Depoimento

APELAÇÃO RIGOROSAMENTEDESCONTROLADA

Manuel Vicente*

Slide de Mica Costa-Grande.

Quando se nasce em 34 -- antes da guerra de Espanha e da WW II -- é-se, forçosamente, contemporâneo da história do meio século final, que no caso vertente, se inicia em 45 e não em 50 (ou 51), como a lógica do calendário supõe.

Serão, em breve, 55 anos em que, se pensou muito, sobre cada vez mais -- os filosofantes -- e, também, sobre cada vez menos -- os científicos --, procurando todos o nome para o Universo como o poeta do imperador terá encontrado (ou não), o nome para o império, suas gentes e seus palácios, na Parábola de Jorge Luís Borges.

Dá-me um nome, "aprivoise-moi", pede a Boa ao Petit Prince -- pede Saint-Exupéry a Deus?

1. Macau cheira mal

Têm dito eredito as lisboetas de alma e f(r)alda, curtas.

Quem feio ama, bonito lhe parece, ou a quem ama, tudo cheira bem, como a Jean Genet, ao limpar os urinóis da prisão. Saint Genet para Sartre, o do olho torto, que para a Simone era Beau(de)voir. E, o Levy Strauss, não o das calças, o da Antropologia Estrutural, a procurar nos trópicos tristes o pensamento selvagem, enquanto "refugiado" da acção selvagem do pensamento nazi. No Brasil, onde vinte e tal anos mais tarde o Chico Buarque nos incitava-- mas, desta vez, pela "esquerda" -- a agir duas vezes antes de pensar. Que óptimo lema para entretecer o nazismo corrente, hoje em dia ainda por "aprivoiser": será que vai ressurgir o pintor para os Muros de Viena?

2. Na do floreiro

Respondeu-me um arquitecto, jovem e estimado, que por aqui laborou no atelier, ao perguntar-lhe onde morava alguém.

Na Adolfo Loureiro, retorqui-lhe, passados os espasmos brônquicos que de há muito me abafam o gargalhar incontrolado. Ao dizerem-lhe, "nádôflôreiro", empreendeu ele que um floreiro (um florista?) tinha dado o nome à rua, que ainda por cima é estrada e para onde em fins de 70 tínhamos projectado, com o Manuel Graça Dias, um prédio para um cliente muito chato, tendo de ai em diante passado a chamar-se, na intimidade do "jargon" de Atelier, Adolfo (Dias) Loureiro. A rua, claro!

3. D. João Paulino Transformador...

Eles eram cinco, quatro homens e uma mulher -- na altura a minha, praise the Lord-- e três tinham "canudo", e dois eram estagiários -- como anos mais tarde eu viria a esclarecer, em carta sucinta, ao Leonel Borralho, que lá teve que a publicar na "Gazeta Macaense".

Inimigos cordiais, sempre. Ainda pensei em propor-lhe um jantar para comemorar as Bodas de Prata de tanta consistência no ódio, mas ele já estava doente e frágil, na altura, e pela primeira vez na vida, não tive qualquer vontade de o provocar. Que luxo ter inimigos fiéis, como ele.

Pois éramos cinco mas só fomos ficando três, um arquitecto e dois estagiários, e, a certa altura, atirámo-nos ao "Plano de Urbanização" da Penha-Barra.

Na planta da cidade, usada naquela data, lá estava, devidamente, assinalada a (calçada? rua? estrada?) de D. João Paulino, Reverendo Bispo desta Diocese e notável da história de Macau. Só que, em caligrafia e tamanho idênticos, seguia-se, sem qualquer descontinuidade, a palavra "transformador" indicando o respectivo artefacto da "Melco" que por lá se encontraria à borda da rua.

Nunca mais, pelo menos para mim e para o Zé Maneiras, o Venerando Senhor perdeu o epíteto: D. João Paulino, o Transformador, nome que, ainda hoje -- sem qualquer piscadela cúmplice --, lhe damos quando temos de referir a rua, em conversa corrente.

4. O Mofatardo, os quadrúpedes,os faitiões e os quadros em movimento

Ainda as ruas, travessas e becos, na grafia das sucessivas actualizações de plantas da cidade, entre 50 e 70.

