Linguística

DE DAYANHE A HUBANBEI: O PERCURSO DO PENSAMENTO DE AI QING

Yang Kuanghan*

Ás 4:15 da madrugada do dia 5 de Maio de 1996, Ai Qing deixou esta vida para outro mundo; chovia. Desapareceu assim uma grande estrela do firmamento de uma geração de poetas chineses, acontecimento que nos fez ficar mais consternados do que o perder os nossos parentes. Uma vida de 86 anos, embora seja apenas um abrir e fechar de olhos na História, fizeram com que Ai Qing, que durante toda a sua vida se valia da poesia para procurar a luz e saudar a Primavera, erguesse para nós um grandioso e eterno monumento. O seu contributo para a China e para a humanidade do século xx saldou-se nos seus vinte volumes de poemas pertencentes à nova escola, cerca de mil poemas-canções e mais de trinta obras de outras formas literárias. Granjeando, com a sua poesia, o amor vindo do fundo da alma de milhares e milhares de leitores, Ai Qing escreveu, com o seu sangue, lágrimas e sofrimentos, inúmeros e emocionantes poemas.

Ai Qing em visita à Universidade da Ásia Oriental, actual Universidade de Macau (1987).

DAYANHE: A RAIZ DE AI QING

Nos anos instáveis e cheios de vicissitudes deste século, Ai Qing soltou os seus brados após profunda reflexão:

"Por que os meus olhos estão amiúde banhados

[em lágrimas?

Porque amo esta terra infinitamente..."

Os poetas chineses contemporâneos têm sempre uma ligação natural com a sua terra natal. Ai Qing disse-me muitas vezes:"— Eu sou sempre o filho de Dayanhe." Disse ainda: "— Sou o filho do vasto campo." A terra-mãe é a raiz de Ai Qing. Mas esta raiz de Ai Qing é muito típica e original.

"Dayanhe" é um nome belo e envolto em mistério.

Há mais de meio século, a propósito de "Rio Dayen: Minha Ama de Leite", de Ai Qing, que o fez famoso e era conhecido em toda a China, um crítico de belas-artes disse metaforicamente: "Nos Estados Unidos há o Mississipi; na Alemanha há o Reno; na União Soviética há o Dom e na China há o Dayanhe... [rio Dayen]". Mas "Dayanhe" é o nome de uma simples e pobre mulher e este poema famoso de Ai Qing não é uma descrição de um rio, mas sim um hino sobre uma ama que representa todos os trabalhadores.

Ai Qing uma vez referiu-me especi-ficamente a criação deste poema e disse: "— 'Rio Dayen: Minha Ama de Leite' foi escrito movido por um sentimento de gratidão. A minha ama não era bonita e deu à luz muitos filhos. Eu fui já a quinta criança que ela amamentou; na altura não tinha muito leite e não podia nutrir-me bem e, porisso, faltava-me cálcio. Apesar disso, eu amei-a sempre do fundo da minha alma de criança. Até já sendo homem, continuava a amá-la profundamente."

Mesmo agora, ainda recordo claramente que, quando Ai Qing falava disso, levantava o rosto, com os olhos cheios, expressando um profundo sentimento de afeição. Senti que no seu coração se agitavam ondas de saudades da sua falecida ama, parecendo que aquele poema voltava a sair lentamente do fundo da sua alma:

"Oh, Dayanhe,

Eu sou teu filho

Que cresceu bebendo o teu leite,

Eu respeito-te

E eu amo-te!"

Na Primavera de 1980, quando Ai Qing tinha ouvido dizer que eu iria visitar a terra de "Dayanhe", disse-me, abanando a cabeça negativamente: "— Tu estás louco? A minha terra é montanhosa, remota e pobre; os caminhos são difíceis de percorrer. Além disso, se a maioria dos velhos já morreu, o que vais fazer?" Continuei a insistir: "— A data da minha partida já foi assente. Aliás, já há muito que Dayanhe não é tua propriedade exclusiva, mas sim o símbolo da fonte da poesia!"

Quando subi ao Pavilhão dos Oito Cânticos, famoso monumento histórico de Jinhua, na província de Zhejiang, vi os campos em seu redor e de longe as colinas ondeadas.

"O Pavilhão dos Oito Cânticos é imponente e

[admirável desde tempos remotos

Os rios e montanhas deixam tristezas à posteridade As águas correm três mil lis** para o país do Sul A cidade majestosa dos rios conta com catorze

[divisões administrativas."

Este poema, escrito há mais de oitocentos anos por Li Qingzhao, poetisa da dinastia Song do Sul, quando se encontrava no Pavilhão a contemplar a paisagem em seu redor, representa a primeira maravilha da região de Jinhua.

