiático.

Cada um destes vectores pode constituir a base de identificação da pessoa macaense, embora não sejam necessários os três para que uma pessoa se identifique a si própria ou identifique outrem como macaense. Por outras palavras, é possível um indivíduo ser considerado macaense mesmo não possuindo um dos três traços indicados pelos referi-dos vectores. Por exemplo, há hoje pessoas em Ma-cau, consideradas por todos como macaenses, apesar de não serem produto de miscigenação entre euro-peus e asiáticos; ou outras pessoas, ainda, que sendo consideradas macaenses, todavia não controlam bem o português. Há um certo elemento de escolha pes-soal na pertença ou não a este grupo já que, por outro lado, poderíamos igualmente citar instâncias de pessoas cujo passado familiar euro-asiático indi-caria que elas seriam macaenses mas que, por razões de natureza pessoal, optaram por uma identidade chinesa e vice-versa.

Deve ser entendido, contudo, que aquelas pessoas e famílias que reúnem os três traços referi-dos e que, além disso, adquiriram um nível relativa-mente elevado de sucesso educacional e/ou econó-mico — as chamadas famílias tradicionais —, cons-tituem um núcleo de famílias à volta do qual a iden-tidade macaense se constrói a ela própria como co-munidade.

Como resultado da investigação realizada no Território tornou-se patente que ocorrera uma pro-funda alteração no interrelacionamento étnico no período que vai do 1, 2, 3 (1966/7) ao consulado de Almeida e Costa (1981 - 1986). Esse reposicio-namento étnico mudou a dinâmica de forças no Ter- ritório e veio abrir portas a uma possível sobrevivên-cia dos macaenses num Macau governado por chine-ses depois de 1999. Sumariamente, a essência desta mudança foi o abandono de atitudes exclusivistas para com os chineses e a adopção de atitudes de distanciamento identitário por relação aos portugue-ses da República. Concomitantemente, o discurso da elite macaense alterou-se. Verificou-se um progres-sivo abandono de referências identitárias valorativas a um capital de portugalidade e apareceu um novo discurso identitário étnico que valoriza um capital de comunicação intercultural. Esta alteração ocor-reu em paralelo com o que se chama, em linguagem sociológica, uma convergência de lugares de classe de dois grupos de origens étnicas distintas.

Em seguida identificaremos alguns dos aspec-tos desta convergência. Em primeiro lugar, encon-trando-se em níveis económicos e educacionais comparáveis, há uma crescente tendência para a rea-lização de casamentos entre pessoas de etnias dife-rentes mas posições de classe semelhantes. Entre 1975 e 1990, 64% dos casamentos católicos que en-volveram um nubente macaense realizaram-se com um chinês. Ao mesmo tempo, a assimetria de sexo que caracterizava os casamentos interétnicos no pe-ríodo anterior tende a desaparecer: entre 1961 e 1964, nos casamentos católicos que envolveram um nubente chinês e um nubente macaense, a percenta-gem em que o noivo era chinês era de 20%; entre 1987 e 1990, porém, o homem é chinês em 46% dos casos.

Em segundo lugar, estando ambos os grupos igualmente sujeitos à sociedade de consumo, ambos reagiram integrando-se progressivamente no univer-so dos mass media controlados por Hong Kong. Hoje em dia, as referências culturais dominantes, tanto para os jovens chineses como para os jovens macaenses, são as veiculadas pelos canais televisivos ingleses e cantonenses de Hong Kong.

Em terceiro lugar, de um ponto de vista linguístico, há a procura de uma linguagem comum. Não queremos dizer com isto que haja uma única língua, mas sim que a preocupação com a existência de veículos de intercomunicação linguística é hoje patente. Os macaenses mais jovens já não falam o cantonense roufenho dos mais velhos, pelo contrário muitos honram-se até do seu cantonense padrão e há mesmo um bom número que começa a aprender a escrever chinês. Quase todos os chineses de classe média, por outro lado, falam hoje o inglês internaci-onal que permite a sua integração na cultura global veiculada pelos mass media internacionais e que os macaenses já falam desde os meados do século pas-sado. Finalmente, verifica-se de 1987 a esta parte, um crescente interesse em aprender português por parte dos jovens chineses com aspirações a ser qua-dros, tanto no sector público como no privado.

Estas tendências de aproximação que temos vindo a identificar, porém, não devem ser interpreta-das como significando necessariamente uma pro-gressiva dissolução dos macaenses na maioria cantonense. A identidade étnica macaense continua muito viva.

