Urbanismo/Arquitectura

URBANIZAÇÃO DE MACAU E O MAPA DE DEMÉTRIO CINATTI (1881)
bem como as consequências adversas que lhe advieram devido à sua excelência

Jorge Graça *

Governador Joaquim José da Graça. Colecção do Gabinete de Comunicação Social.
Demétrio Cinatti, Capitão dos Portos de Macau entre 1878 e 1885. Desenho de Lei Chi Ngok.

Na galeria das personagens ilustres que, esforçadamente, lutaram para que Macau transitasse e evoluísse do seu estágio medieval, caótico e insalubre para outro mais funcional, sadio e moderno, destaca-se a figura impressionante de Demétrio Cinatti, o qual sendo apenas um 2. ° tenente da Armada, promovido a 1. ° tenente em 5 de Junho de 1884, foi Capitão dos Portos do Território de Macau, no qual exerceu a sua excepcional actividade no curto período de tempo entre 12-11-1878 e 23-3-1885.

O seu nome, apesar de perpetuado numa Avenida e num beco de Macau é praticamente desconhecido, e, quando citado, quase ninguém sabe quem ele foi, o que fez e as razões porque foi homenageado na toponímia local.

E, no entanto, a melhor parte do Macau que se lhe seguiu, ficou a dever a sua morfologia e o melhor da suamalha urbanística, preceitos arquitecturais e de sanidade pública, segurança, paisagismo, meios de comunicação com o exterior, criação dos Serviços Meteorológicos, etc., aos esforços, competência e dedicação da formidável equipa formada por este grande lusitano de descendência italiana conjuntamente com o Eng. Constantino José de Brito, Director das Obras Públicas de Macau, e Dr. Lúcio Augusto da Silva, Chefe dos Serviços de Saúde. O Governador de Macau Joaquim José da Graça teve a boa-fortuna de ter integrados na sua máquina administrativa alguns elementos coadjutores de excepcionais qualidades e talentos raramente igualados em Macau que, nomeados para várias comissões formadas com o objectivo de proceder à análise e computação das infra-estruturas existentes, ou inexistentes, características dos recursos e carências de Macau, identificação de problemas locais e suas eventuais soluções, apresentaram estudos e relatórios que, não se limitando ao simples assentamento e compilação de um banco de dados a esquecer numa gaveta, excederam em muito os preceitos condicionantes iniciais. Com um entusiasmo e sentido de dever deveras assinaláveis, eles souberam conceber linhas de acção e princípios de intervenção urbana e de ordenamento territorial pioneiros para o seu tempo, antes mesmo de conceitos semelhantes terem sido aplicados mais tarde pelos grandes planeadores dos conglomerados urbanos e populacionais europeus e americanos dos princípios do século xx.

Para a alta qualidade dos estudos feitos e formulação correcta das conclusões, estratégias e recomendações, propostas em vários relatórios, pareceres e estudos muito contribuiu o mapa do primeiro levantamento rigoroso da Península e da Cidade de Macau, feito "in loco", pelo 2. ° tenente da Armada Demétrio Cinatti e completado em 1881.

O rigor e a exactidão com que foi elaborado permitiu, não só fazer a leitura do Macau da época, assinalar os seus recursos e potenciais de desenvolvimento e expansão, mas também detectar os seus focos de degradação e doença, os seus factores de obstrução e constrangimento, as suas limitações e empecilhos gerados pelas características geográficas, hidrográficas, marítimas e fluviais da área onde se encontrava inserida.

Para a criação de uma estratégia de intervenção e planeamento programado de expansão urbana, este mapa tornou-se o mais precioso dos instrumentos à disposição dos sectores responsáveis pelas actividades administrativas e governamentais mais importantes da cidade, e também das forças vivas privadas, que participavam do interesse comum de converter Macau outra vez, como o tinha sido no passado, numa urbe próspera, sofisticada, culta e influente e que servisse não como rival mas como complemento da vizinha Hong Kong.

Tornava-se também essencial que a cidade possuísse um cadastro completo e verdadeiro, e para esse fim, uma planta de Macau com o assento das suas vias, propriedades públicas e privadas, contornos e acidentes geográficos correctamente dimensionados e delineados, era o instrumento básico e sem o qual aquele objectivo não teria grande chance de sucesso. Talvez fosse a falta duma planta correcta e verdadeira que impedia a comissão, nomeada pela portaria provincial n. ° 10, de 26 de Janeiro de 1877, em substituição de outra comissão nomeada por portaria de 4 de Fevereiro de 1875, de concluir os trabalhos de medição e confrontação dos terrenos foreiros à Fazenda Pública, pelo que o Governador Joaquim José da Graça, aos 16 de Dezembro de 1882 nomeou outra comissão, emitindo a Portaria n. ° 102 na qual assinalava ser "... de imperiosa necessidade concluir-se o cadastro da cidade no mais curto praso possível, observando-se o cumprimento das instruções anexas à citada portaria de 26 de Janeiro de 1877. "

É de notar que desde 4 de Fevereiro de 1875, data da nomeação da 1. a Comissão, tornara-se um hábito anual — à excepção dos anos de 1876 e 1880, mas como compensação em 1879 isso aconteceu duas vezes — constituir-se a Comissão de Levantamento Cadastral, nomeadamente a 2 de Janeiro de 1877 (Portaria n. ° 10) 20 de Setembro de 1878 (Portaria n. ° 61), 1 de Outubro de 1879 (Portarias n. os 121 e 122), 11 de Janeiro de 1881 (Portaria n. ° 10), e finalmente a de 16 de Dezembro de 1882 (Portaria n. ° 102). Não era certamente por falta de portarias e respectivas comissões que a tarefa do levantamento cadastral se atrasava e a conclusão do seus trabalhos emperrava e teimava em faltar como resposta a uma das necessidades mais urgentes para o planeamento, progresso e desenvolvimento controlado e harmonioso do Território.

Claramente que os falhanços sucessivos da Comissão de Levantamento Cadastral só poderá ser explicado pela falta de um levantamento topográfico e cartográfico correcto e fidedigno da cidade e áreas vizinhas, entendendo-se como cidade a área construída e edificada, compreendida entre as muralhas existentes a Norte e a Sul, e áreas vizinhas sendo definidas como os terrenos entre as muralhas a Norte e as Portas do Cerco, áreas estas que continham várzeas, pântanos, 5 aldeias chinesas, templos chineses, 1 canal, várias colinas, 3 fortes, um embrião de rede viária e 1 ilha, além de cemitérios e sepulturas por todos os lados, cuja remoção era necessária e já tinha custado a cabeça, literalmente, a um Governador1.

Graças ao mapa preparado por Demétrio Cinatti, notável pelo rigor e exactidão com que tinha sido elaborado, os trabalhos da Comissão, puderam prosseguir com maior celeridade, mas certos problemas ligados a proprietários de terrenos na antiga "terra de ninguém" ou melhor, zona tampão (buffer zone), compreendida entre as Portas do Cerco e a linha de muralhas Norte, não foram bem apercebidos na altura, e décadas mais tarde vieram causar sérias dores de cabeça às Administrações de vários Governadores2.

As informações coligidas por Demétrio Cinatti e assentes no seu mapa, foram vitais como estrutura de suporte na preparação de projectos de melhoramentos e de infra-estruturas, esquemas de expansão da área do Território por meio de aterros, e como referência de confiança para a preparação de mapas e plantas parcelares para os mais diversos propósitos.

Historicamente e arqueologicamente este mapa era preciosíssimo, pois registava muito do Macau do século XVIII além de áreas sobreviventes dos séculos XVI e XVII. A sua precisão ia ao pormenor de plantas dos edifícios mais notáveis serem reproduzidos com bastante rigor, apesar da sua escala e basta referir que, e conjuntamente com o mapa de 1905 preparado pelo Barão Carlos Cadoro, é a única fonte de informação sobre uma das fases porque passou a evolução da Fortaleza do Bomparto, cuja traça como representada no mapa do tenente Carlos Julião em 1775, é praticamente metade, tanto em área como em configuração, da que o mapa de Demétrio Cinatti mostra, levando a concluir que entre 1775 e 1881 esta Fortaleza sofreu alterações importantes, tendo o projectista responsável por essas obras quase duplicado a estrutura existente com um acréscimo que era praticamente o reverso, a imagem-espelho do seu traçado e delineamento originais, tornando assim o plano desta fortificação mais simétrico e regular. 3 (O contorno da Fortaleza foi retocado para o fazer mais visível pois o original da microfotografia é quase ilegível)4.

