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AS MISSÕES PORTUGUESAS NA CHINA, NO ESPÓLIO DE JOÃO FELICIANO MARQUES PEREIRA

Acácio Fernando de Sousa*

O PADROADO PORTUGUÊS DO ORIENTE NA CHINA

No final do século passado, já um patriota questionava, dolorosamente, o futuro das Missões Portuguesas no Oriente, com um conjunto de dúvidas que teriam resposta conclusiva, menos de cem anos depois e também amargamente, com o muito saber de António da Silva Rego1.

De facto, o Padroado Português do Oriente, fora criado no séc. XVI, por D. João III, para servir de braço religioso à política ultramarina e mais precisamente, na abertura de novas Missões no Extremo-Oriente, onde civilizações bem estruturadas dificultavam a penetração diplomática e comercial.

Fechado o Japão em 16412, e sendo fácil a implantação de clérigos na Índia onde Portugal ainda ostentava um visível poder militar, foi na China que a vertente política do Padroado mais se fez sentir. A partir do estacionamento de Macau, foram definidas quais as dioceses a criar no Império do Meio e delineadas as estratégias sobre os missionários a enviar.

Mesmo quando a xenofobia mais se fazia sentir na Corte Imperial, e sobretudo através dos missionários jesuítas, estes conseguiam ser recebidos e colocados, por vezes, em lugares relevantes da hierarquia chinesa3.

Para isso, a sua entrada era camuflada quanto à sua acção de doutrinadores, sendo realçados, em contrapartida, os seus conhecimentos como artífices relojoeiros, pintores, astrónomos ou cirurgiões, fazendo depois valer os seus méritos, o que lhes permitiu implantar quatro dioceses na China, construindo, mesmo em Pequim, quatro magníficos templos4.

De qualquer das formas, a estratégia jesuíta de adaptação a terreno tão estranho, começaria ainda com Mateus Ricci, em 1582, e seria partilhada pelos padres portugueses com a integração de elementos chineses na traça arquitectónica dos templos, na paramentária e, até, na própria liturgia, o que se viria a tornar no principal argumento desse grande conflito entre as diversas missões católicas na China que ficou conhecido pela "Questão dos Ritos Sínicos"5.

Tudo isto reflectia, para além dos piedosos objectivos pastorais, o interesse político na presença destas Missões na Corte chinesa, atendendo a que era a única forma de criar canais de influência na oligarquia dominante, ou mesmo junto do "Filho do Céu", apesar das frequentes purgas e perseguições a que estes padres estavam sujeitos.

Tanto assim era, que após as perturbações causadas com o fim da presença jesuíta sob a bandeira portuguesa, quando do ministério de Sebastião de José de Carvalho e Melo, o também poderoso ministro de D. Maria, agora ao tempo da "viradeira", Martinho de Melo e Castro, enviou para Pequim um novo bispo, o franciscano Alexandre Gouveia, cujas ordens reais o incumbiam, claramente, de atribuições de embaixador para defesa, na capital do Império Celestial, dos interesses que os portugueses detinham ali e em Macau que, mais que evangélicos, eram sobretudo comerciais6.

O que é certo, é que tendo o Padroado atingido o seu apogeu entre os finais do séc. XVI e meados do século seguinte, a querela dos Ritos Sínicos viria a enfraquecê-lo tremendamente, tanto pelo desgaste causado pelos conflitos retóricos entre as diversas Missões estrangeiras estacionadas em Pequim, como pela fragilização sofrida junto à Corte chinesa, com a rede de intrigas instalada, de tal forma que viria a chegar a Roma7. A juntar ao descrédito que os padres europeus, oriundos de outras potências comerciais, procuravam lançar sobre o Padroado, tínhamos ainda as intrigas palacianas contra a generalidade dos estrangeiros, sobretudo aqueles que pregavam uma doutrina diferente e cativadora da simpatia de muitos dos mais explorados pelo poder vigente.

Em finais do séc. XVIII, o Padroado evidenciava já um declínio que não foi possível contrariar, mas tão só atrasar, com a acção de Alexandre Gouveia. O sucessor deste, Joaquim de Sousa Saraiva, acabaria por se ver impedido de entrar na China e a diocese de Pequim, governada a partir de Macau, acumularia dificuldades que levariam à sua extinção em 1841, tal como às outras dioceses portuguesas na China, excepto a da Cidade do Santo Nome de Deus de Macau8.

