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MACAU: UM PERÍODO "PRÉ-PÓS-COLONIAL"

Christine Cheung Miu Bing*

A chegada de Jorge Álvares à ilha de Tamão (agora chamada ilha de Lantau e incluída no território de Hong Kong), em 1513, foi não só o primeiro encontro "oficial" das duas civilizações, como o início do domínio português em Macau. No entanto, a soberania sobre Macau constitui, de há muito, um tema problemático, desde que os Portugueses aqui se abrigaram, em 1557. Nomeadamente, as Histórias de Macau escritas por Ljungstedt e Montalto foram dramaticamente controversas. Como resultado, estes dois autores caíram, inadvertidamente, num cenário de tipo Jano, correspondendo ao paradigma herói/traidor. Como Macau está destinado a ser descolonizado em 20 de Dezembro de 1999, tem havido um fervor sem precedentes a nível de publicações, quer por parte dos Portugueses quer por parte dos Chineses, criando um nostálgico epílogo em relação às sincréticas matrizes culturais de Macau e ao seu particular papel histórico. Além disso, muito antes da sua descolonização, Macau já está impregnado de uma espécie de ambiente "pré-pós-colonial".

A retirada do monumento equestre de Ferreira do Amaral (em 28 de Outubro de 1922) pode, talvez, servir para verificar a adequação deste rótulo aparentemente despropositado. As questões em causa são: como é que esta designação contraditória,"pré-pós-colonialismo", pode explicar a de certa forma peculiar situação em Macau; e podem os parâmetros culturais ocidentais ser aplicados a este momento histórico específico no Macau de hoje?

"Procuro Cristãos e especiarias".

Vasco da Gama

Um dos mais célebres navegadores portugueses, Vasco da Gama, partiu de Portugal em 1496, ultrapassou com sucesso o Cabo da Boa Esperança e chegou à Índia em 1498. A descoberta do cabo da Boa Esperança não só marcou o zénite da mais difícil e perigosa viagem de exploração marítima, como o ínicio do imperialismo e da colonização Europeia no Oriente. Todo o projecto de colonização está, talvez, condensado nesta lacónica observação: "Procuro Cristãos e especiarias", que anuncia uma relação simbiótica entre motivos ideológicos e aventura económica.

Durante o período isolacionista da dinastia Ming na China, acreditava-se que Jorge Álvares, feitor do entreposto de Malaca, fora o primeiro português a pisar o solo Chinês (na ilha de Tamão, agora conhecida por ilha de Lantau), em Junho de 1513, em nome do rei de Portugal (Keil,1990:47). A chegada de Álvares marcou o significativo encontro em que o Império do Meio se confrontou pela primeira vez com o seu "outro" Ibérico, conduzindo ainda à subsequente "ocupação" de Macau como centro religioso e local de comércio. Álvares foi, sem dúvida, o precursor da mistura do Ocidente com o Oriente. Ao mesmo tempo que abria o caminho para a posterior chegada de influentes jesuítas, como o padre Mateus Ricci, São Francisco Xavier ou Santo Inácio de Loiola, consolidou as "fabulosas" histórias sobre as riquezas do Império Celeste que Marco Polo fizera chegar ao seu país natal. O monumento de Jorge Álvares, erigido numa localização privilegiada na Rua da Praia Grande em 1953, poderia implicar duas conotações: a comemoração da grande missão de abrir pela primeira vez as portas durante o período de "portas fechadas" da dinastia Ming, e a celebração de uma espécie de "Pax Lusitania"1, uma ideologia de ecumenismo e expansão comercial, as duas forças decisivas que levaram os Portugueses a navegar para Oriente.

