Linguística

A INTERNACIONALIZAÇÃO DA LITERATURA COMPARADA NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

Gerald Gillespie*

Num outro ensaio1 falei sobre o leque de campos diversos que estão a ser desenvolvidos nos anos noventa, na América do Norte, sob o título de "Literatura Comparada" (este termo será daqui em diante referido segundo a abreviatura L. C.). O assunto aqui não recai sobre o conjunto de questões e preocupações particulares, referentes a debates actuais nos Estados Unidos, mas à rede global de práticas e conceitos, correntemente chamados de L. C., ou outros termos intimamente ligados. O Departamento de L. C. e Cultura, nome do grupo dirigente no Japão, do campus de Komaba em Tóquio, demonstra o crescente, natural e simultâneo desenvolvimento dos estudos de cultura comparada. Os termos-chave do título "Sociedade Francesa para a Literatura Geral e Comparada", combinação frequentemente encontrada em todo o mundo, mostram a associação natural entre os planos formal e teórico e as considerações interdisciplinares com o Comparativismo. A Universidade de Telavive tem um Departamento de Literatura Comparada e Poética, mas poética neste caso também significa teoria num sentido mais amplo. O Departamento de Ciência de Literatura Geral (Algemene Literatuurwetenschap) na Universidade de Utreque pode ser legitimamente traduzido para Departamento de L. C. e Teoria, com ênfase para este último. Frequentemente, um programa em L. C. será integrado no departamento responsável pelos estudos da principal tradição literária nativa — por exemplo, "Inglês e L. C." na Universidade de Colúmbia. O número de comparativistas sérios é enorme, dispersos em várias especializações académicas, nas instituições onde a L. C. não se encontra ainda formalmente organizada, mesmo como um campo de actividade filiada. Actualmente não há uma transparência fácil nos rótulos, apesar da proliferação dos programas baptizados, ou cadeiras de L. C. em muitos países, em parte devido às vagas iniciais de L. C. que geraram novas relações entre estas áreas.

A linhagem da L. C. é suficientemente ilustre para permitir apenas uma breve referência. A interpretação intercultural é tão antiga como o mundo. Antigamente, São Jerónimo implicitamente agiu, não só como um teólogo, mas também como comparativista, ao traduzir as Escrituras de hebraico, siríaco e grego, para latim, lidando com várias tradições literárias complexas e seus vocabulários. Na sua "Dedicatória Epistolar", os tradutores da Bíblia, na versão do Rei Jaime, são cuidadosos com o desafio inerente à "comparação dos trabalhos, na nossa própria língua e noutras línguas estrangeiras, de muitos homens respeitáveis que existiram antes de nós". Deste modo, não é de admirar que, mais recentemente, no The Literary Guide to Bible (1987), os comparativistas Robert Alter e Frank Kermode tenham propositadamente perscrutado gerações anteriores de leitores, leitores que o fizeram igualmente no contexto do seu tempo, à medida que pesquisavam nas e pelas várias línguas. Um rápido relance sobre qualquer outro grande tema comparado, quer "literário", quer "cultural", ou mesmo "teórico", revela provavelmente uma pré-história considerável. Ilustrativa é a situação de eruditos que presentemente, mais uma vez, seguiram as ideias com que James Joyce contribuiu para a identidade arquetípica de Hamlet da Modernidade, no capítulo da Biblioteca em Ulisses. A partir de 1922, Joyce convida os seus leitores e a nossa retrospecção a uma tendência de auto-estilização cultural face à imagem de Hamlet, então existente há já um século, desde a formulação de Goethe, passando pela óptica simbolista em França, e continuando até ao romance de raiz freudiana. Pode-se facilmente continuar a investigar este assunto nos seus vários elementos, por exemplo, retrospectivamente, através de tratados eruditos, tais como Über Sophokles' "König Ödipus" und Schillers "Braut von Messina" (1887) de W. Wittich, Versuch einer Parallele zwischen dem Sophokleischen Orestes und dem Shakespearischen Hamlet (1857) de A. Heintze, Comparaison entre la Phèdre de Racine et celle d'Euripide (1807) de A. W. Schlegel, e por diante. O que tão notavelmente emerge de tal exercício é uma procura natural de comparações literárias, feita pelos leitores que se consideram membros de uma comunidade em metamorfose, cujo espaço cultural é maior do que qualquer zona temporal limitada ou linguagem específica.

O Iluminismo manteve viva a ideia cosmopolita do Renascimento, assim como o Romantismo à sua maneira. O pensamento organicista do século xvIII veio de facto modificar a compreensão de porquê e como vários segmentos da família humana poderiam beneficiar, alargando o tipo e padrão de literaturas consideradas dignas de atenção. Esta combinação de ideias de que as várias regiões da Europa constituem uma civilização maior, e que os eruditos poderiam aplicar instrumentos filológicos na análise da vida cultural de povos mais remotos, automaticamente gozou de uma implantação paralela no Mundo Novo. Outras ciências "comparadas", tais como a anatomia, acabaram por influenciar de alguma maneira os hábitos metodológicos das análises literárias.2 A aceitação gradual destas atitudes europeias por parte de eruditos não-europeus ocorreu durante o período de colonização e comércio.

A teoria mais divulgada do crescimento da L. C., a partir das suas raízes europeias e norte-americanas no século XIX, dificilmente precisará de qualquer outro esclarecimento, não mais que a relevância do cunho de Goethe na "literatura mundial", para designar os processos pelos quais um mundo que nos tempos modernos sempre foi unido por laços cada vez mais fortes, viria naturalmente a partilhar tesouros literários das mais diversas origens.³ Em meados do século, do seu ponto de vista particular, Marx formulou uma versão ainda mais extremista sobre as dinâmicas da era moderna, onde "a história se transforma na história do Mundo (e) os indivíduos isolados (serão) libertados das suas várias diferenças nacionais e locais, conduzidos a uma ligação prática com a produção material e intelectual do mundo inteiro (...)" (The German Ideology, p. 55). O grau e ritmo da convergência cultural veio a ser diferente daquela que Marx previu e a partilha e transferência cultural — que analistas de sistemas universais contemporâneos designaram por "interferências" — foram notavelmente alteradas até ao presente. Apesar disso, as novas vagas de internacionalizações da L. C., desde a Segunda Guerra Mundial, foram uma resposta previsível às reais experiências acumuladas de interconexão global. O acto joyceano de ser "rare regardant" em Ulisses (p. 42), isto é, reconhecendo as nossas relações "verticais" com uma civilização maior, envolve também o conhecimento de relações "horizontais" de parentesco mais profundo, com outros ramos da família humana. O poeta Octávio Paz celebra em muitas das suas obras esta extensa ligação global de expressão literária.