Teimosamente, do ponto de vista formal e apesar da crise ser progressiva, o Padroado manteve-se, apenas, como argumento para Portugal se fazer ouvir junto ao Vaticano e às outras potências coloniais. Foi assim no período agonizante da Monarquia, como o foi por estratégia prudente, no meio da convulsão anti-clerical dos homens da 1. a República como ainda o foi numa renovada esperança eclesiástica com a chegada do Estado Novo. Contudo, nem o regime de Salazar, com o empenho do seu velho amigo cardeal Cerejeira, conseguiria reanimar a vetusta instituição já caída em estado letárgico. O séc. XX trouxera outros centros de poder mundiais, não ajustando o ditador, devidamente, a sua estratégia diplomática, fixando-se, assim, Portugal como país periférico e pouco audível internacionalmente, tornando premonitório o lancinante apelo do patriota citado.

Os movimentos independentistas das ex-colónias europeias, a laicização dos Estados e a cristalização das diplomacias política e eclesiástica portuguesas, levariam a que o Padroado Português do Oriente fosse extinto já na década de sessenta deste século XX.

JOAQUIM DE SOUSA SARAIVA

Todavia, a História daquela instituição político-religiosa, já feita por tantos, na esteira da obra paradigmática de António da Silva Rego, continua a ter dados por revelar e que poderão mostrar o que foram os seus momentos de glória, os heróis, os mártires e os bastidores das representações oficiais. É neste quadro que nos surge a figura de Joaquim de Sousa Saraiva, último bispo consagrado da diocese portuguesa de Pequim.

Com a saída dos Jesuítas do Império Português, nos finais do séc. XVIII, devido à expulsão pombalina, viria a ser a Congregação de S. Vicente de Paulo que viria a substituir a Companhia de Jesus9.

Na corte pequinense os padres eram aceites, quando o eram e como já dissemos, não pelas suas atribuições evangelizadoras mas, tão só, quando demonstravam conhecimentos de pintura, astronomia, cirurgia e relojoaria. Estas eram as razões para alguns ascenderem a altos cargos na hierarquia académica ou científica, em Pequim, ou serem mesmo agraciados com títulos de mandarinato e quando assim era tinham uma liberdade, sempre condicionada, de movimentos, mas que lhes permitia estender a sua acção missionária.

Os Lazaristas, ou padres da Congregação da Missão, isto é, de S. Vicente de Paulo estavam nesta linha, o que lhes conferia o perfil ideal para colmatarem a saída dos Jesuítas, tendo sido, efectivamente e a um momento, a grande esperança do Padroado para manter a sua influência em Pequim, na passagem do séc. XVIII para o séc. XIX.

Em 1785, já havia sido nomeado por Martinho de Melo e Castro, o franciscano Alexandre Gouveia para governar aquela imensa diocese e defender os interesses portugueses10. Perante a vastidão dos problemas, agravados com a abertura da Missão da Coreia, à entrada do novo século pedira um coadjutor, que não só o ajudasse, como lhe viesse a suceder, mandando-o buscar a Portugal, dentro dos Seminários da Missão, atendendo às provas já dadas por estes padres no Oriente.

João Feliciano Marques Pereira (1863-1909) Desenho a lápis sépia de Lei Chi Ngok, inspirado em retrato do século XIX

Foi assim que Joaquim de Sousa Saraiva, com 39 anos de idade, recebeu a titularidade honorífica de Tipassa e a coadjuvação de Pequim com a garantia de futura sucessão11, embarcando para Macau em 1804. No entanto, a expectativa inicial de uma curta permanência naquele Território, antes de seguir para Pequim, acabaria por se tomar numa espera definitiva.

Em 1801, agudizavam-se as tensões entres as várias Missões Católicas no Extremo-Oriente, havendo mesmo bispos nomeados por Roma, à revelia do Padroado Português, desacreditando-o cada vez mais12. Quatro anos mais tarde, na sequência destas querelas conjugadas com um período de intrigas palacianas, foi desencadeada mais uma terrível perseguição à Cristandade na China13.

Neste contexto, e culminando a série de dramas que habitualmente se seguiam, que passavam por torturas, mortes, abjurações e confiscação dos bens eclesiásticos, foram emitidos decretos que restringiam a acção dos padres católicos ao interior das suas igrejas, sem a participação de crentes chineses, proibindo qualquer forma de difusão doutrinária sob pena de drásticas sanções. Esta foi a primeira razão para D. Joaquim ficar em Macau a aguardar melhor oportunidade de entrada na China.

