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A PRIMEIRA DÉCADA DE DIPLOMACIA LUSO CHINESA APÓS A FUNDAÇÃO DE MACAU

Jorge Manuel dos Santos Alves*

Primeiro fólio de um dos manuscritos relativos à China em 1563.

As iniciativas políticodiplomáticas portuguesas junto ao Império Chinês durante o período manuelino (1513-1521) suscitaram vivo interesse historiográfico, destacandose, entre outros, os estudos de Paul Pelliot, Ronald Bishop Smith, Eduardo Brasão ou Armando Cortesão. Semelhante verificação se ajusta às embaixadas portuguesas à China nos séculos XVII e XVIII, bastante posteriores à fundação e consolidação de Macau, e iniciadas com a de Manuel de Saldanha em 1667 (de que se ocuparam nomes como Luciano Petech, Charles Boxer, J. M. Braga, John E. Wills ou João de Deus Ramos).

No entanto, entre estas duas manchas cronológicas, ficou quase olvidada uma outra, considerável, tanto do ponto de vista da sua extensão temporal como do seu significado histórico. Nela, uma das épocas preponderantes será, inegavelmente, a década seguinte à fundação de Macau. Dificilmente se negligenciarão as repercursões deste acontecimento no quadro geral da presença portuguesa no Oriente, no das relações lusochinesas, nem tãopouco o seu impacto nos meios políticos, sociais e económicos provinciais do Guangdong, e mesmo à escala do Império Chinês. Não se tratou de período fértil, nas iniciativas oficiais portuguesas, em embaixadas à China. Tratouse, antes, de uma fase de consagração de uma diplomacia quotidiana, fronteiriça, feita de pequenos e constantes avanços e recuos, na qual assume particular relevo a missão diplomática de Gil de Góis à China, em 1563, poucos anos volvidos sobre a fundação de Macau.

A contrastação de fontes chinesas e portuguesas possibilita a reconstituição dos sucessos e revezes daquela missão diplomática: mais importante, facilita a percepção do seu enleamento profundo na sociedade macaense, na sua vida política e económica, e na própria vida política e económica do Guangdong/Guangxi.

Antes, porém, de enveredarmos pelo tema e período propostos, pode ser útil relembrar algumas das linhas de força da política externa portuguesa em relação à China, designadamente no reinado de D. João III(1522-1557).

A euforia imperialista de D. Manuel colocou a empresa oficial portuguesa em conflito e concorrência com poderes políticos e comunidades mercantis asiáticas, na disputa pelo domínio das grandes linhas comerciaismarítimas do Oceano Índico e do Mar da China após a conquista da Índia por Afonso de Albuquerque, (1509 1515).

Num segundo momento (mormente após a política desenfreadamente liberalizante do governo de Lopo Soares de Albergaria,1515 1518), o confronto acabou por atingir a iniciativa privada portuguesa e lusoasiática que pululava pelos mares da Ásia. A política oriental de D. João III trouxe mudanças sensíveis a esta situação, em particular no respeitante aos contactos com a China.

Desde logo, o pensamento político português do segundo quartel do século XVI privilegiou o conceito políticojurídico de amizade (na tradição da Idade Média Europeia) como um dos pilares da política oficial de negócios estrangeiros. Despido de significado preciso, este conceito destinavase fundamentalmente aos primeiros contactos entre estados, por ordem a evitar actos de hostilidade. Já preconizado no tempo de D. Manuel, passara de algum modo ofuscado pela ideia imperial e pelas adversidades conjunturais da geoestratégia do Oceano Índico. Ora, no caso chinês poderia revelarse essencial após os eventos desastrosos de 1522, os quais haviam determinado a expulsão dos Portugueses dos portos chineses. Em termos práticos, no terreno, a política de D. João III em relação à China escoravase em três grandes princípios:

1. Maior pragmatismo no relacionamento com os mercadores privados portugueses e lusoasiáticos a operar no Mar da China (que, de resto, se tornara quase um "lago" onde negociavam livremente). Reconhecimento por parte da Coroa Portuguesa de que, mediante a sua colaboração experta nos contactos locais, poderia conseguir a reentrada do comércio português nos portos chineses.

