Imagem

OS BENS DOS ÚLTIMOS JESUÍTAS PORTUGUESES EM PEQUIM

António Graça de Abreu*

Entre os poucos estudiosos portugueses que, nestes últimos anos, se têm debruçado, ao de leve, sobre a presença de missionários jesuítas em Pequim, a partir da segunda metade do século XVIII, existe a ideia (imper)feita que desde então os nossos missionários se esfumaram no mundo chinês, desapareceram, quase sem deixar rasto. E não mais desempenharam qualquer papel religioso, cultural ou político junto das comunidades cristãs e da corte imperial.1 Nada mais falso.

A Igreja do Sul (Nantang) em Pequim. Aspecto da fachada original da Catedral, fundada por Mateus Ricci, a que estava anexo o cemitério de Chala.

Durante os sessenta anos de reinado do grande imperador Qianlong (1736-1796) viajaram para a China sessenta e sete jesuítas portugueses, trinta e quatro franceses, onze alemães, sete italianos, seis boémios, cinco austríacos e um polaco.2

Em 1773, pelo breve Dominus ac Redemptor o papa Clemente XIV extinguia a companhia de Jesus. Nesse ano viviam em Pequim seis jesuítas portugueses, João Seixas (1710-1785), Félix da Rocha (1713-1781), José de Espinha (1722-1788), Inácio Francisco (1725-1792), José Bernardo de Almeida (1728-1805) e André Rodrigues (1729-1796). Na província de Hunan encontrava-se o padre Manuel da Mota (1720-1782), na de Hubei, o padre Agostinho Avelar (1725-1788), e na de Jiangxi, José de Araújo (1721-1780?) e Inácio Pires (1724-1780?). Havia ainda meia dúzia de padres jesuítas chineses, alguns educados em França, que conseguiam com mais facilidade passar desapercebidos entre as comunidades chinesas e aí divulgar o Evangelho no meio do seu povo.

Porque tão mal conhecidos, vou deixar alguns dados biográficos sobre estes homens, habitando há tantos anos em terra estranha, tão distantes da Pátria e da família portuguesa, pregadores da Fé a ouvidos duros e desconfiados, mas herdeiros da tradição de bem servir a Deus, ao rei e ao imperador da China. Porque falamos de Portugal e dos portugueses vamos, por agora, esquecer os quinze ou vinte jesuítas de outras nacionalidades que em 1773 missionavam na China.

João de Seixas nasceu em Lisboa. Chegou a Macau em 1742. O padre Félix da Rocha, em carta de Pequim, a 23.3.1776, ao bispo de Macau D. Alexandre Pedrosa Guimarães diz que o padre Seixas "veio soldadinho para Macao e aí mesmo entrou na Companhia, duas vezes foi e voltou de Manila com o título de hir ali estudar, sempre ficou ignorante e simples, ajuntando a isso a prezunção de douto".3 Não seria assim tão ignorante pois entre outras, escreveu em chinês uma obra em quatro volumes intitulada 照永神鏡 /Zhao Yong Shen Jing, o que se pode traduzir por "Espelho Espiritual da Eternidade."

O padre João de Seixas chegou a Pequim na companhia do embaixador Francisco de Assis Pacheco de Sampaio, em 1752, e permaneceu na corte chinesa até ao fim da sua vida em 1785.

Félix da Rocha nasceu em Lisboa. Embarcou para a China em 1735 e, após a costumada estadia em Macau, chegou a Pequim em 1737, ainda não padre. Foi assessor no Tribunal das Matemáticas e Astronomia, intérprete quando da embaixada de Francisco de Sampaio e depois mandarim, sucessivamente de grau seis e grau três. Era cartógrafo e em 1756 partiu para a Ásia Central tendo desenhado os mapas do país dos Euletas (Dzungária), nas actuais regiões fronteiriças entre a China e a República do Casaquistão. Em 1774 e 1777 traçou os mapas da região de Kincuan, no extremo noroeste da província de Sichuan, nas faldas das primeiras montanhas do Tibete. Félix da Rocha, por quem o imperador Qianlong tinha grande admiração e simpatia, faleceu em Pequim em 1781.