Aliás, o bispo titular, D. Alexandre, ele próprio acossado e obrigado a servir-se das excelentes relações pessoais que soubera manter com gente influente na Corte imperial, para conseguir sobreviver, bem consolava o seu coadjutor quando lhe escrevia em Novembro de 1805:... terá V. Ex.å sabido do estado da perseguição e os inconvenientes e as dificuldades da vinda de V. Ex.å para esta corte, o que não deve desanimar V. Ex.å... esperando que a tempestade de Pequim vá amainando14, insistindo paradoxalmente ele, que estava numa situação de extrema precaridade, com palavras de ânimo, em Agosto do ano seguinte, quando dizia... vá V. Ex.å tendo paciência até chegar o tempo que, julgo, não distará...15.

Contudo, esta situação arrastar-se-ia não só para além da morte de Alexandre Gouveia, em 1808, como até ao fim da vida de Joaquim de Sousa Saraiva, em 1818. Várias hipóteses podem ter concorrido para tal situação, como as dificuldades iniciais criadas pelas intrigas de corte, fomentadas pelas próprias Missões Católicas oriundas das várias potências europeias adversas ao Padroado Português, ou a perseguição realmente instalada e que findou por volta de 1806, ou ainda, as desconfianças que o próprio Alexandre Gouveia viria a ter do seu coadjutor, motivadas pelo legado jesuítico ter dois pretendentes à vasta herança de património imóvel em Macau e na China e que eram precisamente a Diocese pequinense e a Congregação da Missão à qual pertencia Saraiva, mas também o incómodo que a entrada deste na China, após a morte de Gouveia, viesse a provocar no influente padre Nunes Ribeiro, que circulava entre Pequim Nanquim e a Coreia e que não desdenhava ser tratado por bispo, e o triste facto de se ter deixado tornar num peão do jogo político entre as diferentes facções existentes em Macau e nos seus entendimentos de ocasião com os dignitários chineses vizinhos, na verdade, talvez por tudo isto, D. Joaquim nunca viria a passar as Portas do Cerco, limitando-se a governar a sua diocese à distância, afundando-se e afundando-a em dificuldades cada vez mais irresolúveis16.

De facto, após a morte de Alexandre Gouveia, em 1808 e com o aprisionamento em Macau do rebelde Kam-Pau-Sai e das negociações para a sua entrega ao governador do Guangdong, Joaquim de Sousa Saraiva alimentou sérias esperanças que isso levasse à contrapartida da sua entrada em Pequim. O próprio D. João, príncipe regente português, na altura retirado no Rio de Janeiro, convenceu-se, igualmente, que a retomada da cátedra pequinense estaria a ser tratada oficialmente com fortes possibilidades de concretização o que, afinal, não correspondia à verdade17.

A luta política e de interesses pessoais, entre o governador Lucas de Alvarenga e o Senado de Macau orquestrado pelo poderoso ouvidor Miguel de Arriaga, tomaram D. Joaquim num fictício trunfo a jogar, ora com o príncipe, ora com os mandarins vizinhos, sem nunca haver um empenhamento sério para a resolução do seu caso18.

António Feliciano Marques Pereira Desenho a lápis sépia de Lei Chi Ngok, inspirado numa fotogravura de P. Marinho, segundo fotografia de Henrique Goes (1874). In Ta-Si-Yang-Kuo, Arquivos e Anais do Extremo-Oriente Português, Série I-Vol. I-II.

Até 1810, D. Joaquim ainda viveu numa esperança cautelosa, sem querer melindrar os poderes, convencido de uma rápida e satisfatória solução. Nem mesmo a perdeu, quando recebeu mais um rude golpe, com uma carta de Nunes Ribeiro que lhe dizia que, mesmo passada a grande perseguição, a corte de Pequim não aceitava mais missionários19. Ou, quando lhe chegavam notícias sobre a contínua maledicência que os padres da Propaganda Fide usavam nessa corte imperial.

O bispo continuaria a governar a diocese à distância, através do procurador Nunes Ribeiro, apenas animado com as amiudadas cartas do príncipe regente que o questionava sobre o andamento deste complicado processo, por ele próprio pressentir que os relatórios oficiais lhe esconderiam os verdadeiros problemas, para a reposição da jurisdição episcopal em Pequim.

Só após claros desentendimentos com o seu procurador na China, a propósito das estratégias da missionação, D. Joaquim viria a desiludir-se, e a culpabilizar-se, pedindo a resignação por entender que outro poderia fazer o seu lugar com outra eficácia20.

