Depoimento

MACAU A PALMOEM PASSEIOS COM SENTIDOS

Carlos Chaves de Almeida*

Slide de Mica Costa-Grande.

Não vos prometo mais que impressões outestemunhos com "sentidos", muito aquem, portanto, da análise exaustiva e totalizante, o que de certo modo me alivia e poupa ao olhar crítico do leitor mais ávido ou tecnicamente mais exigente.

Quem "quer" a Macau e ousa declará-lo num "olhar" está condenado a perder-se.

Eu, de perdido, assim começo, e veja-se no meu depoimento o feitio de um olhar pessoal sobre Macau, validado nalguns anos de experiência profissional em Moçambique, que me levou a aprender como certa gente mal arribada só vê o que quer e jamais fala do que não quer.

Tempos houve, segundo li, em que o português desembarcado em Macau, depois de tanto, mar, respirava fundo e mergulhava numa pitoresca cidade lusitana do litoral -- sua terra e sua gente.

Nunca o meu imaginário foi nesse sentido, tão pouco me apercebi desse cenário quando aqui cheguei. Porém, como eles, gostei com orgulho português.

Quem já trazia o pitoresco no primeiro olhar e a saudade à flor da pele, não raras vezes, se arriscava com o segundo olhar a auto-servir-se de indisfarçável frustração, agravada com o choque do fazer-se entender -- entendendo na primeira bandeirada de táxi.

Gorada a expectante extensão do Terreiro do Paço, revelava-se-lhes Macau, com o seu tempo e o seu modo. Pisavam calçada à portuguesa no Largo do Senado, já com a Misericórdia pela frente e não mais viam que o seu Atlântico a apanhar Pérolas no Delta. Para eles o que contava era a bota e a terra levada na sola, nunca o chão então pisado.

Cada terra, mais seu povo, vale como e onde está.

De terra-a-mar, olhar Macau é risco certo de paixão.

Bem me preveniram-- quem me avisou amigo meu ainda é -- que para sentir Macau há que ter cinco sentidos apurados e um coração disponível. De avisado que estava, mesmo assim me surpreendi... tanto a cidade surpreende. É-se envolvido num convite e logo ali seduzido, coisa forte a deixar marcas.

Os sentidos cruzam-se, apurando-se entre tons graves, sons mais que coloridos e odores envolventes, sinais de sedução que misteriosamente nos apaixonam.

Se é que o há quem resista, será insensivelmente apático, penando remorsos o resto dos dias. Nunca entenderá como é gostoso amar Macau de coração rendido em passeios com sentidos.

Encontro de muita história, em terra pouca, para saborear a palmo e passo. O palmo dá a escala ao ver, o passo o modo de olhar.

Chegar aqui é ganhar tempo de fusos e perder-se no tempo que enforma e tudo deforma. A primeira paisagem é solene, com História dentro, onde cada canto tem a verdade e a dignidade que só o passar dos séculos consente e legitima. A arquitectura macaense é feita de memórias, reminiscências, testemunhos e muitas marcas históricas. Portuguesas são muitíssimas.., mas não só. Grande carácter numa multiplicidade de influências, rica de movimentos passados, alguns já apontados ao futuro.

A Igreja de S. Paulo teve risco italiano, mão-de-obra local e nipónica, ouviu rezas portuguesas.., hoje é Macau em ex-libris. O trabalho de recuperação das ruínas e o seu novo enquadramento urbanístico inserem-se num louvável e bem sucedido programa de avaliação patrimonial.

Nem sempre foi assim, o cimento nem sempre respeitou a velha pedra. A memória foi sendo cada vez mais "descritiva e justificativa", com ou sem caderno de encargos, mas com muito estaleiro. Macau foi obra! O "surto" de progresso teve os seus sustos com betão pronto-a-servir e tanto pó pronto-a-comer, onde, ao contrário da culinária chinesa, o "pato" de"bravo" saiu duro de roer. Assalta a ideia de que faltava tamanho para tanto encargo. Conquista-se palmo a palmo, mesmo palmado ao mar. Ganha-se um palmo de terra, vive-se em cerca de palmo e meio e só com a morte se tem direito a sete.., mas por cima, sem direito a proveito. Os edifícios empurraram-se para crescer: grandes, nem sempre na qualidade. Aterro aqui e estaca ali, a cidade foi alargando o cadastro original. Com a ordem de ligar terras, surgem as pontes, para já entaipando a Taipa, talvez Coloane logo mais.

A euforia mal correspondida acabou por conduzir à reflexão e reolhou-se aquele património arquitectónico tão belo, valioso e específico. Inventariou-se, limpou-se, "despenhorou-se" a jóia para que toda a gente visse o que muitos mal notavam.

Na memória dos tempos somos aquilo que temos.

Para além da terra, a sua moldura de mar foi ordenada e embelezada. Cidade que flutua, transpirando maresias, Macau sabe a mar. Olhadas da marginal as suas águas parecem paradas ou a decidir destino carregadas da indolência. O tom amarelado da baía reflecte-se nas fachadas macaenses, enriquecidas com tábuas enegrecidas de tempo, filigranadas no corte e sabiamente adoçadas ao reboco.