Tendo percorrido setenta lis para o nordeste, o nosso autocarro chegou à aldeia de Chuancun e, depois de mais três lis de caminhada a pé, cheguei à aldeia de Fantianjiang, lugar onde "Dayanhe" criou com o seu próprio leite um poeta talentoso da China. É uma pequenita aldeia, encostando-se à montanha Huanjian, encoberta por pinheiros, álamos e outras árvores, e abraçada por muitos reservatórios de água, grandes e pequenos. No sul da aldeia há um tanque, chamado Mitangbei, que é justamente o local aonde "Dayanhe" ia lavar os cestos, os vegetais e a forragem dos porcos.

Ai Qing nasceu em Março de 1910, de um parto difícil. Um adivinho disse que era uma "estrela nefasta", que "fará morrer os seus pais". Os pais de Ai Qing eram supersticiosos e decidiram de imediato oferecê-lo a uma mulher pobre chamada Dayehe para que o criasse. "Dayehe" era, originalmente, o nome de uma aldeia que ficava a cinco lis da aldeia Fantianjiang, e os locais deram então este nome à ama-de-leite de Ai Qing. A família de Dayehe não tinha nada, nem um ramo de figueira, e, quando era muito pequena, foi vendida como noiva menina à família de Jiang Zongpei. Dayehe era uma miserável, mas bondosa, simpática e muito trabalhadora. Levantava-se todos os dias antes do romper da alva e começava a cozinhar. À noite, sob a fraca luz de uma lâmpada de azeite, cosia e remendava sempre qualquer coisa para o marido e os filhos. Dayehe tinha pelo seu pequenito Ai Qing um amor especial, nunca se poupando a esforços para o criar com carinho. Quando Ai Qing chorava, depois de ter sido repreendido, ela também chorava às escondidas. De noite levava-o amiúde nos seus braços, acariciando-lhe a cabeça, enquanto de dia poupava ovos para lhos dar de comer, ensinando-o a fazer peças de artesanato, pelos quais a criança manifestava grande interesse. Graças ao ensino da sua ama-de-leite, Ai Qing podia modelar um bonito boi de argila vermelha, quando via um verdadeiro deitado no chão, ou um par delicado de sapatinhos de cera, de acordo com a sua memória e imaginação. Ainda podia fazer cestos de flores com tâmaras verdes e baldes pequenos de bambu. Ao ver tudo isso, Dayehe sentia-se muito feliz, começando finalmente a "sonhar em beber o vinho da felicidade aquando do casamento do seu filho-de-leite".

Mas Dayehe faleceu sem, infelizmente, ter realizado o seu sonho doirado. Ai Qing disse que a sua ama-de-leite ainda tinha pronunciado com dificuldade o seu nome, quando estava perto de morrer. A sua morte deveu-se completamente ao cansaço demasiado. Nenhum dos seus familiares sabia que doença tinha contraído. Foi enterrada num simples caixão de tábuas delgadas de madeira, que depois foi coberto por algumas palhas de arroz para o proteger de ventos e chuvas. O seu filho de sangue disse-me que durante o enterro ninguém tinha queimado incenso ou tocado tambores em memória da morta e que a sua família só tinha convidado os transportadores do caixão para tomarem uma refeição caseira. Foi assim que foi para o Céu uma mulher que tinha trabalhado arduamente durante toda a sua vida!

Ai Qing na sessão de lançamento da sua Antologia, em Macau.

Muitos anos depois de ter passado a vida deambulando de um lado para outro, Ai Qing regressou à terra natal, mas pouco tempo depois foi preso devido à participação em actividades culturais de escritores de esquerda. Na madrugada do dia 14 de Janeiro de 1933, quando viu pela janela da prisão n. ° 2 de Xangai flocos de neve caindo lá fora, recordou involuntariamente a sua ama-de-leite Dayehe e a sua tumba coberta da neve de Inverno. Então, escreveu de imediato um poema, cheio de sangue e lágrimas, intitulado "Rio Dayen: Minha Ama de Leite". Neste poema o autor usou pela primeira vez "Ai Qing" como seu nome literário. E, desde então, o nome "Dayanhe", homófono de Dayehe, começou a divulgar-se pouco a pouco.

Sempre que se referia a Dayanhe, Ai Qing manifestava profundos sentimentos de saudades. Dizia com frequência: "— Foi durante os cinco anos em que absorvi o leite de Dayanhe e que brinquei juntamente com os seus filhos de sangue, meus íntimos irmãos, que fiquei inseparavelmente ligado aos camponeses pobres da China."

