Literatura

BOCAGE NO EXTREMO ORIENTE

António Manuel Couto Viana*

O guarda-marinha Manuel Maria Barbosa du Bocage, nascido em Setúbal, a 15 de Setembro de 1765, recebe aos 21 anos, com a patente, a ordem de embarcar para Goa, na nau Senhora da Vida, que escalava o Rio de Janeiro, onde ia o novo governador da Índia, Francisco da Cunha Meneses. Bocage tinha já fama de bom poeta e de boémio incorrigível. "Magro, de olhos azuis, carão moreno", bem apessoado e brilhante no improviso, conquistou amigos... e, um deles, o próprio Cunha Meneses. Daí, que a estadia em terra do Rio se lhe fosse em alegres festas e fartos banquetes. E, decerto, teve ocasião de escutar, da boca da cultura local, algum verso mordaz de Gregório de Matos, cujo fulgor satírico se assemelhava ao seu.

Quem era este Gregório de Matos? Oriundo da Baía, onde veio ao mundo em 1633, fez os seus primeiros estudos na cidade natal, doutorando-se em Leis, na Universidade de Coimbra. Depois de advogar uns tempos na capital do Reino, regressou ao Brasil, onde exerceu, por mercê do arcebispo da Baía, D. Gaspar Barata, as funções de tesoureiro e vigário-geral da catedral baiana. Teve uma vida atribulada, pois sofreu o susto de uma tentativa de assassínio e a pena de desterro para Angola, por ordem do governador D. José de Alencastre, factos que mais lhe acidularam a criação poética. Múltiplas e influentes amizades o devolveram a Pernambuco, onde acabou por falecer, em 1696, há três séculos. A sua língua viperina, o seu sarcasmo demolidor fizeram que os seus contemporâneos o apodassem "Boca do Inferno".

Bocage lera-lhe, decerto, a sua colaboração nas páginas barrocas da Fénix Renascida e, decerto também, nos prazeres fluminenses, ao menos, os dois sonetos que passo a citar.

O primeiro, intitula-se A Procissão de Cinza em Pernambuco:

    "Um negro magro em sufilié mui justo, 
    dous azorragues de um juá pendentes; 
    barbado o Peres; mais dous Penitentes; 
    Seis crianças com asas, sem mais custo; 
    
    De vermelho o Mulato mais robusto; 
    três Meninos fradinhos inocentes; 
    dez ou doze Brichotes mui agentes; 
    vinte ou trinta canelos de ombro onusto; 
    
    sem débita reverência seis Andores; 
    um Pendão de algodão tinto em Tijuco; 
    em fileiras dez pares de Menores: 
    
    Atrás um Negro, um Cego, um Mameluco; 
    Três lotes de Rapazes gritadores; 
    É a Procissão de Cinza em Pernambuco".

O outro soneto intitula-se Aos Senhores Governadores da Cidade da Baía e seus Costumes, e é como segue:

    "A cada canto um Grande Conselheiro, 
    Que não quer governar cabana e vinha: 
    Não sabem governar sua cozinha, 
    E querem governar o mundo inteiro! 
    Em cada porta um bem frequente Olheiro 
    Da vida do Vizinho e da Vizinha, 
    Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha 
    Para o levar à Praça e ao Terreiro. 
    
    Muitos Mulatos desavergonhados, 
    Trazendo pelo pé aos Homens nobres. 
    Posta nas palmas toda a picardia. 
    
    Estupendas usuras nos mercados. 
    Todos os que não furtam, muito pobres: 
    Eis aqui a cidade da Baía."

É curioso que esta última composição inspirou o 23. ° Bispo de Miranda, D. Frei Aleixo de Miranda Henriques, "às musas dado", que, pelos começos do século XVIII, assim descreve a sua diocese, num soneto de forma pouco clássica na utilização das rimas:

    "Muralhas e paço derrubados, 
    Quatrocentos vizinhos, mil perjuros, 
    Vinte infanções, trezentos vilões puros, 
    Um castelo sem tiros, nem soldados. 
    
    Julgadores d'el-Rei... três desterrados. 
    Vistas d'arredores... penhascos duros, 
    Sem fontes, nem jardins dentro dos muros, 
    Uma Alfândega, casa de malvados. 
    