2. Tolerância acrescida na forma de lidar com as comunidades mercantes asiáticas (destacadamente as estabelecidas no porto de Patane, na Península Malaia, mesmo as de religião islâmica). Reconhecimento de que a sua cooperação seria indispensável para a reabertura dos portos chineses.

3. Realismo dobrado na escolha dos interlocutores chineses. Para a Coroa Portuguesa o Imperador da China deixava de ser o primeiro objectivo diplomático, em favor dos altos funcionários provinciais, tomados alvos prioritários da diplomacia portuguesa. Reconhecimento de que nas mãos destas autoridades recaía o real poder de decisão sobre a aceitação ou recusa da presença comercial portuguesa.

Não obstante os promissores sinais de mudança na política portuguesa face à China, até cerca de 1540 escassearam os resultados concretos. Dum lado, o Atlântico reclamava crescente empenhamento da Coroa, no desenhar da colonização do Brasil e no reacender do debate nacional sobre o abandono ou manutenção das conquistas do Norte de África. Do outro, a Oriente, a querela lusoespanhola pela posse das Molucas exigia o melhor dos esforços de D. João III.

Por seu turno, nas décadas de 1540 e 1550, e graças à descoberta do "Eldorado" comercial do Japão, os mercadores privados portugueses e lusoasiáticos, que não haviam interrompido as suas tentativas de negociar nos portos chineses, passaram a apostar decisivamente na obtenção de um ponto de escala e de abastecimento de produtos chineses para o mercado do Japão, nas costas do Sul da China. Primeiramente no Fujian, depois no Guangdong, e de forma gradualmente permanente em Macau após 1557, essa falta foi suprida. Ironicamente, foio no mesmo ano em que D. João III morreu.

Não obstante a falta de estudos detalhados, mas não de documentos, temse por certo que o período das regências (entre 1557 e 1568), correspondeu, no que à Ásia concerne, a uma concentração dos esforços políticodiplomáticos, militares e económicos portugueses no Oceano Índico Ocidental (nas costas do Canará e do Malabar) e na ilha de Ceilão.

Beneficiando do crescendo de penetração e influência dos mercadores privados portugueses e lusoasiáticos nos mares da Ásia do Sueste e da China, e da distracção, desinteresse ou importância do Estado da Índia relativamente aos assuntos destas regiões, alguns dos magnatas portugueses que ali negociavam, um misto de protagonismo conquistado e de delegação de poderes dos ViceReis e Governadores de Goa, assumiram lenta e gradualmente a liderança dos contactos diplomáticos com alguns potentados asiáticos e, no caso que nos interessa, com a China. A missão diplomática de Gil de Góis, de 1563, encaixase perfeitamente nesta conjuntura.

Por finais da década de 1550 inaugurouse, pois, um ciclo novo nas relações lusochinesas, muito ligado, como é de prever, com o estabelecimento de uma comunidade de comerciantes privados portugueses e lusoasiáticos em Macau. Era projecto marginal ao Estado da Índia, lidera-do por homens que investiam fortemente no que podemos designar por projecto municipalista de Macau.

Revisitemos, sumariamente, as faces da sociedade macaense nos seus primeios anos de existência, no dealbar da década de 1560.

a. A primeira face compunha-se dos homens de negócios. A liderança económica, social e política da comunidade portuguesa e luso-asiá-tica encontrava-se, por estes anos, nas mãos da família Pereira. Dela se destacavam Diogo Pereira (Capitão de Macau, independentemente do Capitão da Viagem da China e Japão, entre 1562 e 1564), Guilherme Pereira, seu irmão, Francisco Pereira, seu filho, e Gil de Góis, seu cunhado e embaixador à China. Em seu torno, gravitava um grupo de moradores, indefectível apoiante dos Pereiras no comércio e na política, como na guerra, de que o mais notável parecia ser um Manuel do Penedo.