O padre José de Espinha nasceu em Vilar de Torpim, Lamego, em 1722. Embarcou para Goa em 1749 e aí terá sido ordenado. Estava em Macau em 1751 e no mesmo ano seguiu para Pequim. Acompanhou Félix da Rocha nos trabalhos de cartografia em 1756. Foi vice-director do Tribunal das Matemáticas e director, a partir de 1781, como mandarim de grau quatro. O bispo de Macau, D. Alexandre Guimarães nomeou-o em 1775 vigário-geral da diocese de Pequim o que, por causa da administração dos bens da diocese vacante, veio a gerar mais conflitos entre os missionários de diferentes nações que viviam na capital chinesa. Faleceu em Pequim em 1788.

O padre Inácio Francisco nasceu em Conraria, Coimbra, em 1725. Entrou na China na comitiva do embaixador Francisco de Assis Pacheco de Sampaio, em 1752. Foi missionário em Dongzhou, província de Hebei e depois médico na corte. Faleceu em Pequim em 1792.

O padre José Bernardo de Almeida nasceu em Penela, Coimbra, em 1728. Chegou a Macau em 1755 e aí foi ordenado. Viveu em Pequim durante quarenta e seis anos, de 1759 até à sua morte em 1805. Era médico dentista e farmacêutico. Homem de impressionante trajectória pelos meandros da corte chinesa, José Bernardo de Almeida aprendeu rapidamente como fazer para estar nas boas graças dos poderosos do império. Foi, até 1799, o médico pessoal de He Shen, um dos quatro gelao, ou ministros de Estado. Entre os quatro, He Shen desempenhava funções correspondentes a primeiro-ministro. Reunia com o imperador Qianlong para tratar dos magnos assuntos do país. Encontrava-se em segredo com o velho imperador para fruírem ambos, no leito, íntimos prazeres. Qianlong descobriu em He Shen a reencarnação de Xiang Fei, uma concubina de seu pai e que fora a primeira mulher que, muito novo, se deitara a seu lado.

Quando a embaixada inglesa, encabeçada por Lord Macartney, chegou a Pequim, em 1793, He Shen, em nome do imperador, nomeou José Bernardo, de Almeida — que era também vice-director do Tribunal das Matemáticas -- chefe dos intérpretes da embaixada. Isto, deu-lhe a possibilidade de envenenar, o mais possível, as relações sino-britânicas nesse momento ímpar de desentendimento entre dois impérios, duas civilizações, duas mentalidades.4

O padre André Rodrigues nasceu em Mortágua, em 1729 e chegou a Pequim em 1759. Trabalhou como astrónomo no observatório da corte e foi um dos dois directores do Tribunal das Matemáticas e também intérprete da embaixada inglesa. Faleceu em Pequim em 1796.5

Menos conhecidos, porque espalhados por províncias do interior da China, os ex-jesuítas Manuel da Mota (1720-1782) José de Araújo (1721-1776?), Inácio Pires (1724-) e Agostinho Avelar (1725-1788) eram também aqueles homens que, como recordava o padre António Vieira, "tinham a terra portuguesa para nascer e toda a Terra para morrer".

A notícia da extinção da Companhia de Jesus chegou a Macau em 1774. A pedido do Marquês de Pombal, o bispo de Macau, franciscano, com nenhumas simpatias pela Companhia de Jesus, escreveu ao Senado da Câmara destacando "o grande desejo que deve ter todo o vassalo obediente e fiel, e me assiste, de fazer introduzir no Império da China, athé chegar às mãos do Imperador, o rezumo dos males que obraram os extintos jesuítas, em todas as Monarquias onde rezidiram."6

Estela tumular do jesuíta João de Seixas (o ilustre Lin - 1711-1785), no cemitério de Chala em Pequim.

O Senado de Macau, muito melhor conhecedor das coisas da China e do modo de lidar com os chineses, respondeu ao bispo D. Alexandre Pedrosa Guimarães:

"(...) Na tradução do Português na lingoa sinica (dos documentos com as acusações contra os jesuítas) não há nem houve duvidas, o que há somente consiste em ser o Imperio comprehensivelmente dilatado, em estar o Imperador cercado dos mesmos padres que foram da Companhia, os quaes lhe servem de mandarins e validos, e com amizade e respeito entre os maes mandarins da Nação Sinica, os quaes dominam por interesses de avultadas ofertas que lhes fazem, porque são os mandarins sínicos muito interesseiros."