    Um seco rio que horto nenhum rega. 
    A barca só por gancho se governa. 
    Uma Câmara que às avessas manda. 
    
    Inverno de regelos, fome eterna. 
    Visão de Etiópia e de Finlândia, 
    Eis aqui a cidade de Miranda".

Os sonetos do Boca do Inferno reteve-os Bocage até bem tarde, ao romper com a Nova Arcádia, que reunia, na casa do Conde de Pombeiro, sob a presidência do odiado Caldas Barbosa (Lereno,na ficção árcade), alguns poetas medíocres. Satirizando "as quinta-feiras de Lereno" (como as nomeavam os rançosos académicos), descreve-as num soneto que tem chave semelhante aos dos citados de Gregório de Matos: "Eis aqui de Lereno as quartas-feiras".

E estavam muito presentes na memória do poeta ao desembarcar, sofredor, em Macau, e deparar-se-lhe a singularidade e a pobreza da cidade da Foz do Rio das Pérolas.

Mas não antecipemos.

A 7 de Abril de 1789, o poeta sadino chega a Damão, nomeado tenente do regimento de infantaria de Terço, ali aquartelado.

Mas, no dia seguinte, desertor, escapa-se para Surrate, de onde embarca para Macau.

Andava neurasténico, dominava-o uma doença grave, detestava a terra e as gentes, padecia com o silêncio de Gertúria, a mulher amada que deixara no distante Outão, entre laranjais e águas de safira.

Pensara mesmo no suicídio. O espírito pedia-lhe liberdade, novos horizontes e aventura e de olvido. Lá pela Europa soprava, forte, destruidor do velho mundo, o furacão francês da Revolução. Um outro, mais benigno, nascido dos mares irrequietos da China, arrebatava o poeta ("Até que aos mares da longínqua China/Fui por bravos tufões arrebatado") para Cantão, por onde vagueia esfarrapado e faminto ("E mais mísero eu, que habito o remoto Cantão"; "Mísero de mim que em terra alheia..."; "A fértil China.../Te viu com lasso pé vagar mendigo"). Muito provavelmente acolhido numa das feitorias estrangeiras dessa fabulosa cidade, quiçá a inglesa, não tardou a arribar a Macau, governada interinamente pelo desembargador Lázaro da Silva Ferreira, após o falecimento do governador Franciso Xavier de Mendonça Corte Real, em 1789.

Deste Lázaro Ferreira, conta-se, em Macau, o seguinte episódio risonho:

Nas vereações do Senado, ficava sobre a mesa um extremo de vara da justiça e o outro ficava encostado à parede sobre a cabeça do Ministro (que assim era chamado o substituto do governador). Ferreira tocou-lhe, fazendo-a cair e logo a mandou retirar com o pretexto de que lhe ferira a cabeça. Então, os vereadores seguraram-na com um gancho e uma argola. Na vereação seguinte, Lázaro Ferreira tornou a tocar-lhe, pensando que voltaria a fazê-la cair, mas ficou surpreso ao vê-la segura. Diz-lhe o vereador do mês: "Tributamos tanto respeito a nossos maiores, que não podemos prescindir deste costume; e prezamos tanto Vossa Excelência que, para o não ferir, a mandamos segurar."

Bocage. Desenho a lápis sépia por Lei Chi Ngok, inspirado em gravura poruguesa do Séc. XVIII.

É o comerciante Joaquim Pereira de Almeida que recebe, com a maior gentileza, Manuel Maria Barbosa du Bocage e se presta a apresentá-lo, quer a Lázaro Ferreira, quer a algumas famílias importantes da terra.

O poeta não se esquece de agradecer a todos com um punhado de versos elogiosos.

A Joaquim Pereira de Almeida dedicou uma elegia, chamando-lhe "bom benfeitor, bom caro amigo".

À Senhora D. Maria de Saldanha Noronha e Menezes, dama distintíssima de distintíssima família, então vivendo em Macau, casada e com filhos, de exemplar virtude, Bocage não deixa de rogar-lhe, numa ode a que deu o título significativo de Esperança, que o auxilie a regressar a Portugal. Marília é, à maneira árcade, o nome que atribui à nobre Dama, dotada de grande beleza física e, igualmente, de grande beleza moral.

