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A IMPORTÂNCIA DOS ARQUIVOS DE HONG KONG DA HISTÓRIA DE MACAU: UMA BREVE INTRODUÇÃO

K. C. Fok*

Espero que os residentes de Hong Kong e de Macau concordem comigo quando afirmo que enfrentamos um dos momentos mais significativos da História de ambas as comunidades. Como todos sabemos, encontramo-nos já no período de transição para 1997 e 1999, momentos em que Hong Kong e Macau se tornarão, respectivamente, regiões administrativas especiais da China. Mas resta-nos ainda a árdua tarefa de descobrir os caminhos para persuadir o mundo de que as fórmulas de Macau e Hong Kong vão funcionar.

O estudo da História de Macau adquire um significado muito especial neste momento histórico, pois as nossas conclusões acerca do passado ajudar-nos-ão a formular, hoje, as linhas de orientação necessárias à implementação da fórmula para a futura região administrativa especial de Macau. Como disse Winston Churchill, ele próprio historiador e homem de acção, e que é frequentemente citado para justificar o estudo da "História, "a menos que saibamos onde estivemos, não poderemos saber que trajecto seguir no futuro".

Na verdade, um futuro estável, pacífico e próspero para Macau dependerá do conhecimento e compreensão que as próximas gerações tiverem da fórmula do sucesso do território de Macau, enquanto colónia, no passado. É especialmente importante que essas gerações conheçam, por um lado, as interacções entre as duas colónias europeias e, por outro, as da China com cada um dos dois territórios. Como historiador local, assumi muitas vezes a minha responsabilidade nisso, ao tentar explicar, através de exemplos concretos, a importância de Macau e Hong Kong nas várias questões da História Contemporânea da região da Ásia Pacífico e dos seus laços culturais, políticos e económicos com a China no passado1. Vejo agora que o importantíssimo tema das relações triangulares de Macau, Hong Kong e China tem sido extremamente negligenciado nas nossas abordagens à História de Macau e Hong Kong. No sentido de chamar a atenção para a urgente necessidade de tais estudos, o presente texto pretende estimular o interesse dos historiadores para possíveis temas de investigação, apresentando-lhes alguns registos significativos dos Arquivos de Hong Kong.

O mais importante conjunto desses registos é o Colonial Office 129 Original Correspondence (C. O.129). Consiste em despachos trocados entre governadores de Hong Kong e os Secretários de Estado para as Colónias, durante o período compreendido entre 1841 e 1950, juntamente com os anexos, minutas e memorandos do Colonial Office e correspondência relativa a Hong Kong trocada entre o Colinial Office e outros departamentos governamentais ou entidades privadas singulares e colectivas. Embora estes documentos contenham informações valiosas acerca dos. acontecimentos mais importantes relativos a Macau no século XIX, é intenção do autor seleccionar apenas alguns deles, sobre os quais estes documentos dão importantes informações em primeira mão, e, simultaneamente, demonstrar a sua importância para os estudos sobre Macau no século XIX.

O primeiro acontecimento histórico seleccionado é o chamado "Tráfico de Cules de Macau" ou "Emigração de Cules de Macau". O C. O.129 contém alguns documentos que podem ajudar a reconstituir um quadro bastante claro da génese, desenvolvimento, abusos e descontinuidade deste importante episódio do século XIX2. Esses documentos proporcionam-nos também algumas descrições e relatos que nos permitem penetrar no ethos e pathos desta épica movimentação humana dos Chineses. Os documentos do C. O.129 são todos eles registos da correspondência entre o Governo de Hong Kong e o Colonial Office ou o Foreign Office sobre o tráfico de cules de Macau. Este assunto tem sido um dos pontos de debate entre os historiadores chineses e portugueses. Quer uns quer outros basearam os seus estudos e interpretações nos registos dos seus próprios arquivos3. Também com interesses nos acontecimentos, mas posicionado no exterior destes, o Governador de Hong Kong dá-nos muitas vezes, nos relatórios para o seu superior do Governo nacional, uma boa e imparcial descrição, extremamente fidedigna, das várias facetas daquele comércio. Estes documentos do C. O.129 são, sem dúvida, válidos complementos dos documentos portugueses e chineses relativos a este tema.