"Dayanhe" era a raiz de Ai Qing, que se considerava filho verdadeiro de uma mulher pobre e trabalhadora e que nem sequer tinha nome próprio. Ele colocava-se deste modo numa situação semelhante à dos trabalhadores da sua terra natal. De facto, depois de ter abandonado a sua terra natal, Ai Qing mantinha sempre uma ligação com esta terra e com aqueles que viviam e trabalhavam nela. Isso aconteceu tanto na prisão como nos anos em que andou errante; e o mesmo se passou durante a guerra antijaponesa e posteriormente no seu desterro de vinte anos, conhecendo, consequentemente, muito bem as ricas experiências da vida daqueles que viviam e lutavam na camada inferior da sociedade. Com uma consciência elevada e possuído dos verdadeiros sentimentos dos chineses, Ai Qing gritou finalmente do fundo do seu coração:

"Nos anos em que não há liberdade, canto a

[liberdade

Como elemento de uma nação oprimida, canto

[a libertação

Neste mundo de aparente luxo Canto para as pessoas ultrajadas Canto para as pessoas exploradas Canto a resistência, canto a revolução Durante a noite escura, deposito a esperança

[na aurora

E na aclamação da vitória, canto o Sol."

Aqui, Ai Qing, poeta criado por "Dayanhe", canta a nossa terra querida e as vicissitudes verificadas nela, desejando que o mundo oiça no século xx o pulsar e os passos de uma grande e antiga nação.

O "BELO DO SOFRIMENTO" E O "BELO DA NOBREZA"

Pouco tempo antes de morrer, Ai Qing teve uma conversa curta comigo. Ao ver imagens de luta e de tiroteio no écran da televisão, soltou exclamações amargas: "— É assim que as pessoas combatem umas contra outras e, por isso mesmo, o mundo nunca vive em paz. A Humanidade não deve estar demasiado optimista, mas não deve, por outro lado, estar demasiado pessimista. A vida humana não é fácil, mas sim difícil e amarga! Apesar disso, a gente procura sempre as coisas que tragam progresso. E no que toca aos poetas, eles devem ser honestos e direitos, não desanimando em nenhum momento."

Nos anos trinta e quarenta, quando Ai Qing era muito famoso no mundo da poesia, por causa dos seus poemas "Primavera", "Terra Morta", "A Neve na Terra Chinesa", "Norte", "Rumo ao Sol", "Tocha", "O Campo de Imensidão", "O Tanque do Inverno", "A Poesia para os Meios Rurais" e outros, algumas pessoas diziam que Ai Qing era um poeta romântico, enquanto outras o consideravam um poeta melancólico. Mas o próprio Ai Qing dizia: "— Não sou nenhum desses tipos: nem completamente romântico, nem completamente melancólico." A sua poesia é, com efeito, não só a união do seu sofrimento individual com o da nação, como também a união das suas próprias aspirações com o espírito da época. É também o resultado da combinação do "belo do sofrimento" com o "belo da nobreza".

Enquanto estudioso da poesia de Ai Qing, li o manuscrito da sua famosa obra Teoria da Poesia. No 25. ° parágrafo do capítulo "Estética", descobri as seguintes correcções:

"O sofrimento é mais belo do que a felicidade. O belo do sofrimento vem do conceito de que, na sociedade de classes, quem é feliz é geralmente voraz; quem é infeliz, é geralmente bondoso."

(Antes da correcção);

"O sofrimento é mais belo de que a felicidade. O belo do sofrimento resulta da luta que a humanidade trava pela libertação do sofrimento."

(Texto corrigido).

Daqui se conclui que o texto original considera o sofrimento a partir do ponto de vista do bem e do mal, enquanto o texto corrigido liga o "belo do sofrimento" ao "belo da nobreza", partindo do ponto de vista da luta que nasce com o sofrimento, luta essa que tem a finalidade de excitar o ódio das pessoas contra o velho mundo e ao mesmo tempo aspirarem a um mundo novo. Podemos dizer que uma das linhas mestras que atravessam a poesia de Ai Qing é que na escuridão canta o que brilha, no sofrimento canta a luta e na opressão canta a resistência, como um clarim que toca sempre a fim de procurar o caminho da vida. Desde "Estou escrevendo as maldições sobre o mundo injusto" até "Mesmo que os tornozelos estejam a sangrar, não deixo de avançar" e desde "Prefiro morrer pela procura da glória" até "Estou pronto a sacrificar todas as minhas energias antes de dar o último suspiro"...: todos estes versos de Ai Qing, quer sobre o sofrimento, quer sobre o depositar na esperança, são as palavras sinceras que transmitem a verdade às pessoas que têm experiências árduas, com o fito de despertar nelas o entusiasmo e a vontade de combater. Pode dizer-se que para esta terra que "está cheia de sofrimentos e infelicidades" e onde, entretanto, "soam solavancos de rodas grandes nos caminhos ásperos", Ai Qing não só alimentava sentimentos de amor comum, como também se lançava apaixonadamente nos seus braços. Acreditava a fundo que "a Nação mais antiga e mais desgraçada no mundo", que amava infinitamente, "erguer-se-á firmemente nesta terra e não desaparecerá jamais".