Eis parte da composição, naturalmente, hiperbólica, que o poeta depõe aos pés daquela de quem aguardava poderosa intervenção para alívio das suas inquietações e solução da sua grave situação de desertor:

    "Musa, não gemas, ergue, ó desgraçada 
    O rosto macilento, 
    Da vista a frouxa luz, quase apagada 
    Nas lágrimas que vertes, Musa, alento! 
    Move trémula planta, 
    Pisa receios, e a Marília canta. 
    
    Canta da ilustre Dama a gentileza, 
    A prole esclarecida, 
    Os dons da sorte, os dons da natureza, 
    As prendas com que a vês enriquecida: 
    E, depois de a louvares, 
    Torna a teus choros, torna a teus penares. 
    
    Ah, que já sinto, milagroso objecto, 
    Quanto pode o teu rosto! 
    Da malfadada Musa o torvo aspecto 
    Já cora, já se vai do meu desgosto 
    Sumindo a névoa densa. 
    Que desfaz, como o sol, tua presença. 
    
    Inclina, pois, magnânima senhora, 
    Os clementes ouvidos 
    À voz, que não profere, aduladora, 
    Altos encómios de razão despidos: 
    A verdade celeste 
    Com seu cândido manto os orna e veste. 
    
    A ti, dignos de ti, Marília, voam; 
    A ti, bela heroína
    Cujas mil graças mil virtudes c'roam; 
    A ti, que enches de glória a fértil China, 
    Enquanto a que te adora, 
    Mísera Pátria, tua ausência chora. 
    
    As deidades, criando-se, exauriram o seu 
    cofre divino; 
    Os seus encantos para sempre uniram 
    Em áureo laço o mais feliz destino. 
    E eis os dons com que brilhas 
    Reproduzidos nas mimosas filhas."

E o poeta, depois de tecer floridas capelas de versos às filhas de D. Maria de Saldanha, para enternecer-lhe o coração de mãe, implora a seu favor, com emocionante inspiração:

    "Com suspiros, ó triste, implora, implora 
    De Marília a piedade; 
    Ela é justa, ela sente, ela deplora 
    Os erros da infeliz humanidade; 
    Contra o fado inimigo 
    Na sua compaixão procura abrigo. 
    
    Roga, roga-lhe, enfim, que te destrua 
    As ânsias, os temores; 
    Que a Pátria, ao próprio lar te restitua, 
    Ah! já diz que sim: não mais, clamores; 
    Musa! Musa! descansa, 
    Cantemos o triunfo, ó Esperança."

E, ciente que os seus rogos encontraram eco no peito generoso de Marília, Elmano conclui que "a má Desgraça", "lá cai, lá freme, de Marília às plantas".

A uma outra dama, D. Maria de Guadalupe Topete de Ulhoa Garfim, oferece Bocage igualmente uma ode, mas não pedinchona, sim de louvor à beleza da musa, que eu adivinho de ascendência castelhana, quer pelos apelidos, quer pelas referências ao pequeno rio Mançanares, que banha Madrid, unido ao "aprazível Tejo", em cuja "ruiva margem" o poeta tem o seu "tugúrio pobre".

E tudo são hinos "aos atractivos da preclara Ulhoa" já sob o véu fantasioso de Armia".

Lembremos o remate da ode, meditada, talvez, entre as verduras densas das colinas macaenses; talvez, perto dos penedos que são a gruta quiçá lendária, de Camões, o vate com quem Elmano compara a sua sorte ("Camões, grande Camões, quão semelhante/ Acho o teu fado ao meu, quando os cotejo"...).

É curioso que Bocage, no mesmo soneto, vê-se, como Camões, "junto ao Ganges surrante", mas ignorou a presença do épico na plácida foz do Rio das Pérolas, onde alguns respeitáveis historiadores o afirmam a compor parte d'Os Lusíadas, por volta de 1557.

Apreciemos a ode:

    "Que direi da tua alma! Inda é mais bela 
    Que teu belo semblante; 
    Angélicas virtudes formam dela 
    O retrato brilhante. 
    