Lamentavelmente, mas em conformidade com o desleixo e indiferença tradicionais com que os lusitanos tratam os seus documentos, monumentos e testemunhos da sua história, este mapa, que em 1976 foi entregue pessoalmente pelo autor deste artigo aos encarregados do Museu Luís de Camões, perdeu-se, foi destruído ou apropriado indevidamente por pessoas desconhecidas, pois já não se encontra onde devia estar conservado, e nenhuma das entidades contactadas foi capaz de informar sobre o seu paradeiro, restando apenas duas péssimas reproduções fotográficas de reduzidas dimensões nos Arquivos Históricos de Macau, — os seus negativos foram deitados ao lixo — e uma reprodução, ainda pior, em microfotografia.

O meritório trabalho de Demétrio não passou desapercebido às mais altas entidades do Reino e assim, por diploma de Abril de 1882, é agraciado com o grau de cavaleiro da "antiga, nobilíssima e esclarecida ordem de S. Tiago do mérito científico, literário e artístico ", honra esta concedida pelo seu "merecimento, manifestado não só no levantamento da planta do porto de Macau 5, mas também por haver executado n'aquella alguns trabalhos estatísticos de navegação e commércio, e montado o serviço das observações meteorológicas". Com este despacho, a importância desta planta de Cinatti ficou assim reconhecida como sendo de dimensão suficiente para a concessão de uma das mais prestigiosas honrarias do Reino de Portugal ao seu autor, mas 100 anos mais tarde isso não impediu que ela fosse perdida, quiçá destruída para sempre. E desta vez, sem a estafada desculpa da formiga branca, grande encobridora do desmazelo e negligência amalgamados numa massa amorfa de boçalidade madraça, que tantos buracos abriu na História grande da grande Nação Lusitana, uma História, que devido à tacanhez mental e falta de brio de alguns dos seus filhos, se vai tornando cada vez mais pequena, ignorada, vazia,... e com mais buracos.

A Demétrio Cinatti se deve também como referido no diploma de agraciação do hábito da Ordem de S. Tiago, o início dos registos de observações meteorológicas e a integração de Macau na rede de troca de informações pelas Estações de Shanghai, Hong Kong, Manila, Calcutá, Coimbra, Lisboa e também pela Sociedade de Geografia de Lisboa.

Foi também Demétrio Cinatti que teve a percepção da catástrofe que representaria para Macau o assoreamento do Porto Interior e, perante a passividade inconsciente dos Poderes administrativos, em 1881 lançou o primeiro grito de alarme.Como capitão dos Portos de Macau, Cinatti estava na posição ideal para observar a sedimentação progressiva das vias de água que davam acesso à navegação, tendo iniciado um programa de sondagens, medições, recolha de elementos hidrográficos, identificação de correntes fluviais e marítimas, efeitos dos fluxos e refluxos causados pelas marés na formação de areais, consequências dos aterros efectuados na modificação dos impactos e assentamento dos sedimentos trazidos pelo Rio das Pérolas, etc. dados estes que, fornecendo uma enorme massa de detalhes, permitiu a Demétrio Cinatti inteirar-se e compreender— com todo o rigor que os dispositivos e instrumentos primitivos ao seu dispor permitiam — os fenómenos, causas e efeitos do assoreamento e erosão que afectavam as costas de Macau e suas águas circundantes.

As conclusões a que Demétrio Cinatti chegou na sequência do seu estudo detalhado e profundo, particularmente o seu aviso alertando para as sérias consequências que adviriam para Macau se o assoreamento do Porto Interior continuasse como até ali, e que ao ritmo actual em cerca de 17 anos ficaria totalmente seco no baixa-mar de sizígias, encontrou eco em Lisboa que encarregou o Engenheiro Adolfo Loureiro de projectar um Porto para Macau.

Este engenheiro deslocou-se a Macau, e após ter encontrado dificuldades de toda a espécie por parte das autoridades chinesas locais, lá conseguiu completar o seu plano de estudos, limitados às águas em torno de Macau, e das ilhas das Taipa e de D. João que, curiosamente, afirmava estar na posse dos portugueses — "Nestas circunstâncias fui levado a desistir do meu intento e a modificar e restringir o meu plano de estudos, que teve de limitar-se às aguas portuguesas em torno de Macau e das ilhas da Taipa e de D. João, que também possuímos ". (Citado na sua memória "O Porto de Macau" incluída pelo, Director das Obras Públicas, José Maria de Sousa e Horta, no seu Relatório de l de Julho, 1886.)

Na sua memória, o Eng. ° Adolfo Loureiro confirma o diagnóstico de Demétrio Cinatti, afirmando a certa altura.. "É claro pois, que, para evitar este mal, que augmentando sucessivamente, pode vir a ser o aniquilamento completo da colónia... ".. e como resultado da sua análise e recomendações, o Governo iniciou um vasto programa de dragagens, diques, aterros, molhes e canais que se estenderam até 1926, data em que foram concluídas as principais infra-estruturas do Porto Exterior, e a cuja solene inauguração Cinatti, o primeiro a fazer rebolar a pequena bola de neve que se converteu no projecto de maior envergadura e projecção de Macau até àquela data, já não pode assistir pois tinha falecido em 1921, poupando-se assim ao desgosto de assistir à degradação de uma nobre ideia durante a sua execução, como descrita pelo Governador Álvaro de Melo Machado no seu livro "Coisas de Macau", pág. 54 — "Até 1911 o porto de Macau esteve esperando pelas projectadas obras, como noutros tempos se esperava por el-rei D. Sebastião, nada mais conseguindo do que gastar dinheiro com engenheiros, com material velho e quasi inútil, ou novo sem aplicação, para justificar a presença de pessoal técnico e as elevadas despezas a que conduzia. Conseguiu. ficar célebre uma comissão de estudos que alcunharam de Creche, e em que, para efectuar estudos hidrográphicos, se empregaram com vencimentos e gratificações relativamente importantes, officiais de cavallaria e de infantaria, além de muitos outros indivíduos. Apesar de tudo nada havia feito depois de 30 annos de estudos e despezas ". Maior desgosto teria, se viesse a saber que o Porto onde tão grandes esperanças tinham sido depositadas, o esperado rival de Hong Kong, em poucos anos fora invadido pelo lodo, e os barcos que se esperavam vir a usá-lo ficaram a ser vistos, como escreveu Monsenhor Teixeira sobre este tema, apenas por um grandecíssimo canudo.

É que na concepção simplista daqueles tempos, era raro levar-se em linha de conta a necessidade de manutenção e sem a qual a deterioração dos projectos, que se inicia mal estejam concluídos, se vai agravando a um ritmo cada vez mais acelerado até à sua degradação completa; Chamar a atenção dos responsáveis para este facto não era prudente, pois criava inimizades e rancores, e como muitos seres de excepção que sobressaem da mediocridade dos meios burocráticos em que exercem as suas actividades, Demétrio Cinatti também teve que sofrer acérrima hostilidade e ataques mesquinhos — o preço a ser pago por todos os detentores de qualidades e talentos acima do normal -- provocados pela inveja e pelo ciúme que despertam em almas pequenas e limitadas, as quais, à semelhança de cachorrinhos incapazes de resistir à compulsão de perseguir e ladrar aos carros que lhes passam à frente dos focinhos, tentam também morder os calcanhares daqueles que eles consideram serem-lhes superiores.

Contudo, Demétrio Cinatti talvez não tenha sido surpreendido por tratamentos velhacos infligidos por lapuzes de mentalidades doentias e vis pois pertencendo a uma família de artistas distintos, já devia estar habituado e ter assistido a essas frequentes manifestações de inferioridade intelectual, mental e cerebral. Na verdade, Demétrio era neto de Luís Cinatti, celebrado pintor e arquitecto italiano, e filho de José Cinatti, também famoso arquitecto, cenógrafo e pintor, nascido em Siena no ano de 1808 e falecido em Lisboa a 23 de Julho de 1879, cidade onde tinha aberto o seu atelier em associação com Aquiles Rambois depois de se ter casado com D. a Maria Sara Rivolti Cinatti. Em 183F, foram encarregados por António Lodi de todos os trabalhos de cenografia para o teatro S. Carlos. A qualidade da sua arquitectura era muito apreciada e passaram, a ser considerados como os melhores arquitectos, e também cenógrafos, da época a praticarem em Portugal, pelo que a sua lista de clientes rapidamente se passou a ler como um rol das famílias mais abastadas e aristocráticas do Reino. A Rainha D. Maria II e D. Luís eram seus clientes (decoração das salas e salões principais do Palácio das Necessidades) bem como o Barão de Quintela (Quinta das Laranjeiras), o 1. ° Duque de Palmela (decoração do Palácio e jardins do Calhariz em Sesimbra e Palácio do mesmo nome em Lisboa, túmulos do Jazigo de família no Cemitério dos Prazeres), Conde das Antas (Jazigo no Cemitério dos Prazeres), Conde de Farrobo (cenários e renovação do interior do teatro S. Carlos), etc.