Ai Qing numa visita à Universidade da Ásia Oriental (actual Universidade de Macau).

A união do "belo do sofrimento" com o "belo da nobreza" permite que a obra do "filho da terra", Ai Qing, tenha características tanto de "grande sofrimento" como de "grande sabedoria". É dizer que, por um lado, na obra de Ai Qing há reflexos dos gemidos de um campo imenso, onde as respirações da camada inferior da sociedade "choram o nosso século, com os seus olhos banhados de lágrimas cálidas", e os seus suspiros longos espelham o s sentimentos profundos das pessoas que experimentam grandes sofrimentos e vicissitudes; é também dizer, por outro lado, que Ai Qing se esforça por superar a tragédia da vida, com grande sabedoria, combinando o pensamento com a experiência e acreditando que a verdadeira poesia deve contar com o brilho do espírito humano. É por isso que, tal como Qu Yuan, que usava a essência verdadeira da vida de "Lisao", Li Bai, que usava o símbolo da "Lua", Dante Alighieri, que usava a visão do destino no "inferno/paraíso", Ai Tongte, que usava o sentimento imaginário e verdadeiro do "campo deserto", e Wen Yiduo, que usava a mudança da "água morta" e da "vela vermelha", Ai Qing gostava de usar amiúde o "Sol" (incluindo o fogo e a luz) como núcleo de imaginação. Através dele exprimia, com um sorriso, a esperança atormentadora e a sua ardente aspiração sempre acompanhada de grandes sofrimentos. Era frequente Ai Qing sorrir chorando. Este sorriso com lágrimas nos olhos é realmente uma forma de elegância literária, permitindo-nos ver nele um abismo de sofrimento e uma alma profunda, tanto banhada de sangue e lágrimas como concebendo o esplendor do futuro.

Partindo deste ângulo, é fácil compreen-dermos as ideias originais e os modos de expressão típicos das obras de Ai Qing. Vamos ver o "Sol", poema conhecido por muitas pessoas:

"Desde a sepultura dos tempos idos

Desde os anos de escuridão

Desde o infermo dos mortos humanos

Despertando de surpresa as montanhas

[adormecidas

Como uma roda de fogo voando sobre as dunas

O Sol rola para mim..."

Esta concepção artística sobre as lágrimas e a morte era considerada por Wen Yiduo também como melancólica, e, por isso, perguntava: "Por que não seríamos nós a rolar para o Sol?" Penso que esta opinião revela uma certa incompreensão relativamente à estética de Ai Qing. De facto, Ai Qing utiliza aqui uma concepção de pensamento estético fora do normal. Contrariando os conceitos antiquados, tal como "a luz vem do mundo brilhante" ou "a gente marcha rumo à luz", e seguindo a sua observação singular sobre a miséria e costumes simples e também partindo dos seus sentimentos muito peculiares de tristeza e indignação, o poeta recorre logicamente à concepção essencial do verso "O Sol rola para mim..." para revelar a situação sombria e efémera em que as pessoas se encontram e para exprimir a "confiança firme no renascimento da humanidade". Em comparação com palavras de elogio vazias e abstraías, esta concepção artística, criada através duma profunda reflexão, tem-nos desenhado sem a menor dúvida o quadro mais real de uma época, fazendo também com que o "Sol" real na poesia de Ai Qing crie uma sombra de luz que nunca poderá ser tragada pela escuridão. Este é justamente o brilho da poesia indomavelmente crescida na terra da China.

O coração não deve ser jamais enganado. A poesia é o descobrir e o escutar do coração pelo coração. Nos anos cheios de sofrimento e luta. Ai Qing foi sempre ardentemente dedicado à vida e à arte, o que me faz recordar uma entrevista entre Ai Qing e Fedelin, o famoso erudito e director do Instituto de Investigação Artística da Itália. Ai Qing disse ao seu amigo: "— A essência da humanidade continua como sempre. A vida está cheia de alegria e sol brilhante, mas para nós é sempre um teste, um desafio à dificuldade e uma luta. Ninguém quer despedir-se da vida. Todas as pessoas desejam viver mais anos no mundo e, na verdade, a terra é uma coisa que a gente sente pena de abandonar... No passado eu considerava que só durante a juventude poderia lutar pela vida, pois naquele período era forte e enérgico. Mas esta compreensão não esta certa, porque só foi nos anos posteriores, quando eu era adulto, que comecei a luta verdadeira pela vida. Nessa altura, para mim, era precioso cada dia, cada momento. Era uma luta cheia de sangue e lágrimas. Considero que os escritores e poetas não devem interromper o fluir do seu pensamento, nem devem deixar de fazer o trabalho que está intimamente ligado ao espírito elevado."