    Mas teus celestes dons serão manchados 
    Com meu tosco elogio; 
    Com versos, que talvez sejam lançados 
    No sonolento rio!!
    
    Indesculpável, perigosa audácia 
    Teus louvores me inspira. 
    Que mais fizera, se cantor da Trácia 
    Me confiasse a lira? 
    
    Novo Atlante, o sidério firmamento 
    Quero manter nos ombros. 
    Se da tua alma debuxar intento 
    As graças e os assombros. 
    
    Foge-me a lira, pávida, receia 
    O assento majestoso. 
    E já meus lábios trémulos enfreia 
    Silêncio respeitoso".

Por fim, Lázaro Ferreira, que escutara, benévolo, as pretenções de Bocage, intercedendo junto das cimeiras Senhorias, e permitindo ao poeta, após tais diligências, regressar a Portugal, sem castigo de monta; Lázaro Ferreira é brindado, pelo beneficiado, com nova ode, A Gratidão, que conclui deste jeito encomiástico:

    "Tudo a ti devo, ó benfeitor, ó grande, 
    Que a roçagante, venerável toga 
    Mais venerável pelos seus preclaros 
    Méritos fazes. 
    
    Tudo te devo: a gratidão não sofre 
    Que teus favores generosos cale; 
    Julga tu mesmo se o silêncio é crime, 
    Árbitro excelso. 
    
    Aos estrelados, aos cerúleos globos 
    Sempre em meus hinos subirá teu nome, 
    Ó céu! ó fados! conservai Ferreira, 
    São necessários os heróis no mundo; 
    
    E tu ferrolha os porcelosos monstros, 
    Eólo amigo. 

Sete anos após a presença de Bocage em Macau, Ferreira entregava o cargo ao seu sucessor António Pereira dos Santos.

A maneira mais bela de um poeta agradecer a gentileza de um favor é em verso. Bocage fê-lo sempre, como, aliás, os seus pares, sobretudo os do século XVIII.

Como exemplo, eis um soneto escrito por Elmano ao poeta e dramaturgo limiano Manuel de Figueiredo, a ocupar lugar importante na burocracia nacional, ou seja, oficial maior da Secretaria dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, agradecendo os seus bons ofícios nesse campo, possivelmente no desenlace feliz que teve a deserção e o regresso a Lisboa, sem ser no porão da nau, devidamente algemado:

    "Musa, não cantes bárbara proeza 
    De um braço audaz, de um coração tirano; 
    Não celebres o undívago troiano, 
    Pérfido à tíria, mísera princesa. 
    
    Esses de Marte heróis, cuja grandeza 
    Os incensos do burgo atrais ufana, 
    São Tântalos cruéis de sangue humano, 
    Escândalo feroz da Natureza. 
    
    Louva somente um ânimo benigno, 
    Que nuvem de teus males tem desfeito, 
    Que já teu Fado serenou maligno; 
    
    Louva de Figueiredo o nobre peito; 
    Conduz às plantas de varão tão digno 
    Amor, verdade, gratidão, respeito".

Durante o tempo em que permaneceu na pequena parcela portuguesa do Extremo Oriente, ou seja de Setembro ou Outubro de 1789 a Março de 1790, o poeta observou a cidade com perspicaz exactidão, a ponto de a retratar num soneto; soneto esse que bem revela o conhecimento da musa de Gregório de Matos e o agrado como ela lhe enriquecera o espírito satírico, pois que tal soneto imediatamente recorda aqueles dois evocados no início deste texto, quanto à estrutura e remate.

Eis o soneto de Elmano:

    "Um governo sem mando, um bispo tal; 
     De freiras virtuosas um covil, 
    Três conventos de frades, cinco mil 
    Nhons e chinas Cristãos, que obram mui mal; 
    
    Uma sé que hoje existe tal e qual; 
    Catorze prebendados sem ceitil, 
    Muita pobreza, muita mulher vil; 
    Cem portugueses, tudo num curral; 
    
    Seis fortes, cem soldados, um tambor; 
    Três freguesias cujo ornato é pau; 
    Um Vigário-Geral, sem promotor; 
    
    Dois colégios, e um deles muito mau; 
    Um senado que a tudo é superior; 
    É quanto Portugal tem em Macau".