Inteligentemente, o Senado concluiu, colocando a solução da questão nas mãos do próprio bispo:

"Quando V. Ex.å descobrir huma outra via, fica este Senado pronto para concorrer com a introdução dos papeis."7

A corte chinesa não ia, de modo algum, entender "os males que obraram os extintos jesuítas". Mais. Satisfeito com o labor de cientistas que desenvolviam ao seu serviço, o imperador Qianlong havia cumulado alguns deles de prendas e benesses. Quando em 1774, um incêndio destruiu a catedral, a igreja de Nantang ou da Imaculada Conceição, o próprio imperador deu ordens para que se emprestassem vinte mil taéis para a reconstrução do templo que ficou concluído em 1776.8

Em Pequim existiam (existem ainda hoje) quatro igrejas. Nos espaços anexos residiam os nossos missionários. A de Nantang, ou da Imaculada Conceição, e a de Dongtang ou de S. José eram as igrejas portuguesas. Os padres franceses tinham a seu cargo a igreja de Beitang ou do Salvador e os missionários italianos, a de Xitang ou das Dores.

Cada igreja superintendia várias capelas espalhadas pelos arredores da cidade e um cemitério já fora das muralhas de Pequim. Os padres jesuítas possuíam ainda uma quinta e residência de Verão em Haidian, no noroeste da capital, junto ao Palácio de Verão do Imperador.

Os missionários portugueses usufruiam de desafogo económico, cada igreja vivia dos rendimentos do aluguer de boticas e casas, de granjas e hortas nos arredores de Pequim. Esses bens de raiz haviam começado a ser adquiridos pelos primeiros jesuítas que se fixaram junto da corte chinesa, no início do século XVII. Alguns tinham sido oferta do próprio imperador que entendia a necessidade de subsistência dos europeus que para ele trabalhavam como astrónomos, matemáticos, pintores, arquitectos, relojoeiros, médicos, mecânicos, oculistas, etc..

A rainha D. Mariana de Áustria, esposa de D. João V, falecida em 1754, deixou como legado às missões da China 600$000 réis anuais que venciam um juro de trinta mil cruzados, a depositar na Casa da Moeda. Esse dinheiro nunca chegou ao seu destino, foi desviado para outros fins.9

Os jesuítas de Pequim tinham assim de contar apenas com os rendimentos dos bens que directamente administravam. Possuíam, também, casas alugadas em Goa e em Macau, mas nem sempre era fácil fazer chegar à capital da China o dinheiro que rendiam.

Quando da extinção da Companhia de Jesus, D. Alexandre da Silva Pedrosa Guimarães, o bispo de Macau havia pedido aos jesuítas de Pequim que lhe enviassem documentos sobre os bens de cada igreja portuguesa junto da corte chinesa.

Porque nunca publicadas e, creio, ainda praticamente desconhecidas, passo a transcrever as duas relações sobre os bens da igreja de Nantang, ou da Imaculada Conceição, e de Dongtang, ou de S. José, enviadas de Pequim em Outubro de 1775.10

Rol dos Bens e Rendimentos que tem o Collegio de Nossa Senhora da Conceição dos Padres Portugueses nesta Côrte de Pekim

1.° Tem botica ou casa de aluguel, dada dos Imperadores ou compradas cento e sessenta e quatro moradas que comumente rende cada huma 317.200 réis.

2.° Tem duas granjas dadas dos Imperadores, que dão mais ou menos, conforme, os annos, agora 250.000.

3.° Tem três hortas que dão cada anno 228.000.

Tem além destes, outros que os particulares se adquirirão, com licença dos Superiores para com elles satisfazerem as suas correspondencias de Regulos e maes Mandarins, sem agravarem as suas cazas, antes com tanto bem dellas que muita parte do que agora têm foi de particulares que, por sua morte, tudo ficava para o comum.

Sustenta actualmente esta caza o Collegio que foi da Companhia de Jesus, os padres, Jozé Espinha, ex-Provincial, Inacio Sichelbart11, alemão, pintor do Imperador, Felix da Rocha, Prezidente do Tribunal e Jozé Bernardo, ex-procurador. Item três padres chinas e dois ex-jesuitas seminaristas agora e que já tinham feito dois exames. Item tem nas Provincias que sustenta quatro padres portugueses e quatro padres chinas. Sustenta também dentro e fora oito catequistas. Tem, famulos, comummente quarenta e maes carruagens, bestas, etc..

