Atrium

EDITORIAL

Luís Sá Cunha

ONDE QUE TU VAI, MACAU?

Onde que tu vai, Macau?

Qui de amanhã ocê tḽ?

Já não é de Portugau

Nã é de China tambḽ...

Ou-Mun, sim, é de China

Macau foi de português.

Mas agora, tera minha,

Onde que vou pôr meus pés?

Filho di Macau làrgado,

Orfão de mãe viva, assim...

Meu povo chora càlado.

Que nã sabe ele-sa fim...

Filho di Macau làrgado...

Qui de amanhã para mim?

Graciete Batalha

De todos, será este, provavelmente, o número mais sentimental da "Revista de Cultura". Para os Portugueses, pelo menos. Porque o dedicamos aos Macaenses — a mais substancial e viva sobrevivência do património da Cidade do Nome de Deus — quando se prefigura o emurchecimento da Comunidade.

É a lacerante interrogação de Graciete Batalha no poema invocado em epígrafe, posta em voz de macaense de raiz: amanhã estrangeiro em terra alheia, estrangeiro amanhã na sua própria terra.

E, no entanto, durante quatro séculos, foram eles os pioneiros, os fundadores e os obreiros de um porto crescentemente próspero; os serventes do mais espectacular encontro cultural da História da Civiliza-ção; os que, pequena comunidade frágil entre as forças colossais da História, resistindo a tantos assaltos, persistentes sobre tantas penúrias, — sempre invictos e leais deram prova no tempo do maior génio de sobrevivência.

Eles próprios frutos de miscigenação, foram miscigenando-se pelos séculos. Sempre fiéis ao Rei de Portugal, sempre aliados do Filho de Céu. O Espírito a Ocidente, o Sangue a Oriente. Pendularmente, os protagonistas da mais espantosa política de alianças dos anais diplomáticos.

Sempre, o trémulo fiel entre dois pratos de ferro. No seu hibridismo se gera a sua fraqueza: hoje os sentimos pungidos pelo estigma do apatridismo.

E é ao cujo drama deles que somos estremecidamente sensíveis, sabendo que é sempre infeliz o Homem na ausência da Pátria como da Mulher.

Mostra-nos a História — crónica do "estado de Natureza" de Locke ou longo processo alquímico —que é precária a vida das Pátrias. Resistem e subsistem enquanto Unidade, porque a Pátria é Espírito. A sua ideia situa-se na categoria de Tempo, na reactualização da Tradição, na renovação da Cultura, que pressu-põe sempre um culto. No processo histórico ocidental, a decadência do conceito de Pátria radica na sua "militarização", quando se opera a sua confusão e subsumissão na categoria espacial de Território.

Elemento por excelência adunante, a Língua é muito mais imperativa do que o Território. Diríamos que não pode haver Pátria sem Língua.

Em Macau, sempre o estatuto do Território foi precário. Na elocução corrente, manifesta o macaense comum a miscelânea de várias Línguas. Verdadeiramente, para os Macaenses, Macau só terá sido uma "pequena Pátria" quando, num assomo individualizante, se gerou intestinamente à comunidade a expressão própria do patoá, hoje em quase total desuso.

É hoje a comunidade macaense composta por cerca de vinte a trinta mil indivíduos, dos quais apenas uns dez mil vivem em Macau e Hong Kong, espalhando-se os restantes por Portugal, Austrália, Estados Unidos, Canadá e Brasil.

Sucessivamente vulnerada pelo Ultimatum Inglês, pela Guerra do Pacífico, pela ocupação militar de Goa, e pelas sequelas da Revolução Cultural continental chinesa, a comunidade macaense vivente ainda em Macau tende a sofrer a purga de um derradeiro e fatal exílio. Definitivamente, constituir-se-á em Diáspora. Longe do seu "habitat" próprio e original. Tendo que sujeitar-se às novas condições e apelos dos países de destino.

Mas, cremos bem, sempre demonstrando o seu notável carácter de adaptabilidade, conservando a sua "identidade cultural" distinta da portuguesa e da chinesa, recuperando de novo o seu hibridismo como factor singularizante e personificante.

Foi isto, e porque a Pátria é Espírito, o que nos moveu: em solidário tremor com a comunidade macaense, e perante a sua desagregação espacial, dar-lhe num primeiro volume de divulgação um resumo compulsável das suas raízes, das suas memórias e tradições, dos seus factores culturais de identidade comunitária.

Queremos porém sublinhar que, aproveitando a feliz oportunidade e liberdade de nos editarmos em três Línguas diferentes, é também aos leitores de Língua Inglesa, e sobretudo de Língua Chinesa, que nos destinamos nas respectivas edições. Humildemente, intentamos apresentar à grande nação chinesa os basilares esboços explicativos de uma comunidade que ela ainda ignora quase completamente, e que também é seu património, por confluência do Sangue e da Cultura.

Ficamos, desde agora, na esperançosa expectativa de vermos, decisiva e coordenadamente aprofundados, estudos sobre o estatuto de nacionalidade, de caracterização actual das comunidades, teorização da sua redefinição, de reforço da coesão da Diáspora.

Para o Futuro, a Diferença e a maior Riqueza de Macau. Do Passado, e como exemplo, é adquirida glória dos macaenses o terem para sempre ficado registados na História.

O Director da RC

Luís Sá Cunha

desde a p. 3
até a p.