A fim de manter puro o "belo do sofrimento" e expressar plenamente o "belo da nobreza", Ai Qing opunha-se ao abuso de gritos frenéticos, slogans e palavras vazias, defendendo que a poesia devia ser poesia e que a arte precisa do espírito de combate. Ele insistia incansavelmente que a poesia devia contar com a sua força firme e influente e devia valer-se do seu modo de dominar o mundo, para que a vida artística se incorporasse nas chamas da vida combatente.

Ai Qing e o ex-Governador de Macau, Dr. Pinto Machado, no jantar oficial oferecido por este, aquando da visita de Ai Qing a Macau.

ELE VIVEU PELA SEGUNDA VEZ

Ai Qing escreveu um poema, intitulado "Ele Morre pela Segunda Vez". Mas foi justamente ele próprio que "viveu pela segunda vez", experimentando a grande tristeza e a grande alegria da vida e da arte.

Nos fins dos anos setenta e nos princípios de oitenta, Ai Qing deu à luz o poema "Hubanbei", onde diz:

"Ficando muitos anos no fundo do mar Rolando pelas ondas de dez mil hectares Vestindo em todo o corpo a armadura de jade Que protegia a minha vida perniciosa Se as ondas do mar não me tivessem lançado

[para a praia

Eu não poderia ver em absoluto o Sol tão bonito."

Ai Qing gostava muito deste poema, dizendo que era um retrato de si mesmo. A infelicidade que ocorreu na sua vida, e as forças, que de fora se construíram, obrigaram-no a interromper o trabalho da pena, estreitamente ligado aos espíritos elevados.

No ano de 1957, num movimento desenvolvido nos círculos ideológicos e culturais, Ai Qing foi erradamente classificado de elemento da direita. Começou desde então a "rolar nas ondas de dez mil hectares"; a justiça e a dignidade humana, porém, tal como a "armadura de jade", apoiaram e protegeram a sua vida indomável.

Primeiro foi exilado para o Deserto do Norte. No ano seguinte foi desterrado para a região do Xinjiang. Depois de permanecer algum tempo em Urumqi, deslocou-se para Shihezi. Naquele ano, todo o país sofria de fome, mas o Xinjiang era uma excepção, porque o exército de construção produtiva, onde Ai Qing vivia e trabalhava, não só podia auto-abastecer-se, como também tinha cereais excedentes. Ai Qing ia com frequência às herdades e subunidades, onde se encontrava com soldados arroteadores, ficando profundamente comovido pelos feitos dos heróis de arroteamento. Apesar de ser "direitista", pensava escrever uma história da herdade de Mosuowan. Mesmo assim sentia uma grande dor no seu coração, pois continuava sendo um "criminoso". Só podia encontrar alegria na vida que ele próprio fazia. Quando a Primavera chegava, saía para o campo para ver as flores selvagens: quando o rouxinol cantava, ficava entre as árvores a ouvir encantado. Uma vez ao encontrar-se com um garoto que regressava com um rouxinol morto com uma fisga, disse-lhe sorrindo:"— Sabes que este pássaro é o rouxinol? É um músico que canta muito bem. Não te esqueças de não o matar no futuro".

O deserto de Erbantonggute ia tomando-se mais uma terra natal para Ai Qing pois gostava de ver aí o nascer e o pôr-do-sol. Os habitantes locais diziam que Ai Qing era um "bom direitista". Mas, para sua infelicidade, uma tormenta mais violenta da luta de classes veio até à localidade e esse "grande direitista" e "tigre morto", Ai Qing, voltou a ser exilado para um lugar mais remoto, chamado "Pequena Sibéria". Primeiro foi obrigado a podar árvores e criar frangos e depois foi enviado para o "grupo de acumulação de adubos", para fazer a limpeza de mais de dez retretes. Aí trabalhou cerca de cinco anos. Naquele período Ai Qing era tão pobre que tinha que fumar cigarros de má qualidade. Chegava às vezes a juntar as pontas de cigarro para que pudessem ser consumidas. Para agravar a situação, Ai Qing era frequentemente forçado a levar na cabeça um chapéu alto de papel e a exibir-se perante o público frente a uma casa cinzenta de terra batida.