Copiando e completando, em papel transparente, o desenho prévio, usava o desenhador local (julgo que o plural não será aplicável àqueles tempos) de toda a sua perícia e mister, que não dispensava claro, o rigor -- a escola era a da Engenharia Militar portuguesa que, exemplarmente desde o séc. xix, principalmente, se ocupou da representação, conservação, recuperação e edificação da cidade.

Quando, porém, passava do desenho, à escrita, o nosso desenhador, fazia-o "à vista", dispensando o decalque. Daí que os nomes se fossem afastando, aceleradamente, da coisa nomeada.

Assim se chega ao Mofatardo, intrigante fonema que, para nós, soava definitivamente a Malásia: temível pirata? Fiel e heróico servo de Cristo?

Como estava a projectar para um lote, para a Trav. Maria Lucinda, fui ver o que lá estaria, na rua das traseiras. Era simples -- travessa do Mata Tigre -- embora, simultaneamente, mais misterioso, se possível, que a corruptela, quem terá sido este caçador destemido, que deu nome e fama a uma rua da Cidade, que de tigres apenas terá conhecido a pele do casaco de uma, ou outra criatura das noites, galantes, de Macau?

Seria este, Mata Tigre parente dos Fatiões, que nós, de língua lusa, fantasiávamos como criaturas possantes e de passada rapidíssima --Fai-ti, Fai-ti-lá!?

Mas, do lado de lá da moeda -- que como é sabido frutifica na árvore da(s) pataca('s)- estava o mundo da retroversão, para português, que uma qualquer lei (inquestionavelmente patriótica) tornara obrigatória, na nomeação de qualquer firma, ou empresa, publicamente activa e visível.

E é a conhecida tabuleta da loja dos passarinhos quadrúpedes, a que facilmente, o dono explicava faltar um simples "e" (passarinhos e quadrúpedes), para restaurar o sentido.

Mas, os quadrúpedes? Espécie de insulto Queiroziano -- grande besta, pedaço de asno, cavalgadura, quadrúpede -- como terá chegado tão longe? E de quais venderia a loja? Dos verdadeiros, ou dos simbólicos?

Lembro-me, ainda, do meu sogro chamar eamursos aos automobilistas de domingo com que se cruzava, fazendo economia, fonética e temporal, de camelos e ursos.

Hoje, dá-me a impressão que já nem burro se chama a ninguém. E porquê o haveríamos de fazer, sabendo que arriscaríamos um inesperado e, provavelmente, simultâneo virar de cabeças, iradas e ofendidas?

Em retroversão ainda, mas já mais mecânica (ou quiçá electrónica) temos em fins de 80, na Avenida Conselheiro Ferreira de Almeida a loja dos quadros em movimento ("motion pictures", mindyou...) que inopinadamente, acaba por nos revelar o NOME para Macau.

Quadros -- de vida, de significação, de nomeação, de representação, de ritual; em Movimento -- simples, composto, manual, mecânico, digital, pedonal, afectivo, mercenário, espontâneo, calculado, doce, agitado, feroz, desesperado, entretecido, enternecido, desatento, catastrófico, letal, marítimo, aéreo, rodoviário, lascivo, convulsivo, compulsivo, popular, religioso, lúdico, ginástico, torpe, sublime, total, fetal, automático, desenfreado, espasmódico, retrógrado, directo, exaustivo... mas sempre "con brio".

Nomeadas, conjuntamente, e por fim, a inevitabilidade do devir e da sua condição, para sempre imprevisível.

Mapa do património classificado da península de Macau, de acordo com a lista constante no Decreto-Lei 83/92/M. (Executado pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro para o Departamento de Património Cultural do ICM.)

* Arquitecto (Esbal, 1960). Master of Architecture pela Universidade da Pennsylvania (1962). Exerceu a sua actividade em Portugal, Goa e Macau, tanto no sector público como no privado. Arquitecto ligado a Macau desde os anos 60, tem desenvolvido uma actividade que engloba os mais variados aspectos de produção arquitectónica e urbanística. Já recebeu vários prémios dos quais se destacam o Prémio Nacional de Arquitectura da AICA/SEC (1987) e a Medalha de Ouro daARCASIA(1994).

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