Os ocasionais apelos para um estudo comparado de literatura e para a criação esporádica de cadeiras universitárias no século XIX prepararam a base, como é do conhecimento geral, para o seu aparecimento em ambos os lados do Atlântico no limiar da Modernidade, quando cadeiras recentemente criadas nesse campo foram oficializadas em Colúmbia e Harvard, nos Estados Unidos, e em Lião, Sorbona e Estrasburgo, em França, por volta de 1900. Uma característica de relevo na preparação gradual para um segundo início e para uma verdadeira explosão de actividades a seguir à Segunda Guerra Mundial foi que o prestígio da História, uma vez classificada como ciência, se deteve, desde o século XIX, muito para além do desafio crítico que muitos elementos do Modernismo representaram para a tradição ocidental do Racionalismo e para o conceito de história "científica", o modelo para tais termos como les sciences humaines e Literaturwissenschaft. Comparative Literature de H. M. Posnett, o primeiro manual sobre esta matéria, foi publicado como volume 55 nas "International Scientific Series", manual britânico, no mesmo ano (1886) que Nietzsche focava com algum orgulho, num "esforço de autocrítica", o facto do seu jovem The Birth of Tragedy ter levantado "o problema da própria ciência" — ou seja, ter questionado as bases da suposta história científica e das ciências humanas "no contexto da arte — porque o problema da ciência não pode ser reconhecido no contexto da própria ciência" (p. 18). A questão, se os estudos comparados poderiam, ou deveriam ser "científicos", tem surgido regularmente, desde que as primeiras publicações periódicas mais importantes incluíam nos seus nomes o termo-chave "história", levando assim esta terminologia até ao século xx. Um exemplo notável é a publicação periódica erudita "Studien zur Vergleichenden Literaturgeschichte", na primeira década. De facto, estudos comparados em assuntos de género, estilo, temas e afinidades em pensamentos ou artes da época são tão frequentes em 1900 nestas edições, como o são aqueles artigos com tendências decididamente mais "históricas" (por exemplo: aqueles que tratam com padrões genéticos, filiações, influências, etc.). Apesar disso, o hábito de empregar tais nomes continua visível na série intitulada "Forschungsprobleme der Vergleichenden Literaturgeschichte", na qual apareceu a compilação de actas Beiträge zur Tübinger Historiker-Tagung September 1950. Desta convenção surgiram, assim, importantes impulsos para a criação de uma organização mundial para estudos comparados. Apesar dos "historiadores literários" de vários países no pós-guerra, reunidos em Tubinga, terem como assunto principal as literaturas da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, havia já na sua mente horizontes mais amplos.

Uma importante referência da abordagem “histórica" (e que continua a ser principalmente eurocêntrica) no princípio do século xx foi a opinião de Paul Van Tieghem, apresentada no seu livro La Littérature Comparée (1931). As sessões do VI Congresso da Federação Internacional para Literaturas e Línguas Modernas, ocorrido em 1954, em Oxford, e dedicado ao tema principal "Ciências e Literatura", mostraram, no entanto, que a tendência do século XIX para conferir o rótulo de "científico" às teorias e conhecimentos literários enfraqueceu acentuadamente no fim da Segunda Guerra. Desta reunião em Oxford, ocorrida alguns anos depois da de Tubinga, saiu uma associação cultural nova, distinta e separada, intitulada "Association Internationale de Littérature Comparée" ou Associação Internacional de Literatura Comparada, constituída sob a lei francesa. Nas últimas décadas, enquanto os seus partidários têm vindo a debater qual o destino a seguir ou que deveriam seguir, deste empreendimento comparativista aglomerado, o número de associações regionais de estudos comparados, filiados na A. I. L. C., aumentou para três dezenas. O I Congresso Trienal da A. I. L. C. teve lugar em Veneza em 1955, e concentrou-se principalmente em Literatura Românica, mas o II Congresso atravessou o Atlântico em direcção a Chapel Hill, onde em 1958 já inclui alguma literatura asiática e um programa internacional mais amplo. Esta prontidão para alargar horizontes foi sintomático na colaboração de chefia prestada por dois grupos-chave: os eruditos europeus cosmopolitas, que tinham vivido o período da guerra, muitos em batalhas, e os americanos, cujas fileiras haviam sido intensificadas por refugiados instruídos, da altura da guerra, e que também frequentemente haviam estado nas forças armadas em várias regiões do mundo. Tão relativa como foi (já que continuam a surgir conflitos armados bastante graves), a Pax Americana das primeiras décadas do pós-guerra criou um tecto favorável à participação internacional imediata dos eruditos de L. C. de Hong-Kong, Japão e Formosa e de vários locais de África. Esta rápida reabertura à Ásia e, numa extensão muito mais modesta, à África, e a prontidão inicial para deslocar para fora da Europa o congresso principal da "disciplina", foram cruciais para a internacionalização progressiva da L. C.

O potencial para um câmbio mais vasto que o transatlântico teve um crescimento óbvio a partir da difusão, antes e depois da Segunda Guerra, de revistas especializadas de primeira classe. A moda começou com a "Revue de Littérature Comparée" (1921) em França; continuou pela Europa com a "Orbis Litterarum" (1943) na Dinamarca e a "Rivista di Litterature Moderne e Comparate" (1948) em Itália; pelos Estados Unidos com a "Comparative Literature" (1949), o "Yearbook of Comparative and General Literature" (1952) e a "Comparative Literature Studies" (1962); pela Ásia, com "Hingaku Bungaku" (1958) no Japão e o "Jadavpur Journal of Comparative Literature" (1961) na Índia. Outras revistas de L. C. ainda mais significativas foram criadas entre o princípio dos anos sessenta e o princípio dos anos oitenta na América, Ásia e Europa, como por exemplo: "Arcadia" (1966) e "Komparatistische Hefte" (1978) na Alemanha, "Tamkang Review" (1970) na Formosa, "Neohelicon" (1973) na Hungria, "Canadian Review of Comparative Literature" (1974), "Synthesis" (1974) na Roménia, "The Comparatist" (1977) nos Estados Unidos, "Comparative Criticism" (1979) e "New Comparison" (1986) no Reino Unido, "Cowrie" (1983) na China, e "Colloquium Hevelticum" (1985) na Suíça. Esta lista tem vindo a crescer progressivamente desde meados dos anos oitenta até aos anos noventa, incluindo não só América do Sul e África, mas também as "velhas" pátrias da L. C.; e se acrescentarmos todos os boletins e revistas dos centros e associações de L. C. em vários países, desenvolvendo notícias de pesquisas e ensaios de opinião, torna-se evidente que o tecido do discurso intercontinental da L. C. tem aumentado consideravelmente.