O ano de 1557 foi, dum modo geral, aceite como a data da fixação permanente dos Portugueses em Macau. A tolerância das autoridades Ming relativamente à presença daqueles deveu-se principalmente a dois factores: uma atitude pragmática que favorecia o comércio, e consequentes ganhos derivados dos direitos e taxas alfandegárias, e as considerações de ordem prática relativas à defesa da costa contra os piratas e grupos rebeldes que actuavam na área (Fok,1991:328). Como sublinha K. C. Fok, a política dos Ming em relação à actuação portuguesa em Macau merece bem a designação de "Fórmula de Macau". No entanto, esta tolerância da presença portuguesa nunca foi claramente admitida em qualquer texto oficial. Além disse, esta mesma polí-tica representou um desvio em relação aos padrões Ming a nível comercial e de relações com outros esta-dos na cosmovisão Sino-cêntrica, e não obteve qualquer ratificação imperial directa por parte da dinastia Ming (Fok,1991:342 - 3). Portugal não foi reconhecido como vassalo da China dos Ming, e Macau nunca foi cedido a Portugal como colónia. É, portanto, obviamen-te incorrecta a declaração, por parte dos Portugueses, de que o imperador da China lhes ofereceu Macau. Apesar de aqui se terem "instalado" há cerca de 400 anos, nun-ca o direito de soberania sobre Macau lhes foi reconhe-cido oficialmente. Lam Chee Shing dedicou-se à inves-tigação deste problema da soberania, tendo chegado à seguinte conclusão: "É também incorrecto afirmar que os Portugueses obtiveram Macau pelo direito de con-quista ou por generosidade imperial, já que eles foram apenas "ocupantes" que mantiveram a sua posição em Macau através de uma combinaçáo de fraqueza, cor-rupção e hesitação a nível político por parte das auto-ridades chinesas locais." (Lam,1970:828.)

Ao contrário do que se passou com outras coló-nias portuguesas, adquiridas por meio de agressão e violência, Macau foi ocupado e "colonizado" de forma anómala relativamente ao padrão habitual de colonização através de conquista.

A soberania de Macau constitui desde há muito um tema controverso. Em 1832 já o sueco Anders Ljungstedt (1759 - 1835) publicava um estudo sobre a História de Macau, o primeiro sobre este tema -- e em língua inglesa -- afirmando que Macau era território Chinês. Para além disse, salientava de forma severa a arrogância e as pretensões dos Portugueses, nomeada-mente o absurdo da sua reivindicação quanto à sobera-Na sobre Macau, apesar de cederem à exigência, por parte dos Chineses, de uma renda anual de 500 taéis pelo direito de utilizarem Macau. Escreve ele: "Já que nunca nenhum contrato ou tratado de paz veio a públi-co, é totalmente impossível determinar os limites últi-mos da conquista que os Portugueses pretendem ter feito dessa ilha (Macau) [...] Uma cidade, chamada Cidade do Nome de Deus de Macau, ergueu-se gradu-almente na península, não por graça e concessão de qualquer dos imperadores da China, pois tal não se pôde provar, mas pelo sucesso das nobres armas de Portugal." (Ljungstedt,1992:8.)

Após a publicação, foi violentamente atacado pelos historiadores portugueses, que consideraram falaciosas as suas afirmações. No entanto, no Prefácio da edição de 1992, Monsenhor Manuel Teixeira, histo-dador de nomeada, condenou a acusação mas fez altos elogios ao trabalho sério e desinteressado de Ljungstedt sobre a História de Macau. A afu'mação de Ljungstedt acerca da soberania sobre Macau baseava-se na pesqui-sa de documentos históricos e manuscritos. Além disse, os factos de Ljungstedt dominar o português representa-va uma enorme vantagem,"permitindo-lhe o acesso a documentos portugueses e a elaboração da primeira História de Macau em inglês. Os preconceitos dos críti-cos portugueses em relação a Ljungstedt deveram-se ao facto de a sua História p6r em causa a pretensão portu-guesa quanto à legitimidade da soberania sobre Macau.