É um facto que, durante algum tempo, Ai Qing se encontrou desesperado e pensara suicidar-se, com um choque eléctrico ou enforcando-se. Mas, quando via a esposa jovem e o filho pequeno, sentia que não devia desistir das responsabilidades de marido e de pai. Nesse momento esperava ter alimento espiritual e felizmente que, para isso, tinha um dicionário francês. Ai Qing leu este dicionário tantas vezes que acabou por ficar quase todo roto. Valendo-se dele, redigiu uma História da Antiga Roma, incluindo a expedição de Aníbal e a alternativa dos regimes republicano e monárquico, a sua união e separação, a restauração de um deles e a luta contra a restauração... É assim que sinuosamente a História avança, facto que fez Ai Qing sentir uma consolação interior e um estímulo. Para ele os anos amargos e solitários eram demasiado longos, sendo cada um desses momentos uma recordação dolorosa. Ai Qing disse deles"que eram precisamente como atravessar um túnel comprido, escuro e húmido, onde eu próprio não sabia se poderia sair e sobreviver".

Finalmente, Ai Qing conseguiu "viver pela segunda vez". No dia 1 de Fevereiro de 1979 todos os "crimes" que lhe tinham sido imputados foram completamente anulados. Se pôde sobreviver dos sofrimentos de vinte e um anos, foi porque tinha uma consciência elevada, alimentando sempre um optimismo e uma firme confiança na vida. Ai Qing disse-me: "— Ao reabilitar-me eles disseram-me: 'Perseguimo-lo erradamente'. Ai! 'Perseguimo-lo erradamente'! Com que facilidade disseram isso! Só três palavras! Mas o seu peso é horrível, pois cada palavra significa que eu assumi um sofrimento de sete anos. Ao responder-lhes, eu também disse apenas três palavras: Tudo já passou! De facto, eu não fui, nem sou nem direitista nem esquerdista, não pertenço a nenhuma facção social. Ai Qing é Ai Qing!"

Ai Qing é Ai Qing! Regressou, finalmente, aquele Ai Qing que se manteve em silêncio durante vinte e um anos, razão porque deu à sua primeira nova antologia de poemas o nome de Canções do Regresso. O renascido Ai Qing obteve, então, muitos novos títulos. Uma vez, antes da partida para a Itália, disse à pessoa que lhe faria cartões-de-visita: "— Não é preciso escrever outras coisas nele, além de 'Ai Qing, poeta chinês'." É óbvio que para ele a poesia era a coisa mais preciosa e mais importante. O poeta defendia o tratamento da injustiça com a justiça: "No caminho da vida, a gente experimenta a tristeza e a alegria e, por isso, deve retribuir à vida a sinceridade." No mundo da poesia chinesa deste novo período, Ai Qing apelava: "Os poetas devem dizer a verdade." Depois do seu "regresso" ao mundo poético, escreveu com seu talento e esforço admiráveis novas páginas de poesia, publicando no total quase duzentos poemas. Este é o "segundo período do auge" da sua criação poética.

Ai Qing e o ex-Secretário-Adjunto para a Educação e Cultura, Dr. Mário Cordeiro, na recepção oferecida por este, aquando da visita de Ai Qing a Macau.

Actualmente os novos poemas de Ai Qing, tais como "O Hino da Luz", "Fósseis de Peixe", "A Miniatura", "Hubanbei", "O Cacto", "A Pérola e a Concha", "A Arena da Antiga Roma", correm nas bocas de muitos leitores. Parece que aqueles fósseis de peixe e aqueles Hubanbei já recomeçaram a arder, tendo tocado no fogo. Aqui o poeta não usa a "voz rouca" para gritar, mas o valor da libertação humana para cantar "o ardor da vida": "Mesmo que sejamos uma vela Devemos esgotar a nossa luz e reduzir-nos a cinzas Mesmo que sejamos um fósforo Devemos emitir raios luminosos no momento chave Mesmo que os nossos cadáveres fiquem

[putrefactos depois da morte

Devemos ser luzes fosforescentes para brilhar

[no campo deserto."

Vê-se que aqui é também aquele Ai Qing que, como sempre, levanta ao alto a tocha e marcha rumo ao Sol. Mas não é só isto, pois é ainda um Ai Qing que na sua poesia se abraça a si próprio e abraça o universo inteiro. A sua poesia reflecte a sua alma pura e meditativa. A sua exclamação da vida exprime a sua filosofia dialéctica.

A última vez que o visitei aconteceu pouco antes da sua morte e o objectivo da minha visita foi pedir-lhe uma caligrafia em nome da editora de uma revista para a juventude. Para que eu escolhesse, escreveu três folhas com o mesmo conteúdo que era:"A poesia é sempre um canto pastoral." Tomando a poesia como canção pastoral durante toda a sua vida, Ai Qing não tinha por finalidade ensinar a cantar os pastores vagarosos do campo, mas fazer com que as vozes do verdadeiro, do bom, do belo e da liberdade soassem sempre sobre o campo da vida, e transmitissem a sua linguagem artística, expressa depois de profunda reflexão, às almas de milhões e milhões de pessoas. A voz da poesia de Ai Qing, que é rica pois sai da sua crença na vida, não é o adeus que o cisne diz para sempre antes da sua morte, mas o canto da fénix ao renascer das cinzas. É talvez justamente por este motivo que Nie Luda considerava Ai Qing "a figura número um nos círculos de poesia chinesa" e que Mao Dun o considerava "um dos Qu Yuan da China contemporânea".