A elaboração deste tecido torna-se um acontecimento ainda mais veemente, ao considerarmos o grande aumento de determinados tipos de publicações referentes à L. C. como um compacto "supercampo". Há o longo conjunto de manuais de L. C. que desde Posnett e Van Tieghem inspeccionam as "nossas" actividades e tarefas. Estes foram escritos por eruditos individualmente e em conjunto, e produzidos principalmente em inglês, francês e alemão, mas também se encontram em chinês, italiano, polaco, português, espanhol e noutras línguas. Actualmente existem milhares de teses originais e dissertações de doutoramento que, quer na teoria quer na prática, são comparadas nos seus temas e/ou na abordagem da escrita no século xx. Muitas delas chegaram a ser publicadas para ocuparem os seus lugares em bibliotecas, ao lado de milhares de outros estudos comparados, publicados por editores académicos e comerciais. Para variar, aqui também predomina o inglês, francês e alemão, como meios de comunicação erudita, apesar de as outras línguas não serem de todo insignificantes. Ao folhear-se a revista das pesquisas actuais da A. I. L. C., "Recherche Littéraire/Literary Research", publicada desde o princípio dos anos oitenta, pode-se adivinhar a dimensão do interesse mundial, em comparação com o regional, nos temas específicos. No entanto, aqueles leitores situados em locais onde se utiliza geralmente a língua europeia têm, consequentemente, menos consciência do conjunto de temas abordados em locais com discurso literário conduzido em línguas não-europeias; a reciprocidade continua a ser assimétrica neste aspecto. Outro conjunto de materiais, bastante óbvio, do qual poderemos tirar índices de temas comparados de grande importância, e donde e como aparecem em grupos significativos, são os debates, tanto das conferências da A. I. L. C. como de conferências levadas a cabo por associações regionais de L. C. e organizações eruditas associadas. Os tipos de programas de L. C., que têm lugar em várias partes do mundo, podem ser seguidos no "ICLA Bulletin" (publicado desde 1977).

Duas obras, surgidas no início dos anos sessenta, exprimiram muitas das ansiedades inerentes a este empreendimento comparativista e que ainda se reflectem actualmente nos manuais, conferências e debates teóricos. Num ensaio de fundo, intitulado "Comparative Literature: Its Definition and Funtion", no volume Comparative Literature: Method and Perspective (1961), o pioneiro do pós-guerra, Henry Remak, contribuiu talvez com a mais compacta mas vasta formulação em termos de extensão do conhecimento de L. C. A expansão da obra em várias direcções, definidas por Remak, demonstrou a escolha profética dos termos utilizados no seu parágrafo de abertura:

"A Literatura Comparada é o estudo da literatura para além dos confins de um país em particular, é o estudo da relação entre literatura por um lado e outras áreas de conhecimento e crença, tal como as artes (por exemplo: pintura, escultura, arquitectura, música), filosofia, história, ciências sociais, religião, etc., por outro. Em resumo, é a comparação de uma literatura com outra ou outras e a comparação entre a literatura e outras esferas de expressão humana."

Em Comparaison n'est pas Raison: La Crise de la Littérature Comparée (1963), René Étiemble fez um apelo exaltado à expansão vigorosa da L. C., para além do seu contexto original, europeu e euro-americano, e contra o provincianismo e chauvinismo. Como irei mostrar mais adiante, e com mais pormenor, a L. C. internacional tem vindo progressivamente a reagir a este apelo para ultrapassar barreiras constrangedoras de natureza linguística, geocultural e histórica. Contudo, a comunidade internacional de eruditos, em geral, tem vindo a tomar conhecimento da dificuldade em ultrapassar a tendência ocidental "maioritária", em países como os Estados Unidos e Canadá, no tocante à divisão em grupos de interesses predominantemente ocidentais, em estudos literários e culturais — e, para os que estão fora da América do Norte, esta divisão pode parecer demasiado presunçosa, tal como foi denunciada pelo "radical" Étiemble, trinta anos atrás. Uma das questões que ele levantou continua a deixar sem resposta os defensores da L. C. que aspiram a um diálogo mais rico entre as culturas. Enquanto a L. C. irá contribuir e contribui actualmente para a elaboração de estudos mais sólidos de "literatura geral", também poderá fazê-lo só pelo facto de não ser erradamente identificada com preferências locais, com modelos teóricos (o que tão frequentemente acaba por ser uma barreira cultural). Esta proposta destina-se aos praticantes de L. C., tanto europeus como não-europeus, apesar de Étiemble se dirigir naturalmente, no início, ao maior grupo de profissionais: companheiros eruditos europeus e do Novo Mundo.

Étiemble sublinhou que a função da L. C. é reunir sob o mesmo tecto o conjunto do conhecimento sobre "literaturas individuais" (The Crisis in Comparative Literature, p. 39) com todas as suas contingências. Na opinião de Étiemble, estes factores incluem as suas relações específicas com as outras artes, com as tradições religiosas e filosóficas, com as experiências históricas, etc. — resumindo, com todas as relações que, como percebeu Remak, são relevantes para os comparativistas ocidentais. Falarei posteriormente sobre os esforços teóricos que se fazem actualmente, para a necessidade de "desocidentalizar" os conceitos estabelecidos para a vida literária e que obriga a uma expansão para além do sistema cultural europeu e euro-americano. A questão que vale a pena sublinhar é que grande parte dos praticantes de L. C., no início dos anos sessenta, se encontrava em, e consequentemente se preocupavam com, as culturas europeia e euro-americana, e era portanto natural que muitos se sentissem atraídos por uma visão geral da literatura, em termos filosóficos, psicológicos e antropológicos, derivados das suas próprias civilizações. Deste modo, quaisquer modificações locais do projecto de L. C. "ocidental", para campos diferentes, determinou daí para a frente a posição interna nos anos setenta e oitenta — por exemplo: de acordo com uma abordagem privilegiada "interdisciplinar" — com tendência para afastar a atenção dos eruditos europeus e americanos da tomada de consciência de que, no todo, pouco diziam sobre a literatura proveniente de outras partes do mundo, e pouco ouviam os comparativistas enraizados noutras culturas não-europeias e não-euro-americanas, faltando-lhes a competência para se ocuparem de temas não-europeus e não-euro-americanos.