Também foram encarregados da conclusão das Obras do Palácio de Belém e Cinatti concebe o padrão no largo Trindade Coelho e pintou os medalhões na Sala de Saxe no Palácio de Ajuda para D. Maria Pia. Devido ao cuidado com que dirigiu os trabalhos de conservação do templo Romano em   'Evora, sem o afectar com a menor mutilação ou acréscimo, esta cidade em 1867, por este e outros trabalhos que ali executou, ofereceu-lhe uma medalha comemorativa em ouro e em 1884, já falecido mas não esquecido, erigir-lhe um monumento com busto de Simões de Almeida como poética e apropriada homenagem ao restaurador de monumentos. Entre os numerosos prédios que projectou em Lisboa destaca-se o que concebeu para a Casa de Bragança na Rua António Maria Cardoso, onde mais tarde se instalaram a Embaixada do Brasil e a Sede da PIDE, a famigerada e brutal polícia política salazarista de triste e desprezada memória.

As qualidades que o distinguiam na sociedade onde actuou e viveu, foram herdadas pelo seu filho Demétrio que assim aprendeu nos joelhos do seu pai a importância da integridade pessoal e profissional, sentidos de responsabilidade e de dever, métodos organizados de trabalho, planeamento e coordenação de tarefas, a importância do individual na evolução e progresso das comunidades humanas, e todos os preceitos que tornam um ser humano numa pessoa civilizada e ajustada à sociedade em que vive e trabalha de modo a poder contribuir para o bem e progresso comum.

Mas como antítese e constante sempre presente nas sociedades humanas que exige o sacrifício dos seus melhores elementos no altar da inveja e da ambição, e também o fenómeno do ciúme, hostilidade e raiva irracional que notoriedade, talento e grandeza de alma provocam no mar de mediocridade que as cerca, José Cinatti, bem como seu filho Demétrio não constituíram excepções àquela lei universal provada vezes sem conta desde o dealbar da raça humana, pelo que tiveram de sofrer os seus efeitos e consequentes penas, a castigar os seus génios e talentos.

Assim, o secretário-geral do Governo, o bacharel José Allberto Homem Corte-Real, tendo assumido as funções de Governador interino de Macau durante a ausência do Governador Joaquim José da Graça, ido ao Japão em missão diplomática, aproveita-se da situação para saldar contas não muito antigas com Demétrio Cinatti, contas estas ligadas ao facto deste se ter atrevido a merecer o oficialato da Ordem de S. Tiago, coisa que muito ofendera e fizera arreliar o senhor bacharel Corte-Real.

Aos 28 de Julho de 1882, quase um mês depois de ter sido publicado no Boletim da Província n° 25 de 24 de Junho de 1882 a agraciação de Demétrio Cinatti como cavaleiro da Ordem de S. Tiago devido ao seu — "Merecimento, manifesto não só no levantamento da planta do porto de Macau, mas também por haver executado naquella cidade alguns trabalhos estatísticos de navegação e commércio, e montado o serviço das observações meteorológicas", o senhor bacharel Corte Real manda publicar uma Ordem à Força Armada do seguinte teor:

"O secretário-geral do governo, na ausência e em nome de S. Exa o Governador d'esta província determina e manda publicar o seguinte:

"Que tendo o capitão do porto, Demétrio Cinatti, procedido de um modo irregular e acintoso para com a auctoridade superior da província, a propósito da arrecadação de uma porção de cartuxame embalado nos paioes do governo; e tendo por differentes vezes procedido análogamente depois que S. Exa o Governador se acha ausente d'esta província, de modo que parece querer dar a entender, sempre que se lhe offerece occasião, que não reconhece a auctoridade que legalmente se acha constituída, posto que interinamente; é o mesmo official advertido por esse motivo ficando sciente de que não está dispensado de cumprir nenhum dos deveres, escriptos ou não escriptos, que a bem do serviço estava em pratica observar. Mais, declara, que e com sentimento que se vê na obrigação de reprimir por esta forma o procedimento do referido capitão do porto, mas tendo sido inúteis todos os meios brandos e indirectos de que se ha servido para o advertir do seu errado caminho quando pretende desconsiderar o seu superior, os deveres da disciplina e as conveniências do serviço publico reclamam meios mais severos para fazer comprehender-lhe a responsabilidade em que incorre, e de cujas consequências não esta isento governe quem governar."

A imbecilidade deste repreensão é auto evidente. A parte que se considera ofendida serve de juiz. É também um bacharel civil que, no momento em que assume funções de comando, ~-num fenómeno que é muito lusitano, se converte instantaneamente num perito em paióis e cartuchame; não descreve os modos irregulares e acintosos com que foi tratado. O acusador-juiz não tem bem a certeza do que o acusado quer dar a entender, mas parece-lhe que ele não quer reconhecer a sua autoridade de bacharel governador com extra-salamaleques. E etc., etc., e mais etc..

É difícil de compreender como um mentecapto, do calibre deste bacharel, esperava ganhar o respeito das gentes indo lamuriar-se nas páginas do Boletim da Província, de que a sua condição de Governador provisório bacharelado merecia tratamentos mais obsequiosos e subservientes, quando as normas usuais para casos de indisciplina determinavam que os infractores fossem julgados em Conselho de Guerra. Mas o senhor bacharel, se calhar, como paisano em posição de comando militar, não sabia, e nenhum dos seus subordinados do Estado-Maior o informou, e por isso Demétrio Cinatti teve que lho lembrar exigindo, numa atitude de quem não deve não teme, ser submetido a Conselho de Guerra.

Esta situação ridícula, mas muito frequente na História dos pequeninos ditadores de Portugal, para os quais a virtude, a competência e a dedicação eram de ser castigadas, enquanto o vício, a lisonja, a vaidade e a mentira intriguista eram de ser recompensadas, derivava da alta qualidade do trabalho e admiração que suscitava a superioridade intelectual einteligência de Demétrio Cinatti, reflectidas em todos as tarefas a seu cargo, uma das quais, eaque mais popularidade e honrarias lhe deu, a execução do plano do l. ° levantamento rigoroso da Península de Macau em 1881, trabalho este que também mereceu um louvor da prestigiada Sociedade Geográfica de Lisboa, que o nomeou seu sócio correspondente.

Tivesse ele executado um trabalho medíocre, ejá o senhor bacharel Corte-Real não se teria abespinhado tanto, o que explica parte do motivo porque Portugal era um país tão atrasado, pois a mentalidade do bacharel era bastante generalizada e característica marcante das classes dirigentes de então.

Cinatti, no seu requerimento de 7.8.1882, pedindo, para ser submetido a Conselho de Guerra,a fim de desagravar a sua honra, e apresentado logo após o regresso do Governador a 6.8.82 escreveu:

A 7-8-1882 dizia ele que servia a Nação desde 12-11-1868 e,: "Que serve nesta província ha quasi quatro annos, primeiro sob as ordens do Exmo. Antecessor de V. Exa. (o Governador), por quem o zelo e dedicação do suppte. em serviço publico foi louvado em portaria n. ° 122 de l d'0utubro de 1879; depois sob as ordens do Exmo. Conselho Governativo, que em officio da Secretaria do Governo n. ° 665 de 18 de Novembro de 1879, também julgou louvar a iniciativa do suppte. em objecto de serviço público; e finalmente, por V Exa... foi louvado em ordem à Força armada n. ° 37 de 19 d'0utubro de 1881... Como, official de guarnição nos navios da Estação Naval da China, foi o suppte. por semelhantes motivos louvado em ordem à Força armada d'esta Província n. ° 29 de 29 Septembro de 1874, e n. ° 12 de 12 de Junho de 1875.

O Suppte., Exmo. Snr., é filho d'um artista estrangeiro que veio a Portugal onde viveu 42 annos, paiz a que tanto queria como a pátria onde nascera, que se honrava por que um filho pagasse a pátria que adoptou o tributo de sangue, pátria adoptiva a que tanto se sacrificou, amou e serviu, que não só de Real Graça lhe vieram muitas honras em vida, sendo depois da morte a nobre cidade de Évora, que já em vida lhe creara honras especiaes, lhe erigio na própria cidade à memória, um monumento; porque o artista que tivera o bem por norma, professava os princípios de amar e servir, sendo escravo da honra, do trabalho, do dever e da moral.

Foi sob estes princípios que o Suppe. recebeu a educação, à qual deve os titulos que obteve, e que como, militar lhe dariam o direito de as obter, se as houvesse pedido, as graças comprovativas de bons serviços e comportamento exemplar.