Nos últimos três anos do nosso século ocorre-rá com toda a probabilidade uma renegociação das relações étnicas em Macau. Caso as condições polí-ticas existam para que os macaenses (tanto quanto os chineses de classe média que possuem passaporte estrangeiro) não vejam ameaçadas a sua liberdade e segurança pessoais, é muito provável que continuem a existir macaenses na cidade depois de 1999. Dada a sua vocação para a comunicação intercultural, se o Território continuar a ser um ponto de passagem económico e turístico como tem sido nas últimas décadas, estes macaenses terão um papel importante a desempenhar, apesar de terem perdido o seu papel privilegiado na função pública.

3.3. OS CHINESES EM MACAU

De todas as comunidades existentes no Terri-tório, a menos conhecida em termos científicos é a maioritária — a comunidade chinesa Han. Por chi-neses Han, referimo-nos à identidade étnica maioritária na República Popular da China, sendo que existem 55 outras identidades étnicas (Mand. minzu, Cant. man4 juk6) legalmente reconhecidas pelo estado chinês.

É ponto assente entre a maioria dos antropó-logos sócio-culturais que têm vindo a trabalhar sobre a China, que estas identidades étnicas legalmente re-conhecidas (minzu) não são suficientes para abarcar a real diversidade étnica deste variadíssimo país. Em particular, é importante insistir que, contrariamente ao discurso oficial chinês, os antropólogos têm vin-do a descobrir a existência de uma considerável di-versidade étnica interna ao grande grupo Han (seja ela caracterizada de étnica ou subétnica — o que, em última instância, é irrelevante).

Algo ainda a tomar em conta, sobre o qual insistem as autoridades que têm vindo a discutir es-tas questões (entre outros Albert Yee ou Wang Gungwu), é que a identidade étnica chinesa não im-plica uma identidade nacional. Para tal teriam con-tribuído vários factores. Entre outros, contaram o facto da última dinastia imperial ser Manchu e não chinesa Han assim como, mais recentemente, a exis-tência de dois estados soberanos plenamente legiti-mados como chineses, em Taiwan e na RPC.

Na verdade, nos últimos séculos, a existência de fortes comunidades chinesas na Diáspora, deve ser compreendida nestes termos. Tanto nos Estados Unidos da América como ainda em Singapura, te-mos tido ampla evidência de como o forte apego dos chineses à sua tradição cultural e étnica não implica qualquer adesão particular ao estado chinês ou à eli-te que o govema.

No que se refere a esta questão, há ainda que tomar em conta a tradição confucionista. Como in-sistem as autoridades neste campo (por exemplo, Wm. Theodore de Bary), o Extremo Oriente vive, nos nossos dias, numa condição pós-confucionista, tal como o Ocidente vive numa condição pós-cristã. Nem a modernização nem o comunismo consegui-ram apagar os traços desta tradição cultural.2

Ora, um dos aspectos centrais da tradição confucionista é a importância da piedade filial, no-meadamente tal como é representada pela sucessão agnática (patrilinear). O culto privado aos antepassa-dos em altares domésticos e, nas épocas correspon-dentes do ano, nos cemitérios ou nos túmulos rurais, está muito vivo. Entre os chineses que vivem na Diáspora, tal como os que, no interior da RPC, mu-daram de residência, a visita às aldeias ancestrais onde se encontram os túmulos dos antepassados é ainda muito praticada.3 O que isto significa é que, não por via de um apego ao estado, mas sim por via individual de um apego ao culto dos antepassados, os chineses que se encontram fora da China estão frequentemente muito presos ao local de origem do qual partiram. Existe a concepção de que, aconteça o que acontecer, esta origem nunca pode ser alterada.

Em Macau, não existem números significati-vos de qualquer uma das minorias chinesas (minzu). Entre os chineses Han, porém, a diversidade é larguíssima. Ela estrutura-se segundo vários eixos: especialmente, o da origem, o da língua e o da maior ou menor associação com a cidade.

A distinção étnica (ou sub-étnica) mais antiga é a que separa os habitantes da terra, dos Pescadores (Tanka). Estes últimos constituíam uma parte impor-tante da população chinesa de Macau no passado porque, como habitavam em barcos, estavam parasiticamente ligados à vida da cidadela cristã.

Os poucos estudos que sobre eles foram feitos, indicam que os Tanka continuam a existir hoje em Macau como uma identidade étnica autoreferenciada, se bem que tenham maioritariamente deixado as suas habitações marinhas, optando por viver em aparta-mentos na cidade. Esta mudança, assim como a cres-cente escolarização das suas crianças, significam que há uma tendência à progressiva indiferenciação por relação ao resto da população.