A situação tornou-se qualitativamente diferente nos anos noventa, como resultado da construção de bases que se reforçavam mutuamente. Devido a esta limitação de espaço, que não permitia a descrição de toda a variedade de temas nas conferências da A. I. L. C., eu incentivaria os leitores a darem uma vista de olhos nas notáveis séries das Actas.4 Uma das realidades do pós-guerra a que o I Congresso da A. I. L. C. teve de reagir foi a existência do Bloco Soviético, com as suas condições internas, que dificultaram gravemente a comunicação entre colegas, domiciliados sob os seus vários governos. A famosa "Cortina de Ferro" constituía uma barreira formidável e naturalmente os outros comparativistas procuravam atravessá-la. Porque teve lugar em Belgrado, no então importante estado independente marxista da Jugoslávia, o qual actuava como intermediário entre os países ocidentais, o Bloco Soviético e o famoso Terceiro Mundo, o V Congresso da A. I. L. C. (1967) permitiu uma expansão crucial do até então mais pequeno foco das literaturas do Leste Europeu, especialmente na Eslovénia, em contacto com as outras. Para além do congresso inaugural, em Veneza (1955), que focou as línguas românicas, os congressos anteriores, apesar de preocupados principalmente com as literaturas da Europa Ocidental e Mundo Novo, prestaram uma atenção esporádica ao intercâmbio da influência e afinidades de carácter espiritual ou estilístico da literatura euro-asiática, mas levou e levava ainda tempo para chegar a um ponto de viragem na área da investigação. Deste modo, enquanto o IV Congresso, em Friburgo (1964), incluía apenas um pequeno conjunto de ensaios sobre literatura do Extremo Oriente em comparação com as literaturas ocidentais, era animadora a presença de duas dúzias de eruditos asiáticos e africanos, sendo os japoneses os mais proeminentes com uma delegação de oito. O VI Congresso, em Bordéus (1970), ofereceu uma exploração mais ampla das literaturas mediterrâneas, assim como programas bastante grandes sobre as relações literárias euro-asiáticas e euro-africanas. O amadurecimento na ordem e variedade da investigação, promovida pela A. I. L. C., foi evidente no VII Congresso em Montreal e Otava (1973). Entre outras coisas, havia segmentos que lidavam com questões de periodicidade literária, movimentos e zonas, com métodos de análise (antropológica, sociológica, formal — por exemplo: estrutural, semiótico, estilístico —, e intermédia — por exemplo: filmes e rádio), avaliações e estimativas, e com pedagogia. O grande número de sessões atribuídas a relações interculturais envolveram fortemente as literaturas americanas em geral (América Latina, Canadá e Estados Unidos), aspectos intra-americanos (por exemplo: Negros, Nativos Chicanos Americanos) e aspectos euro-americanos.

Os pioneiros fundadores podiam reconhecer com satisfação que em meados de setenta havia de facto uma alteração rítmica dos trabalhos, como consequência da mudança do centro de gravidade geocultural e intelectual, de congresso para congresso. Esforços concertados para "globalizar" o discurso crítico, na direcção que Étiemble recomendava, tornaram-se bastante evidentes com o programa do VIII Congresso, que teve lugar em Budapeste em 1976. Juntou vários documentos sobre literatura latino-americana, do Próximo Oriente, africana, sul-africana, sul-asiática e do Extremo Oriente, sem negligenciar os temas europeus e norte-americanos, e, assim, de alguma maneira, evitar "guetizar" os campos menos representados. Este perigo pode surgir quando os ensaios se agrupam somente por áreas geoculturais e as sessões tendem a atrair apenas peritos dessas áreas, em vez de se obter uma combinação de peritos europeus e não-europeus. Tornava-se portanto importante que tais temas, como o Renascimento europeu e o Iluminismo, a natureza e função do mito e do símbolo, teoria semiótica, linguagem e estilo, tradução e teoria da L. C., estivessem a ser estudados no mesmo ambiente. Num relatório para o Congresso de Budapeste sobre "O Estudo Comparado de Literatura Asiática e Africana", Douwe Fokkema (Presidente da A. I. L. C., 1985-1988) confirmou os objectivos e desejou a eventual criação das necessárias forças de eruditos. O XI Congresso, em Paris (1985), deu ênfase aos contactos e influências, processos de aculturação, estudos de assimilação intra e inter-regionais, e a distinção entre L. C. e "literatura do mundo", mas pouco fez para atrair as atenções para os materiais não-europeus. O XII Congresso, em Munique (1988), foi importante para concentrar as atenções em questões teóricas associadas aos espaços e barreiras da literatura e representadas nela, e nas áreas de crítica e ensino.

Uma das três partes principais do X Congresso, em Nova Iorque em 1982, foi dedicada às literaturas latino-americanas, e, sob esse título, não só estavam vários aspectos bicontinentais e tricontinentais das literaturas relevantes examinadas, como também foi dada alguma atenção aos aspectos africanos de culturas migrantes no hemisfério ocidental. As relações afro-europeias salientaram-se no XI Congresso, em Paris, 1985. Foi dado um grande salto na organização das sessões intra-asiáticas e no XIII Congresso, em Tóquio, 1991, que reuniu o maior número de sempre de peritos de instituições da Ásia, Europa e Novo Mundo, e produziu um volume inteiro sobre Inter-Asian Comparative Literature. O XIV Congresso, em Edmonton (1994), manteve uma participação asiática razoavelmente alta e atraiu uma presença latino-americana bastante grande, com muitos temas do hemisfério ocidental, apesar de comparativistas experientes notarem com preocupação que a queda da participação africana (excepto para a África do Sul), que já era evidente mesmo em Paris, tinha aumentado. Os funcionários da A. I. L. C. deram início a uma campanha exterior com o objectivo de reacender o entusiasmo africano dos anos sessenta e setenta.

