Linguística

INTRODUÇÃO À MESA-REDONDA

Maria Trigoso*

Otermo "literatura" é bastante complexo. Ainda me lembro duma das definições, frequentemente repetida por um dos meus antigos professores, aquele que eu mais respeitava e admirava: literatura é isto e isso e mais "aquilo que ainda não é literatura". E o termo "macaense" é a palavra mais polémica do vocabulário fundamental de Macau. Assim, os dois juntos, podem tomar-se qualquer coisa muito quente. Como diriam os Portugueses, uma "batata quente", algo que, assim que se recebe, se tenta passar aos outros, o mais depressa possível, para evitar queimar os dedos.

Tendo hoje esta batata quente nas minhas mãos e, sendo suposto ter que a segurar durante um espaço de tempo razoável — por causa desta introdução —, sinto-me realmente confusa em relação a como começar. Como hei-de principiar? Especialmente porque apesar, ou por causa do meu papel de "moderadora", eu gostaria de inflamar, mais do que moderar, esta mesa-redonda.

No início dum curso de tradução, que leccionei nesta Universidade, os estudantes usavam sempre expressões como "literatura da China" ou "cultura de Portugal" para traduzir "literatura chinesa" ou "cultura portuguesa". Para os que têm como língua mãe o chinês, parece muito difícil perceber a nuança entre os dois tipos de expressões, sensível, contudo, tanto em inglês como em português.

Gostaria de realçar esta real diferença de significado, das duas expressões, para tentar ver como resultam no contexto da literatura macaense. Ou devo dizer literatura de Macau?

Parece-me que "literatura de Macau" não levanta problemas de maior, sendo uma espécie de batata fria e com pouco sabor: qualquer coisa escrita ou publicada neste local, usando uma das línguas presentes, ou seja, as línguas oficiais, chinês e português, terá imediatamente direito a pertencer-lhe. Posso imaginar que o Dr. Zheng Waiming não concordará comigo, já que, por um lado, parece ser muito mais liberal na questão das línguas. Por outro lado, um pouco mais restrito em termos de temas... Mas espero que mais tarde, durante o nosso debate, ele possa explicar melhor os seus próprios conceitos.

Literatura de Macau parece-me um rótulo confortável mas sem significado propriamente literário. Um chinês da própria China ou um expatriado, um huaqiao, bem como um chinês nascido no local, exactamente como um português nascido no local ou aí criado, ou um português expatriado, desde que aqui trabalhem, podem reivindicá-la. É o que está a acontecer no campo das artes plásticas, especialmente na pintura, onde os "pintores de Macau" incluem nativos de vários países e línguas, apenas unidos pelo facto de viverem na cidade ou nela passarem algum tempo. O que não significa que não contribuam para a história de hoje... E que sejam realmente importantes.

Enquanto que "literatura de Macau" deixa toda a gente indiferente/contente, "literatura macaense" desperta quase toda a gente. A literatura macaense refere-se, claramente, às obras escritas por autores macaenses. Mas o que é um "autor macaense"? A questão reside na palavra "macaense"? Até há pouco havia uma espécie de entendimento na comunidade local: o Macaense era um eurasiano, fruto de um casamento chinês-português e/ou ocidental. A literatura macaense teria implícito um critério genético, enquanto que a literatura de Macau tinha um critério geográfico. Embora não muito atraente, devido a uma espécie de preconceito racial, este argumento tem as suas próprias razões. Sabemos que a comunidade eurasiana de Macau está espalhada por quase todo o mundo. A ser assim, as suas obras, escritas em qualquer lugar e em qualquer língua, tornam-se, automaticamente, literatura macaense. E provavelmente muito bem. Há o caso de um livro de memórias recente, The Wind Amongst the Ruins, escrito em inglês por uma senhora macaense, Edith Martini, e publicado em Nova Iorque, que aceito com facilidade para ser incluído na literatura macaense.

Resumindo: enquanto a literatura de Macau é um grande saco territorial, onde todas as comunidades e línguas, e até diferentes sistemas literários podem coexistir, a literatura macaense é uma espécie de bolso pequenino dentro do grande saco, reservado às obras produzidas por uma das comunidades do Território, dentro ou fora de Macau, em português ou noutra língua.