Não sendo aceite a veemência destes pedidos, a mitra de Pequim assemelhava-se a um barco sem mestre, encontrando-se o prelado cada vez mais angustiado de forma que já nem chegou a conhecer as autorizações vindas de Pequim, pois em 18 de Fevereiro de 1818 às 4 e meia da manhã faleceu o Exm.° bispo de Pequim, só ungido por ter caído em apoplexia, com 52 anos de idade21.

Outros bispos foram nomeados, como Veríssimo Monteiro Serra, mas não chegaram a ver essas nomeações ratificadas. A mitra de Pequim caminhava para o ocaso, acompanhando o declínio do Padroado Português do Oriente, que não conseguia afirmar a sua primazia face às outras missões estrangeiras.

Finalmente, em 25 de Novembro de 1841, apresentou-se D. João da França de Castro Moura que acabaria, ele próprio, por recusar a permanência na China22. Tratara-se afinal, do último acto de Portugal naquele episcopado.

Contudo, a acção de D. Joaquim de Sousa Saraiva não se viria a perder nas gavetas da História, devido à conjuntura política nublosa que o rodeou. Como professor, ficou a sua memória ligada ao Seminário de S. José, em Macau, onde está sepultado. Como estudioso das coisas da História do Território, ficou o seu nome ligado à primeira História de Macau, publicada por Andrew Ljungstedt23, pelos velhos manuscritos em risco de perda iminente que se sabe que encontrou e transcreveu, apesar de até há pouco tempo não se saber do seu paradeiro24.

Tratados já estes documentos, a riqueza da sua informação seria novamente reafirmada com a identificação de um novo pequeno conjunto de inéditos que historiam as Missões Portuguesas na China, com dados pormenorizados, não só de quem sofreu muitos dos trágicos problemas que caracterizaram a evangelização naquele império, como de conselhos sobre a vivência quotidiana aos missionários que para ali se dirigiam.

D. Joaquim de Sousa Saraiva, discreto enquanto bispo, havia assim de deixar o seu nome indelevelmente ligado à História de Macau, apesar do percurso pouco claro dos seus "papéis".

É conhecida a primeira referência a estes documentos do último bispo de Pequim. Andrew Ljungstedt falou neles, mas a partir daí, pareciam desaparecidos25.

A partir do momento em que foram, recentemente, identificados em Lisboa, não foi difícil fazer a ligação a uma outra indicação dada por Mons. Manuel Teixeira acerca de uma provável remessa feita, em 1854, pelo bispo de Macau D. José Joaquim Pereira e Miranda, dos manuscritos de D. Joaquim de Sousa Saraiva pois este, ainda em vida, tê-los-ia doado ao Seminário de S. José e por ali se encontravam, até o bispo Miranda mandar tirar cópia deles, apesar de estarem meios carcomidos e abandonados, e ter gasto quase um ano para os ler26.

Terão sido estas cópias que, após muitas voltas, acabariam, muitos anos depois, por dar entrada na Biblioteca Nacional de Lisboa, enquanto os textos anteriores, transcritos pelo punho de D. Joaquim, entrariam no Arquivo Histórico Ultramarino. Nestas andanças, os Marques Pereira, o pai António e o filho João Feliciano, terão sido as figuras fundamentais para a sua preservação.

OS MARQUES PEREIRA

Na década de quarenta do século passado, o Secretário dos Negócios Sínicos, em Macau, era um emérito estudioso da História do Território e figura proeminente da terra. António Marques Pereira não teria, assim, grande dificuldade em ter acesso àqueles documentos se entendesse aproveitar essa oportunidade, o que com certeza não desperdiçaria. Das suas relações com o bispo D. José de Miranda nada consta que pudesse obstar a uma relação próxima.

Este Marques Pereira era um homem imbuído dos ideais que nortearam os governadores Ferreira do Amaral e Mesquita e viria a participar, como Secretário da Legação Portuguesa nos preliminares do tratado de 1862, onde o princípio da soberania portuguesa teria sido entendido pela primeira vez.