Num estilo diferente, Carlos Augusto Montalto de Jesus, um poliglota nascido em Hong Kong (1863 -1927), escreveu outra resenha histórica de Macau, pu-blicada pela primeira vez em 1902,70 anos depois da de Ljungstedt. A primeira edição do Historic Macao, de Montalto de Jesus, foi saudada entusiasticamente, e o Senado de Macau sugeriu mesmo que o autor fosse condecorado pela sua grande obra. Ao contrário de Ljungstedt, que defendia que os Portugueses não ti-nham quaisquer direitos sobre Macau, Montalto de Je-sus afirmava "que os Portugueses tinham sido convida-dos pelos Chineses a instalar-se em Macau, e que, nos primeiros tempos, não havia qualquer renda". (Montalto,1984: VII.) Tomou-se imediatamente um he-rói no seio da comunidade, pois a sua "História" coinci-dia com a versão defendida pelo Governo de Macau; e, sobretudo, justificava abertamente a presença de certa forma ilegal dos Portugueses em Macau.

Após algum tempo, Montalto de Jesus sofre uma profunda desilusão quanto às relações entre Macau e Portugal. Inicia a segunda edição de Historic Macao, a que acrescenta vários novos capítulos. Foram precisamente esses últimos capítulos que o transformaram instantaneamente, de herói nacional que era, num reles traidor. A segunda edição surge em 1926, num tom acutilante contra os Portugueses: "Fundamentalmente, a ruína de Macau deve-se às duplas e perpétuas falhas, quer de Portugal quer da China, bem como às catastróficas maquinações de Hong Kong, sobretudo nos primeiros tempos desta colónia..." (Ibid: 510.)

Para salvar do previsível golpe final a triplamen-te vitimada colónia, que já fora a "pérola do Oriente", Montalto prossegue: "[...] a não ser que, providencial-mente, aconteça algo de inesperado, o enfraquecido Macau terá de ir à deriva na maré de azares onde navega, até se afundar por completo; ou, mais tarde ou mais cedo, Portugal terá de passar a sustentá-lo como um peso morto; ou, melhor dizendo, como um justo castigo pela negligência e mau governo sistemáticos ao longo dos tempos. É este, infelizmente, o triste destino que espera esta colónia portuguesa, que sempre foi auto-suficiente, cujo nobre brasão heráldico é o próprio brasão nacional e cuja divisa é 'Não Há Outra Mais Leal'. Na História da Colonização dificilmente poderemos encontrar outro caso de cruel expiação e de lealdade mal recompensada semelhante a este. A civilização bem pode ficar perplexa perante tal ironia do destino, tão pacientemente suportada durante séculos de martírio. Mas é óbvio que só uma catástrofe poderá despertar a nação sonolenta (Portugal) para o seu sentido do dever, perante a severa lógica dos factos e a Nemesis do destino em plena actividade. (Ibid:506.)

Completamente desiludido com o Governo de Macau, Montalto tinha, simultaneamente, uma visão utópica da Liga das Nações, a qual, no seu entender, poderia salvar Macau da ruína total. A Liga das Nações é fantasticamente idealizada como sendo um verdadeiro presente dos deuses, e Montalto deposita nela total esperança de uma intervenção messiânica. Montalto nunca sonhara que a abandonada e velha "pérola do Oriente" viria a ser retomada pela China no final do século. Se assim fosse, talvez tivesse acrescentado outro capítulo, exigindo à China que prestasse a Macau a consideração devida.

O último capítulo foi, portanto, considerado como uma úlcera no conjunto do livro, e um claro desafio à impotente Administração Portuguesa. Como era inevitável, enfureceu o Governo de Macau, sobretudo por Montalto fustigar implacavelmente os Portugueses. Estes sabiam tão pouco sobre Macau, preocupavam-se tão pouco e eram tão incompetentes quanto a ir de encontro aos desejos de Macau, que mais valia arriar a bandeira portuguesa e o Território passar a ser administrado pela Liga das Nações. O Governo de Macau condenou imediatamente a segunda edição, que considerou "herética", "apreendeu toda a edição e queimou-a em público. Todos os que tivessem comprado um exemplar receberam ordens para o entregar, a fim de ser destruído". (Ibid: IX.)

