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A PROTECÇÃO DO PATRIMÓNIO MUNDIAL, CULTURAL E NATURAL*

MONTES E MARAVILHAS

Templos e fortalezas, grutas de caçadores paleolíticos, savanas, glaciares, palácios barrocos, minas de sal, frescos medievais, ruínas misteriosas dos desertos da Ásia e das florestas americanas, rochedos e catedrais, Moendjodaro e Roma, estátuas e vulcões...

Que há de comum entre estes edifícios e estes espaços virgens separados por milhares de quilómetros ou dezenas de séculos, entre estes montes e estas maravilhas, entre tantos objectos diferentes?

Duas coisas:

Em primeiro lugar: Cada um deles é considerado como único, sem preço, insubstituível. Todos fazem parte do património mundial, cultural e natural. Mais de 60 governos pedem à Unesco que declare o valor universal excepcional destes bens.

Em segundo lugar: Todos estão em perigo.

O emblema do património mundial simboliza a interdependência dos bens culturais e naturais: o quadrado central representa a forma criada pelo homem e o círculo a natureza, as duas intimamente ligadas. O emblema é circular como o mundo, simbolizando também protecção.

PATRIMÓNIO MUNDIAL UM NOVO CONCEITO

O conceito de património mundial é recente e permanecerá por muito tempo surpreendente. Os nossos antepassados sabiam talvez que os Jardins de Lahore, as mesquitas do Cairo, a Catedral de Amiens e os hipogeus de Malta eram monumentos sumptuosos, raros, estranhos. Por vezes, mostravam-se sensíveis ao esplendor de uma montanha, de um grande rio e até de uma selva povoada de animais selvagens e chegavam a admitir que estes elementos pudessem fazer o orgulho de um povo e testemunhar a nobreza da sua história, ou que estes acidentes geográficos pudessem simbolizar uma nação, suas aventuras e suas descobertas. Mas não lhes teria ocorrido a ideia de que isso tivesse um "alor universal".

Até às últimas décadas, nenhuma civilização reconheceu este valor a parcelas de territórios nacionais nem a obras palpáveis, quaisquer que fossem a sua origem e a sua forma. Presentemente admite-se que os monumentos e os sítios mais admirados num dado local deveriam sê-lo em qualquer parte e que todos os povos têm o mesmo património.

Todos compreendem isto facilmente quando se trata de bens naturais. As reservas biológicas interessam a todos os seres da nossa espécie. Os grandes ecossistemas não se submetem a fronteiras, e a propriedade "nacional" dos fenómenos naturais tem algo de irrisório. É evidente que as belezas da natureza são para partilhar e para respeitar em comum, por todos os homens, precisamente porque não foram criadas por nenhum homem.

Para aquilo que o homem criou, a universalidade não é imediatamente evidente. Pois não se trata de edifícios enraizados num território, inseparáveis de uma paisagem e de uma época, fabricados pêlos homens desse território que agiam com intenções e segundo as normas que lhes eram próprias, noutros termos: coisas materiais que não têm sentido senão pelo espírito que inspirou a sua construção?

O MELHOR DA NOSSA HERANÇA

Ora é um facto que é cada vez maior o número de contemporâneos nossos que sabem e sentem que estes bens — onde quer que se encontrem — lhes são tão preciosos como se verdadeiramente lhes pertencessem. A história começa a tornar-se humana. Operam-se intercâmbios numa descoberta de igualdade que faz eclodir os etnocentrismos e perturba, enfim, a contemplação satisfeita dos "nossos" monumentos, manifestações inimitáveis dos "nossos" valores.

A evolução cultural explica inegavelmente esta atitude: o isolamento nacionalista passou de moda. E além disso já nenhuma civilização pode consentir a perda dos testemunhos do passado em geral, sendo também seu o passado dos outros. Vêem-se cidadãos a mobilizar-se para a conservação de buris, de ruínas e de árvores. São bem conhecidas as causas desta mudança: coincidem com o aumento das preocupações provocadas pela degradação do ambiente, o esgotamento dos recursos naturais, a aflitiva monotonia desta arquitectura uniforme que por vezes se impõem em locais tão diversos do planeta. Em mais de uma antiga cidade, alguns homens tinham enaltecido, a maior parte das vezes em vão, o valor de monumentos e de bairros milagrosamente preservados desde há muitas gerações. Repentinamente, este valor tornou-se evidente para milhões de pessoas. Estes edifícios, estes conjuntos são-nos revelados como êxitos absolutos e não só como vestígios comoventes. Êxitos absolutos e terrivelmente frágeis.