Num dos documentos, por exemplo, o Governador de Hong Kong relatava e comentava as observações do Governo português acerca da emigração de trabalhadores de Hong Kong comparada com a de Macau4. Noutro documento, enviava uma petição da comunidade chinesa de Hong Kong censurando os resultados negativos da emigração de Macau5. Noutro documento, discutia objectivamente os abusos relacionados com essa emigração6. Estes documentos do C. O.129 permitem, portanto, conhecer as opiniões de alguns contemporâneos que estavam por dentro destes acontecimentos históricos. Simultaneamente, oferecem ao historiador dados que lhe possibilitam maior veracidade no relato dos acontecimentos.

O outro acontecimento também seleccionado como exemplo é o episódio bem conhecido a que os historiadores se referem como o "Bloqueio de Hong Kong", e que conduziu ao estabelecimento de postos alfandegários chineses nos territórios de Hong Kong e de Macau. O "Bloqueio de Hong Kong" durou de 1867 a 1886 e afectou seriamente as relações comerciais de Hong Kong com a China. Segundo o Governo britânico, a colónia de Hong Kong fora fundada sobretudo por interesses comerciais e, por essa razão, o "Bloqueio de Hong Kong" foi muitas vezes discutido detalhadamente nos despachos trocados entre os vários Governadores de Hong Kong e os secretários de Estado para as Colónias, como se encontra igualmente registado no conjunto de documentos do C. O.129. Dado que o estabelecimento, por parte das autoridades chinesas, dos postos alfandegários em Macau foi parte integrante de todo o episódio, o C. O.129 também inclui relatos bastante pormenorizados do Governador de Hong Kong acerca dessas actuações da China e das reacções de Portugal e Macau7. Intimamente relacionada com o estabelecimento desses postos alfandegários nas proximidades de Macau, está a proibição, pelas autoridades chinesas, da importação de armas de Hong Kong para Macau. Há, portanto, alguns documentos importantes do C. O.129 que referem este assunto controverso, que se reflectiu nas relações de Macau com Hong Kong e com a China8.

Mais interessante ainda é o facto de esses documentos levantarem frequentemente a questão da soberania de Macau, a mais controversa da época. Há dois documentos, em especial, que são reveladores da atitude de Grã-Bretanha face a este espinhoso problema nas suas relações com Portugal.

O primeiro desses documentos é um despacho originalmente enviado pelo Foreign Office ao Colonial Office que chama a atenção do Governador de Hong Kong para uma proposta de acção conjunta dos Governos português e britânico contra a decisão da China de instalar postos alfandegários nas proximidades de Macau e de Hong Kong. Este documento é datado de 22 de Dezembro de 18769. A proposta de uma acção conjunta fora de facto enviada ao Foreign Office pelo ministro português Duque de Saldanha. Através deste despacho é claramente perceptível que o Governo português ansiava obter a cooperação do Governo britânico na resistência às medidas tomadas pelas autoridades chinesas, dado que "Macau e Hong Kong estão em igualdade de circunstâncias e têm interesses semelhantes, e os pontos de vista e princípios sustentados pelos Governos de Portugal e da Grã-Bretanha são idênticos no que respeita às suas relações com a China"10. Mas o Foreign Office discordou totalmente deste ponto de vista: "a China nunca reconheceu que Macau pertencesse a Portugal e a disputa pela sua posse impediu a assinatura de um tratado entre os dois países. Hong Kong, pelo contrário, foi cedido à Grã-Bretanha por tratado e é considerado pela China, em matéria de direitos alfandegários, como um porto estrangeiro"11. No final, o governo britânico conclui que, uma vez que "os tipos de posse territorial de Macau e de Hong Kong são inteiramente diferentes, uma acção conjunta dos dois Governos será inconveniente"12. É interessante referir que, até 1876, o Governo britânico admitiu inequivocamente a soberania da China sobre Macau.

O segundo documento foi enviado pelo Governador Hennessy ao Colonial Office em 24 de Agosto de 1878, a propósito do protesto do Governador de Macau, Corrêa da Silva, contra a interpretação feita, numa carta do Governo de Hong Kong, relativamente à questão da soberania de Macau13. Ora, o que aconteceu foi que os funcionários da alfândega chinesa em Capsingnum tinham descoberto que estavam a ser transportadas grandes quantidades de pólvora de contrabando em juncos chineses que se dirigiam de Hong Kong para Macau, obrigando-os, por isso, a regressar a Hong Kong. Em consequência, os comerciantes alemães que operavam em Hong Kong, e a quem pertenciam as mercadorias de contrabando, queixaram-se ao Governador Hennessy, pressionando-o no sentido de interferir em defesa dos seus interesses.