No passado, a população chinesa de Macau incluía uma forte componente de Fuquinenses (fa-lantes do dialecto Min, também conhecido por Hokkien). Com o tempo, porém, estes integraram-se e a maioria da população passou a ser oriunda do distrito de Jungsan (Mand. Zhongshan). Assim, a língua que se falava nas ruas de Macau até aos mea-dos do nosso século, segundo W. L. Woon, era o dialecto que predomina neste distrito, o dialecto de Sek Kei (Mand. Shiqi). Mais recentemente, porém, devido à escolarização e aos mass media de Hong Kong, o cantonense padrão tornou-se a língua pre-dominante.

Ainda segundo o mesmo autor, a população chinesa de Macau seria constituída maioritariamente por gente das zonas rurais de Guangdong (um terço desta seria de Jungsan). Haveria ainda um contin-gente minoritário de Fujien e dois contingentes, ain-da mais pequenos, de gente de Jiangsu e de Zhejiang. Esta informação, contudo, não pode ser considerada de forma alguma como definitiva.

Nos nossos dias, a principal diferença entre os chineses presentes no Território — aquela que mais marca as formas de sociabilidade e os senti-mentos de identidade pessoal — prende-se com a pertença ou não ao Território. A categoria central por relação à qual as outras se diferenciam é a de pessoa local (Cant. boon2 dei6 ian4). A categoria é pouco exclusivista.4 Ela tende a incluir todas as pes-soas que conseguem adoptar as formas de vida e de expressão características da cidade (implica a fala de cantonense com o sotaque local). Não é tanto o nas-cimento que conta, como o facto da pessoa ter feito a sua escolaridade básica em Macau, particularmen-te se tiver um perfil de classe média.

Sem que haja qualquer dúvida de que estas pessoas são chinesas, e que se sentem fortemente vinculadas a essa identidade étnica, a sua história pessoal e familiar, a sua educação, a liberdade religi-osa e de expressão a que estão habituados, o seu cosmopolitismo relativo, o facto de frequentemente falarem Inglês (ou minoritariamente Português) e vi-ajarem livremente, dão azo a fortes sentimentos de diferenciação vis-à-vis os chineses da RPC. Um im-portante contingente deles são cidadãos portugueses desde o seu nascimento e são filhos de cidadãos por-tugueses. Há ainda que ter em conta o facto sócio-político destas pessoas e as suas famílias não terem vivido as violentas experiências de manipulação cul-tural associadas ao regime comunista chinês e, mui-to em particular, durante a Revolução Cultural.

Segundo todas as previsões económicas, a fu-tura prosperidade de Macau não poderá assentar so-bre a mão-de-obra barata. Como tal, o capital sócio-educacional e o capital financeiro que estes residen-tes de Macau detêm é uma condição para a continua-ção do crescimento económico durante as primeiras décadas do século XXI.

Muitos destes "chineses de Macau", possuin-do um passaporte português, ou tendo obtido um passaporte estrangeiro (geralmente de um país de língua inglesa) estão prontos a mudar de residência caso as condições sociais e políticas na cidade não sejam satisfatórias. O sentimento de apego à vida local, contudo, e o conhecimento que têm de quanto beneficiariam se pudessem ficar na sua cidade de origem, significam que é frequente estas pessoas tor-narem-se "astronautas" — esta é a palavra usada na gíria local, assim como entre os chineses da Diáspora, para referir os que, tendo formalmente emigrado com as suas famílias, mantêm um forte laço económico e social com Hong Kong ou Macau.

Por relação a este grupo diferenciam-se três outras categorias de pessoas cuja pertença ao Terri-tório é menos marcada. Em primeiro lugar, os emi-grantes pobres oriundos da província de Cantão que, por vias mais ou menos clandestinas, conseguiram fixar-se na cidade durante os anos 80. Os sentimen-tos de diferenciação relativos a estas pessoas inte-gram uma componente classista — já que são fre-quentemente pessoas com hábitos e pronúncias ru-rais e com um poder de compra inferior ao da popu-lação estabelecida há mais tempo. São referidos, de forma depreciativa, como Ah Chaan. Como demons-tra a investigação realizada por Wang Yau-Kwan, muitos destes têm laços de parentesco com habitan-tes mais antigos da cidade. No entanto, o estudo em causa mostra que estes laços tendem a não corresponder a sistemas activos de entre-ajuda.

Foto de grupo da Família Basto, uma das mais representativas da sociedade macaense tradicional. Sentados, Abílio Basto (n. 12.4.1913) e sua esposa Genovena, com sete dos oito filhos do casal:

Arminda (de pé entre os pais), Albertina (sentada, com o filho João Bosco ao colo), Áurea (de pé). Na fila de trás, Abílio (filho), Arnaldo, Alda, Alfredo Bosco (marido de Albertina) e Armando. (Col. Ernesto Basto da Silva).