Enquanto Procurador dos Negócios Sínicos, durante os governos de Coelho do Amaral e de Ponte e Horta, assistira às resistências das autoridades imperiais para a ratificação daquele diploma e interviera nas diligências portuguesas para impedir a reabertura de alfândegas chinesas na periferia da cidade. Profundo conhecedor do meio, lutador pela emancipação do território face à China, hostil em relação aos mandarins vizinhos, criara profundos ódios naqueles a quem interessava uma política de conluio ou submissão com alguns corruptos dignitários do Império do Meio, para manterem negócios marginais tanto às directrizes da Coroa portuguesa, como às da corte do Filho do Céu27.

Com a saída de Ponte e Horta, em Agosto de 1868, e a viragem política do novo governador Sérgio de Souza, Marques Pereira, agora alvo de fortes vindictas, achou conveniente retirar-se para a nova colónia inglesa, Hong Kong, levando os seus dois filhos, que depois mandaria para serem educados em Lisboa, enquanto ele explicava as coisas nas suas Alfândegas chinesas de Macau, e se tornava cônsul no Sião, antes de transitar com as mesmas funções para Calcutá, onde viria a falecer.

Ao filho mais novo, João Feliciano Marques Pereira, tendo saído de Macau com seis anos de idade, ficaram-lhe as marcas das suas raízes, sendo evidente, ao longo de toda a sua vida, a grande admiração que sempre nutriu pelo pai e pela terra onde nascera.

Formado em Letras, ligou-se aos meios diplomáticos dos Ministérios dos Negócios Estrangeiros e, depois, do Ultramar onde fez carreira, tendo chegado a deputado por Macau e Timor.

Tal como o pai, também ele foi um estudioso profundo da sua terra natal, herdeiro que foi do muito saber do progenitor, como teve ocasião para o mostrar nas sucessivas colaborações em diversos jornais lisboetas, revelando peças importantíssimas nos quatro números do Ta-Ssi-Yang-Kuo que publicou entre 1899 e 1903.

Tendo falecido em 1908, sem herdeiros directos, o seu espólio documental viria a cair na Biblioteca Geral, de Lisboa, no Fundo Geral, com os números de 9444 a 944828. Sendo este espólio indubitavelmente seu, é aqui que se encontram as cópias dos manuscritos de Joaquim de Sousa Saraiva, que ele próprio já dissera conhecer, precisamente no primeiro número do Ta Ssi-Yang-Kuo29. Tudo parece levar a crer que estas cópias poderão ter sido confiadas pelo bispo Miranda a António Marques Pereira e deste deverão ter transitado para o filho.

OS DOCUMENTOS E AS MISSÕES DA CHINA

Sobre os textos componentes do espólio escrito de João Feliciano Marques Pereira, depositado na Biblioteca Nacional, tivemos já oportunidade de os identificar em trabalhos diversos e no que toca, em particular, aos manuscritos oriundos do bispo Joaquim de Sousa Saraiva analisamos, igualmente, quais seriam as cópias e os redigidos pelo seu punho30.

Contudo, é neste conjunto de cópias que integram a herança escrita de João F. M. Pereira que se destacam, agora, as Memórias pertencentes às Missões na China, em 28 fólios, os Compêndios a relatar as perseguições na China à religião cristã desde 1746, em 16 fólios, e ainda um Appendix, em 10 fólios31.

Numa primeira abordagem, foi-nos suscitada a curiosidade de saber qual o grau de ineditismo destes documentos que, sendo apócrifos, nos faziam questionar sobre o seu autor e a sua valia histórica.

De facto, e no que respeita às Memórias pertencentes às Missões na China, o autor segue a par e passo os autores clássicos sobre a cristianização do Extremo-Oriente, tendo como principal guia Manuel de Faria e Sousa, que refere abundantemente, e a sua obra Imperio de la China y cultura evangelica en el, dando sempre grande relevo à presença, no Oriente, da Sociedade de Jesus, como pilar incontornável de toda a estrutura do Padroado Português do Oriente, mesmo quando entra em congeminações fantasiosas sobre os primórdios da evangelização.

Não deixa, contudo, de ser interessante ter em conta que a primeira edição desta obra foi em 1731, o que é mais um dado cronológico para situarmos a elaboração destes documentos num período posterior a esta data, e numa altura em que se tornava premente redimir todo o historial jesuítico.

De qualquer das formas, nenhum dos autores, do séc. XVIII ao séc. XX, consultados por nós, refere os manuscritos que são objecto do nosso trabalho, o que lhes dá uma vantagem em termos de ineditismo, ganhando um outro valor histórico, quando se afastam das tradicionais pretensões cronistas e passam a relatar factos objectivos, pese embora o enquadramento piedoso, permanente na interpretação desses factos32, como vem a acontecer nos Compêndios a relatar as perseguições na China à religião cristã desde 1746.