O sábio historiador Monsenhor Manuel Teixeira, no seu livro Macau no Século XVIII, ocupou-se a analisar o soneto bocagiano e conclui pelo rigor dos traços de retrato.

Julgo do maior interesse histórico este comparar cada verso com a realidade de Macau nessa época. Assim:

"'Um governo sem mando'. É exacto: o governador não tinha poder ou mando civil; era chamado Peng-t'au (cabeça de Tropa) ou comandante militar; mandava, apenas nos soldados e nas fortalezas."

(Eu atrevo-me a sugerir que Bocage podia também referir-se ao facto de, durante a sua estada em Macau, haver apenas um Governador interino.)

" 'Um Bispo tal'. Não havia bispo; D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães partira para Lisboa a 10.1.1780, deixando como governador do Bispado o Padre Antonio Jorge Nogueira".

(A ausência de Bispo, tal como a ausência de Governador é, quanto a mim, o que o poeta quis mencionar neste primeiro verso do soneto).

"'De freiras virtuosas um covil'. Refere-se às clarissas do Mosteiro de Santa Clara. (...) A palavra 'covil' deve referir-se à clausura rigorosa dessas virtuosas freiras. São elas as únicas elogiadas pelo poeta e bem o mereciam, pois o seu fervor era extraordinário. (...)"

"'Três conventos de frades': São Francisco, Santo Agostinho e São Domingos."

"'Nhons e chinas cristãos que obram mui'. Nhons propriamente significa senhores e nhonhas, senhoras". (Filhos da terra, em patuá, ou seja no dialecto popular macaense.)

A corrupção dos costumes, nesta época, era muito censurada pela autoridade eclesiástica.

"'Uma sé que hoje. existe tal e qual'. Era a Sé Catedral, que datava de 1622 ou 1623 e que existia tal e qual como fora feita."

"'Catorze prebendados sem ceitil'. Bocage inclui aqui todos os que recebiam prebendas, cónegos ou não. Prebenda era o direito de um eclesiástico receber certos subsídios ou rendimentos da Catedral. (...) Em 1777 faziam serviço na Sé 24 padres mas em1790 eram muito menos. Após a partida do Bispo, em 1780, vários deles recusaram servir na Sé. O governador do Bispado, D. António José Nogueira, publicou um decreto para os obrigar; mas eles apelaram para Goa, e o arcebispo primaz deu-lhes razão.

É de crer que em 1790 fossem apenas 14 os prebendados, incluindo cónegos, capelães e outros."

"'Muita pobreza, muita mulher vil'. A 4 de Abril de 1783, D. Maria I dizia que a guarnição de Macau, 'em lugar de soldados, se compunha somente de indigentes e mendigos'; e que os cristãos chinas e portugueses estavam reduzidos à indigência e à miséria'. Em resultado da pobreza, havia 'muita mulher vil'.

O bispo D. Marcelino José da Silva, "para obviar este estendal de vícios", fundou o Recolhimento de Santa Maria Madalena, no qual mandou recolher algumas dessas mulheres mais famosas e publicamente escandalosas, mas o governador da Índia mandou-o fechar: o bispo, desanimado, resignou, abandonando esta verdadeira Sodoma com o seu abominável lupanar."

"'Cem Portugueses tudo em um curral'. Que curral era este, onde se refastelavam os suínos, já nós sabemos.

Quanto aos cem portugueses, também é verdade. O bispo Pedrosa Guimarães, no seu relatório de 1775, dizia que 'os portugueses europeus' 'somavam só 108', vivendo todos numa cidade muralhada."

"'Seis fortes, cem soldados, um tambor'. Os fortes eram: a) São Paulo (construído de 1622 a 1626); b) Santiago (1622-1629); c) Nossa Senhora da Penha de França (antes de 1622); d) São Francisco (1622-1626); e) Nossa Senhora da Guia (antes de 1622, reconstituído e aumentado em Setembro de 1637 a Março de 1638); f) Nossa Senhora do Bomparto (antes de 1622).

Quanto aos 100 soldados e um tambor, no seu relatório de 1775, dizia o Bispo Pedrosa Guimarães que os militares eram '85, com mais três cabos de ronda, 10 sargentos 2 tambores', ou seja 99 ao todo."