Quer Ljungstedt quer Montalto foram considerados traidores pelas autoridades portuguesas. O primeiro era sueco e o segundo cidadão de Hong Kong, mas ambos escreveram em inglês sobre a História de Macau. Era óbvio que a versão em inglês se destinava não só aos leitores portugueses como também a um público mais vasto. Convém referir que a palavra "história", em português, significa não só o relato de acontecimentos históricos, como também qualquer narrativa, e o mesmo sucedia na língua inglesa até ao século XIX.

Qualquer obra, quer se trate de um relato de factos reais, quer de uma narração fantasiosa, tem como destino ser censurada ou reprimida se não estiver do lado do governo vigente. Walter Benjamin observa sagazmente que a História é "um instrumento das classes dominantes"(Benjamin,1968:257). A História não só tende a reflectir o poder dominante, como também se ajusta ao vencedor e à ideologia da ordem legítima. Não surpreende minimamente que o livro de Ljungstedt tenha sido estigmatizado e fosse impiedosamente atacado, simplesmente porque a História que escrevera não celebrava os feitos dos Portugueses, mas revelava a insuportável "verdade". No entanto, em 1992, a sua obra foi, finalmente, encarada como uma inestimável fonte para o estudo da História de Macau, e a sua reputação reabilitada. Passou, assim, a ser um traidor que se transformou em herói, autor da primeira História de Macau em inglês. Apesar de Montalto ter sido, no passado, condenado como herói que se transformou em traidor devido à fúria provocada pela segunda edição, a sua obra é indispensável para o estudo da permanência Portuguesa desde os primeiros anos do século XVI até ao princípio do século XX. Dum modo geral, estes dois historiadores são, inadvertidamente, apanhados na teia dum cenário do tipo Jano2, correspondente a um paradigma herói/traidor sob a ideologia colonial portuguesa. devido às suas obras, ambos vacilam dramaticamente no cenário de elogio/condenação, assim como oscilam entre as demarcações ambivalentes de "bom" e "mau" sob a administração colonial. Na generalidade, quer Ljungstedt quer Montalto representam um paradigma bifacetado, movendo-se na oposição maniqueísta dos bons e dos maus no discurso colonial.

Após a Declaração Conjunta Sino-Portuguesa de 1987, Macau passou a ser alvo duma atenção sem precedentes, quer por parte dos Chineses, quer dos Portugueses, relativamente aos seus 400 anos de História e à sua cultura sincrética. No passado, a História de Macau escrita em língua chinesa era com frequência considerada como um capítulo ou uma parte da História da província de Cantão3; mas, em Julho de 1988, foi publicada em Hong Kong a obra Aomen Shilue (《澳門記略》), uma breve História de Macau, em caracteres chineses clássicos. A China também não perdeu tempo em publicar (em caracteres chineses simplificados), Aomen Sibainian (《澳門四百年》), relativa aos 400 anos da História de Macau, em Setembro de 1988. Por ironia, o autor de Aomen Sibainian admitiu, no Epílogo, nunca ter estado em Macau, e ainda que a sua pesquisa a nível de arquivos poderia não ser completa. Parece ter tido um súbito fervor de escrever a História de Macau. Quer Aomen Shilue quer Aomen Sibainian foram publicadas pelos Chineses, o que poderá representar um monólogo no seio da perspectiva chinesa.