PATRIMÓNIO AMEAÇADO

Frágeis, porque os bens culturais e naturais são tanto mais ameaçados quanto mais antigos ou mais delicadamente trabalhados, mais raros ou mais cobiçados. Para além das catástrofes, e do envelhecimento, eles estão expostos às poluições físicas e químicas em que a nossa época é pródiga: às invasões da urbanização, às especulações imobiliárias e turísticas, ao vandalismo ou a tudo isso simultaneamente. Numa palavra, são os primeiros a ser atingidos pelas agressões sofridas pelo ambiente em geral. Exigindo cuidados que até agora muito raramente lhes foram concedidos, não resistiriam a mais alguns anos de negligência. Os parques naturais melhor isolados sucumbiriam igualmente: para os destruir bastaria apenas dar ouvidos aos defensores incondicionais do "boom" económico; aqueles para quem a realização de grandes trabalhos, o crescimento do turismo se sobrepõem a qualquer outra consideração.

Uma reserva de flora e de fauna deixada sem protecção (protecção jurídica, científica, administrativa e mesmo policial) desaparecerá em alguns anos. Um monumento histórico, um museu ao ar livre, um sítio arqueológico, estão condenados a breve trecho, se os abandonarmos à sua sorte, por falta de legislação e regulamentos, de meios, de conservadores especializados, de guardas, etc.. A preservação impõe uma vigilância sem tréguas aos técnicos, às autoridades locais, aos governos, e também à comunidade internacional.

PATRIMÓNIO PROTEGIDO

Este dever de vigilância é definido por um instrumento jurídico internacional. É a Convenção para a Protecção do Património Mundial, Cultural e Natural adoptada pela Conferência Geral da UNESCO em 1972. Esta Convenção entrou em vigor em 1975. Em 15 de Outubro de 1982, 67 Estados1 tinham-na já ratificado ou aprovado. Em 30 de Junho de 1992, 126 Estados-membros tinham-na aprovado ou ratificado.

Sua razão de ser: "O património cultural e o património natural estão cada vez mais ameaçados não só pelas causas tradicionais de degradação mas também pela evolução da vida social e económica que as agrava, através de fenómenos de alteração e de destruição ainda mais temíveis". (Convenção, preâmbulo).

Sua finalidade: Criar um sistema que permita à Comunidade internacional participar na salvaguarda de bens (monumentos, conjuntos e sítios) que têm um valor universal de excepção.

Fotografia de Lam Ut Mui.

QUE PATRIMÓNIO DEVE SER PROTEGIDO?

Património cultural:

"— os monumentos: obras arquitectónicas, esculturas ou pinturas monumentais, elementos ou estruturas de carácter arqueológico, inscrições,grutas e grupos de elementos que têm um valor excepcional do ponto de vista histórico, artístico ou científico.

— os conjuntos: grupos de construções isoladas ou reunidas que, em razão da sua arquitectura, da sua unidade ou da sua integração na paisagem, têm um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, artístico ou científico.

— os sítios: obras do homem ou obras conjugadas do homem e da natureza, tal como as zonas, incluindo os sítios arqueológicos, que têm um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etnológico ou antropológico."

Património natural:

" — os elementos naturais constituídos por formações físicas e biológicas ou por grupos de tais formações que têm um valor universal excepcional do ponto de vista estético ou científico.

— as formações geológicas e fisiográficas e as zonas estritamente delimitadas que constituem o "habitat" de espécies animais e vegetais ameaçadas, que têm um valor universal excepcional do ponto de vista da Ciência e da conservação;

— os sítios naturais ou as zonas naturais estritamente delimitadas que têm um valor universal excepcional do ponto de vista da Ciência, da conservação ou da beleza natural." (Convenção, artigos l e 2)

QUEM É O RESPONSÁVEL PELA PROTECÇÃO?

O responsável é, em primeiro lugar, o governo do país em que se encontram os edifícios, as cidades históricas, os elementos naturais, etc. aos quais esse mesmo governo atribuiu um valor excepcional. De facto, cada Estado-parte da Convenção reconhece que "a obrigação de assegurar a identificação, a protecção, a conservação, a valorização e a transmissão às gerações futuras do património cultural e natural situado no seu território é prioritariamente da sua competência" (Convenção, art. ° 4. °).

Mas, por outro lado, os outros governos-parte da Convenção consideram-se também responsáveis por estes mesmos bens. Dado que se admite que este património se torna mundial quando apresenta um interesse excepcional, a amplitude dos perigos que o ameaçam, impõe uma obrigação igual ao conjunto das sociedades e das pessoas que, por hipótese, reivindiquem o património da humanidade. Consequentemente todos os países devem participar na sua protecção "através da concessão de uma assistência colectiva que, sem se substituir à acção do Estado interessado, a completará eficazmente" (Convenção, preâmbulo).