Pekim, 2 de Outubro de 1775

Padre Jozé Espinha, ex-Provincial,

Padre Jozé Bernardo, ex-Procurador

Rol dos Bens e seus Rendimentos na Residência de S. Jozé dos Padres Portugueses, antes da Companhia de Jesus, nesta Corte de Pekim

Sustenta actualmente três missionários portugueses, a saber, os padres André Rodrigues, ex-Superior, Mandarim e 3.°. Presidente do Tribunal das Mathematicas, João de Seixas, prefeito da Cristandade que conta uns mil e seiscentos cristãos de confissão annual, Inacio Francisco, ex-procurador e interino economo, dois padres missionarios chinas que excorrem cada anno e cultivam na missão de Chin Tim Fu uns oito mil cristãos de confissão, na missão Wei Sien uns dois mil, na de Paoti Sien 2900 de confissão. Assim mesmo quatro seminaristas que estudam Lingua Latina e doutrina moral, dois catequistas pagos na Residência e cinco também pagos nas suas missões de fora, vinte famulos de salário. E sustenta outros gastos em carruagens, bestas, ofertas, reparaçoens de cazas fabricadas a maior parte de madeira e por isso expostas a frequentes incendios, sendo necessarios todos, atento o estado e decência com aqui costumam tratar-se os Europeos.

1 -- Em cazas de aluguel dadas dos Imperadores ou compradas absolutamente com expressa licença dos mesmos, que tem rol de todos os nossos bens, entre grandes e pequenas moradas sessenta e cinco. Costumam. render maes ou menos conforme a abundância ou penuria de quem nellas mora, ou contrata, annualmente rende cada huma cento e setenta e quatro mil e trezentos réis, 174.300.

2 -- Em terras compradas absolutamente mil geiras sinicas. Rendem num anno, quando não há alagaçoens ou demaziada secura cento e setenta mil réis, 170.000. Cada geira tem hum passo de largo e 240 de longo.

3 -- Em terras compradas com contrato redimivel — 1.300 geiras que rendem por anno, cento e oitenta e três mil e quinhentos réis, 183.000.

Estela tumular do "ilustre Dao", jesuíta José D'espinha (1722-1788), no cemitério de Chala em Pequim.

Além dos sobreditos bens communs há outros poucos particulares que os sujeitos particulares se adquirem com aprovação dos então Superiores para seus gastos particulares e principalmente correspondencias inevitaveis com Régulos e Mandarins que o commum não tem nem pode satisfazer com a decência que os particulares julgavam e julgam necessaria. Em Fé da Verdade nos subscrevemos.

Pekim, 22 de Outubro de 1775

André Rodrigues, que sou Superior,

Inácio Francisco, ex-Procurador

A longa transcrição destes dois documentos, pelo conteúdo, transmite-nos a imagem do desafogo económico com que viviam os ex-jesuítas portugueses em Pequim. E mostra também que o dinheiro nunca seria demasiado. Havia que satisfazer, com "correspondências inevitáveis", os apetites insaciáveis em presentes e prata, de muitos dos mandarins da corte que directamente controlavam ou lidavam com os nossos missionários.

A extinção da Companhia veio lançar a consternação e a suspeição entre os missionários europeus de Pequim. Outros missionários, sobretudo os italianos dependentes da Propaganda Fide, cobiçavam os bens dos jesuítas.

Numa carta de Pequim, a 6 de Maio de 1776, o padre José de Espinha dizia ao bispo de Macau, D. Alexandre Guimarães:

"(...) Como S. Magestade não tinha aqui outros missionários que não fossem Jesuítas, cuidavam os alunos da Propaganda que, proscritos nós e abolida a Companhia, todas estas Missões com seus bens e haveres, lhes vinham cair às mãos".12

Agudizava-se a luta pelos bens da Companhia de Jesus. Os ex-jesuítas procuravam segurar, a nível pessoal, os bens que pertenciam ao colectivo. Há conluios e divisões entre eles.

Zangado, o padre Espinha escreve ao bispo de Macau, em 18.10.1777:

"(...) Para não irritar pois estes cabroens (sic) e para evitar desordens, de commum acordo com os fiéis companheiros, me resolvo ainda a suspender a minha pena e esperar novas da monção da Europa."13

As novas da Europa eram a nomeação de um bispo português para a diocese de Pequim, sem prelado desde a morte do jesuíta D. Policarpo de Sousa, em 1756. O bispo, como superior de todos os missionários, tinha naturalmente o poder de chamar a si os bens da sua diocese e de ordenar quanto à sua administração.