Mas, em quanto o suppte, recebia em Macau o diploma d'uma sociedade official que se creou no interesse da Sciência e do País, e a que preside o nobre Ministro da Marinha, diploma que lhe foi conferido por eleição de assembleia de 15 de Maio do anno que corre, assembleia pública que unânimente fez escarar na respectiva acta um voto de louvor ao suppte., consignado em motivos de dedicação e patriotismo, e em outras que o suppte. não transcreve, demonstradas no interesse nacional; ao mesmo tempo que a folha official de Macau publicava a graça d'uma distinção honnorífica em fundamentos de louvor conferida pelo Governo de Sua Majestade ao suppte., era este censurado com officio da Secretaria do Governo n. ° 279 de 3 Maio d'este anno, por gravíssima infracção de disciplina e manifesta desconsideração e reincidência creando conflictos".

Mas a confiança do Governador Joaquim José da Graça no juízo e sentido de Justiça e de Honra do seu Secretário bacharel era tão débil e duvidosa que, apesar das benesses e honrarias que lhe concedeu publicamente como manifestação de confiança, nas suas habilidades e espertezas, em privado, encolheu-se a tentar descobrir a verdade e, a 11.8.82 indeferiu a pretensão de Demétrio Cinatti, pois o Conselho de Guerra poderia descobrir toda a sórdida verdade e ambos os responsáveis saírem sujos, como sujos saíram mais tarde.

Não é verdade que "dos fracos não reza a História", e a acção vergonhosa do governador a complementar a vergonhosa perseguição que, com sanha raivosa e cobardia despudorada o seu secretário bacharel movia contra um homem de bem, e militar distinto apenas revela a fraqueza de carácter do tipo de dirigentes que, durante séculos — com honrosíssimas excepções — não só não souberam consolidar e fazer prosperar o imenso Império Português, mas ficaram, na História, parte da qual ainda não foi escrita, precisamente por o fazerem perder. É uma História em que as obras dos nossos maiores foram desfeitas pela pequenas dos que lhes sucediam.

E, no entanto, a decisão descarada e velhaca do governador Joaquim José da Graça de exibir a sua parcialidade e desprezo pela Justiça é coerente com seu estilo irresponsável e faccioso de governação, pois afinal os primeiros despachos que emitiu, mal assumiu outra vez o governo de Macau a 8 de Agosto de 1882, foram para dar um louvor e um aval ao seu secretário bacharel, publicados no Boletim Provincial n. ° 31 nos seguintes termos: O Governador da província de Macau e Timor, e suas dependências, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de Sua majestade Fidelíssima nas cortes da China, Japão e Siam, determina o seguinte:

"Tendo eu regressado à sede do governo da província, de que me havia ausentado para ir desempenhar no império do Japão uma commissão de serviço diplomdtico, hei por conveniente exonerar das funcções que estava exercendo, por portaria de 2 7 de Abril último, em virtude do disposto no artigo 8 do decreto de 1 de dezembro de 1869, o secretdrio-geral do governo, bacharel José Alberto Homem da Cunha Corte Real, as quaes desempenhou com o zelo, intelligencia e sensatêz que sempre tem demonstrado nos actos do serviço público, e que durante o período de mais de três mezes soube manter com a dignidade que lhe competia; considerando-o eu merecedor de louvor pelas ordens de administração e militar que, em meu nome expediu e fêz cumprir, e que por este modo são approvadas. (itálicos nossos)

As auctoridades, a quem o conhecimento e execução d'esta competir, assim o tenham entendido e cumpram.

Palácio do governo de Macau, 8 de agosto de 1882.

O Governador da província e ministro plenipotenciário de Sua Majestade Fidelissima na China Japão e Siam Joaquim José da Graça."

E já que estava com a mão na massa, o senhor enviado extraordinário e ministro plenipotenciário de sua majestade Fidelíssima nas cortes da China, Japão e Siam e também Governador da província de Macau e Timor e suas dependências, exibindo um critério de Justiça, noção de dignidade e sentido de Estado muitíssimo mais curtos e atrofiados do que o somatório de todos os seus títulos e atribuições, aproveitou a ocasião para com a mesma penada indeferir o requerimento que no dia anterior, 7 de Agosto, Demétrio Cinatti apresentara para que fosse julgado em Conselho de Guerra pelas faltas de que fora acusado, um estranho e raríssimo pedido pois nenhum oficial de carreira gosta de ser presente como réu a um Tribunal Militar.

É difícil de compreender como um indivíduo a exercer funções de governante, recebendo um requerimento de um dos elementos mais importantes do seu elenco governamental,   administrativo e militar, nomeadamente o seu capitão do Porto e Comandante da Polícia do Mar -como naqueles tempos a Polícia Marítima também era apelidada- relativo a um caso grave, em que a sua actuação e comportamento para com o encarregado do governo eram por este "postos em dúvida ", pelo que este digno burocrata o achou merecedor de uma admoestação que não ficasse apenas restrita ao sector militar mas, para que a humilhação fosse mais ampla e completa, também divulgada publicamente nas folhas oficiais do Boletim Provincial, não só ficou indiferente ao facto de que a lamentação piegas do bacharel tendia a minar a força moral do presumido delinquente, que ainda continuava responsável pela imposição de disciplina aos seus subordinados, bem como a fazer diminuir a confiança — da comunidade na sua competência como chefe militar e como elemento governamental, mas também não tentou descobrir a verdade e, injusta e levianamente, não hesitou em indeferir pressurosamente o requerimento de Demétrio Cinatti.

Se a actuação de Cinatti fosse tão injuriosa que merecia uma admoestação pública e humilhante, então a coerência e o senso comum, atributos sem os quais um chefe não pode ser considerado como sendo um chefe justo, sábio e experiente, exigiam que o acusado fosse punido severamente, demitido das suas funções e mandado de regresso à Metrópole, mas só depois de ter sido condenado e lhe tivessem dado a oportunidade de apresentar a sua versão.

Por outro lado, se o acusado fosse ilibado da acusação, o seu acusador, que neste caso era também o seu punidor, teria que sofrer as consequências da sua acusação infundada, abuso de autoridade e crime de denúncia caluniosa. Nada disso aconteceu. Numa decisão muito típica de mandantes que não sabem mandar, não dizendo que sim nem que não, nem carne nem peixe, nem frio nem quente, nem seco nem molhado, o senhor Joaquim José da Graça parou o processo a meio. É que tendo aprovado todas as decisões e acções do seu secretário-geral feitas em seu nome, acções essas que até lhe tinham merecido um louvor, se não embargasse o processo de averiguações, as nódoas do seu parcialismo odioso e descrédito da sua capacidade de julgamento que o Conselho de Guerra poderia pôr a nú, fatalmente caíriam na serapilheira do seu prestígio pessoal e reputação, de modo que a solução para este problema era fácil: — Não haverá Conselho de Guerra que, a serem verdadeiras as implicações das lamúrias choramingadas pelo secretário no Boletim, deveria ter sido convocado, independentemente do requerimento de Demétrio Cinatti. Quanto ao embaraço potencial que este requerimento lhe poderia causar, resolve-se indeferindo-o em menos de 24 horas depois de ter sido submetido, e sem ouvir as razões que levaram Cinatti a submetê-lo. Numa concepção muito especiosa sobre o conceito de Justiça, o senhor Joaquim José da Graça não se detém. Para exibir a sua confiança no seu bacharelado apaniguado e suas noções de como bem Governar toda a terra, uma semana depois propõe-no ao ministro e secretário de estado dos negócios da marinha e ultramar, como digno de ser agraciado com a Comenda da Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Villa Viçosa, proposta esta fundada nos "merecimentos e qualidades do candidato e no seu zelo e dedicação pelo serviço a seu cargo" -o que também podia ser dito da mulher da limpeza- mas sem referência a qualquer obra feita. Joaquim José da Graça, pondo assim uma pedra sobre o assunto acreditou ter deixado o seu Capitão do Porto a ver navios, mas aí o tiro saiu-lhe pela culatra... e foi atingi-lo, como se costuma dizer, nos joanetes do pé. É que Demétrio não desistiu, embora tivesse que esperar mais nove meses pela substituição do senhor Joaquim José da Graça por outro governante mais justo e com maior noção de honra e integridade. Joaquim José da Graça deixa Macau em 24.03.1883. E o Conselho de Guerra convocado logo a seguir sentencia:

Mostra-se d'estes autos que o 2° tenente da armada Demétrio Cinatti pretende justificar-se das censuras e arguições contidas nos officios da secretaria do governo da provincia n. ° 279 de 25 de maio, e 439 de 4 de agosto do anno passado, na ordem extraordinária publicada no Boletim official de 22 de junho, na ordem à força armada no 29 de 28 de julho e no relatório do secretario geral de 8 de agosto do mesmo anno.