A PROTECÇÃO NO PLANO INTERNACIONAL SEU FUNCIONAMENTO — SEUS MEIOS

As disposições da Convenção são aplicadas graças aos trabalhos de um Conselho intergoverna-mental (I) que publica uma Lista do património mundial (II) e organiza a assistência colectiva (III) graças aos recursos de um "Fundo do Património Mundial" (IV).

I -- O CONSELHO DO PATRIMÓNIO MUNDIAL

A aplicação da Convenção depende de um conselho intergovernamental designado por Conselho do Património Mundial. Composto por representantes de 21 Estados-parte da Convenção, este conselho está particularmente encarregado de:

— identificar os sítios naturais e culturais a proteger;

— dá-los a conhecer ao Mundo inteiro e fazer com que o público tome consciência da sua responsabilidade no respeito e na salvaguarda do património universal;

— fornecer, quando for preciso, a cooperação técnica necessária a essa salvaguarda.

Os Estados membros do Conselho, eleitos por seis anos pelos Estados-parte da Convenção estão representados por especialistas de conservação do património natural e cultural. O Conselho é apoiado nos seus trabalhos pelo Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios(ICOMOS) pelo Centro Internacional de Estudos para a Conservação e Restauro dos Bens Culturais, em Roma (ICCROM) e pela União Internacional para a Conservação da Natureza e seus Recursos (UICN).

II — A LISTA DO PATRIMÓNIO MUNDIAL

Tendo identificado os monumentos e os sítios de um valor universal excepcional, o Conselho inscreve-os na Lista do Património Mundial. A inscrição é proposta pelos Estados mas é ele quem decide, aplicando critérios rigorosos de unicidade e de autenticidade, mantendo um justo equilíbrio entre o património cultural e o património natural. Assim, os bens que figuram nesta Lista são os que a Comunidade internacional julga particularmente dignos de serem salvaguardados para as gerações futuras.

Em 1992 esta lista inclui 358 sítios ou monumentos (enumerados e resumidamente descritos nesta publicação). Serão provavelmente várias centenas no fim do século mas o Conselho estabeleceu também uma lista do património mundial em perigo na qual podem ser inscritos sítios ameaçados por perigos graves e concretos e cuja protecção requer importantes trabalhos. As duas listas são actualizadas e publicadas de dois em dois anos.

Em qualquer dos casos a protecção é um processo complexo, uma obra jamais acabada. Pode admitir-se que os monumentos, as cidades históricas, os parques nacionais, cujos nomes se encontram nestas listas, vão ser objecto dos mais atentos cuidados por parte de cada Estado que, a este respeito, se esforçará por "actuar com o máximo dos seus recursos disponíveis" (Convenção, artigo 4.1). Mas nada está garantido: às intenções solenemente proclamadas pode sobrevir a indiferença. Eis a razão pela qual as inscrições na Lista do Património são revogáveis: O Conselho previu uma norma de exclusão para esses casos "em que um bem tivesse sofrido uma deterioração acarretando a perda das características que tinham determinado a sua inscrição..." ("Orientações para regular a aplicação da Convenção", UNESCO, Outubro 1980)

III — ASSISTÊNCIA COLECTIVA

A recusa de protecção seria escandalosa e exigiria medidas de excepção. Infelizmente a simples incapacidade de proteger provoca situações igualmente alarmantes e talvez mais graves devido à sua banalidade. "A protecção do património à escala nacional fica muitas vezes incompleta devido à amplitude dos meios de que necessita e da insuficiência de recursos económicos, científicos e técnicos..." (Convenção, preâmbulo).

Face às ameaças constantes de alteração e mesmo de destruição devidas "à evolução da vida social e económica" os responsáveis pela conservação são demasiadas vezes afectados pela falta de recursos. É por isso que a assistência colectiva que o Conselho do Património está encarregado de administrar é absolutamente indispensável para um grande número de países.

