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A CIDADE E O URBANISMO

João Vicente Massapina*

Todo e qualquer país tende julgar-se o umbigo do Mundo. Todos os povos são etnocêntricos.

Os índios de Gé do Brasil choravam desconsoladamente quando o etnólogo Kurt Unkel se preparava para os deixar, pois não imaginavam que fosse possível a sobrevivência fora do único povo no seio do qual a vida merecia ser vivida — o seu próprio povo.

Raramente uma nação levou, porém, esta tendência tão longe como a China, onde a sua inferioridade de hoje decorre largamente do seu sentimento de superioridade.

O subdesenvolvimento é a aliança do isolamento e imobilismo, agravados pela demografia.

O desenvolvimento é o casamento da abertura para o Mundo com as inovações cruzadas...

(in O Império Móvel ou o Choque aos Mundos — Alain Peyrefitre)

O estudo das cidades coloca em evidência uma capacidade de memória colectiva que se manifesta por permanências de uma estabilidade surpreendente.

Apesar das guerras, das destruições, das epidemias, das revoluções, das transformações económicas, os passos dos habitantes voltam muitas vezes aos mesmos caminhos, os monumentos transformam-se e mudam de cenário, mas permanecem enraízados nos mesmos locais.

A cidade manifesta desta forma o seu grau mais elevado e a sua grande capacidade de construir uma memória colectiva.

A CIDADE

O desenvolvimento das cidades, não poderá estar sujeito à importação de modelos urbanos, neste caso excessivamente ocidentais, situação que a longo prazo irá gerar problemas sociais irresolúveis, de criminalidade e de delinquência juvenil, nomeadamente.

A divulgação e discussão dos problemas no seio das comunidades que irão equacionar os instrumentos e objectivos do planeamento urbano, permite acolher e desenvolver novas maneiras de estar e olhar a Cidade.

A grande maioria dos governos da República e das administrações do Território de Macau, entenderam o Urbanismo, como um "documento de polícia", imposto às populações e gerador por isso de mais valias atrozes.

As estratégias desenvolvimentistas, que aliás são hoje apanágio de algumas cidades chinesas, como Zuhai, Cantão, Xangai e mesmo Pequim, irão permitir, a curto prazo, a destruição dos seus principais valores históricos, que durante centenas de anos conseguiram sobreviver a guerras, epidemias e catástrofes naturais.

Se a grande maioria das potências coloniais, como o Reino Unido, a França ou a Alemanha impunha às populações locais os seus modos de vida, hábitos e tradições, Portugal, inserido nos seus brandos costumes de bom relacionamento com os povos, como por vezes é linearmente narrado por curiosos leitores de história universal, reunia condições para que não se cometessem os mesmos atropelos.

Com a entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, foram estabelecidos valores de desenvolvimento, muito ao sabor dos países do norte da Europa, impondo aos países mediterrânicos, obras de grande impacto ambiental, tais como estruturas viárias e infraestruturas hidráulicas.

Importantes, concerteza, algumas dessas obras, são infelizmente muito pouco conciliáveis com o desenvolvimento das cidades médias e dos pequenos aglomerados urbanos do sul europeu, nomeadamente aqueles que devido à sua situação de interioridade territorial, têm sido sistematicamente abandonados e esquecidos.

As regiões portuguesas do Alentejo e Trás-os-Montes são exemplos lamentáveis de "esquecimento governamental", onde se assiste quotidianamente ao envelhecimento das populações, à ineficácia de equipamentos de saúde e escolares, à destruição de aldeias, ao abandono de uma agricultura outrora rica e a um desemprego cada vez mais galopante.

Por razões de ordem económica e financeira, e não interessa saber agora de onde surgem os respectivos lucros, existem contudo territórios e regiões, e neste caso Macau, que pela sua "histórica paragem no tempo", por volta dos anos quarenta e cinquenta, reunia todas as condições para que tivesse crescido harmoniosamente.

O ordenamento do território constitui assim um instrumento importante de evolução das cidades, onde a cooperação internacional representa uma contribuição significativa para o fortalecimento da identidade urbana de uma cidade.

Essa cooperação necessita de uma análise de conceitos de desenvolvimento nacional e regional, permitindo a adopção de princípios comuns, visando reduzir as disparidades regionais, melhorando o uso e a organização do espaço, a distribuição das actividades, a protecção do ambiente e a melhoria da qualidade de vida das populações, onde as profundas e recentes modificações ocorridas nos estruturas económicas e sociais dos países europeus e nas relações destes com as restantes partes do mundo, exigiram uma revisão crítica dos princípios orientadores da organização do espaço, de uma forma adequada e eficaz.