Quatro importantes tipos de investigação literária e teórica, que envolve a "criação de pontes", ajudaram a preparar as bases para uma internacionalização mais séria na L. C., no fim do século. Tem havido um desdobramento gradual nas actividades dos estudos oeste-orientais desde o pós-guerra até ao bem sucedido Congresso em Tóquio da A. I. L. C. Logo a seguir aos estudos oeste-orientais, os estudos "pós-coloniais", embora sejam uma dispersa configuração carregada de interesses e, em muitas circunstâncias, cheia de armadilhas e desvios, têm contribuído para a "nossa" diligência num compromisso internacional mais exigente. Eruditos em territórios extra-europeus/americanos têm entretanto vindo a desenvolver os seus próprios debates sobre a natureza e requisitos da L. C. Alguns ramos de sistemas de teoria geral sugeriram padrões de conhecimento mais altos e procedimentos apropriados a uma séria investigação, ao nível internacional, quando procuramos falar simultaneamente sobre a interacção de culturas e a sua respectiva configuração interna, os seus dinamismos e outras características. Dando apenas alguns exemplos concluídos a partir das actividades dos membros da A. I. L. C., como abreviação histórica de uma evolução muito maior, não pretendo com isto ofender as muitas contribuições que emergem nesta matéria, feitas por muitos outros especialistas e organizações eruditas.

Para além de ter organizado os seus congressos trienais, a A. I. L. C. conseguiu durante trinta anos convocar o seu Conselho Executivo e representantes das comissões administrativas e de investigação, assim como convidados especiais, pelo menos anualmente, sempre em locais diferentes. Estas reuniões são planeadas em colaboração com uma associação nacional de L. C., uma academia erudita, ou com um dos principais centros educacionais, e normalmente ocorre em conjunto com uma grande conferência internacional sobre temas de interesse mútuo. Ao reunirem-se as comissões de investigação da A. I. L. C., que se auto-renovam também, em separado, no sentido de prosseguir com determinados objectivos específicos, colaboram habitualmente com um grupo anfitrião, e participam numa conferência internacional, pertinente a este campo. Nos anos sessenta, setenta e oitenta, estes acontecimentos tão importantes tiveram lugar nos Estados Unidos, Canadá, Europa Ocidental, e Europa de Leste. Mas em 1989 todo o Conselho Executivo e membros-chave das comissões de investigação associaram-se à conferência internacional subsidiada pela Associação de Literatura Comparada em Tóquio, repleta de temas oeste-orientais e asiáticos, assim como numa conferência satélite em Quioto. Em 1990, a convite da "Sahitya Akademi" da Índia e de comparativistas indianos, o mesmo grupo da A. I. L. C. participou numa grande conferência, durante uma semana, em Nova Deli, sobre narração, que atraiu, não só eruditos e críticos, como também autores e produtores de filmes porque estava programado, a seguir às cerimónias, a atribuição de prémios aos melhores trabalhos nas vinte e duas línguas "nacionais", oficialmente cultivadas neste país subcontinental. Para ganhar o benefício da presença de tantos eruditos do ultramar, foi organizada uma segunda conferência sobre L. C. como polylogue global, reunindo eruditos da Ásia e do Ocidente na cidade universitária sikh de Patiala. Em 1990, a Comissão de Teoria Literária da A. I. L. C. reuniu na Formosa, onde a estabelecida sociedade erudita CLAROC convidava regularmente eruditos ocidentais como participantes do congresso. O resultado destas trocas é o livro sobre a teoria interfacial oeste-oriental, publicado por Chang Han Lian. Entre outras obras, inspiradas pela Comissão, encontra-se uma retrospectiva geral, praticamente simultânea, intitulada Théorie Littéraire, a qual, nos seus vinte capítulos, explora a constelação de métodos de teoria de contemporâneos ocidentais. 1995 terá conferências idênticas na República da África do Sul e na República Popular da China, as quais terão a presença de membros da A. I. L. C. e de eruditos de associações de L. C., assim como outros convidados.** Membros da Comissão da A. I. L. C. sobre Estudos de Tradução têm sido os impulsionadores na criação da publicação periódica internacional "Target" (1989-) e contribuíram significativamente para o notável projecto de três volumes, Translation: An International Encyclopedia of Translation Studies, sob a direcção de Armin Paul Frank (Universidade de Gotinga).

Em 1985, eruditos da República Popular da China criaram, num congresso inaugural, uma sociedade nacional. Além de peritos nas várias literaturas asiáticas e suas relações, a nova Associação Chinesa de L. C. conta nas suas fileiras com a presença de um número de especialistas em áreas europeias e euro-americanas específicas, assim como em fenómenos multiculturais associados a estudos "ocidentais" (por exemplo: a aceitação de Nietzsche e Freud no Modernismo chinês). Contudo, uma das primeiras tendências credíveis tem sido os esforços para definir uma "escola" ou "proposta" chinesa na L. C.5 Eruditos ocidentais, que ainda recordam ou ouviram falar do momento gravitacional de alguns dos melhores especialistas de literatura comparada das "escolas" americana ou francesa do final dos anos 50 e princípio dos anos 60, podem interrogar-se sobre qualquer tentativa de construir essencialmente relações bipolares na literatura. Mas uma das realidades que a L. C. internacional deve ter em conta é o poder residual de outros modelos de "literatura nacional" em poucas partes do mundo. Em países como a China, onde há uma grande tradição e uma correspondente formulação histórica precedente (num cânone bem definido, etc.), eruditos sentem a necessidade, após uma turbulência sistemática significativa, de reavaliar o património e de ordenar as características das novas situações. Portanto, não deve espantar um certo tipo de consolidação, de certo em certo tempo, porque novos conjuntos de L. C. aparecem no processo de internacionalização do nosso campo de estudo.

Muito construtivo neste campo é o debate que tem vindo a decorrer na mesma década na Índia. A diversidade cultural e a estrutura política da Índia apresenta incontestavelmente uma situação mais complicada do que os "estados-nações" como a França ou a China; embora a China e a França também apresentem variedades regionais, étnicas e linguísticas, a variedade na Índia é excepcional. A Índia alberga várias religiões, com variadas seitas, algumas milenares, outras, como o Islamismo e o Cristianismo, mais recentes, alimentando assim as suas próprias correntes filosóficas. A Europa também influenciou bastante a cultura indiana, desde o Renascimento. Nenhuma "interferência" foi tão esmagadora como a do império britânico que deu à Índia grande parte da sua estrutura nacional existente e lhe deu uma lingua franca administrativa e intelectual importada. Visto que a Inglaterra criou raízes, a Índia adquiriu também uma relação duradoura directa com o pensamento e com exemplos de instituições do Ocidente. Enquanto o inglês se instalou através do seu império na Irlanda ou no Canadá, desenvolveu-se pela Índia, influenciando a formação de dialectos menores ou maiores. Não é exagero comparar a Índia com o continente europeu, tendo em conta que cada uma destas grandes regiões do mundo ocupa uma grande área, dividindo-se em áreas de diferentes línguas maiores ou menores, havendo vários territórios onde línguas e/ou comunidades étnicas ou religiosas estão inteiramente ligadas.