Agora, se aceitarmos a tese do Dr. Zheng Waiming, e não vejo razão para não o fazermos, não só porque parece tão razoável, mas também porque ele a expõe de uma maneira tão delicada e elegante, que, "com a passagem do tempo, é apenas natural que a literatura chinesa, no seu sentido lato, inclua obras de Hong-Kong e Macau", teremos que admitir outro factor, a nacionalidade da administração de Macau, o que ainda complica mais a definição de literatura macaense. E no momento presente, este período em que o tempo, de algum modo, não passou ainda sobre Macau, como vamos diferenciar e classificar para podermos estudar?

Além disso, se concordo que, no futuro, a inclusão da literatura de Macau, nomeadamente a escrita em português, se terá de fazer na literatura chinesa, tenho, logicamente, que admitir que a literatura de Macau, passada e presente, nomeadamente a escrita em chinês, até 1999, possa ser também incluída na literatura portuguesa.

Porque não? Parece uma ideia tão fascinante. Existe, por exemplo, esta fantástica Aomen Jilue ou Monografia de Macau, obra que, não tenho dúvidas, foi adoptada pela comunidade portuguesa de Macau, na bela tradução do grande sinologista macaense Gonzaga Gomes, como uma das suas mais queridas obras de arte literária. Tão querida que até originou outra obra, realizada por um grupo de arquitectos portugueses sobre a cidade. Isto significa que o mais oficial dos livros chineses sobre Macau colonial pertence, ao mesmo tempo, às literaturas chinesa e portuguesa. Este é um símbolo do que eu consideraria ser o milagre cultural de Macau.

Ainda resta por definir, neste período pré-pós-colonialista, como a historiadora Zheng Miaobing, de Hong-Kong, tão bem chamou ao nosso tempo, o conjunto de obras que nós, que vivemos habitualmente em Macau, intuímos e chamamos a literatura macaense, escrita pelos eurasianos, em português (com a única excepção, que eu saiba, de Edith Martini). É caracterizada, geralmente, por uma praxe distinta dos seus autores que, falando igualmente português e chinês, se deslocam livremente de uma cultura para a outra. Uma situação pessoal que se reflecte, obviamente, no que escrevem. Mais do que como escrevem.

São geralmente textos acerca de Macau, e dos Macaenses. Acerca de si e da cidade por que se definem. Há também alguns só sobre Chineses, nomeadamente os contos de Deolinda da Conceição. Não existem muitos só acerca de Portugueses. Todos, quase, historiam Portugueses e Chineses, e Macaenses como a síntese.

Pertencem, naturalmente, à literatura portuguesa porque são escritos em português, por cidadãos portugueses, num território administrado por Portugal. Pertencem, formalmente, ao sistema literário ocidental. Mas, tendo nascido e crescido em terra chinesa, tendo-se desenvolvido com sangue chinês, os textos, como os seus autores, estão tão fertilizados pela seiva chinesa, que é de certa maneira difícil pôr de lado qualquer relação com a literatura chinesa. Mesmo antes de 1999.

Alguns eruditos chineses, como Wang Chun, por exemplo, detectaram-lhes algumas características formais que os aproximam do sistema literário chinês. Penso que isto é especialmente verdadeiro em termos da cultura que veiculam, mais do que nas suas estratégias literárias. Mas vamos ter em breve o prazer de ver esta questão explicada pela própria autora.

Há um poema de Leonel Alves, um poeta macaense, para o qual a minha amiga e colega me chamou a atenção e que acho particularmente interessante porque reflecte a maneira como um macaense se vê a si próprio: não apenas a mistura unívoca de duas partes, formando uma diferente, mas uma permanente tensão dinâmica entre dois mundos: "Escura é para sempre a cor do meu cabelo, imutáveis os meus olhos chineses, nariz ariano, espinha asiática, tórax português." E continua: "O meu coração chinês, a minha alma portuguesa."