Aqui, encontramos dois textos diferenciados, relatando o primeiro, as perseguições ocorridas na China, na segunda metade do séc. XVIII, identificando os missionários presos e torturados, chegando mesmo a biografá-los sucintamente. No segundo, ganha relevo a questão dos Ritos Sínicos, com as querelas entre as diversas Missões estrangeiras estacionadas no Império do Meio, cujo argumento oficial eram as preocupações de uniformização litúrgica.

Apesar das dificuldades em perspectivar as verdadeiras causas das perseguições aos missionários, muitas delas nascidas nas ocorrências da política interna da corte imperial e nas suas estratégias de relações com as potências estrangeiras, é indubitável o interesse histórico da informação contida nestes Compêndios...

Por fim, no Appendix, e a propósito de uma Advertência dada ao Padre Monteiro S. J, o interesse reside nos conselhos e sugestões acerca do protocolo, das rotinas do quotidiano, do traje, etc., dadas aos novos missionários para melhor se integrarem na sociedade chinesa, o que permite, de forma notável, uma percepção social e político-pastoral, na relação da Igreja Católica portuguesa com as comunidades onde se queria implantar. É, na verdade, um retrato exaustivo e paradigmático, de um confronto de mentalidades no que toca à convivência de culturas, aparentemente tão diferentes, mesmo quando se queriam encontrar pontos de confluência, ou ultrapassar a impreparação de alguns, para estabelecer laços de cooperação e entendimento.

Fica claro, não só após a leitura dos principais autores que se debruçaram sobre a problemática do Padroado Português no Extremo-Oriente, como após a análise da documentação existente nos Arquivos Distrital de Évora e da Torre do Tombo, respeitante às Congregações na Ásia e que nos dá, seguramente, um entendimento complementar das conjunturas política e religiosa na China, no séc. XVIII, que estes manuscritos existentes no espólio de João Feliciano Marques Pereira são, de facto, inéditos e detentores de um muito razoável valor histórico.

Merecendo ser conhecidos, resta-nos pensar na sua autoria.

Atendendo à análise caligráfica, não se nos oferecem dúvidas de que quem redigiu estes documentos, foi o mesmo copista dos Apontamentos e notícias do estabelecimento dos Portugueses na China..., de Joaquim de Sousa Saraiva, cujo trabalho de cópia foi mandado fazer pelo bispo de Macau, D. José de Miranda. Apesar, dos originais de Saraiva, depositados no Arquivo Histórico Ultramarino, não conterem estas Memórias das Missões..., tal como não contêm outra informação que originalmente integraria, não nos custa a crer que o copista transcrevesse estas Memórias... em continuidade de algo que já estava a fazer, sem ter necessidade de as procurar em outro local.

Ao tempo de D. José de Miranda, na década de quarenta do séc. XIX, estávamos em plena época liberal, tendo a Igreja sofrido há muito pouco tempo, com o governo do célebre Mata-frades, novas e drásticas limitações de actuação. Não era, portanto, a altura propícia para elegias à Sociedade de Jesus.

Por outro lado, no início desse mesmo século, ainda o Padroado estava fortemente combalido com a expulsão dos jesuítas ao tempo do Marquês de Pombal. Os Lazaristas vinham-nos a substituir, dentro das afinidades doutrinárias que também defendiam, sabendo, humanamente, que já não eram um corpo de missionários que pudesse com eles rivalizar. Aliás, eram os Lazaristas da China e de Macau que se assumiam como herdeiros, até do seu património33.

Quando, em 1804, D. Joaquim de Sousa Saraiva embarcou para Macau, estávamos em plena viradeira, com a política de D. Maria e de Martinho de Melo e Castro a surgir como opositora, em diversos campos, ao ministério pombalino. Não só a Igreja recebeu um novo alento, como na política para o sudeste asiático se incentivava o empolamento das razões que justificassem a nossa permanência ali, sendo o Padroado, neste contexto, uma peça fundamental.

Parece-nos, pois, termos motivos suficientes para crer que D. Joaquim de Sousa Saraiva estaria na posição certa para historiar as Missões na China, dando o protagonismo aos seus antecessores, os Jesuítas. Seriam dele, então, os textos originais que, esses sim, terão desaparecido.