O tempo e a tradição dão a bênção à técnica e paciência do artista, marcando a beirada do telhado achinesado, a portada vermelha, delicadamente recortada com ferraria condizente, a fina tábua persiana, o acolhedor sobradado do chão ou ainda a minuciosa pedra esculpida da entrada. Impressionante o respeito pelo passar do tempo na obra e o ar de tudo tão pensado. Se é que o é assim, interrogo-me sobre o tamanho da espontaneidade artesanal.

Como que estudados desde o primeiro esquiço e fazendo parte da composição arquitectónica, temos os andaimes de bambu, num reticulado mais que perfeito ou aquela dúzia e meia, pelo menos, de letreiros bem vermelhos com votos pincelados a dourado, de muita gente para outra tanta louvada.

Outra gente, aqui sempre há mais gente, vai passando num contra-relógio contínuo, uns fingindo que têm pressa, outros nem isso os preocupa. Não andam, deslizam sem ruído, evitando magoar o lajeado granítico ou a última calçada àportuguesa. Gente que passa pelo tempo, parece que nunca o contrário. Sua idade é uma charada embora se adivinhe que uns tantos carregam bastante passado, idade sem prazo de validade. Mas valem e alegram-se por viver, movimentam o corpo e exercitam a mente como que só temendo parar. Os jovens também são muitos, carregam futuro e expandem vida e sorrisos. Toda uma mole humana, que dá cor e escala à cidade, riscada ao palmo (quando o foi no risco e no palmo!), aconchegada de casas feitas por medida, sobre o justo. A vida, essa é ao ar livre, nas ruas sinuosas ou direitas, bem mais estreitas que largas, em becos e travessas onde se marcam cumplicidades para logo mais no pátio ou na praceta.

Urbanismo de palmo e meio, mas bem adulto, admirado sobretudo na sua requintada escala humana. Sabe bem deambular por Macau: sentimo-nos envolvidos, abraçados e assimilados. Na rua estamos "em casa", tal a sensação que de lá nunca saímos, mesmo sem nunca lá ter ido. Tintins, vendilhões e lojinhas têm tudo para vender. Vagueamos indecisos, mas cativos, entre muito para comprar e nós sem tal precisar -- a lei da oferta e da tentação. Certas esquinas nem só no seu número nos confundem: mal distinguimos onde a arquitectura acaba e começa a culinária. Ou vício-versa, já que comer é, por cá, vício -- "a barriga não dá horas", quem as dá é a comida de tanto seduzir. Para o passante basta abrir as narinas e fechar os olhos para logo ficar aviado.

Nas ruas, em horário corrido, sucedem-se as cargas e descargas de caixas, caixotes e cestos que se alinham apinhados ou se movem com uma pessoa dentro, da qual só emergem os pés, qual ritual de desfile e enfeite.

A maioria dos quarteirões de Macau estão a rebentar pelas costuras... Outros não mostram vivalma. Certos desenvolvimentos urbanos mais recentes tiveram o risco com menos palmo e bastante mais régua e cálculo. Pela escala ou pela clonagem da quadratura, uma certa dicotomia urbanística está ainda algo fresca. A separação entre zonas é de apenas uma passadeira de peões, mas estranhamente como que saímos de Macau e "entramos" pela medida grande: muitíssimo mais aterro que gente. Levará ainda o seu tempo até que as novas gentes das novas quadras entham de vida os passeios, se fixem nas esquinas, personalizando-as, desigualando-as, mas identificando-as. Virão então os pivetes, os fumos aromáticos e os odores condimentados. A breve trecho os últimos poucos fantasmas darão lugar à fixação das populações. Talvez hoje só ali vai faltando vida.

Acredito, sem qualquer esforço, que certas intenções originais dos projectistas terão sido desvirtuadas, aqui e ali, ou terão ficado provisoriamente suspensas comprometendo contudo o fecho da obra. Essa a sensação ante as Portas do Entendimento onde os arranjos exteriores se quedam no provisório ou no inacabado. Também nos arranjos exteriores o que pareceé. A envolvência da base, de não executada, mostra a espigadota estacaria descarnada ou só despida, criando a ilusão que de calças arregaçadas molha os pés na baixa-mar.

Também na implantação de um ou outro monumento mais recente a empatia com o local não é de todo conclusiva; com falhas na integração ou na obra de arte mal destinada. Problema de critério ou falta dele, que o valor dos artistas, esse, é intocável. Muito menos a entrega e profissionalismo dos arquitectos, que tanto têm contribuído para tornar Macau tão referenciável nacional e internacionalmente, em termos urbanísticos e arquitectónicos. Refiro-me naturalmente aos conscienciosos e responsáveis, felizmente quase todos, em que a sua obra expressa qualidade que nos orgulha. Dos poucos outros, a propósito da sua arquitectura, o pior que se pode dizer é a verdade.

Macau afirma-se como um conjunto urbano-arquitectónico, testemunho duma montagem de memórias cúmplices e afectivas que é ímpar nestas paragens asiáticas. Por mor destes valores patrimoniais impõe-se a continuação do esforço e do rigor das grandes recuperações. Nunca é tarde. Que destas pedras não mais se esbata a marca do entendimento, a face de todos nós.

* Arquitecto (Esbal, 1968) com actividade profissional em Portugal, Moçambique e Nigéria. Para além da arquitectura, urbanismo e design, dedica-se também à pintura, desenho, medalhística e design gráfico, tendo sido distinguido com prémios nacionais e estrangeiros.

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