Curiosamente, tanto na Índia como na Europa, o inglês emergiu para ser a lingua franca predominante, embora outros idiomas importantes não deixassem de ocupar o seu lugar nas línguas mais faladas (exemplo: hindi, bengali, urdu, etc., assim como francês, alemão, espanhol, etc.). O uso do inglês, na Índia e na Europa, já não significa só ser-se "britânico", "americano" ou "australiano", podendo simplesmente ser um meio para desenvolver "negócios", "política" ou "ciência", etc., exceptuando o caso do interlocutor especificar o contexto de uma discussão para se referir a assuntos relacionados com outro território onde o inglês funciona como uma língua nacional. A questão, sobre se o inglês talvez venha a ser gradualmente substituído pelo hindi, um dos mais usados de todos os dialectos indianos, será respondida nas gerações futuras. Vários milhões de indianos são bi ou plurilingues, falando dialectos do Norte e/ou do Sul da Índia. Assim, o inglês contribui para ligar muitos indianos que (apesar de serem poliglotas) não têm outra língua em comum, tendo deste modo um papel importante na promoção de um sentido de pertença a uma maior civilização. Uma das maiores repercussões da posição dominante do inglês tem tendência a monopolizar o meio universitário indiano e (com algumas excepções) o ensino do francês, do alemão, do italiano, do russo, etc., é ignorado ou afastado para um estatuto inferior. Desta maneira, alguns eruditos indianos acham que a L. C. pode também ser precisa para abrir as consciências sobre a superioridade da imagem europeia. Ironicamente, porque o inglês é a lingua franca da L. C., pode acabar por provar que é o instrumento que capacita o balanço da influência excessiva do inglês e faz com que os indianos prossigam a globalização nos estudos literários.

Face à situação indiana, os eruditos no subcontinente pensaram se se deveria lançar-se numa busca alargada de estudos comparados do mundo inteiro, ou se não seria imperativo criar primeiro as bases no estudo das literaturas indianas, comparável à que os europeus, que iniciaram a L. C., criaram para as literaturas europeias. No campo dos conhecedores de línguas estrangeiras, muitos são os que se impacientam em desenvolver, para além da Índia, um argumento com bastante peso de que a Índia não pode desprezar as correntes mundiais no intervalo da reavaliação da dividida herança indígena e a promoção da pesquisa inter-regional e multicultural. O contra-argumento é que a civilização indiana é tão merecedora de um exame minucioso como a de qualquer outra região do globo e que as grandes interferências, causadas pela recente idade imperial, desviaram a atenção da complexa herança, para que especialistas (com conhecimentos necessários da língua) focassem no que aconteceu e o que está a acontecer às múltiplas culturas-"alvo" interligadas da Índia, onde influências estrangeiras tenham sido registadas. Esta disputa natural de imperativos foi um dos assuntos quentes no Seminário de "L. C.: Teoria e Prática", que o Instituto Indiano de Estudos Avançados fez em Shimla em Junho de 1987. Dos artigos seleccionados desse dialogo "nacional", publicado no volume com o mesmo nome, podemos compreender o grande problema da internacionalização a caminho. Alguns eruditos indianos, que participaram em Shimla, examinaram o seu próprio mundo usando conceitos críticos ocidentais. Outros discutem impressivamente a relevância da teoria literária indiana. Outros, concentram-se em problemas de influência e intertextualidade, de inter ou intra-regionalidade, evocando, ora uma estrutura ocidental, ora uma indiana. Inclinando-se mais na direcção de uma L. C. que deve continuar a ser "mais que indiana" nas consequências imediatas da conferência de Shimla, está o volume colectivo Aspects of Comparative Literature: Current Approaches (1989). Nele são confrontados ensaios escritos por eruditos convidados, ocidentais e indianos. Os seus trabalhos incluem desde exposições das novas ideias de estudos comparados a reflexões na substância e forma dos estudos oeste-orientais e intra-asiáticos, até sugestões programáticas para uma L. C. "indiana", concentrada na Índia, contra uma L. C. na Índia que é interactiva com outras partes do mundo. Com efeito, a pergunta que eruditos indianos fazem sobre a internacionalização pode facilmente ser controlada; estes propõem perguntas excelentes para os especialistas de literaturas comparadas europeias e euro-americanas.

As obras de dois eruditos ocidentais servem para demonstrar como as categorias e actividades, mencionadas no parágrafo anterior, convergem, desde há duas décadas, para produzir um "internacionalismo" mais vasto. Albert Gérard, belga de várias facetas (Universidade de Liège), sendo um dos mais conceituados especialistas do Romantismo europeu e da Literatura Barroca, é, no entanto, um dos principais pioneiros dos estudos literários do Sara Inferior, lidando com o fenómeno crucial das justaposições e interpenetrações da África negra: tradições orais face à mais antiga e à mais recente literatura social escrita, estilo literário indígena e adaptações de modelos estrangeiros, difusão de bilinguismos e plurilinguismos, expressão africana adquirida através de línguas europeias, etc. O objectivo de Gérard, como chefe de um grupo de cerca de sessenta especialistas, metade africanos e os restantes dos outros quatro continentes, reunido para produzir a obra em dois volumes European-Language Writing in Sub-Saharan Africa (1986) para a A. I. L. C., foi o de descrever fenómenos da passagem para a era pós-colonial, marcada pelo fim da Segunda Guerra Mundial. Gérard compreendeu a importância de relatar o maior número possível de factos, tendo em conta que os sentimentos vividos no período pós-guerra pudessem vir a desaparecer, e já que os escritores gradualmente deixaram de usar (especialmente) o inglês, francês, e português, para os seus principais meios de comunicação e/ou certas línguas europeias passarem por uma metamorfose para serem tratadas como línguas "locais" ou "nacionais" por indivíduos de língua não-europeia (como exemplo, inglês e africanse na África do Sul). Sendo uma das partes da colecção "Comparative History of Literatures in European Languages", o projecto de Gérard serve como uma ponte entre domínios e leva-nos por dois caminhos: para lá da Europa até à África, e fora de África até à Europa. O projecto pioneiro de Gérard sobre o Sara Inferior foi continuado na "Comparative History of Literatures in European Languages", um projecto de 4 volumes sobre as Caraíbas, actualmente em desenvolvimento, sob a liderança de James Arnold (Universidade da Virgínia). A A. I. L. C. concluiu, após vários projectos, que só um grupo de peritos internacionais em estudos comparados de línguas e de literatura, que aproveitam os conhecimentos locais, conseguem lidar com a estrutura única das culturas que invadem e se combinam nesta bacia oceânica, na costa do Continente e suas ilhas. A corrente histórica de e os intercâmbios com os grandes continentes (Europa, África, Ásia e América) transformam o projecto das Caraíbas num estimulante modelo para o tipo de "atravessar pontes" com que a L. C. tem de se preocupar. É através destes esforços cooperativos que a L. C. vai mudando para deixar de ser um campo predominantemente europeu. A A. I. L. C. inaugurou recentemente uma Comissão de Investigação em Estudos Interculturais, com Earl Miner como seu primeiro dirigente, para adoptar estudos comparados de línguas e de literatura, inter e intra-regionais, relacionados primeiramente com a África, Ásia, Pacífico e o com o hemisfério sul.