Mostra-se mais que o justificante como fundamentos de sua reclamação allega varios factos constantes dos interrogatorios de fl. Mostra-se mais que o justificante produziu testemunhas sobre os factos allegados, e apresentou varios documentos, requerendo fossem juntos ao processo, o que foi deferido.

O conselho, em vista do corpo de delicto, da prova constante dos documentos de fls., e fls., e do que resulta dos depoimentos de fls., julga por unanimidade que no procedimento do justificante para com o secretario geral do governo d'esta provincia, durante o tempo em que serviu de governador, não houve transgressão de disciplina, e por tanto julga illibada a conducta do justificante.

Macau, sala das sessões dos conselhos de guerra, 19 de abril de 1883. — O auditor, Vicente Saturnino Pereira. — António Joaquim Garcia, coronel presidente. — Francisco Pereira Sardinha, capitão. — Caetano Maria Dias Azedo, capitão vogal Belisario de Saavedra Prado e Themes, capitão do 1. ° batalhão. — Adriano Augusto do Rego, tenente vogal. — José Maria Esteves, tenente vogal. Fui presente, José Victorino, tenente promotor.

Note-se que esta sentença é apenas publicada no Boletim Provincial de 23.6.83. A face do secretário Côrte-Real só precisou assim de corar de vergonha apenas uns poucos dias antes do seu regresso a Portugal, vergonha a que Joaquim José da Graça escapou por se ter retirado a tempo do Território.

Aos 22 de Abril de 1883 desembarca o novo Governador Thomaz de Sousa Rosa. Com a sua chegada o bacharel José Alberto Homem (que nome tão mal posto) Côrte-Real é também substituído, e tendo gozado os seus 15 minutos (simbólicos, à Andy Warhol) de fama e poder como ex-encarregado do governo e secretário-geral, ao puxarem-lhe o autoclismo (figurativo) para a partida, o homenzinho com certeza que estremeceu, mas conformado, deu uns pézinhos de valsa, cumprimentou e desceu... pelo cano de esgoto da História de onde nunca deveria ter saído. Por ocasião do discurso da entrega do governo ao novo governador, ele deverá ter-se reconhecido, mas do lado errado, quando a certa altura o discursante comenta — "... acontece algumas vezes ser o pundonor do homem de bem, que governa conforme a lei e as inspirações da própria consciência, assaltado por uma legião de ódios, ressentimentos e despeitos, que fazem desfallecer o ânimo e sossobrar a constância na lucta das contrariedades " (Boletim da Província de Macau e Timor n. ° 17 de 28.4.18831, mas terá sido pura tortura ouvir o novo Governador prometer— "... da minha administração, que terá por estricta norma o mais rigoroso cumprimento das leis e a mais recta distribuição da justiça".

E o novo governador cumpriu a promessa. A 15 de Junho de 1883 é publicado no boletim da província de Macau e Timor n. ° 25, de 23.6.1883, o acórdão da junta de justiça em que Demétrio Cinatti é completamente ilibado, e os Governantes anteriores não recebem parabéns pelas suas decisões crapulosas.

Obliquamente, o acórdão criticava e chamava a atenção para o facto do anterior governador ter aprovado "plenamente as ordens de administração civil e militar que o secretário geral do governo expediu e fez cumprir em seu nome" (em itálicos no documento citado) delle governador, e como que avocando a responsabilidade das mesmas ordens, houve por conveniente "louvar o referido secretario pelo zelo, intelligencia e sensatez com quedesempenhou as funcções superiores da administra玢o durante a sua aus阯cia", conformese vê da port. prov. n. ° 73 de 8 agosto de 1882.

O acórdão, que melhor e facilmente poderá ser analisado pelo leitor, é como se segue:

"Accordam em conferencia os da junta de justiça:

Foi o R. Demétrio Cinatti, segundo tenente da armada, capitão do porto e commandante da policia maritima de Macau, arguido official e publicamente, posto que em forma de admoestação, pelo secretário geral do governo d'esta provincia, na ausência e em nome do respectivo governador, attribuindo-se-lhe faltas e irregularidades no exercício de suas funções, animo e disposições hostis e intuitos maliciosos, com o fim deliberado de molestar e deprimir a authoridade que governava interinamente a província, cujas ordens se dizia serem por elle desattendidas, de provocar injustos conflictos e perturbar a harmonia e boa ordem que convem manter nas relações officiaes, constiuindo-se defensor officioso de interesses dos particulares em prejuizo da fazenda e com detrimento do serviço público, conforme se mostra da port. prov. n. ° 62 de 28 de maio de 1882, ordem da repartição civil de 22 de julho, ordem à força armada n. ° 29 de 28 de julho e officios n. ° 279 de 25 de maio e 439 de 5 de agosto do mesmo anno:

Mostra-se, outrosim, a fls. 7 e seguintes d'estes autos, que no relatorio official da administração interina do secretário geral do governo, por elle elaborado para ser presente ao respectivo governador da provincia, quando regressou de sua viagem ao Japão, foram denunciadas as mesmas e outras faltas e irregularidades, capitulando-se de inconveniente, e acintoso o procedimento do R. para com a authoridade superior, representada pelo dito secretário geral, a quem, se diz, elle pretendia desconsiderar por systema e caso pensado, sendo além d'isso contumaz e reincidente em actos de desobediência e outras infracções de disciplina, arvorando-se em agente officioso de interesses de particulares em prejuizo da fazenda, e abusando da sua posição de capitão do porto para fazer favores a amigos, dispondo das embarcações da capitania como se fossem suas proprias etc.

Mostra-se mais que o governador da provincia, tendo reassumido a authoridade do seu cargo, approvou plenamente as ordens de administração civil e militar que o secretário geral do governo expediu e fez cumprir em seu nome, d'elle governador, e como que avocando a responsabilidade das mesmas ordens, houve por conveniente louvar o referido secretário pelo zelo, intelligencia e sensatez com que desempenhou as funções superiores da administração durante a sua ausência, conforme se vê da port. prov. N° 73 de 8 de agosto de 1882. 6

São graves e ordinariamente de perniciosos effeitos e consequências as faltas e irregularidades attribuidas ao R. em sua dupla qualidade do official de marinha e chefe de repartição. Na vida pública em geral, e em especial na carreira das armas, não é de molde a humilhar, antes nobilita e distingue, a consideração e deferência com que se tratam os subalternos, para quem vale mais o exemplo do que a doutrina, nem o funccionário se deslustra ou rebaixa em sua dignidade, no cumprimento das obrigações respectivas, sendo obediente e submisso as ordens superiores ainda que estas lhe pareçam menos justas ou menos discretas, salvo comtudo o direito de respeitosa representação nos termos da lei. As leis penaes, tanto civis, como militares punem a desobediência dos subalternos, facultando aos superiores na ordem hierarchica e aos tribunaes da justiça os necessários meios repressivos para cohibir e castigar os abusos dos que não sabem ou não querem comprehender os deveres de seus ministérios7.

Considerando, porém, que dos autos se não mostra que o segundo tenente da armada, capitão do porto e commandante da polícia maritima de Macau, Demétrio Cinatti, tivesse faltado ao respeito devido a authoridade superior da provincia, ou desacatado as suas ordens regularmente transmittidas em objecto do serviço, sendo portanto menos bem fundadas as arguições que lhe foram feitas de falta de respeito e obediência à mesma authoridade no exercício legal de suas funcções.

Considerando que a correspondência trocada entre o arguido e o secretario geral do governo, como se vê a fl. e fl. mostra expressamente que na dita secretaria predominava contra elle uma certa prevenção de desconfiança, que os autos não explicam, quando é certo que o arguido se dirigiu sempre à authoridade superior, sem acrimónia nem recriminações, mas em termos regulares e convenientes, lamentando apenas que por qualquer motivo que lhe era estranho tivesse incorrido no desagrado da mesma authoridade, como do offício a fl. 47 e seguintes:

Considerando que o arguido explicou satisfactoriamente o seu modo de proceder nas questões que suscitaram as censuras que immerecidamente lhe foram feitas, acatando, como lhe cumpria, as ordens superiores, sem mesmo fazer uso do direito de respeitosa representação que as leis lhe facultavam; 8

Considerando que pelos depoimentos das testemunhas se prova que o arguido manifestou sempre desejos de conduzir-se com acerto em suas relações officiaes com a authoridade superior da provincia, pretendendo evitar na correspondência com o secretário geral o emprego de palavras ou termos que podessem tomar-se à conta de menos curiaes ou respeitosos;

Considerando que se não acham provados os outros capítulos de accusação que fazem carga ao arguido no relatório do secretário geral do governo;

Confirmam a sentença do conselho de guerra, que julgou correcto o procedimento do arguido, Demétrio Cinatti, e illibada a sua conducta.