Apercebendo-se de que isso iria inevitavelmente levantar a questão da soberania de Macau, da qual queria manter o Governo de Hong Kong afastado, Hennessy decidiu não se envolver pessoalmente neste assunto. Assim, instruiu o Colonial Secretary substituto no sentido de informar por escrito os comerciantes de que o Governador não poderia interferir, uma vez que as autoridades de Cantão consideravam Macau como parte da China e a entrada de munições de guerra na China estava sujeita a rigorosos regulamentos14. Não satisfeitos com esta resposta, os comerciantes alemães fizeram publicar a carta do Colonial Secretary substituto num jornal de língua inglesa, como forma de pressionar Hennessy a tomar alguma atitude em sua defesa. Em vez disso, o que sucedeu foi que o Governador de Macau tomou conhecimento do assunto, escrevendo de imediato a Hennessy protestando contra a interpretação dada acerca da soberania de Macau na dita carta do Colonial Secretary substituto, que "manifestava aquiescência em relação às supostas pretensões do Governo chinês"15; reivindicava, portanto, os legítimos direitos do Rei de Portugal, na sua qualidade de soberano de Macau. Corrêa da Silva acrescentava ainda que considerava tais nocivas inferências "extremamente desagradáveis para si próprio."16

Este documento fornece, sob vários aspectos, importantes informações sobre as relações Macau--Hong Kong. Um primeiro aspecto é o que se refere aos argumentos que Corrêa da Silva apresenta, na carta que dirige a Hennessy, em defesa da soberania portuguesa sobre Macau. Para isso, começa por apelar para o direito de domínio: "Nas nossas relações com a Corte Imperial de Pequim dava-nos título de domínio o que possuíamos de fundação e posse, não disputada por espaço de três séculos."17 Refere-se então a alguns factos históricos que provam que as nações ocidentais nunca tinham contestado os direitos de soberania do Rei de Portugal sobre Macau. Era com base neste acordo geral europeu quanto aos direitos da Coroa Portuguesa sobre a colónia que Corrêa da Silva fazia a sua reclamação dos direitos nacionais18. Um segundo aspecto é que, embora Hennessy e Corrêa da Silva não conseguissem entender-se relativamente à soberania de Macau, Hennessy realçava, no seu relatório para o Colonial Office, que "as relações entre o Governo de Macau e o seu próprio Governo são muitíssimo amistosas"19. De facto, os governadores dos dois territórios visitavam-se e faziam consultas mútuas sobre assuntos de interesse comum. Hennessy mostrava mesmo considerável admiração pelo sucesso demonstrado pelo Governo de Macau, durante mais de trezentos anos, ao manter uma administração relativamente pacífica dos residentes chineses. "Na verdade, não posso deixar de sentir que, em relação ao judicioso tratamento da população chinesa e à forma como o Governo português tem ganhado a sua confiança, a administração de Hong Kong tem alguma coisa a aprender com a experiência acumulada das autoridades de Macau."20

Com base numa breve análise de alguns importantes documentos do C. O.129 referentes às relações de Macau com Hong Kong e com a China na segunda metade do século XIX, talvez se possam tirar algumas conclusões. Parece que antes da Guerra do Ópio, e de acordo com o princípio "Mútua Ajuda e Mútuo benefício", o Governo português em Macau se mostrou relativamente condescendente para os desejos das autoridades chinesas, bem como suficientemente respeitoso em relação à soberania chinesa. Contudo, depois de os Britânicos ocuparem Hong Kong, há cada vez mais testemunhos de que o Governo de Macau foi encorajado a contestar a soberania da China e, portanto, ansioso por obter o apoio do Governo britânico de Hong Kong. Contudo, ficou provado em diversas circunstâncias que os Britânicos não provocariam a irritação da China por causas menores, que pudessem pôr em risco os seus interesses na China. Assim, vemos o Governo britânico permanecer afastado relativamente ao assunto da soberania de Macau. No entanto, em relação a outros assuntos, e em ocasiões em que essa atitude servia os interesses de Hong Kong e da Grã-Bretanha, os Britânicos mostraram-se mais empenhados em darem o seu efectivo apoio aos Portugueses em Macau. Por exemplo, pouco depois da primeira guerra Anglo--Chinesa, quando os Britânicos iniciaram um longo período de hostilidades contra as autoridades de Cantão, mostraram-se ansiosos por conseguir a cooperação e uma aliança com o Governo de Macau, o qual obteve, em consequência, o direito à protecção britânica no caso de vir a envolver-se numa guerra com a China21. Mais uma vez, durante o período da Arrow War, quando as relações Sino-Britânicas se tornaram profundamente tensas, o Governador Bowring costumava ir com frequência a Macau para conferenciar com o Governador deste território "acerca das medidas que poderiam ser adoptadas em consequência da contenda entre a China e a França e a Inglaterra."22