Os objectivos do Urbanismo necessitam de novos critérios para orientação e utilização do progresso tecnológico em conformidade com as exigências económicas, sociais, culturais e ambientais, onde todos os cidadãos possam ter a possibilidade de participar, em quadros institucionais apropriados, de liberdade.

O MUNICÍPIO

Nesses quadros institucionais surgem obviamente os Municípios, como representantes legítimos de um Poder Local cada vez mais reivindicativo e participativo, estabelecendo critérios normativos de administração urbanística que enquadrem a gestão corrente de um território, através de regras simples, claras e transparentes, ultrapassando decisões individuais, discriminatórias e casuísticas, regulando as relações entre os diversos agentes transformadores do território.

Se é certo que a maioria dos municípios mundiais estão hoje conscientes da sua participação activa em defesa das populações, que pelos seus actos eleitorais de vivência democrática e pela sua gestão autonómica, tentam disciplinar todas as acções no espaço físico, no Território de Macau existe ainda um modelo autárquico institucional com algum défice democrático.

Presentemente ninguém contesta que um Município se deve assumir como o protagonista principal na gestão urbana de uma cidade, nos seus aspectos mais variados, conquistando competências ao Poder Central, diversificando actividades e contribuindo para o desenvolvimento social, cultural e económico das comunidades locais.

As iniciativas de investimento, bem aceites concerteza, deverão ser controladas, salvaguardando equilíbrios ecológicos, impactos ambientais, incentivando a fixação das populações e evitando o envelhecimento acelerado das mesmas,combatendo assim, assimetrias demográficas, preservando recursos naturais, reabilitando o património construído, utilizando apropriadamente os solos, e defendendo a qualidade da sua arquitectura.

O Leal Senado de Macau e a Câmara Municipal das Ilhas, têm nos últimos anos, e apesar das suas limitações institucionais, gerido da melhor forma as poucas competências que lhe são conferidas pela Administração do Território.

Descendente de anteriores e históricos poderes, o LEAL SENADO, tem-se debatido nos últimos anos para que a sua imagem consiga ser o espelho da cidade, tanto a nível de algumas obras de certa importância que tem executado, assim como em contactos para o exterior, recolhendo exPeriências em municípios europeus, permitindo reformular os seus quadros orgânicos e implementado um modelo de gestão autárquica, dinâmica e eficaz.

Mesmo com limitações institucionais, as autarquias de Macau, conseguiram manter uma colaboração assídua com a Administração do Território, em interajudas permanentes e de conjugação de esforços, que poderia ter como objectivo essencial uma verdadeira política de ordenamento do território.

Simultâneamente, a tutela administrativa deverá ser assim exercida com respeito e com métodos que não afectem a autonomia local, tendo as autarquias locais direito a recursos próprios e adequados, dispondo-os livremente no exercício das suas atribuições, mas estando igualmente dispostas à intervenção tutelar, face à gravidade de actuações ou infracções eventualmente praticadas.

Porém, entre as administrações locais e os cidadãos foram-se criando barreiras que isolaram estes da participação que deveriam ter na orientação do viver colectivo, fenómeno que se deve em certa medida à ausência de mecanismos democráticos, com vista à eleição dos representantes locais.

O nível de iniciativas de carácter colectivo e político em Macau, antes e após o 25 de Abril de 1974, decorreu, em meu entender com níveis de algum marasmo, e actualmente com alguns fenómenos corporativistas que fazem o espanto de todos quantos visitam o território.

Mas sendo contudo um mecanismo político perfeitamente aceite, até porque alguma democracia se respira em Macau, pelo facto do Presidente da República Portuguesa, eleito por sufrágio directo em Portugal, dispôr de competência constitucional para nomear o Governador de Macau, as administrações locais existentes mantêm na generalidade as estruturas antigas de nomeação, facto que em certa medida, limita a independência e o exercício de funções políticas nos Municípios.

Estes procedimentos têm obviamente consequências negativas na gestão urbanística do Território, visto que os Municípios aceitam um Urbanismo imposto, não dispondo assim de independência política e de autonomia na gestão urbana da cidade, até porque, é da competência da Administração todas as acções referentes ao ordenamento do território.

A CIDADE DE MACAU

Para a cidade de Macau, e tendo em conta o seu significativo património construído, deveriam ter sido estabelecidos outro tipo de conceitos e métodos de desenvolvimento urbano, evitando contudo transformar a cidade, que pelo seu valor histórico e patrimonial é importante, num museu petrificado e imutável.

O que se pretende essencialmente é, antes de mais, inventariar os valores urbanos existentes, recuperá-los e valorizá-los, e para que a nova arquitectura respeite as relações de escala, de volume, de textura e de cor, compatibilizando os valores estéticos com todas as actividades urbanas que constituem a própria vida da cidade.