Macau 14 de junho de 1883 — João José da Silva, juiz relator. — Thomaz de Sousa Rosa, Governador, Presidente.- Francisco Augusto Ferreira da Silva, coronel vogal. — Fernando Augusto da Costa Cabral, capitão tenente commandante da estação naval. —António M. Ribeiro, da Fonseca, major commandante do 1. ō batalhão do ultramar. —Álvaro da Costa Ferreira, 2ō tenente d'armada. —Fui presente, J. P. S Cardoso Pinto de Sousa, capitão promotor.

Cumpra-se — Macau, 15 de junho de 1883. — Thomaz de Souza Roza, Governador.

Demétrio Cinatti não recebeu desculpas daqueles dois pândegos que tanto o tinham perseguido e vitimizado, mas a ele bastava que a sua honra, integridade e reputação como homem de bem e de oficial d'Armada tivessem sido preservadas intactas e até mais realçadas ao contrário das dos seus dois perseguidores que provaram ser homens pequeninos, mesquinhos e sem a nobreza de sentimentos e procedimento exigida pelos altos cargos que lhes tinham sido confiados. Neste sórdido episódio, estes dois delinquentes crapulosos é que deviam ter sido os réus, e não Demétrio Cinatti.

Felizmente para a Nação, a degradação da mentalidade das classes dirigentes não era de 100%; sempre houve individuais imunes à corrupção, às tentações de abuso do seu poder, por maior ou'mais pequeno que esse poder fosse e à podridão que tentam corroer as virtudes e morais, entendidas no seu sentido filosófico e não religioso, que tomam o homem superior a si próprio por o fazerem ultrapassar as limitações inatas e inerentes à sua condição humana. Em contrapartida o número destes últimos é quase sempre inferior àquele requerido para uma sociedade justa e equilibrada, mesmo naquelas mais evoluídas, e o eterno conflito que opõe os criadores e inovadores aos empatas e aos destruidores, quer activos ou passivos, continua, e as sociedades evoluem, sucumbem ou degradam-se em diapasão, em conformidade e ao mesmo ritmo com que os oponentes nesta luta predominam uns sobre os outros.

No caso português, este país há séculos que tem sido uma das arenas em que aquelas duas forças opostas e de sinais contrários mais ferozmente se têm combatido, e pelo estado em que chegou ao século XX, a vitória do homo lusitanus superior está longe de ser alcançada.

Neste triste episódio tanto Joaquim José da Graça como o Bacharel Côrte-Real procederam como vilões sem nobreza e sem isenção revelando-se indignos dos altos cargos que desempenhavam.

Os imitadores dos exemplos de Joaquim José da Graça e do seu confrade bacharel Corte-Real são mais numerosos do que os que seguem os princípios de Demétrio Cinatti, mas também enquanto houver lusitanos como ele a esperança não morrerá por um Portugal melhor e mais justo.

Para que este propósito seja alcançado, a mentalidade do povo Português tem que mudar, e isso exige profundas modificações no sistema educativo da nossa juventude a iniciar-se desde a sua mais tenra infância, isto é a partir de casa e da escola primária. Os Ingleses costumam dizer que a batalha de Waterloo foi ganha nos campos de jogos de Eton, querendo com isso dizer que espírito de sacrifício e disciplina, sentido de unidade e cooperação, patriotismo no seu significado mais nobre e altruísta, resistência ao sofrimento físico e espiritual, agilidade mental, tenacidade e persistência na obtenção dum objectivo desejado, malgrado a punição sofrida nos esforços despendidos, experiência de como ler correctamente o carácter e capabilidades dos elementos constituintes de uma equipa, independentemente de simpatias ou antipatias pessoais, etc. são qualidades adquiridas e desenvolvidas pela prática e pelo exemplo, e não dons intrinsecamente inatos, uma doutrina pedagógica que contrasta nitidamente com os costumes e hábitos educativos de formação de carácter lusitanos. Eton, como símbolo e o primeiro entre iguais das escolas britânicas, era assim uma das fábricas de líderes que tão bem serviram o Império Britânico e cuja autoridade moral poucas vezes era contestada pois os seus subordinados sabiam que, apesar dos privilégios de que gozavam os seus chefes, na "hora de Ia verdade" eram eles também os primeiros a autosacrificarem-se. Basta lembrar que na l. a Guerra Mundial, na guerra estática de trincheiras, enquanto as baixas das praças de pré eram de cerca de 30% a 40%, as de oficiais atingiam os 85% e frequentemente os 100%.

Em contraste, Portugal nunca desenvolveu escolas guiadas pelos mesmos princípios das escolas britânicas, como Eton, dirigidas à formação de carácter e civismo, e apesar de uma censura feroz que durante séculos estrangulou, atrofiou e atrasou o desenvolvimento intelectual dos portugueses, é do conhecimento geral que a escolha dos seus dirigentes para cargos de vital importância e de suprema responsabilidade dependia mais da genealogia dos candidatos do que da sua competência, integridade, inteligência, e experiência. O facto de uns tantos entre eles preencherem as condições exigidas para uma liderança capaz e efectiva deve-se mais ao acaso do que a uma apreciação séria e completa das suas qualidades pessoais e potenciais, e é a este processo imbecil e sobranceiro de nomear chefes que se deve uma imensa quota-parte da decadência do Império — que nunca chegou a consolidar-se em bases estáveis e seguras, bem como o atraso — (e em casos específicos, retrocesso) — cultural, científico, moral, social, agricultural, comercial, industrial, financeiro e até artístico da Nação, cujo escudo nacional passou a apoiar-se em 3 colunas: a da ignorância e superstição, a da intolerância e a da pobreza, o país baixara ao nível de tribo, a última tribo da Europa Ocidental.

Entre os escritos dás análises da sociedade portuguesa feita por escritores e viajantes estrangeiros, o comentário de Charles Boxer, a maior autoridade sobre a História da presença portuguesa na Ásia, é aquele que, embora curto, define em poucas palavras o que a outros levaria a um tratado. A páginas 122 da sua obra " O Império Marítimo Português, 1415-1825" ele escreve:"Além disso, os Portugueses, que contavam quase exclusivamente com os fidalgos, senhores de linhagem ou de brasão, para chefes navais e militares, estavam em desvantagem em relação aos comandantes que se encontravam ao serviço da Companhia Holandesa das Índias Orientais, na qual a experiência e a competência profissional (e não a genealogia de família ou a classe social) constituíam os critérios essenciais de promoção. Um deles, ao escrever em 1656, frisou mordazmente o contraste entre os aristocráticos fdalgos que tinham perdido Malaca e Ceilão e os holandeses de humilde condição que haviam conquistado esses locais ".

O britânico também compreende perfeitamente que o bom do Dr. Samuel Johnson, quando afirmou ser patriotismo o último refúgio do malandro, ele se referia ao oportunismo e falsidade do patrioteiro profissional, verboso e pródigo em discursos demagógicos ao mesmo tempo que se vai aproveitando das emoções que desperta para adquirir toda a espécie de vantagens (financeiras, monetárias, posições de previlégio, honrarias, influência, etc.).

Portugal sempre foi infestado por estes parasitas, e foi campo generoso para sebastianistas à espera d'alguém que lhes diga o que fazer (desde que não requeira muito esforço), e quando outros povos se aproveitavam do seu desleixo, indolência e negligência para expropriar o Império à deriva, ((como o caso dos Ultimatums com que os nossos "amigos" ingleses nos brindavam com pontual e monótona regularidade, pelo menos uma vez por século, para fazer lembrar aos Portugueses do valor e benefícios (para eles, ingleses) da Aliança mais antiga do Mundo)) ~— davam a oportunidade e ocasião para os nossos patriotaças exibirem o seu patriotismo barulhento, em que a coragem de cada um era medida pelos decibéis que emitiam, fazerem numerosas — e perfeitamente inúteis — demonstrações sonoras nas ruas, discursos indignadíssimos, envio de numerosos telegramas uns aos outros, manifestando a sua repulsa e solidariedade etc., mas uma vez esgotada a gasosa das suas zangas vazias e inofensivas, e terem arrasado verbalmente o alvo e objecto dos seus ataques acústicos, provando assim ao Mundo espantado eaos inimigos espavoridos com tanta coragem vocal e poder otorrinolaringologístico que com esta espécie de gente não se brinca, recolhiam pacatamente a penates, a tempo de não deixar arrefecer a sopa do jantar ou cansar os dois braços à sua espera entre quatro paredes caiadas, consciência descansada. e satisfeita de quem já Unha cumprido os seus deveres patrioteiros e palratórios, antes de passar a descarregar os conjugais.