Earl Miner (Universidade de Princeton) é um superior especialista de todo o tipo de arte poética e teatro britânico dos séculos XVII e XVIII e, simultaneamente, um perito em assuntos japoneses. Estas áreas de estudo serviram-lhe para escrever mais de metade dos seus 20 livros. Numa área da sua investigação, Miner tanto transitou entre os mundos anglófonos e nipófonos, como aproveita o seu conhecimento teórico sobre a literatura asiática e europeia para sugerir um tipo de consciência que não é propositada ou cegamente eurocêntrica ("eurocêntrica" é uma expressão descritiva, não ideológica). Um trabalho como Principles of Classic Japanese Literature (1985) de Miner, que apresenta o método literário "nativo", é essencialmente erudição explicativa, dirigida a uma audiência principalmente estrangeira, assim como aos seus colegas da especialidade (em todo o mundo). Claro que um dos aspectos é o avanço da naturalização dos conceitos japoneses no vocabulário crítico inglês e internacional. Comparative Poetics (1990) tem atraído a atenção mundial pela sua reafirmação do desafio para a construção de um ponto de partida viável para uma visão sistemática internacional da literatura.

Este livro demonstra o desejo que um bom número de eruditos da L. C. tem para ultrapassar o hábito de que a teoria literária ocidental possui aplicações universais. Não faltam críticos ocidentais que têm por hábito censurar a imposição de categorias europeias e euro-americanas, mas que, usando conceitos de origem europeia e euro-americana, se interessam principalmente em denunciar atitudes sobre literaturas locais mais ou menos íntimas ou em elogiar trabalhos anti-europeus centrados na Europa como substitutos de clássicos ocidentais. A diferente perspectiva de Miner em Comparative Poetics é baseada no respeito profundo por ambas as literaturas ocidental e não-ocidental. Este investiga o sentido do estilo, à medida que foi desenvolvido em variadas e distintas culturas, com a finalidade de definir a sua particularidade poética; mas a sua finalidade não é encaixar os fenómenos num sistema artificial. Pelo contrário, o seu conceito requer uma atenção especial nas dimensões cronotópica e formal que aparecem no decorrer da história literária das culturas modernas. Na definição de marcos estilísticos, Miner tira provas da literatura europeia desde a Antiguidade, e analogias com a escrita do Extremo Oriente (chinesa, coreana e japonesa) e com a literatura das constelações do Indico, desde as antiguidades comparáveis — incluindo antigas e mais recentes interpenetrações em cada um destes domínios. Miner considera a formação de continuidade significante, tendo em conta que certos hábitos poéticos têm vindo a intensificar nos trabalhos dos escritores e dos comentários dos críticos indígenas e, ao mesmo tempo, assinala a mudança interna destas correntes literárias. A descoberta mais importante foi o facto de o fabuloso universo literário destas civilizações ter desenvolvido de maneiras distintas, de tal modo que, no início do período moderno, não utilizavam a mesma hierarquia de valores literários, nem adoptaram as mesmas sensibilidades literárias. Ainda que em cada constelação haja, de facto, traços de outra constelação, havendo um tronco comum antes do período moderno, havia também grandes diferenças na sua hierarquização sistemática de elementos, com desfasamentos gritantes. Assim, como exemplo, pouco importa referir certos trabalhos japoneses em relação à teoria ocidental de arte dramática, desde Aristóteles até aos nossos dias, visto que os costumes ocidentais não dão acesso útil aos valores e sensibilidades que os japoneses desenvolveram e que se reflectem na arte poética japonesa. Como críticos, temos que aprender a arte poética japonesa para poder apreciar a literatura japonesa.

Já discutido por mim em Rhinoceros, a compatibilidade formal do conceito das "poéticas comparadas" de Miner e a teoria de sistemas gerais proposta por Itamar Even-Zohar, que tem como ponto de partida a suposição lógica que a comunidade leitora (histórica ou presente) pôde e soube, e sabe reconhecer e reconhece uma tradição coerente, mesmo que o leitor típico possa não estar ciente da evolução dinâmica no momento de participação. Não é o local adequado para fazer ensaios sobre as características com que muitas teorias de sistemas gerais concordam (repertório de elementos, mudanças internas na posição dos elementos neste repertório, heterogeneidade, porosidade, susceptibilidade de interferências, actividade interactiva com o universo semiótico envolvente, significado do tamanho e da complexidade da literatura, tendo em conta as capacidades adaptativas, etc.). Visivelmente, a grande "desvantagem" da abertura internacional da teoria de Miner — equivalente à "desvantagem" da análise sistemática, aplicada a casos reais — é que requer muito trabalho: dedicação para se inserir em outras tradições.

Não-americanos podem ficar surpreendidos pelo contraste entre Gérard e Miner, em termos de espírito e de tom, encontrados no relatório apresentado à Associação Americana de Literatura Comparada em 1993 pela comissão liderada por Charles Bernheimer, incluído no recente volume Comparative Literature in the Age of Multiculturalism. O relatório Greene (1975 — também incluído no relatório de Bernheimer), de uma geração anterior, escrito por uma comissão ciente do seu eurocentrismo, circunspecta e modestamente reconheceu a falta de competência da América do Norte para lidar com literaturas não-europeias. Enquanto a comissão de Bernheimer critica a comissão de Greene, por ser eurocentrista, ela também, à sua maneira, é limitada em termos de cultura, repetindo o velho cliché (eurocentrista) da "conjuntura crítica da sua história (da L. C.)" (p. 47). Preocupante é que, com a sua escolha polémica, particularmente o termo americano "multicultural" e o retumbante "progressivo", o relatório de 1993 tende a manifestar o desejo sectário de banir do campo de estudo uma grande parte dos praticantes da L. C. na América do Norte e no resto do mundo: "O momento actual é particularmente propício a esta crítica, visto que as tendências progressistas nos estudos literários, com o objectivo de um currículo multicultural, universal e interdisciplinar, são comparáveis na sua natureza" (idem, ibidem). A tarefa ideológica está claramente divulgada como uma mobilização política para alterar a sociedade e refazer a sua cultura: "Departamentos de literatura comparada devem manter um papel activo, na realização da recontextualização multicultural das perspectivas anglo-americanas e europeias. Isto não implica o abandono destas perspectivas, mas sim o questionar e o resistir ao seu domínio" (idem, p. 44). Mas célebres críticos americanos, como Michael Riffatere e Peter Brooks, não estão convencidos da necessidade imperiosa de que a L. C., em grande escala, seja convertida, de estudos literários, em estudos culturais com tendências políticas.