O CHÁ E O CAFÉ COEXISTEM

Recordo que num dia da Primavera de 1982, fui convidado a visitar Ai Qing. Ele estava muito bem disposto e a sua esposa serviu-me um copo de chá e, em seguida, um café. Nesse momento, Ai Qing disse improvisadamente: "— Um chinês e um ocidental são todos frescos e úteis para a saúde. Prova-os, que não são droga." Pareceu-me então que estas palavras tinham outros sentidos e pressenti que pronunciaria, muito em breve, algum discurso estremecedor.

Efectivamente, em Abril daquele ano, Ai Qing, quando assistia a um seminário de escritores asiáticos no Japão, fez uma comunicação importante, em que apresentou um princípio que ganhou, de imediato, calorosos aplausos de muitos participantes:

"Hoje em dia, quando a ciência e a tecnologia estão em vigoroso desenvolvimento, a influência mútua entre as culturas, que tem vindo a atingir um grau nunca visto na história humana, deve seguir o princípio de que a absorção deve ser feita de modo crítico e resistir à corrupção. É claro que o chá e o café podem co-existir, mas o ópio e a marijuana devem ser proibidos, e a ciência deve ser distinta da superstição. Se seguirem este princípio, as diversas nações tomarão certamente as culturas nacionais mais brilhantes."

Actualmente, entre o chá e o café, como dois tipos de bebida, já não existe aos olhos de muitos chineses a diferença de qual é melhor ou pior. Podem ser tomados segundo o gosto pessoal, pois ambos são úteis para a saúde. Mas entre o "chá" e o "café", como símbolos da arte, o primeiro é naturalmente considerado principal pelos poetas chineses. Eles julgam, no entanto, ser necessário absorver o sumo de qualidade do segundo para que se forme um tipo de arte aplaudido pelas grandes massas populares. O poeta tem a sua própria pátria, mas a poesia não tem fronteiras. Os grandes poetas nunca se fecham em si próprios numa caixa de ferro, preferindo viver sempre num amplo espaço voltado para o mundo exterior.

Se a poesia de Ai Qing é livre e magnânima, é porque ele aceitou a influência positiva de artes estrangeiras e absorveu a sua essência de modo crítico. Ai Qing amava ardentemente a pintura e foi admitido em 1928 no Instituto de Artes de Xihu (antecessor do actual Instituto de Belas-Artes de Zhejiang). Um semestre depois de iniciar o seu estudo, o director do Instituto, um famoso pintor, encorajou-o a ir estudar a França. Após mais de um mês de viagem de barco chegou a França. Ai Qing passou, deste modo, da velha China fechada para um grande mundo de artes. Nas preciosas obras de Eduardo Manet, Claude Monet, Paulo Cézanne, Edgar Degas, Auguste Renoir e Vincente van Gogh, viu a essência das artes. Admirou especialmente a individualidade e a técnica de expressão artística destes pintores. Nos três anos de vida em Paris, onde o poeta "era pobre no plano material e livre no espiritual", contactou ainda com trabalhos de muitos famosos escritores e poetas ocidentais, tais como Guilherme Apolinário, Lamper, Carlos Baudelaire, Sandebao, Alafei e Farhalun, sendo influenciado quer pela sua visão do mundo quer pelo seu modo de pensar. Manifestou-me repetidamente que gostava especialmente da famosa frase de Apolinário: "Naquele ano, se eu tivesse uma flauta de cana, não a substituiria pelo bastão de um marechal francês." A "flauta de cana" simboliza a paz, motivo por que Ai Qing sempre a tomava firmemente nas suas mãos, embora durante a sua vida uma e outra vezes fosse proibido usá-la. O poeta igualmente apreciava bastante a poesia de Farhalun, caracterizada pelo ritmo da cidade e por uma concepção lírica singular e uma estrutura muito imaginativa. Posteriormente, quando regressou à Pátria, traduziu na prisão a antologia dos poemas deste autor, Ao Campo e a Cidade. A propósito disto, o famoso poeta e teórico chinês He Qifang disse que Ai Qing era o tradutor mais adequado desta antologia.

Ai Qing num encontro de poetas e eruditos em Pequim, 1990.