A preparação de líderes para a gestão da grande Nação Portuguesa precisava ser regida com maior aplicação, a nível familiar, pelos princípios e preceitos de disciplina firme mas não iracunda, deontologia, civismo, sentido de dever e honra pessoal que caracterizavam e moldavam o carácter da famflia Cinatti cujos membros eram educados e ensinados pelos seus familiares, e principalmente pelos seus parentes, desde a mais tenra idade, constituindo assim um exemplo a seguir.

Com um Avô ilustre e humano, um Pai sensível e talentoso, parangona de virtudes cívicas, morais e profissionais, não é de surpreender que Demétrio tivesse absorvido as lições de formação humana recebidos dos seus familiares mais seniores e por sua vez as tivesse transmitido à sua descendência, como por exemplo o seu neto, Rui Cinatti, o maior e mais internacionalmente, conhecido etnólogo Português, e também uma figura cuja integridade profissional e humanidade contribuíram para o seu prestígio como pessoa de excepção. Demétrio Cinatti quando regressou a Portugal depois de ter pedido a exoneração dos cargos que desempenhava não partia sozinho, pois fora na Sé de Macau que casara com Hermínia Jesus Homem de Carvalho de quem teve uma filha, Hermínia Celeste, nascida em Lisboa e futura mãe de Rui Cinatti.

A estadia de Demétrio Cinatti em Macau foi apenas o prelúdio de uma carreira brilhante, durante a qual as suas qualidades excepcionais foram frequentemente reconhecidas e assinaladas, mais por estrangeiros do que por nacionais.

Em 1890, regressou à China, como cônsul em Cantão, seguindo-se Zanzibar em 1894 onde exerceu as funções de delegado como representante de Portugal na repartição internacional daquela cidade, bem como as de cônsul-geral. No ano seguinte, promovido a cônsul de 1. a classe e encarregado de Negócios em Pretória, assistiu a toda a guerra do Transvaal e durante a qual também lhe confiaram os interesses ingleses naquela cidade. O seu valor como pessoa e como diplomata era admirado pelo Presidente Kruger, que ficou a ser seu amigo pessoal. Em 1905, sendo cônsul do Havre foi agraciado pelo governo Francês com o oficialato da Ordem da Legião de Honra. Tornou a visitar Macau como secretário do Alto Comissário de Portugal, General Joaquim José Machado (mas não da Graça) para a delimitação de Macau e suas dependências, o mérito da sua contribuição tendo sido reconhecido e merecido um louvor. Colocado no Consulado de Londres em 1911, passou a Cônsul-geral em 1913, aposentando-se em 1917 e tendo falecido no ano de 1921, em Lisboa.

Quanto ao bacharel Côrte-Real, as limitações do seu intelecto e as deficiências do seu carácter mantiveram-no numa apagada e bem merecida obscuridade o que, em certa medida, e levando em conta o tipo de mentalidade dos regentes burocráticos da época, é caso para surpreender não ter sido promovido a ministro, ou pelo menos a Secretário de Estado. 9

E que foi precisamente o que aconteceu ao seu ex-patrão, ex-patrono e ex-protector Joaquim da Graça, a quem as iluminárias do Terreiro do Pago acharam por bem propor ao Rei fazer-lhe mercê do título do seu Conselho (Boletim Provincial de Macau e Timor n.7 de 17.2.1883), ao que sua majestade Fidelíssima fiel, (como era seu costume às recomendações do seu ministro e secretário de negócios da marinha e ultramar), e majestaticamente anuiu.

E aqui temos o nosso prezado José da Graça virado conselheiro, como dizem os brasileiros, mas o qu'ele foi capaz de aconselhar, sobre o que ele aconselhou ou como aconselhou ficou registado nas actas do Conselho Real, para edificação das gerações futuras, por uma página de papel muitíssimo em branco pois que, infortunadamente, o pavio deste ilustre conselheiro era demasiado curto para conseguir derreter tão grandes massas de cera cerebral acumulada nos ecos dos seus vastos cavernames cranianos, um combustível raro e precioso que o Rei esperava ver convertido na luzfulgurante de pareceres inspirados e soluções brilhantes para todos os casos presentes ao julgamento sábio, judicioso, cognoscente e sensato dos supremos mentores e próceres cuidadosamente escolhidos (embora também houvesse quem duvidasse de que o fossem) pela sua experiência e linhagens consagradas pelo tempo, uso e costume, e convidados a assentarem grave e solenemente os seus augustos e venerandos traseiros nos cadeirões acolchoados do mais alto areópago do Reino, nomeadamente o seu Conselho Real.

Só que para a composição deste Conselho havia uma propensão natural e irresistível para se preferir a espumarada babosa da mediocridade à nata mais suculenta da competência, da probidade e da verdade analítica, e assim a sua acção não era lá muito efectiva, pois, metaforicamente falando, uma humilde lamparina d'azeite dava mais luz do que o brilho dos intelectos dos Conselheiros Reais todos juntos, e não era a última aquisição ao seu estábulo que o iria tornar mais produtivo e luminescente. Como governador, o caso Demétrio Cinatti denunciara a sua falta de imparcialidade e sentido de justiça, além de revelar cobardia moral (okay, okay, digamos timidez). Como pomposo ministro plenipotenciário de Sua Majestade Fidelíssima nas Cortes da China, Japão e Siam, o seu talento diplomático e capacidade de negociação eram demasiadamente baços e opacos e não foram suficientes para alterar a categoria de 3a classe dos portugueses residentes nesses países, como referido no seguinte extracto do discurso proferido pelo Presidente do Conselho Governativo de Macau por ocasião da entrega do governo ao novo Governador Thomaz de Souza Roza (Boletim Provincial n. ° 17 de 28 de Abril de 1883): -- As relaçõesinternacionais com os impérios da China e do Japão conservam-se no estatu quo (sic) em que ficarampela retirada do Sr. Graça e parecem ser mais ou menos lisonjeiras(?) paka a paz, 10 posto que os súbditos portugueses residentes em território dos dois impérios não sejam ahi considerados como os nacionais, nem gozem das mesmas vantagens, regalias e deferências que se concedem aos subditos de outras nações estrangeira". 11 Numa abençoada paz de espírito o discursante indubitavelmente não está consciente do chorrilho d'asneiras que tinha acabado de enunciar; ele dá a entender que os portugueses se consideravam, ou deviam considerar-se mais ou menos lisonjeados por terem sido relegados para uma categoria de 3. a classe, inferior à dos nacionais de outras Nações, com governantes mais briosos do que os nossos. Esta resignação abjecta dos líderes lusitanos lisonjeados mais ou menos, mas lisonjeados no entanto, com tratamentos apropriados a serventes, a sua serena conformidade com uma classificação de subalternidade atribuída por esses países aos seus residentes portugueses, os quais não compreendiam a passividade autística e catatónica do seu Governo, iniciava uma política de indiferença e abandono dos emigrantes portugueses espalhados por todo o Mundo, que praticamente tinham de se defender sozinhos, pois já nesses tempos os sucessivos governos metropolitanos só mostravam interesse pelas remessas monetárias e contribuições financeiras dos seus exilados económicos e políticos.

A população metropolitana nessa época estratificava-se cada vez mais em duas camadas ou castas sociais isoladas e estanques: — a dos que tudo tinham (muito fininha) e a dos que não tinham nada (muitíssimo grossa), com uma pequena fatia de pequena burguesia no meio a separá-las (ou a colá-las, segundo outras opiniões).

A sociedade Portuguesa ficava assim a ser constituída por duas classes distintas com uma mais heteromorfa no meio, nomeadamente a classe do brasão e do cifrão12 e da, massa amorfa dos bois humanos, os ilotas da era moderna, os mujiques do ocidente, subalimentados analfabetos, motores bragais da sachola e da picareta, uma plebe ainda mais atrasada do que a medieval porque o país estava podre e pronto para apodrecer ainda mais e era a esta carne para canhão que recorriam para corrigir a incúria, a incompetência, e a palermice boçal dos bosses e caciques políticos do último quartel do século XIX (e cuja qualidade não melhorou nos anos que se seguiram).

A corrupção e total incapacidade para liderar fosse o que fosse dos detentores do poder, culminou no Utimatum inglês de 1890, Ultimatum este que desmascarou não só a falsidade britânica mas também veio confirmar a degeneração das estruturas governativas, políticas e administrativas da Nação devido à pobreza de qualidades gestoras e de chefia de ignaros e arrogantes autocratas promovidos a postos cimeiros pelo processo de eleição caracteristicamente lusitano da "Cunha", compadrio e nepotismo tradicionais, e que depois, à frente das cadeias de comando dos destinos da Nação, presidiam impávidos e serenos ao descalabro do que ainda restava do Império, a espessura das suas meninges tomando-os completamente impermeáveis às lições amargas do Passado.