Os Pereiras dispunham ainda do apoio de dois outros importantes grupos: i) Do lado chinês, um círculo de mercadores de onde sobressaía o nome de Lin Hongzhong, e um grupo escolhido de criados chineses, muito particularmente uma plêiade de intérpretes (jurubaças). Chefiados por um Tomé Pereira, serviam de boca e ouvidos dos Pereiras na China, revelando-se auxiliares preciosos no entabulamento e prossecução da diplomacia fronteiriça: ii) Os Jesuítas. Usando da amizade entre Diogo Pereira e Francisco Xavier (que morrera em 1552), os Pereiras tudo fizeram para atrair de novo à China e a Macau a Companhia de Jesus, e para que esta acompanhasse de perto a missão diplomática de Gil de Góis. Detenhamo--nos brevemente neste passo.

Não se justifica um cepticismo demasiado quanto à autenticidade das convicções religiosas dos Pereiras (e nomeadamente de Diogo Pereira) e quanto ao seu propósito proselitista de fazer entrar o Cristianismo na China, sonho antigo de Xavier. Todavia, convirá igualmente ter a prudência de não negar que Diogo Pereira era, antes de tudo, um homem de acção, de notável pragmatismo, e que também ele acalentava planos, seguramente mais materiais, mas mais humanos, para os seus negócios e para a conserva ção do projecto municipalista luso-asiático de Macau. Assim, parece legítimo alinhar três principais razões, concretas, para a colaboração entre os Pereiras e os Jesuítas, com o triplo objectivo (bem patente nos textos coevos) de estabilizar a sociedade macaense, assegurar a boa vontade das autoridades locais chinesas e reforçar a credibilidade da missão diplomática de Gil de Góis.

i) A forte impressão que a estatura intelectual, cultural e retórica dos padres jesuítas causaria nas autoridades chinesas.

ii) A introdução da faceta de devoção religiosa (igrejas, imagens, ritos, etc.), na imagem projectada pelos Portugueses junto dos Chineses. Esperava-se o lento desaparecimento da sua má reputação de comerciantes cobiçosos, guerreiros furiosos, raptores de mulheres e comedores de crianças.

iii) A regulação de conflitos pessoais, sociais e até económicos no seio da sociedade macaense. A garantia da boa polícia precavia simultaneamente a necessidade de intervenção do Estado da Índia e das autoridades chinesas no estabelecimento da ordem, justiça e bom governo da cidade.

b. O segundo rosto da sociedade de Macau compunha-se da fidalguia portuguesa e do cortejo de seus dependentes que anualmente arribavam ao porto no(s) navio(s) da Viagem da China e Japão. Demonstrou-se recentemente que o privilégio desta viagem era concedido as mais das vezes à pequena e média nobreza (até aos inícios do século XVII) em recompensa dos seus serviços no Oriente e, por inerência do cargo, aos Capitães de Malaca. Em 1564, como veremos ano crucial desta década para a vida de Macau, encontramos neste porto, ao mesmo tempo, dois capitães dessa viagem: D. João Pereira (um antigo Capitão de Malaca) e Luís de Mello da Silva. Membros do escol militar português no Oriente, famosos pela sua bravura e crueldade na guerra, envolveram-se em querelas pelo direito ao cargo de Capitão da cidade, logo após a chegada a Macau. De pronto, hostilizaram Diogo Pereira, enquanto representante dos interesses dos mercadores macaenses. Podem apontar-se duas ordens de factores conflituais entre os macaenses e D. João Pereira, que vencera a contenda com Luís de Mello. Comecemos pelos de tipo conjuntural:

i) Exigência da imediata transmissão dos poderes da capitania de Macau, retirada a Diogo Pereira.

ii) Decretação do exclusivo pessoal (de D. João) do comércio do cobre no Japão.

iii) Ordenação da retirada da missão diplomática de Gil de Góis e o seu regresso célere à Índia.