Em 1992, o Padre Benjamim António Videira Pires publica também um livro em português, Os Extremos Conciliam-se, (《殊途同歸——澳門的文化交融》)que abarca os 400 anos da História de Macau e a formação da sua cultura, contribuindo para dar uma perspectiva dialógica, apresentando uma visão de Macau distinta da chinesa; e o leitor pode ouvir uma voz diferente. O que é notório na obra de Pires é, em primeiro lugar, o facto de este reiterar que, segundo alguns registos oficiais e uma carta do governador de Macau datada de 1846, Macau fora de facto dado a Portugal "para sempre", e que "não era necessário pagar uma renda anual". Isso teria sido decretado pelo imperador Jiajing (嘉靖), da dinastia Ming (1522 - 1566), cerca de 1557, num documento de posse de terras chamado "chapa de ouro" (金劄)4. Infelizmente, o paradeiro deste documento era um enigma (Montalto,1984:23), e ter-se-ia provavelmente perdido nos princípios do século XIX (Pires,1992:93 - 101). Para além disso, Pires salientava que aquando da publicação, em 1832, de An Historical Sketch, por Ljungstedt, o referido documento já estaria perdido. Porém, parece pouco convincente que uma prova tão importante de um "presente" se tivesse extraviado. Em segundo lugar, no final do mesmo capítulo, Amaral era saudado como um "herói" por ter forçado, com sucesso, os Chineses a abrirem mão da renda exigida, e por ter expulsado a Alfândega Chinesa da cidade Cristã (Macau). Mas os incidentes do assassínio de Amaral pelos Chineses e a invasão de Beishaling (白沙嶺) por Mesquita foram totalmente omitidos. Também a sórdida história do tráfico de cules em Macau está omissa na sua História. Finalmente, o passado colonial é, no texto de Pires, estranhamente mediatizado, e a sua História de Macau embelezada, sendo expurgada dos acontecimentos indesejáveis. A sua empatia com o Governo de Macau é claramente visível.

Em 1987, o Instituto Cultural de Macau (criado em Setembro de 1982), publicou o primeiro número da Revista de Cultura, simultaneamente em português, chinês e inglês, o que nunca fora feito antes. A RC é uma publicação trimestral da Cultura e História de Macau. Segundo o editor, este projecto cultural pretende ser "servente da identidade cultural de Macau e da presença portuguesa no Oriente, agente da mais íntima relação entre as nações Portuguesa e Chinesa" (Revista de Cultura, n. ō 1,1987:2). Em 1988, o ICM também publicou um texto trilingue, Património Cultural de Macau, com imagens que ilustram de forma muito completa vários tipos de arquitectura existentes em Macau. Além disso, houve lugar à criação, tardiamente, de instituições como a Fundação Oriente e a Fundação Macau, para promover a herança cultural de Macau.

É só após o destino de Macau se ter tomado claro que tanto Chineses como Portugueses passam a prestar uma atenção extraordinária e sem precedentes à sua evolução no período anterior ao previsto "epílogo colonial" de 1999. Actualmente, Macau é um lugar para a nostalgia, nostalgia pela herança cultural sincrética e pelo seu papel excêntrico na História. Estes interesses apaixonados, ora presentes em Macau, parecem fazer eco à tese de Walter Benjamim de que só aquilo que está prestes a desaparecer se toma um símbolo. Macau, actualmente, é como um moribundo "apaparicado" antes de falecer. Há dez anos, tal abundância de publicações sobre Macau por parte de ambas as comunidades que a habitam seria perfeitamente inconcebível. É como se as duas comunidades tivessem estado permanentemente extasiadas perante aquilo a que Freud chama "alucinação invertida"5, ou seja, sem ver as coisas que estavam efectivamente presentes, mas tivessem sido subitamente acordadas por um despertador (a Declaração Conjunta de 1987), percebendo então que Macau, o último reduto colonial português, vai desaparecer. Dada a singularidade deste "espaço de alucinação invertida" durante tanto tempo descurado, as duas comunidades revelam, subitamente, um fervor sem precedentes, criando um nostálgico epílogo ou, mais precisamente, uma multiplicidade de publicações relativas a todos os aspectos de Macau.