Conservar o património arquitectónico (isto é, as estruturas e os materiais cada vez mais frágeis) e o património natural (isto é, vastos ecossistemas cuja integridade e equilíbrio são constantemente ameaçados) é apelar às disciplinas que vão desde as ciências de engenharia à microbiologia, englobando não só a arqueologia, a história da arte, a arquitectura e as mais delicadas técnicas de restauro, a botânica, a zoologia, a gestão florestal, mas também a economia, o urbanismo, as ciências jurídicas e administrativas. Na maioria destes domínios, os especialistas são poucos e as experiências insuficientemente divulgadas. A assistência assegurada pelo Conselho fundamenta-se no intercâmbio e na cooperação. É concedida para fins bem definidos: realização de estudos, serviços de peritos e de técnicos, formação de pessoal qualificado, fornecimento de material. Além disso os Estados podem obter empréstimos a longo prazo e, em certos casos, subsídios não reembolsáveis. Uma assistência de urgência é concedida quando os bens estão gravemente deteriorados após uma catástrofe ou directamente ameaçados de destruição.

V--O FUNDO DO PATRIMÓNIO MUNDIAL

Qualquer assistência requer recursos financeiros. Para os reunir a Convenção criou o Fundo do Património. Alimentado pelas contribuições, quer obrigatórias quer voluntárias, dos Estados-parte da Convenção, este Fundo pode receber também doações de outros Estados, de instituições internacionais, de organismos públicos ou privados, de particulares, assim como o produto de angariações de fundos e as receitas de manifestações que podem ser organizadas para esse fim.

Até hoje o Fundo permitiu que o Conselho do Património Mundial respondesse a mais de 200 pedidos apresentados pelos governos, fornecendo a peritagem e os equipamentos necessários aos empreendimentos da mais diversa amplitude: estudos e inventários, planos de gestão, trabalhos de preservação, de restauro ou de valorização. No âmbito desta assistência, a formação de pessoal especializado, a todos os níveis, ocupa um lugar preponderante. Muitos estágios foram organizados até agora, destinados a jovens especialistas de diversos países, nos domínios que vão desde o restauro de monumentos históricos à gestão de parques naturais, passando pelas técnicas de conservação da pedra, da fotogrametria, da biologia dos primatas e da botânica tropical.

O FUTURO

A protecção do património exigirá sempre cuidados quer de rotina quer urgentes, em qualquer dos casos, cada vez mais frequentes e, provavelmente, cada vez mais dispendiosos. Ao reconhecer o valor universal de novos sítios, de novos monumentos, de novas paisagens, a Comunidade internacional verá aumentar as suas responsabilidades. Estará ela à altura de lhes fazer face?

Para responder a esta questão é preciso lembrar que a Convenção está em vigor desde 1975. Estamos apenas no início da sua aplicação. Entre os Estados que a ratificaram contam-se já vários daqueles que, em geral, contribuem grandemente para a assistência colectiva e para o trabalho das instituições internacionais. Mas basta olhar em redor para se observar que outros países, da Europa e da Ásia, cujos recursos materiais e culturais são notórios, ainda não aderiram à Convenção. Quando decidirem ratificá-la, as actividades do Conselho e do Fundo do Património Mundial poderão evidentemente duplicar ou triplicar em extensão e eficácia.

Assim, dentro de algumas décadas a Lista do Património Mundial Cultural e Natural será muito longa. O jovem que quiser estudá-la encontrará nela alguns motivos de esperança, não só porque os homens deste fim de século terão reconhecido, depois de uma profunda reflexão, o valor universal de lugares selvagens ainda respeitados, de florestas virgens ainda intactas, de cidades milenárias, de traços do trabalho e da fé dos seus mais longínquos antepassados, de maravilhas arquitectónicas sempre exemplares e novas, mas sobretudo, porque eles terão sabido, a despeito dos profetas do mal, arrancá-los à morte e salvá-los para o futuro.

* Texto extraído do opúsculo "O que é: A protecção do património mundial, cultural e natural", Comissão Nacional da Unesco, Lisboa, 1992.

NOTAS

1 Afeganistão, Alemanha (República Federal), Arábia Saudita, Argélia, Argentina, Austrália, Benim, Bolívia, Brasil, Bulgária, Burundi, Canadá, Chile, Chipre, Costa do Marfim, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, Egipto, Equador, Espanha, Estados Unidos da América, Etiópia, França, Gana, Grécia, Guatemala, Guianas, Guiné-Conakri, Haiti, Honduras, Iémen Democrático, Índia, Irão, Iraque, Itália, Jamahirya Árabe Líbia, Jordânia, Jugoslávia, Malavi, Mali, Malta, Marrocos, Mauritânia, Mónaco, Nepal, Nicarágua, Niger, Nigéria, Noruega, Orna, Panamá, Paquistão, Peru, Polónia, Portugal, República Árabe Síria, República Centro Africana, República Unida da Tanzânia, Senegal, Seicheles, Sri-Lanka, Sudão, Suíça, Tunísia, Zaire, Zimbabwe.

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