Aos manuscritos sobre as Missões Portuguesas na China, que integram o espólio de João Feliciano Marques Pereira, na Biblioteca Nacional, apenas lhe faltarão um enquadramento histórico que permita analisá-los com um entendimento global, nas várias vicissitudes políticas e sociais que envolviam a evangelização naquele império, e não numa percepção linear, entre um simples confronto entre cristãos e não cristãos.

Mas, esse enquadramento é, claramente possível, com o recurso à documentação já referida e assim, estes manuscritos, quando forem transcritos no que têm de essencial, ganharão uma justa evidência pelo manancial de informação que contêm.

É para isso que, sobre eles, continuamos a trabalhar.

NOTAS

1 Refiro-me a O Real Padroado Português--ORIENTE--A Propaganda Fide, por um patriota, Lisboa, Minerva, 1885 e a António da Silva Rego, O Padroado Português do Oriente e a sua historiografia (1838-1950), Lisboa, Ac. Port. Hist. 1978, pp. 40-43.

2 Os contactos oficiais entre Portugal e o Japão terminaram com o fecho de Deshima, junto a Nagasaqui. São conhecidas as frustres e dramáticas tentativas dos portugueses de Macau em reactivar esse comércio, mas apenas se conhece um ou outro caso de trocas comerciais através de intermediários. V. nosso artigo Macau e o Japão: o comércio em tempo de proibições, in "Revista de Cultura", n.° 17 (II S.), Macau, ICM, Out-Dez. 1993.

3 Vários padres, devido ao seu empenho, foram aceites na hierarquia pequinense, sendo mesmo atribuído a alguns, a titularidade de mandarinatos e altos cargos no Tribunal das Matemáticas. Como exemplo, Alexandre Gouveia chegou a vice-presidente desse Tribunal, tendo o último jesuíta José Bernardo, sido presidente. V. AN TT. Chapas Sínicas, n.° 372.

4 A primeira diocese na China foi a de Macau, em 1575. Em 1690, foram criadas as de Tonquim, Nanquim e Pequim.

5 Apenas não afirmamos que esta foi a principal razão porque, de facto, a questão política esteve sempre presente. Dos pioneiros da missionação jesuítica na China, podemos dizer que foi com Miguel Ruggieri e Matteo Ricci, a partir de 1582, que se iniciou uma prática de interpenetração cultural, com grande evidência no ritual litúrgico. V. inter alia, Benjamim Videira Pires, Matteo Ricci e João Rodrigues, in "Revista de Cultura, n.° 18 (II S.), Macau, ICM, Jan. Mar., 1994.

6 Manuel Múrias, Instrução para o bispo de Pequim, Lx. Ag. Gr. Col., 1943.

7 O período de ouro do Padroado não se estendeu muito para além do séc. XVII. As intrigas entre as várias Missões estacionadas no Oriente, viriam a miná-lo de tal modo que, no início do séc. XVII o Papa enviou um legado seu, o cardeal de Antioquia, Maillard de Toumon, que após descer de Pequim para Macau, acabaria por falecer aqui em circunstâncias dramáticas.

8 Em 1841, D. João da França de Castro Moura recusou o vicariato apostólico que Roma lhe queria atribuir, sem o confirmar como bispo, o que permitiu a extinção da diocese de Pequim.

9 Estes padres são, também, conhecidos pelos padres da Congregação da Missão (C. M.), ou Lazaristas. Começaram a substituir os Jesuítas, no Oriente, nos finais do séc. XVIII, devido ao seu perfil de missionação e de interesse científico semelhantes. O Pe. Correia Valente foi um dos pioneiros da Congregação da Missão e foi ele mesmo que foi buscar a Évora, Joaquim de Sousa Saraiva, V. nossa tese de Mestrado, D. Joaquim de Sousa Saraiva: a contribuição para a História Universidade de Macau, 1993.

10 Tal como já foi dito, as instruções deste bispo eram, claramente, as de um embaixador político.

11 Arquivo Secreto de Vaticano, Processus Consistoriale n.° 207, f1. 573-582 v.

12 AN/TT. Arquivo das Congregações n.° 1138. Em 1801, padres portugueses de Tonquim queixavam-se ao Núncio da nomeação de bispos que não eram portugueses.

13 Em 1804, estalou uma nova perseguição, em Pequim aos padres católicos, motivada exactamente pelas intrigas entre as várias Missões. A este propósito, V. João Pinto Gomes, Breve relação de huma terrível perseguição contra a Santa Religião Cathólica... Porto, 1839. pp.9-10.