A julgar por estas revelações, baseadas em documentos confidenciais, os historiadores devem abster-se de encarar as relações de Macau com a China e Hong Kong no século XIX à luz dos princípios ideológicos do anti-imperialismo e do nacionalismo, e de generalizar abusivamente que, como colonizadores, Britânicos e Portugueses eram obrigados a adoptar políticas idênticas face à China. Não devem também argumentar arbitrariamente acerca da soberania de Portugal sobre Macau antes de 1880. Se bem que os sentimentos e as emoções de alguns historiadores sejam compreensíveis, acabam no entanto por obscurecer o importante facto de que as relações de Macau com Hong Kong e com a China na História Contemporânea foram ditadas, muito frequentemente, pelo princípio de "Mútuos Interesses e Mútuos Benefícios". É, por isso, importante que os historiadores de Macau recolham o máximo de informações em tantas fontes quantas as possíveis e verifiquem a sua objectividade, libertos de quaisquer "cargas" patrióticas ou nacionalistas. Só assim poderão proporcionar um relato fiel das relações passadas de Macau com Hong Kong e com a China, para benefício dos actuais e futuros administradores das duas comunidades.

(Traduzido do Inglês)

NOTAS

1 Verporexemplo K. C. Fox, Hong Kong and the Asian Pacific — An Index of Source Materials (1840 - 1900) Joint Publishing(H. K.)Co. Ltd.,1993; XiangGangYuJinDaiZhongGuo (Hong Kong and Modern China), The Commercial Press (H. K.),1992; Lectures on Hong Kong History: Hong Kong Role in Modern Chinese History, The Commercial Press (H. K.),1990; "The Macau Formula and the Ming Chinese Debate on the Accommodation of Portuguese", Revista de Cultura, números 13/14 (Edição Especial), Instituto Cultural de Macau,1991, pp.328-344; "Early Ming Images of the Portuguese" in R. Ptak(ed.), PortugueseAsiaAspects in History and Economic History (Sixteenth and Seventeenth Centuries), Heidelberg University,1987, pp.143-155; The Macau Formula: A Study of Chinese Management of Westerners from the Mid-Sixteenth Century to the Opium War Period, Tese de Doutoramento não publicada, Universidade do Hawaii,1978; Hong Kong and China — An IndexofSourceMaterials(1840-1900) JointPublishing(H. K.)Co. Ldt., Março de 1994.

2 Verporexemplo CO 129/123; CO 129/133; CO 129/134; CO 129/137; CO 129/156; CO 129/161; CO 129/164; CO 129/165; CO 129/166; CO 129/169; CO 129/170; CO 129/172.

3 Verporexemplo Deng Gai Song,"Ao Men Gu Li Mou Yi Chi Qi Dui Shi Qie Jing Ji Di Ying Xiang" in Qing Dai Qu Yu Jing Ji Yan Jiu, Pequim,1922, pp.619 - 632; Manuel Teixeira, O Comércio de Escravos em Macau: The So-called Portuguese Slave Trade in Macau, Macau,1976.

4 CO 129/156, pp.2-25.

5 CO 129/161, pp.247-282.

6 CO 129/158, pp.17-38.

7 Verporexemplo CO 129/176, pp.197-201;349-356.

8 Ver CO 129/187, pp.308-318; CO 129/294, pp.582-593; CO 129/302, pp.398 - 402,626 - 628.

9 CO 129/176, pp.238-249.

10 Ibid., p.240.

11 Ibid.

12 Ibid.

13 CO 129/181, pp.556-580.

14 Ibid., p.559.

15 Ibid., p.560.

16 Ibid., p.573.

17 Ibid., p.567.

18 Ibid.

19 Ibid., p.561.

20 Ibid., p.562.

21 CO 129/181, pp.566-567.

22 Ibid.

* Professor da Universidade de Hong Kong (Departamento de História). Foi bolseiro do East-West Center, Conselheiro técnico do Conselho Consultivo de Antiguidades e Conselheiro Honorário do Museu de História de Hong-Kong. Investigador do papel de Hong Kong e Macau na História Contemporânea da China.

desde a p. 131
até a p.