Vejamos, desta feita, o que pode qualificar--se de sinais estruturais de conflito entre os dois rostos da sociedade de Macau, e que gravitam, na sua essência, em redor da forma de olhar e de dialogar com a China (e os Chineses), e de encarar o futuro de Macau.

i) Diogo Pereira e os demais mercadores macaenses tinham muito (ou tudo) a perder se o projecto municipalista luso-asiático de Macau fracassasse, ou se as boas relações com as autoridades provinciais chinesas fossem beliscadas. Macau comprometia-os na negociação quotidiana com as autoridades chinesas, à qual a missão diplomática de Gil de Góis traria brilho e dignidade.

ii) D. João Pereira, Luís de Mello, os seus clientes e parentes, por seu turno, nada perderiam na eventualidade de uma ameaça à sobrevivência de Macau. Para eles, a negociação com a parte chinesa quedava-se no trato das mercadorias destinadas ao mercado japonês, compreendendo-se o menosprezo ( e mesmo uma certa oposição) pela estratégia diplomática dos mercadores macaenses e, logo, pelo sucesso da missão de Gil de Góis. Assim que a carga dos navios se completasse, Macau ficaria para trás, distante, como uma espécie de stop-over comercial.

Nesta atmosfera de conflito iminente, acontecimentos políticos na China sustiveram os contentores. A revolta da frota imperial estacionada em Zhelin, em Abril de 1564, provocada pelo não-pagamento de soldos, resultou no ataque e saque aos arrabaldes de Cantão. Perante a impotência das forças leais à dinastia, e com as autoridades provinciais barricadas na cidadela muralhada, os revoltosos passaram a controlar a navegação fluvial de e para Cantão, a partir da sua base na cidade de Dongguan. Entrevendo a excelência da oportunidade, Diogo Pereira e os mercadores macaenses ofereceram auxílio militar aos mandarins da província. Com tal gesto, Macau almejava três escopos principais:

i) Prevenir um provável bloqueio do comércio entre Macau e Cantão por parte dos revoltosos.

ii) Ripostar à tentativa de assalto a Macau pelos revoltosos de Dongguan e às suas actividades corsárias contra a navegação mercantil portuguesa que, dos portos da Insulíndia, se dirigia ao porto.

ii) Obter dividendos políticos no campo chinês, em caso de vitória do contingente de Macau sobre os rebeldes, e reforçar a posição de Macau junto das autoridades locais e imperiais (cujo resultado imediato mais importante seria a aceitação da missão diplomática de Gil de Góis).

Seguindo as fontes chinesas contemporâneas fica-se com a ideia de que nos primeiros anos da década de 1560 a questão de Macau ocupava lugar central no debate político do Guangdong/ Guangxi e também, de certo modo, à escala do Império. Contrariando as expectativas dos mercadores macaenses (iludidos quanto aos apoios efectivos de que dispunham do lado chinês e quanto à sua correlação de forças), perfilavam-se três grandes partidos, divididos quanto ao problema de Macau e da sua missão diplomática, prenhes de contradições e de estratégias pessoais diferentes, cada um sob a liderança de uma personalidade.

a) O partido que apoiava a continuidade de Macau incluía todos aqueles que haviam protegido os comerciantes portugueses no princípio da década de 1550, patrocinando de alguma forma o seu estabelecimento em Macau. Com a sua cumplicidade puderam os Portugueses ocultar-se sob o manto de gente de Malaca ou do Sião, pondo-se de acordo com as regras do sistema de comércio tributário ditadas por Pequim. Em troco da sua colaboração, conciliavam sabiamente o proveito próprio (através de presentes e subornos), o enriquecimento da província (mediante o incremento do movimento comercial) e a dotação financeira do aparelho administrativo e militar provinciais. O líder deste partido era o Intendente da Defesa Marítima do Guangdong/Guangxi, Wang B o.