"'Três freguesias, cujo ornato é pau'. 'Eram a Sé (...); São Lourenço; (...) e Santo António (...). As igrejas paroquiais eram pobres e sem valor artístico. (...)"

"'Um Vigário-Geral, sem Promotor. 'O Vigário-Geral, ou melhor, o governador do Bispado, não tinha promotor em 1789-1790."

"'Dois colégios e um deles muito mau'. Trata-se dos Colégios de São Paulo e de São José; ambos construídos pelos jesuítas. (...)

O Colégio muito mau era o de São Paulo, pois já em 1787 se achava em mau estado, pelo que foram mandadas demolir as oficinas e edifícios desabitados, que estivessem em ruínas.

Quanto a São José, foi confiado em 28 de Julho de 1784 aos lazaristas que o elevaram ao seu primitivo esplendor."

'Um Senado que a tudo é superior' Exacto: quem mandou sempre em Macau foi o Senado, pois o governador era apenas comandante militar, cujo poder era limitado aos seis fortes e aos '100 soldados e um tambor'".

E Monsenhor Manuel Teixeira conclui a cuidadosa análise, com este comentário:

"Por aqui se vê o fino espírito de observação de Bocage que, estando menos de um ano em Macau, viu mais do que muitos em toda a sua vida."

Da influência de Gregório de Matos sobre a inspiração bocagiana, citemos as afirmações de Óscar Lopes e António José Saraiva, na História da Literatura Portuguesa que ambos deram à estampa.

"A sátira em verso prenunciando já no século XVII a longa carreira que irá percorrer no Século das Luzes, ora alterna com o repto religioso, ora traduz um inconformismo mais terreno e material. O primeiro caso verifica-se sobretudo no poeta baiano Gregório de Matos (1633-1696), o Boca do Inferno que, pela vida libertina, pelo desbragamento de grande parte do seu estro, é um percursor de Bocage, mas ainda mais verrinoso e extravasante de ódio, e com alternativas de remorso e de religiosidade; até mesmo o tom declamatório, hiperbólico de improvisado das suas composição líricas lembra, embora com muito menos interesse, as do futuro Elmano Sadino".

De 1986 a 1988, vivi em Macau, exercendo funções docentes no seu Instituto Cultural.

Muitas vezes percorri a rua que tem o nome de Bocage; muitas vezes visitei a Sé e as igrejas de São José e de Santo António, as muralhas das fortalezas que ainda se erguem, soberbas, frente à remansada baía de nacar, ao "sonolento rio", com a feliz inutilidade das suas peças de artilharia nobilitadas com as armas reais portuguesas. E muitas vezes murmurei, para mim, aqueles versos em que o poeta sadino descreve gentes e coisas que, há mais de duzentos anos, eram a realidade portuguesa no Extremo Oriente.

E foi, então, que nasceu o poema com que termino a modéstia desta evocação de Bocage, foragido na China de Setecentos, indigente de tudo, menos do seu génio criador:

    Naquele ano fatal da Grande Perdição 
    Que deflagrou no mundo un nouvel âge, 
    Chegou aqui, surgido de Cantão, 
    Pra onde o arrebatara o furor de um tufão, 
    O poeta Bocage. 
    
    Achou a terra decadente e estranha
    E a gente ora mendiga ora devassa. 
    E, enquanto num soneto a satiriza, entoa
    Meigas estrofes à "magnânima Saldanha"
    (Marília, ao celebrar-lhe a formosura e a graça), 
    E um hino de lisonjas à "preclara Ulhoa".
    
    Quase um ano (quase uma vida inteira) 
    Por Macau bocejou e vagueou à toa, 
    Mas, por mercê de Lázaro Ferreira, 
    Um dia, enfim, pôde enrolar a esteira 
    E voltar a Lisboa. 
    
    A cidade, porém, não lhe esqueceu o vulto 
    (Esqueceu o soneto, que é justo sem ser mau): 
    Hoje, uma rua, rende-lhe culto: 
    — É quanto o poeta tem em Macau. 
    É quanto o poeta tem em Macau. 

* Poeta, ensaísta, encenador de teatro, historiador da literatura. Um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, com dezenas de títulos publicados.

desde a p. 125
até a p.