A Declaração Conjunta assinada a 13 de Abril de 1987 entre a República Popular da China e a República Portuguesa não só afirma que a China retomará o exercício da soberania sobre Macau em 20 de Dezembro de 1999, como também significa a descolonização, real e simbólica, de Macau em relação a uma anomalia da administração colonial6. Trata-se, com efeito, de um simulacro de descolonização, por não haver provas de uma verdadeira colonização.

Porém, o monumento equestre de Ferreira do Amaral foi visto como autêntico símbolo da colonização portuguesa em Macau7. Saudado pelos Portugueses como um herói/mártir, era visto como um invasor/opressor pelos Chineses. Também Amaral foi transformado numa figura de tipo Jano, ao ser apanhado no paradigma herói/invasor em diferentes discursos culturais. O monumento não se toma, metonimicamente, na sombra acorrentada do colonialismo, como também lembra aos Chineses o doloroso e mutilado passado do qual não querem ser recordados. O fiat para a retirada do monumento, proferido por Lu Ping, (魯平) Director do Gabinete Chinês para os Assuntos de Hong Kong e Macau, serve, assim, a ideologias políticas evidentes: é a manifestação da consciência política chinesa, na negação dum passado pouco agradável e na criação duma amnésia histórica em relação à indesejável "verdade" dos seus dias vergonhosos. Para os Chineses, a História de Macau é dolorosa e representa uma ferida. A "expurgação do símbolo colonial" é, assim, uma das tarefas da cultura de resistência, já que a restauração duma ordem nacional mais agradável do que a fornecida pela História Colonial é fortemente sentida pelos Chineses como uma "missão" para o final do século.

A retirada da estátua de Amaral é, essencialmente, devida a razões políticas, mas envolve também factores culturais. Há a crença de que o monumento originava mau fong soi para o recentemente concluído edifício do Banco da China. A quem estivesse à entrada do edifício do Banco, parecia que o chicote de Amaral fustigava todo o edifício; na perspectiva oposta, de quem estivesse junto à estátua, parecia que o cavalo pisava e esmagava o Banco. Por conseguinte, a estátua destruía completamente a harmoniosa geomância do novo edifício do Banco da China, o edifício mais alto que já se construiu em Macau. No entanto, poder-se-ia argumentar que a estátua tinha sido erigida muito antes da construção do edifício do Banco e que, se estar virado para a estátua dava mau fong soi ao Banco, o arquitecto bem podia ter evitado esse problema alterando a orientação pouco auspiciosa. Neste caso o fong soi, sendo um fenómeno cultural, toma-se o pretexto político para legitimar a remoção do símbolo colonial num momento "prematuro", anteriormente à tomada de posse de 1999.

O edifício do Banco é, afinal, não um mero arra-nha-céus para escritórios pertencente ao Governo Chinês, mas uma representação metonímica dum poder emergente, e um marco tangível, em Macau, representando a autoridade e a influência evidentes da China após cerca de quatrocentos anos de administração estrangeira. Se o monumento equestre manifestava o poder colonial português, o novo edifício do Banco representa a esmagadora autoridade da China, que é, de certa forma,"anacrónica" no ambiente colonial. A remoção do monumento, em 28 de Outubro de 1992, marcou aparatosamente o processo de "uma descolonização prematura num contexto colonial". É um anacronismo, bem como uma celebração prematura, apagar a iconografia colonial/imperial quando Macau se encontra ainda sob administração portuguesa. A ordem para a remoção é anacrónica pelo simples motivo de que o Governo Chinês exerceu "antecipadamente" o poder pós-colonial, instaurando uma nova ordem cultural, ao petrificar a contaminação dum ícone verdadeiramente colonial. Esta peculiar actuação pode ser designada por "descolonização anacrónica" e cria uma temporalidade problemática para um progresso linear em direcção ao pós-colonialismo. O termo "pós-colonialismo" subentende a ideia de que a História é constituída por uma série de momentos que se sucedem ao longo do tempo, do "pré-colonialismo" para o "colonialismo", o "pós-colonialismo" e o "neo-colonialismo". O termo "pós-colonialismo" tem uma conotação temporal que implica uma progressão a nível dos factos históricos.