Entretanto, Roma antecipou-se a Lisboa.

A 4 de Fevereiro de 1777, do Vaticano, o cardeal Castelli enviava uma carta ao agostinho italiano João Damasceno Sallusti, pintor na corte chinesa, informando-o de que o Papa o nomeava bispo de Pequim.14 O cardeal Castelli e o padre Sallusti dependiam ambos da Propaganda Fide.

Mas faltavam as bulas confirmativas da nomeação. Como estes documentos viajaram por Lisboa, Goa e Macau — a diocese de Pequim pertencia ao Padroado Português do Oriente --, demoraram ano e meio a chegar à capital da China. Ainda em 1779, Damasceno Sallusti decidiu avançar para a sagração, tendo sido sagrado em Pequim, sem as bulas papais, por D. Nathanael Bürger, franciscano alemão, vigário apostólico de Shanxi-Shaanxi.15

Em Março de 1779 viviam em Pequim vinte e oito missionários católicos. Dividiram-se em dois campos, pró e contra a sagração de D. Damasceno Sallusti. A favor estavam ele próprio, o carmelita italiano Frei José de Santa Teresa, os ex-jesuítas franceses Ventavon, Poirot e Grammont, o ex-jesuíta siciliano Luís Cippola, o português Félix da Rocha, D. Nathanaël Bürger, alemão, e quatro padres chineses, de nome Pie Liu, Francisco Lan, Paulo Liu e Tomás Liu, doze sacerdotes no total. Eram dezasseis os religiosos que se opunham ao bispo Sallusti: o franciscano italiano Eugénio de la Citadella, o frade italianȯ Panzi, ex-jesuíta, os portugueses José de Espinha, João de Seixas, Inácio Francisco, José Bernardo de Almeida e André Rodrigues, os ex-jesuítas franceses Bourgeois, Amiot, d'Ollières, Collas e Cibot, o ex-jesuíta alemão Inácio Sichelbarth e os padres e irmãos chineses Paulo Soeiro, Paulo Jacinto e Mateus Sequeira.

D. Damasceno Sallusti reclamava a administração de grande parte dos bens das igrejas de Pequim. Os padres que lhe eram opostos nem sequer o reconheciam como bispo, sagrado sem as bulas papais. Para tudo complicar, D. Alexandre Guimarães, o bispo de Macau, havia nomeado, já em 1775, o padre José de Espinha para vigário apostólico da diocese de Pequim.

Por causa dos bens das igrejas, da missão de Pequim, o cisma, a divisão entre os religiosos europeus era quase total.

Os padres Poirot, Ventavon e Grammont, apoiantes de D. Damasceno Sallusti resolveram recorrer aos tribunais da corte chinesa procurando apoio para a facção do bispo italiano. Mas as autoridades imperiais recusaram tomar partido numa questão entre estrangeiros que não lhes dizia respeito. O velho imperador Qianlong, então com 76 anos, terá afirmado aproximadamente o seguinte:

"Se vós, vindos para anunciar a palavra do vosso Deus, não sois capazes de estar de acordo uns com os outros, como podeis pretender que nós possamos estar de acordo convosco?"16

No ano de 1780 e nos primeiros meses de 1781 faleceram em Pequim os padres Eusébio de la Citadella, d'Ollières, Cibot e Collas, Inácio Sichelbarth, o nosso Félix da Rocha e ainda D. Nathanaël Bürger e D. João Damasceno Sallusti, bispo de Pequim.

As bulas, que o legitimavam como prelado chegavam três dias depois da sua morte.

A corte de Lisboa estava atenta ao que se passava em Pequim. Em Julho de 1782 nomeou o franciscano D. Frei Alexandre de Gouveia como bispo de Pequim.17

O jovem prelado, então com apenas 31 anos, só chegou à capital da China a 19 de Janeiro de 1785 mas, inteligente, prudente e sagaz, conseguiu serenar ânimos, aplacar divisões. E foi ele, gradualmente, conforme os ex-jesuítas das duas igrejas portuguesas de Pequim iam caminhando ao encontro de Deus, quem tomou posse dos avultados bens das missões na capital da China.

Estela tumular do franciscano Tang Shixuan - Alexandre de Gouveia - último Bispo de Pequim (1751-1808) e presidente do Tribunal das

Matemáticas. Cemitério de Chala em Pequim.