Neste sentido, apenas os eurasianos podem ser considerados Macaenses, embora vários portugueses e muitos chineses tenham nascido também em Macau, aqui tendo vivido a experiência sócio-afectiva das duas culturas, sendo este o verdadeiro significado da palavra "macaense" em português. Porque apenas neles, tal como na própria cidade, nasceu este tipo de personalidade que assenta em ambas as culturas. Por outras palavras, "o ser-se macaense" é mais uma praxe do que um certificado de nascimento. Nenhum chinês, nascido no local, se consideraria a si próprio um tusheng, o equivalente em chinês para macaense. E os poucos portugueses que se descrevem como macaenses, provavelmente como "quase macaenses", sentir-se-iam obrigados a explicar o porquê: devido ao facto de terem vivido aqui toda a sua vida ou casado com um chinês ou um macaense, ou por falarem cantonense.

Enquanto os macaenses, vendo e escrevendo de dentro, têm tendência a usar a sua escrita como uma procura da alma macaense, o tema do "wo shi shei", os portugueses expatriados tendem, na sua escrita, a procurar o exótico no Macau chinês ou a chinesice dos Chineses. Quando escrevem acerca de si próprios, é normalmente o tema da nostalgia, o ponto de vista da pessoa no exílio. Mas não vou desenvolver, pois a Dr.a Margarida Duarte terá oportunidade de falar acerca deste outro conjunto de obras portuguesas da literatura de Macau. Quanto à literatura chinesa de Macau, de que outros colegas se ocuparão, ela raramente se ocupa de portugueses ou macaenses.

Um último ponto. Para a chamada literatura macaense, como já disse antes, preferia falar acerca dos contactos diários dos seus autores com a literatura e a cultura chinesas. Mais do que de influências literárias, que pressupõem um Outro bem separado de nós. Até que ponto é a literatura chinesa estranha para um macaense? Por favor não me respondam com o argumento de que os Macaenses, em regra, não sabem ler chinês. As Histórias (romances, poesia, teatro, ópera, a cultura literária), no sentido amplo, não circulam apenas em livros. Estão também no ar. Circulam oralmente. E a comunidade macaense respira cultura chinesa, em certos casos mais do que cultura portuguesa, pelo menos nos anos mais recentes. Para eles, embora tradicionalmente iletrados em chinês, a verdadeira partilha de códigos culturais é, muito provavelmente, um melhor instrumento para NÃO interpretar mal o texto cultural, do que uma grande eficiência a ler letras/caracteres, adquirida por um estrangeiro, com pouco ou nenhum suporte da vida real.

Resumindo: por um lado, a inclusão da literatura macaense nas literaturas nacionais, chinesa ou portuguesa, é, do ponto de vista literário, não só provisória como irrelevante — o que quer que a torna macaense depende do momento histórico e é independente da língua em que está escrita. Desde os poemas macaenses mais antigos, escritos em patuá, uma espécie de crioulo do português, passando pela nossa época, em que o português é dominante, com a única intrusão do inglês no caso de Edith Martini, posso muito bem prever, no futuro, a possibilidade da literatura macaense vir a ser, também, escrita em chinês.

A chamada localização administrativa tem sido, na minha opinião, uma coisa de valor para as novas gerações de macaenses, únicos portugueses que sabem agora falar e ler/ escrever chinês. Ninguém pode prever o que vão fazer com esta nova aptidão. Para além, claro, de se tornarem líderes locais, como o Governo espera. Tenho plena confiança que alguns deles não vão esgotar em matérias políticas e administrativas este imenso instrumento cultural que lhes é posto nas mãos.

A literatura macaense pode ser muito mais coisas do aquilo que ainda não é. É esta abertura, característica da comunidade e da cultura macaenses, que é o mais entusiástico desafio para todo o Território. Porque, vamos admiti-lo francamente, se não fossem os Macaenses, tanto na sua presença física como nas suas produções espirituais e culturais (entre as quais a cidade é uma das mais proeminentes), que outras misturas permanentes e de real significado cultural poderíamos encontrar, no passado e no presente, entre os donos-de-terra orientais e os "hóspedes" ocidentais que aqui foram ficando quase se esquecendo de voltar?

Comunicação apresentada no Encontro Internacional

"Diálogo Cultural e Dificuldades de Entendimento",

organizado pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP,

e realizado em Macau em Outubro de 1995.

Tradução da versão inglesa por Maria do Carmo Hatton;

revisão de Júlio Nogueira.

* Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas pela Universidade Clássica de Lisboa e pós-graduada em Língua Chinesa pela Universidade de Macau e por instituições de ensino superior da República Popular da China.

desde a p. 5
até a p.