Em segundo lugar, encontram-se os chineses vindos da Diáspora (e, em particular, dos países do Sudeste Asiático — conhecidos conjuntamente em cantonense como Naam4 Yeung4). A maioria destes vieram para a cidade nos anos 60, numa altura em que a posição dos chineses nesses países recém-in- dependentes se tornara bastante difícil. Hoje, falam maioritariamente cantonense. Trata-se de um grupo bastante diferenciado mas cujas relações com os lo-cais não envolvem tanta tenção como os outros dois. São pessoas com um perfil de classe média e, fre-quentemente até, com níveis de educação superiores à média.

Em terceiro lugar, temos os chineses do nor-te, falantes de mandarim. Durante o período imedia-tamente anterior à declaração da RPC (1949) vieram bastantes para Hong Kong e Macau. A partir dos finais da década de 1980, porém, o número aumen-tou consideravelmente. Menos numerosos, com ní-veis sócio-educacionais relativamente elevados, ig-norantes de cantonense e nem sempre simpatizantes para com a cultura e os hábitos cantonenses, é muito frequente sentir-se animosidade para com eles por parte dos residentes de Macau.

Para se compreender a forma como se inte-gram estes sentimentos de diferenciação identitária em termos de estruturas de acção colectiva é impor-tante fazer alguma referência, se bem que sumária, às elites que dão coerência a estes grupos. Podemos descrever em breves traços a elite chinesa como in-tegrando pessoas com três origens bastante diversas. Em primeiro lugar, os "chineses de Macau"; resi-dentes do Território há mais de duas gerações e com sólidas fortunas pessoais radicadas no comércio. De entre estes, os mais velhos, constituem talvez a mais poderosa força em Macau. As suas opções tendem a ser muito conservadoras, o que, tendo em vista a peculiar história de Macau, significa que, por um lado, são as figuras mais empenhadas na aliança com a RPC iniciada no período que conduziu ao 1, 2, 3 mas, por outro lado, são também influentes no mundo dos negócios e no mundo das sociedades se-cretas. Os mais novos tendem a ser pessoas educadas à Ocidental (em geral, em países anglófonos) com atitudes pessoais e políticas mais liberais que as dos seus pais e cuja fortuna assenta essencialmente sobre a indústria.

Em segundo lugar, temos os que chegaram da RPC depois de 1979. Entre estes encontramos dois perfis de elite: os novos ricos, cuja fortuna pessoal recente está geralmente ligada a actividades mais ou menos clandestinas; e os intelectuais, fugidos da at-mosfera repressiva da China. Poucos de entre estes têm vindo a emergir como líderes de opinião, já que nem se sentem identificados com a presença portu-guesa nem se sentem capazes de suster uma aliança com um regime que os forçou a emigrar. Entre eles, há uma poderosa apatia política pois estão muito virados para a re-emigração.

Em terceiro lugar, entre o contingente dos chineses vindo dos países do Sudeste Asiático en-contram-se algumas figuras com destaque financeiro ou intelectual que têm vindo a assumir uma posição pública independente.

3.4. OUTROS

Existem ainda vários outros grupos étnicos que, não jogando um papel central na dinâmica políti-ca e económica do Território, têm uma presença em Macau desde há longa data: os Indianos, os Paquistaneses, os Tailandeses, os Timorenses e os Filipinos. A presença destas pessoas tende a assumir menor visibilidade, até porque a sua estadia na cidade é, em regra geral, de curta duração. No caso dos Indi-anos e dos Paquistaneses, porém, há famílias que es-tão radicadas em Macau há muito tempo, tendo até em alguns casos perdido a nacionalidade original.

NOTA DA REDACÇÃO

Chamamos a atenção do leitor para o facto de o autor utilizar um critério de transliteração do cantonense diferente do tradicional, com recurso a números para indicação dos tons. Dois exemplos: to2 saangl é na transliteração tradicional Tou sang e boon2 dei6 ian4, Pun Tei Iân.

NOTAS

1João de Pina Cabral e Nelson Lourenço, Instituto Cultural de Macau, 1993.

2Enquanto religião organizada em torno ao culto público dos antepassados nos templos do clã, o Confucionismo terá perdido muito do seu significado. Mas enquanto pano de fundo cultural de toda uma forma de vida, a sua influência continua a ser central. É de notar que, até na RPC, os antropólogos que têm vindo a fazer trabalho de campo na última década, são concordantes neste aspecto.

3Este culto está associado a noções de prosperidade causada por meio do fong sôi e é fácil encontrar referências à sua importância no dia-a-dia das gentes de Hong Kong e Macau.

4Incidentalmente, esta categoria inclui também os to2 saangl, macaenses.

*Doutorado pela Universidade de Oxford em Antropologia Social, Professor Associado no Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa e Investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.

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