b) O partido que se opunha à perpetuação da presença estrangeira em Macau congregava todos aqueles que, por razões de estratégia pessoal, ou por fidelidade para com a dinastia, exprimiam maior preocupação quanto às consequências futuras dessa situação. Predominantemente ligados aos sectores militares e, portanto, menos sensíveis aos argumentos económicos, propugnavam vigorosamente a aniquilaçção dos moradores de Macau, mas só depois de habilmente se terem servido do auxílio militar macaense para abafar a revolta de Zhelin. À cabeça deste sector encontrava-se o General de Brigada Yu Da-you, ao que tudo indica em estreitas relação com Wu Guifang, Comandante em Chefe da Província do Guangdong/Guangxi.

c) O terceiro partido, que poderemos chamar de "estrategista", preferia lidar com os estrangeiros de Macau de uma forma mais política, a que chamavam a "via superior". Ponderava cuidadosamente as vantagens e inconvenientes de privilegiar a riqueza (que advinha do comércio com os estrangeiros) em relação à segurança e integridade territorial da província e do Império. Para os seus seguidores, impunha-se como desígnio primeiro a formulação de um compromisso entre a macro-política de Pequim e a realpolitik provincial, por forma a constituir-se uma matriz de relacionamento com os estrangeiros de uma forma geral, e com os Portugueses em particular. À guisa de balanço, propõem uma solução de duas directrizes complementares: o reforço do controlo burocrático sobre as actividades de Macau e a mais próxima vigilância militar sobre a vizinhança deste estabelecimento. O facto de a figura de proa deste partido ser o Censor Imperial Pang Shangpeng, apresenta-se como o indício mais de que, neste período da dinastia Ming, ao menos uma parte dos burocratas da capital não se mostrava totalmente impermeável às adaptações políticas e económicas ditadas por uma certa abertura ao exterior das províncias marítimas do Sul.

A total ausência de documentação oficial relacionada com o processo da missão diplomática à China em 1563 impede que se equacionem com rigor as condições em que esta foi proposta e preparada junto do Vice-Rei de Goa. Pode levantar-se, contudo, a hipóteses de que Diogo Pereira tenha agido com grande sentido de oportunidade neste momento de secundarização da China na lista de prioridades diplomáticas do Estado da Índia, para chamar a si e à comunidade de mercadores macaenses a condução da diplomacia portuguesa com a China. O principal continuava sendo a preservação de uma relação de equilíbrio com as autoridades chinesas, verdadeira pedra de toque da sobrevivência de Macau como florescente centro de comércio internacional. Como que a prová-lo, corriam rumores insistentes em Goa fortemente críticos dos reais propósitos da missão diplomática de 1563, dizendo-a absolutamente estra-nha ao serviço da Coroa Portuguesa.

Como quer que fosse, a comunidade macaense acumulou dois desaires no seguimento da missão diplomática de Gil de Góis, deixando antever uma amanhã difícil para a cidade:

i) A destruição da "camuflagem" dos mercadores de Macau (usualmente ocultados como gente do Sião ou de Malaca). Pela primeira vez são Portugueses de Portugal (Pu-li-tu-chia). Do ponto de vista formal, a missão diplomática é recusada, visto que tal país não existia nos registos imperiais como tributário do Império Chinês.

ii) O falhanço da missão diplomática (que se deteve entre Macau e Cantão durante cerca de três anos) pôs em evidência que, apesar dos bons contactos angariados pelos mercadores macaenses (liderados pela família Pereira) no campo chinês, estes não dispunham ainda da experiência na sua eficaz gestão, nem estavam suficientemente familiarizados com as subtilezas do meio político do Guangdong/Guangxi. Quiseram ver uma unidade de posições no campo chinês que lhes fosse favorável, quando a realidade era precisamente a oposta. Quase como num jogo de espelhos, os mercadores macaenses foram instrumentalizados com mestria por alguns oficiais chineses (precisamente aqueles que mais se lhes opunham), quando supunham estar a manipulá-los. Com o correr do tempo, aprenderiam que para salvaguardar o projecto municipalista luso--asiático de Macau, em cooperação com as autoridades locais chinesas, convinha não olvidar que a cordialidade e o bom entendimento superficiais ocultam, bastas vezes, tensões e conflitos. Como lembra um antigo provérbio malaio: "Só porque a água está límpida, não penseis que não há crocodilos".