Apesar de tudo isso, Ai Qing era no fim de contas o filho de "Dayanhe" e também um poeta próprio da China. Primeiramente recebeu a educação da cultura tradicional chinesa e depois contactou com a civilização ocidental. Embora usasse formas de verso livre, do novo tipo "estrangeiro", para escrever versos e mesmo tivesse escrito alguns poemas que ele próprio também considerava "europeizados", a sua forma de expressão artística já tem vindo a ser reconhecida como a nossa própria, pois o que fez o poeta não foi uma cópia mecânica, mas uma aplicação criativa. Ai Qing achava que "a nova poesia da China contemporânea, sob a influência de diversas correntes artísticas estrangeiras, já rompeu a fórmula da poesia clássica chinesa, deixando de usar a linguagem clássica subjacente e realçando a criação livre, o uso da linguagem oral e quotidiana e a diversidade de técnicas de expressão. Deste modo, a poesia chinesa de hoje pode espelhar mais amplamente a vida real e, por isso, é mais amada pelas massas populares." A sua prática prolongada demonstra este facto. Ao descrever quer as coisas e pessoas chinesas, quer as estrangeiras, a visão é sempre a da nação chinesa, escrevendo principalmente para o nosso povo; mesmo quando às vezes escrevia para os estrangeiros, também o fazia em nome da sua própria nação. Em 1979, Ai Qing esteve em Berlim ocidental. Quando visitava o então Muro de Berlim, permaneceu e reflectiu longo tempo, em silêncio, à frente desta "faca que cortou uma cidade inteira a meio". E de imediato escreveu no seu diário de viagem as seguintes palavras: "A altura de três metros tem alguma importância? A espessura de cinquenta centímetros tem alguma importância? O comprimento de quarenta e cinco quilómetros tem alguma importância? O muro, mesmo que seja mil vezes mais alto, mil vezes mais espesso e mil vezes mais comprido,

    'Como poderá impedir 
    As nuvens, o vento, a chuva e o sol no céu? 
    Como poderá impedir 
    O voar dos pássaros e o cantar dos rouxinóis? Como poderá impedir  
    O pensamento dos milhões de pessoas  
Que é mais livre do que o vento 
    A sua vontade mais firme do que a terra  
    A sua aspiração mais longa do que o tempo?'"

Este poema que faz votos para que um país realize a sua reunificação nacional, emocionou profundamente os alemães. Depois de Ai Qing o ter dito, uma mulher alemã disse com a voz a vibrar: "— As palavras ditas pelo poeta chinês comovem-me muito. Um estrangeiro, se não sentisse com sinceridade, como poderia compreender tão profundamente a depressão da nossa Nação?!" A poesia de Ai Qing é muito livre, com um ritmo interno tão sábio que é como as núvens voando e as águas correndo. Sendo resultado de combinação do "chinês" e do "ocidental", liga como um laço os corações das pessoas de ambos os hemisférios, que aspiram ardentemente um amanhã mais brilhante.

Ai Qing era simples e honesto. O seu carácter silencioso e introvertido e a sua tolerância e perseverança, semelhante a do camponês chinês, manifestam-se na sua obra. O seu pensamento voava num firmamento imenso, mas voltava sempre à nossa terra real. Nunca esquecerei uma noite de Verão do início dos anos oitenta, quando fui convidado para jantar em sua casa. Ao despedir-se de mim, acompanhou-me até à paragem de autocarro. A rua estava muito tranquila e só se ouvia o cantar de cigarras. Nós passeávamos e conversávamos. Ele disse-me pensativo: "— Na minha vida, percorri muitos caminhos ásperos. A vida social da China e a literatura chinesa têm-me influenciado tão profundamente que escrevo versos sempre para o povo chinês, embora tivesse estudado no estrangeiro... Um camponês comum que cultiva a terra cinquenta anos não alcança uma fama que corresponda aos seus talentos; a um operário comum que trabalha cinquenta anos também lhe acontece o mesmo; acaso uma pessoa que escreve poemas terá algo de especial que mereça elogios?! Sou uma pessoa muito comum. A China está a avançar e o povo está a avançar, tendo com certeza um futuro brilhante. Para mim, o título mais nobre é ser um filho do povo." Podemos ver com clareza a sua alma pura, a sua elevada consciência e a sua sinceridade.

Ai Qing já faleceu, o que é uma grande perda para nós. Mas as chamas reais que o poeta nos deixou, os lares espirituais, desde "Dayanhe" até a "Hubanbei", que o poeta construiu para nós, e tudo o que ele semeou e colheu são suficientes para nos estimular a marcharmos sempre para a frente!

Tradução do original chinês

por Huang Huixian; revisão de Raul Pissarra.

** N. T.: Unidade de comprimento chinesa; um li = 0,5 km.

* Investigador e professor catedrático no Instituto de Literatura da Academia de Ciências Sociais da China.

desde a p. 81
até a p.