A retirada do monumento referido antes da morte do colonialismo parece ter marcado uma passagem para um novo momento e o fim duma época histórica difícil. No entanto, criou um cenário ambivalente no tocante à definição dum progresso linear da cronologia da História de Macau: colonialismo — descolonização — pós-colonialismo. Toma-se portanto evidente que, no caso de Macau, a periodização e a relação entre teorias e práticas segundo os princípios Euro-cêntricos revelam discrepâncias e áreas de contestação. O desaparecimento físico da estátua pode sugerir a castração, em termos simbólicos, do poder colonial português e, simultaneamente da presença portuguesa com a descontinuidade do seu discurso colonial. Além disso, constitui uma antecipação do início oficial da descolonização, a ter lugar em 20 de Dezembro de 1999. Se a remoção desse monumento equestre pode implicar que o colonialismo já faz parte do passado, também é possível perceber que o momento histórico actualmente vivido em Macau ainda não é pós-colonial. Macau encontra-se, neste momento, grotescamente situado num contexto problemático sob os pontos de vista histórico e teórico, e poderemos, talvez, designar por "pré-pós-colonialismo" o período compreendido entre agora e 1999. Embora este termo contraditório possa parecer deselegante e estranho, retrata com precisão o singular ambiente pré-pós-colonial em Macau, onde os Chineses já exibem antecipadamente a sua "legítima" influência.

Em resumo, os processos de colonização e de descolonização em Macau podem perfeitamente ser descritos como quase constituindo uma anomalia, pois os fenómenos não se adequam à crença generalizada, entre os teóricos, de que colonização é equivalente a conquista e descolonização a reconquista. Para além disso, os padrões culturais ocidentais, que pressupõem um progresso linear do tipo colonialismo — descolonização— pós-colonialismo, não podem ser aplicados a Macau, pois há aqui uma óbvia infracção à periodização linear subentendida nestas designações, e Macau encontra-se agora, por ironia, num período "pré-pós-colonial".

(Traduzido do Inglês)

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS

1 Lusitania era a designação dada pelos Romanos à região onde agora se situa Portugal. Pax Lusitania deriva de Pax Romana, que significa "paz romana". Segundo o Webster's Dictionary, Pax é um período da História Internacional caracterizado por uma ausência de guerras significativas e por uma estabilidade generalizada a nível internacional, geralmente resultante da predominância duma determinada autoridade política (durantea Pax Britannica do século XIX construiu-se um vasto império comercial).

2 Jano é uma divindade latina da Antiguidade, geralmente representado com duas caras olhando em direcções opostas. Por conseguinte, inclui duas facetas contrastantes.

3 Por exemplo, a História de Macau é apenas parte de (《廣東新語》卷2、〈香山縣誌〉卷8、彭琪瑞等: 香港澳門》)

4 Era um documento oficial chinês escrito com caracteres dourados. Os Portugueses sempre afirmaram que este documento honorífico lhes tinha sido dado como prova da concessão solene de Macau a Portugal.

5 Visto que "alucinação" significa ver o que não está presente,"alucinação invertida" significa não ver o que o está.

6 Em 1976, Macau passou a ter o estatuto de "território chinês sob administração portuguesa", uma fórmula inadequada para definir Macau como uma colónia portuguesa e que tomava impossível, também, generalizar a ideia de descolonização em Macau. É, de facto, uma forma peculiar para retirar a Macau o estatuto de colónia mas que, ao mesmo tempo, admite a administração portuguesa.

7 O temperamental João Maria Ferreira do Amaral foi governador de Macau de 1846 a 1847. Após a sua posse, implementou uma série de reformas severas, com o objectivo de libertar Macau da interferência chinesa. A sua dura política acabou porlevar ao seu assassínio pelos Chineses.

* Mestra pela Universidade de Hong Kong.

desde a p. 89
até a p.