Resumindo, para a cidade de Macau poderiam ter sido estabelecidos os seguintes critérios:

1. Evitar o excesso de veículos motores, que vieram introduzir motivos de perturbação urbana, poluição química, sonora e incomodidade agressiva da sua circulação face ao cidadão peão.

2. Impedir demolições selvagens em lotes urbanos, sem qualquer critério urbanístico, onde as cérceas atingem altimetrias desajustadas para a escala da cidade.

3. Harmonizar nas novas expansões habitacionais, que devido ao crescimento demográfico se têm expandido no tecido urbano da cidade, com a abusiva conquista de terrenos ao mar ou pela demolição sistemática de conjuntos construídos que poderiam ter sido reabilitados.

4. Apoiar uma eficaz e correcta política de crescimento arquitectónico, pela implantação de edifícios que não perturbem o ambiente e a paisagem urbana, pois se a arquitectura em Macau, é legalmente da exclusividade dos arquitectos, convém igualmente criar mecanismos legais para impedir e evitar, por parte desses profissionais alguns atropelos, a coberto da peça e/ou da obra de arquitectura projectada.

5. Estabelecer normas e legislação urbanística devidamente correctas, que conduzam à elaboração de estudos, flexíveis concerteza, mas disciplinadores quanto ao crescimento urbano da cidade, evitando-se o estabelecimento de regras sem fundamento legal para o licenciamento de edifícios e conjuntos construídos, pois infelizmente em Macau, a propriedade privada do solo e do património construído, integra o direito de demolir.

CONCLUSÃO

Um pouco por toda a parte, na Europa, na América e mesmo na Índia, reanimam-se e reabilitam-se quarteirões antigos, dinamizam-se pequenos comércios, valorizam-se pormenores notáveis de velhas arquitecturas, promovendo-se o desenvolvimento de participações comunitárias, e incrementando a autonomia dos poderes locais e do seu poder de decisão.

Os Estados soberanos, nacionais e regionais, encorajam a discussão dos fenómenos urbanos, sobre o seu papel na sociedade presente e futura, defendendo a cidade como um todo, conciliando o velho com o novo e juntando cidadãos arquitectos, urbanistas, sociólogos, políticos e responsáveis administrativos.

Em 1933, como resultado do 4. ° Congresso Internacional de Arquitectura Moderna, publicava-se a famosa Carta de Atenas, onde se enunciavam os princípios fundamentais da urbanística moderna.

Em 1963, a Assembleia Consultiva do Conselho da Europa recomendava a protecção dos bens culturais a uma escola europeia.

Em 1965, no âmbito do Conselho da Europa, as cidades de Barcelona e Palma definiam critérios de salvaguarda e recuperação de aglomerados e conjuntos com interesse histórico.

Em 1971, organizou-se em Split na Jugoslávia, a primeira confrontação europeia das cidades com interesse histórico.

Em 1975, o Conselho da Europa, no Ano do Património Arquitectónico, sob o lema — Um Futuro para o nosso Passado, marca um passo decisivo na valorização do património construído, publicando a Carta Europeia do Património Arquitectónico.

Em 1980, surgem novas experiências, quanto a novos conceitos urbanísticos e de salvaguarda de centros históricos, como Évora, Beja, Braga, Angra do Heroísmo, Bolonha, Paris, Madrid, Praga, Varsóvia, Berlim, Luxemburgo, etc. etc.

Macau e a responsabilidade das várias administrações portuguesas omitiram estes conceitos, preferindo outro tipo de gestão urbana e valorização patrimonial, beneficiando esteticamente fachadas de edifícios, alguns deles sem condições de habitabilidade, promovendo os grandes empreendimentos e as grandes infraestruturas, sem acautelar atempadamente as consequências negativas das opções assumidas.

Foram concerteza decisões, critérios e opções assumidas com clareza, responsabilidade e certamente bom senso, mas que não acautelaram outrosproblemas e outras vicissitudes urbanas.

As cidades médias como Macau nomeadamente, são decisivas em toda a sociedade, mesmo naquelas onde predomina o poder económico, e serão sempre sinónimo de Socialização, ou se assim se preferir de Sociabilidade.

A CIDADE DE MACAU SERÁ SEMPRE INSUBSTITUÍVEL. NECESSÁRIO É, GERI-LA CONVENIENTEMENTE NO SEU TODO. AGORA E SEMPRE!

* Arquitecto. Licenciado pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1980. Tem desenvolvido a sua actividade, especialmente, na área do Planeamento e Desenvolvimento Urbanístico, tendo trabalhado, nos anos 90, no Leal Senado de Macau.

desde a p. 175
até a p.