14 Carta de D. Alexandre Gouveia ao seu coadjutor in Pe. Manuel Teixeira, Arquivos os da Diocese de Macau Vol. III, Macau. 1956-61. pp. 71-72.

15 Idem. Ibidem.

16 Profundamente desalentado, após ter perdido todas as esperanças de entrar na sua diocese, D. Joaquim vai mostrando de diversas formas a inoperância da sua continuidade em Macau. V. carta do bispo de Pequim ao príncipe regente, de Dez. 1812 in Manuel Teixeira, Macau e a sua diocese: a missão da Coreia, Macau. 1979, pp. 150-153.

17 Idem. Arquivos da diocese de Macau cit., pp. 98-99.

18 Arquivo Histórico Utramarino, Macau, cx. 28. doc. n.° 48, carta de D. Joaquim ao príncipe regente, c. 1811, referida na nossa tese cit., I.

19 Pe. Manuel Teixeira, Arquivos da Diocese de Macau cit., p.121.

20 Idem, ibidem, pp. 98-99.

21 Id., ib., pp. 140-14 1. Nota do Diário Noticioso do Pe. Leite, publicado por Manuel Teixeira.

22 João Feliciano Marques Pereira, Ta-Ssi-Yang-Kuo. vols. I e II, Lx., 1899-1900, p.8.

23 Andrew Ljungstedt. An historical sketch of the Portuguese settlement in China and of the Roman Catholic Church and missions in China. Boston, 1836, ante-rosto. É ali referido o ciclópico trabalho de Joaquim de Sousa Saraiva na recolha e transcrição de velhos documentos em iminente risco de perda absoluta.

24 V. nossa tese cit., cap. II. A nossa investigação de mestrado incidiu, precisamente, sobre a identificação dos manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa, do Fundo Geral, n.° 944 a 948, que, integram as cópias dos documentos transcritos por Joaquim Saraiva e dos que foram redigidas pelo punho deste e que se encontram depositados no Arquivo Histórico Ultramarino, Apontamentos e notícias sobre o estabelecimento Português na China. na altura (Jan. 1994), sem cota.

25 Idem, ibidem. Referimo-nos à confusão criada após a publicação, por Jack Maria Braga, da A voz do passado: Colecção dos vários factos... in "Boletim Eclesiástico de Macau", vol. LVIII, Jul-Ago., 1964, reed. fac-sim., mesmo título, Macau, ICM, 1987. O autor publicou documentos que tomou como os de Saraiva, o que não era correcto, pois tratavam-se de manuscritos do séc. XVIII. Esta confusão despistou, posteriormente, outros investigadores, enquanto muito antes os Marques Pereira que conheciam os verdadeiros, também não os haviam revelado.

26 Id., ib.

27 V. nosso artigo Um livro de apontamentos de Ponte e Horta, in Macau, n.° 12, II S., Abr. 1993.

28 Estes documentos são um conjunto de peças arquivísticas reunidas em dois códices factícios, de 305 e 256 fólios respectivamente, encontrando-se no primeiro, os textos que terão sido a base do trabalho de Ljungstedt e outros inéditos já por nós identificados na nossa tese, e no segundo, outros inéditos, entre os quais os textos que servem de base a este presente trabalho sobre as Missões Portuguesas na China.

29 V. nossa tese cit., cap. II.

30 Idem, ibidem.

31 Id., ib.. Estes documentos têm, só agora, uma primeira abordagem para estudo.

32 Id., ib.. Referimo-nos a notas manuscritas por Mons. Manuel Teixeira, sobre uma carta de D. José de Miranda para publicar in Macau no séc. XIX pelo ICM, e onde aquele bispo de Macau dava conta das obliterações premeditadas, de modo a salvaguardar a boa imagem dos padres jesuítas. Mons. Teixeira afirma desconhecer hoje o paradeiro dessa carta.

33 Id., ib.. cap. I. carta do bispo de Pequim, D. Alexandre Gouveia, ao seu coadjutor publico, por Manuel Teixeira, in Arquivos da Diocese de Macau cit., pp. 71-72, e onde aquele titular mostrava algum desagrado por D. Joaquim Saraiva, a propósito da recepção dos bens dos jesuítas, se mostrar mais preocupado com o património da sua Congregação do que com o da diocese de Pequim.

* Mestre em Estudos Luso-Asiáticos, variante de História, e director da Biblioteca Pública e Arquivo Distrital de Leiria.

desde a p. 45
até a p.