NOTA BIBLIOGRÁFICA

Dispensamo-nos de referenciar os títulos e autores invocados no início do texto, sobejamente conhecidos e citados, e que extravazam do tema e cronologia que nos interessam. Em contrapartida, parece de maior utilidade apresentar alguns dos trabalhos mais recentes ou menos conhecidosde que uma parcela se mantém inéditana historiografia de Macau e dos contactos entre Portugal e a China.

Como estudo introdutório ao historial das relações luso-chinesas até à década de 1540, encorpado com nova documentação portuguesa, veja-se João Paulo O. Costa, Do sonho manuelino ao realismo joanino. Novos documentos sobre as relações luso-chinesas na terceira década do século XVI, in Studia, Lisboa, n. ō 50,1991, pp.121 - 156. Para uma visão mais alargada temporalmente e concentrada sobremaneira no relacionamento protocolar entre a Coroa Portuguesa e o Império Chinês, consulte-se o capítulo respectivo em António Vasconcelos Saldanha, lustum Imperium. Poder, Direito e Ideologia na construção do Império Português do Oriente, Lisboa,1994 (no prelo).

Do ponto de vista da História da China, a obra mais completa e estimulante que estranhamente permanece inédita é a de Kai Cheong Fok, The Macao Formula: A Study of Chinese Managemente of Westerners from the Mid-Sixteenth Century to the Opium War, Tese de Doutoramento (exemplar policopiado), University of Hawaii,1978.

Não abunda a bibliografia rigorosa e documentada mormente cruzando fontes portuguesas e chinesas sobre os primórdios de Macau. Todavia, sobressaem do conjunto três estudos: Jordão de Freitas,"Macau. Materiaes para a sua historia no seculo XVI", in Archivo Historico Portuguez, vol. VIII, n. ō 5,6 e 7, Maio a Julho de 1910, pp.209 - 242, nova edição pelo Instituto Cultural de Macau, Macau,1988; Benjamim Videira Pires SJ,"Os Três Heróis do IV Centenário" e "Cartas dos Fundadores", ambos in Boletim Eclesiástico da Diocese de Macau, n. ō 62, Out./Nov.1964, pp.687 - 728 e 729 - 802 respectivamente; William R. Usellis, The Origin of Macao, Tese de Dotoramento (exemplar policopiado), University of Chicago,1958. Além destes, poderá ainda ver-se o nosso estudo, de que este é uma espécie de síntese,"Diplomacy, War and Business in Macao's Early Days According to Juan d'Escobar's Comentarios (c.1565)", Actas do International Colloquium on Portuguese Discoveries in the Pacific, University of California, Santa Barbara,1994 (no prelo).

Enquanto se aguarda a feitura de séries biográficas relativas à História de Macau de resto inexistentes também para outras regiões de presença ultramarina dos Portugueses, e no que respeita às biografias de algumas personagens mencionados no texto, podem ver-se: Charles Ralph Boxer, Fidalgos no Extremo Oriente, (trad. portuguesa), Fundação Oriente/Museu e Centro de Estudos Marítimos de Macau, Macau,1990; Georg Schurhammer SJ,"Doppelganger in Portugiesisch-Asien", in Orientalia, Roma/Lisboa,1963, pp.121 - 149.

As biografias de muitas das figuras chinesas aludidas no texto, encontram-se em H. A. Giles, Chinese Biographical Dictionary, Londres,1898, e especialmente no Dictionary of Ming Biography, 1368 - 1644, ed. de L. Carrington Goodrich e Fang Chaoying, Nova Iorque,1976.

Agradecemos ao Dr. Qian Jiang da Universidade de Xiamen as informações sobre os conteúdos de diversas fontes chinesas, bem como os comentários à primeira e mais desenvolvida versão deste trabalho.

* Mestre em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa (Séculos XV a XVIII) pela Universidade Nova de Lisboa. Assistente da Universidade de Macau. Especialista em História da Ásia do Sueste e da Presença Portuguesa no Oriente.

desde a p. 6
até a p.