Vários membros da A. A. L. C. acreditam que as palavras-código que emergem do relatório de Bernheimer não os convidam a estudar a complexa cultura literária dos Estados Unidos num processo aberto de descoberta, mas sim a unirem-se como colegas, que, em larga escala, concordam à partida sobre o modo específico de alterar a cultura. Talvez seja este o apelo que os não-americanos poderão captar no relatório de 1993, no caso de todas as outras culturas, como proclama Bernheimer, viverem agora na "idade do multiculturalismo". Prestando assim mais atenção a assuntos globais, os eruditos da L. C., no estrangeiro ou no seu próprio país, deviam usar a fórmula doutrinal e eurocentrista de "multiculturalismo": um conjunto de conceitos ao qual determinados "teóricos" associam a fenómenos da grande nação de emigrantes na América do Norte e sua história. (Uma das frases preferidas nos Estados Unidos diz que, se um escritor vai "teorizar" algo, quase sempre irá expressar a sua opinião política.) O que o relatório de Bernheimer deixa sem resposta é sob que tecto se irá supostamente reunir o maior número de críticos internacionais americanos que declinam o convite do relatório "porque" ambicionam tornar-se internacionais de forma mais gratificante. Muitos comparativistas, de outros continentes, que não tomaram conhecimento dos ensaios cépticos integrados no volume de Bernheimer, podem sentir-se apreensivos com a possibilidade de que "nós" (aqui falo como americano) podemos colectivamente perseguir outra abordagem narcisista e forçada da vida literária. Há também um enorme número de correspondentes pelo mundo fora, que não querem que a L. C. americana caminhe unicamente para ser apenas um tipo de estudos americanos. De facto, quando comparativistas americanos se confrontam com outras culturas fora dos E. U. A., identificam-se, de imediato, com especialistas da mesma área que vivem sob igual pressão — por vezes ainda pior — nos seus próprios países. Frequentemente, estes colegas vêm-se também confrontados com o "convite", para abstraírem de todos os seus conhecimentos a fim de reforçar as agendas locais, em vez de explorar literaturas (no plural) como seria da sua preferência.

Se vários comparativistas americanos lerem o relatório da comissão de Bernheimer em grande parte como vocabulário de um "sociolecto" dentro de uma cultura específica, mas não como um guia útil para fazer um trabalho de investigação intercultural e internacional, comparativistas não-americanos reconhecerão também, como faz David Damrosch, que os relatórios anteriores, feitos por Levin e Greene para a A. A. L. C., tomavam conhecimento do "verdadeiro problema" (idem, p. 131), ou seja, que a expansão, para além dos materiais e conceitos eurocentristas, contribuíram para a postura dos eruditos nos E. U. A. Uma das sugestões de Damrosch, "um modo elíptico de erudição [...] um processo onde dois (ou mais) eruditos servem como ponto fulcral para um projecto [...] trabalhando com outras pessoas, ensinando e investigando, onde os nossos temas vão além das nossas áreas de competência" (idem, p. 132), foi há muito reconhecida pela A. I. L. C. Os convites auto-renovadores da A. I. L. C. sobre teoria, história literária, estudos de tradução e estudos interculturais recrutam os seus membros de todo o mundo, estimulando projectos que exigem um esforço colectivo por grupos de especialistas. As publicações que resultam destas interacções, tais como os volumes de Gérard sobre o Sara Inferior, não "pertencem" a nenhuma cultura particular mas são um benefício para a comunidade internacional de eruditos.

Comunicação apresentada no Encontro Internacional

"Diálogo Cultural e Dificuldades de Entendimento",

organizado pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP,

e realizado em Macau em Outubro de 1995.

Tradução do original inglês por Maria do Carmo Hatton;

revisão de Júlio Nogueira.

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NOTAS

1. La Literatura Comparada de los Anos 90 en Estados Unidos, "1616", (10) 1995, pp. 39-50. A versão inglesa integral, Comparative Literature of the 1990's in the U. S. A., irá aparecer numa obra de dois volumes prestes a ser publicada, a ser preparada pela Comissão para Questões e Métodos em Literatura Comparada, da A. I. L. C., sob a direcção de Tânia Franco Carvalhal, a qual inventaria os mais recentes desenvolvimentos sobre a L. C. de todo o mundo. Uma versão integral do presente ensaio será publicada em "CNL/World Report".

2. BAUER, Roger, "Origines et Métamorphoses de la Littérature Comparée", in Proceedings of the XIIth Congress of ICLA, vol. 1, pp. 21-7.

. Esta matéria é revista nos ensaios iniciais do volume Littérature Comparée/Littérature Mondiale = Comparative Literature/World Literature, o qual corresponde ao 5. ° volume dos Proceedings of the Xth Congress of ICLA.

4. As Actas dos congressos da A. I. L. C. são aqui citadas de uma maneira simplificada, omitindo normalmente os títulos temáticos específicos e editores de colecções completas; uma lista bibliográfica completa pode ser encontrada no "ICLA Bulletin", 13 (2) Spring 1993, pp. 33-7, juntamente com pormenores bibliográficos da série "Comparative History of Literatures in European Languages" da A. I. L. C.

5. YUN Hao Yi, About the 'Chinese School', "ICLA Bulletin", 12 (1-2) Winter-Spring 1992, pp. 30-7.

** Nota do Editor: O texto data de 1995.

* Doutor em Literaturas Germânicas pela Universidade Estadual de Oaio, é professor de Estudos Germânicos e Literatura Comparada na Universidade de Stanford e presidente da Associação Internacional de Literatura Comparada (A. I. L. C.).

desde a p. 9
até a p.