NOTAS

1 A — "A 'querela dos ritos' que se saldou pela proibição dos 'ritos chineses'pela Santa Sé (1742), levou à expulsão de quase todos os missionários da China", João Paulo Oliveira e Costa. Portugueses na China, em Dicionário Enciclopédico de História de Portugal, Lisboa, Pub. Alfa, 1990, vol. I, p. 124. B -- "A saída dos padres jesuítas de Pequim e da Corte Imperial (oficialmente em 1783) foi um rude golpe tanto para a diplomacia de Macau quanto para a Coroa Portuguesa." Jorge Manuel dos Santos Alves, Natureza do Primeiro Ciclo de Diplomacia Luso-Chinesa, em Estudos de História do Relacionamento Luso-Chinês, Macau, IPOR, 1996, pp. 196 e 197. C -- "O labor missionário encontrava-se totalmente moribundo em meados do século XVIII". Isabel Pina, Conjuntura Histórica e Missionação na China, em Catálogo da Exposição Reflexos, Símbolos e Imagens do Cristianismo na Porcelana Chinesa, CNCDP, 1996, p.138.

2 Dados coligidos a partir de Joseph Dehergne, Répertoire des Jesuites de Chine de 1552 à 1800. Roma, Institutum Historicum, 1973, p.401 e sgs.

3 Arquivo Histórico Ultramarino, Macau, caixa 10, doc. 4.

4 Sobre o papel de José Bernardo de Almeida no decorrer desta embaixada ver o meu trabalho, no prelo, D. Frei Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim e a Embaixada de Lord Macartney (1793) comunicação apresentada na 11.å Conferência da Associação Europeia de Estudos Chineses, Barcelona, Universidade Pompeo Fabra, 4-7 de Setembro de 1996.

5 Para biografias mais desenvolvidas e detalhadas de todos estes jesuítas, consultar as obras clássicas de Louis Pfister Notices Biographiques et Bibliographique sur les Jésuites de l'ancienne Mission de Chine, Changhai, Imprimerie de la Mission Catholique, 1932 e o Répertoire de Joseph Dehergne, citado na nota(2).

6 AHU; Macau, caixa 9, doc. 11. Também publicado nos Arquivos de Macau, Vol. XVI, n.° 3, Setembro de 1971, p.162.

7 AHU, Macau, caixa 9, doc. 12.

8 AHU, Macau, caixa 9, doc. 6.

9 João Paulino de Azevedo e Castro, Os Bens das Missões Portuguesas na China, Macau, Fundação Macau, 1995, p.13. Publicado pela primeira vez em 1915, este trabalho é ainda muito útil pelo conjunto de dados que fornece sobretudo sobre as missões na China no século XIX.

10 Encontram-se no AHU, Macau, caixa 10, doc. 19.

11 Inácio Sichelbarth nasceu em 1708, em Neudeck, na Boémia. Chegou à China em 1745. Na corte foi pintor e o imperador Qianlong fê-lo subir ao grau três de mandarim. Faleceu em Pequim em 1780.

12 AHU, Macau, caixa 10, doc. 27.

13 AHU, Macau, caixa 11, doc. 28.

14 Esta carta foi publicada pr A. Thomas na sua Histoire de la Mission de Pékin, Paris, Ed. Louis Michaud, 1923, p.443.

15 Sobre este complicado processo, ver Georges Mensaert, Les Franciscains au Service de la Propaganda dans la Province de Pékin, Florença, Ed. Quaracchi, 1958, pp. 280 a 285.

16 A. Thomas, ob. cit. p.449

17 D. Frei Alexandre de Gouveia nasceu em Évora em 1751. Estudou na Universidade de Coimbra e foi o primeiro doutor em Matemáticas após a reforma pombalina da Universidade. Exactamente porque matemático e astrónomo, foi nomeado bispo de Pequim. Na corte chinesa entrou não na qualidade de religioso mas de cientista, para trabalhar no Tribunal das Matemáticas e Astronomia. Depois de vinte e três anos de labor à frente da sua diocese pequinense, D. Frei Alexandre de Gouveia faleceu de apoplexia, em Julho de 1808. Para uma breve biografia do bispo ver o meu trabalho Alexandre de Gouveia, Bispo de Pequim, em História, Maio de 1992, n.° 152, pp. 26 a 35.

* Professor assistente na Universidade Nova de Lisboa, orientalista, com vários trabalhos publicados, e leitor de Português no Departamento de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim.

desde a p. 55
até a p.