Como os membros da família Cinatti conseguiram atravessar incólumes os períodos mais negros da História contemporânea nacional revela a robustez da sua formação moral e cívica, a par das suas virtudes e qualidades humanas, e dão-nos uma lição de dignidade, integridade e verdadeiro patriotismo que perpetuam o seu nome e prestígio, enquanto o que os burlescos episódios biográficos do bacharel Côrte-Real e do ministro plenipotenciário Joaquim da Graça fornecem, são uma lição negativa, um exemplo a evitar por todos aqueles que prezam o seu bom nome, a sua reputação e de sua família e, acima de tudo e de todos, o prestígio da sua Pátria que só é respeitada no tempo e no espaço, de acordo com o saldo dos somatórios das acções positivas ser superior ao saldo dos aspectos mais negativos dos seus filhos. Caso contrário, se esse saldo for negativo, ela será contemplada como um espectáculo cómico, uma Ruritânia de bananas cuja existência é uma comédia e os seus dirigentes, palhaços.

O Povo de Portugal tem uma longa e prestigiosa, se bem que ignorada, História, única entre as Histórias das outras Nações, tanto ainda existentes como as já desaparecidas.

Mas também tem episódios menos dignificantes e personagens cuja crueldade, ganância, egoísmo, vaidade, estupidez, inferioridade espiritual e bestialidade os tornam objectos de ridículo, desprezo e abominação. É ao cidadão decente que compete neutralizar as suas acções nefastas e não contribuir para o saldo negativo, pequeno que este seja, capaz de diminuir ou conspurcar a Grei Lusitana.

Cinatti estava consciente desta obrigação. Quem ler estas linhas que nunca venha também a esquecê-la, diminuto que seja o tijolo com que venha a contribuir para a manutenção e aumento do monumento imenso da nossa Portugalidade.

Entretanto, tristemente, a palermice burocrática institucionalizava-se rapidamente e ganhava acesso directo às ultras esferas do Poder e Conselhos Reais do Reino como condição " sine qua non" de promoção e exemplo a seguir e emular, e sem este ingrediente essencial, nenhum decreto, nenhum negócio d'Estado, nenhuma proclamação, nenhum Edito, se poderia considerar perfeito, completo e recomendável para promulgação e cumprimento pelas massas.

Os gregos da Era Clássica já diziam que "contra a estupidez os próprios Deuses lutam em vão", um conceito que durante 4 séculos beneficiou e encorajou os políticos e dirigentes mais proeminentes da Capital Lusitana que, sempre vitoriosos nas suas lutas inglórias contra o Bom Senso, a Competência, a Sabedoria, dignidade das gentes e o sentido de Dever pelo Bem-Estar dos Povos e do Prestígio Nacional, o adoptaram como lema secreto, grito silencioso de batalha e pregão de convocação confidencial para os seus congressos e reuniões partidárias.

A cultura d'asneira iniciada por D. Manuel e D. João III há 400 anos continuava bem, muito obrigado e, fecunda e feliz, prosperava e expandia-se.

Quem se surpreender com o acima mencionado, o que diria se, durante a "Guerra Fria" das décadas de 50 a 80 deste século, os americanos exilassem para a Rússia a maioria dos seus cientistas nucleares, fisicistas, economistas, financeiros, médicos, professores universitários, filósofos, Prémios Nobel, artistas, banqueiros, engenheiros aeronáuticos e espaciais, pilotos de protótipos experimentais, biologistas, estrategas, etc., enfim quási toda a sua intelligentzia, e aqueles que permanecessem fossem coagidos a abjurar das suas crenças mais sagradas, condenados a uma vida de toupeiras, de geração a geração e debaixo da ameaça eterna e omnipresente do garrote, da forca e da fogueira -- (que neste caso hipotético talvez fosse substituída pela cadeira eléctrica, como concessão à tecnologia do Século XX, para sempre receosos de que a qualquer momento os seus bens fossem expropriados, interditos de exercer um sem número de actividades ou ascender aos cargos públicos mais importantes? É quase certo que classificaria os responsáveis por tal política de pesadelo, de doidos varridos, loucos raivosos agravados por deliríum tremens, cujo lugar mais próprio'seria um manicómio para ensandecidos criminosos e dementes furiosos incuráveis, e não as instituições públicas que administram, regulamentam e controlam a Res publica como pessoas de bem.

Mas foi isso precisamente o que aconteceu no Portugal dos séculos XV e XVI, com a expulsão dos Mouros e dos Judeus que recusassem a sua conversão ao Cristianismo (1496) e 40 anos mais tarde, com a criação da instituição mais depravada, mais sinistra e mais duradoura que a mente distorcida do ser humano jamais concebeu, a Inquisição (nascida em 1536 e extinta oficialmente em Portugal somente em 1821, embora, sob várias formas, persistisse por muito mais tempo, também chamada, grotesca e incongruentemente "O Santo Ofício" uma obscenidade blasfema e sacnqega, pois nem era santo, era satânico, nem era ofício de gente sã e normal (a menos que a Mafia, a Gestapo, a STASI, a KGB, a PIDE, a CIA, a DINA ou quaisquer outras organizações que usem terror, tortura, intimidação e assassinato como instrumentos ilegais para impor a sua vontade, doutrinas e políticas também o fossem).

Portugal, expulsando o creme dos seus humanistas, enfraqueceu-se e semeou os germes da sua decadência, antes mesmo do Império ter atingido o seu apogeu. A perda de Portugal foi o ganho dos seus inimigos.

A História de Portugal está cheia de feitos valorosos a testemunhar a ousadia dos portugueses, mas ousadia também não faltava aos maiores rivais de Portugal, nomeadamente os Holandeses. Para consolidação do Império era também requerido génio comercial, administrativo e de gestão de recursos, e nesses campos de acção os portugueses mostraram-se bastante deficientes e desastrados.

E foi precisamente na Holanda, já a sacudir o jugo opressivo da Espanha, e prestes a tomar-se a maior inimiga de Portugal, que a fina flor das Ciências, das Artes, das Letras, da Banca, da Indústria e do Comércio expulsa do Reino de Portugal encontrou refúgio, protecção, tolerância e campo fértil para expandir os produtos da sua actividade intelectual (na qual se destaca Spinoza, que revolucionou os processos de pensamento com importantes consequências nos métodos de investigação científica), didáctica, científica, mercantil (como por exemplo, os produtos da extremamente lucrativa indústria de lapidação e comercialização de diamantes, e cujo centro poderia ter sido Lisboa em vez de Amesterdão), Construção naval (e que ensinou aos holandeses como armar e projectar os barcos de longo curso das armadas e esquadras que arrancaram das mãos dos portugueses os monopólios do comércio com o Oriente e os territórios de Ceilão, Malaca, Indonésia, ilhas das Especiarias, Formosa, o comércio do Japão e quase o Brasil), académica (que criou e treinou os gestores, administradores, governadores, comandantes navais e militares, todos eles seleccionados e escolhidos de acordo com os seus talentos e capacidades, dotes de comando e experiência, o que permitiu à Holanda extrair o máximo proveito dos recursos do seu império para depois elevar o nível de cultura do seu Povo, iniciar as infra-estruturas que permitiram a modernidade da sua cultura e prosperidade actuais, criar novas indústrias e mercados, universidades, institutos, expandir a área geográfica do seu território por meio de gigantescos trabalhos de engenharia hidráulica e de formação de terras, modernizar e manter as suas frotas de marinha mercante e de guerra, etc., completamente conscientes de que a prosperidade do futuro é preparada no presente com as lições da experiência do passado.

Com a intelligentzia ida de Portugal, os Holandeses aprenderam a criar não só riqueza e os meios de a obter mas, mais importante ainda, aprenderam também a aplicá-la sábia e judiciosamente de modo a auto-regenerar-se continuamente, mesmo depois do seu Império se ter separado e esvaecido, uma lição que os grandes senhores de Portugal nunca souberam — ou quiseram — aprender, e por isso, em termos globais, a Nação teve sempre como acompanhantes perpétuos a pobreza, a miséria, a ignorância e o atraso, tanto na sede do Império como nas suas parcelas ultramarinas, condenada a sofrer através dos tempos, incessantemente, as consequências dos desastres e catástrofes provocados pelo mesmos erros, os mesmos enganos, as mesma palermices dos seus Lordes e senhores.

Os ganhos eram gastos imediatamente numa gestão financeira de chapa ganha, chapa batida, além dum hábito muito plebeu de recorrer à penhora de bens nacionais e hipoteca de futuras receitas ainda não ganhas, uma leviandade imprudente e destrutiva que já se tinha tornado parte do carácter e da cultura das elites dirigentes nacionais, um vício que, como todos eles, minava quaisquer chances de prosperidade e estabilidade financeira — e a um ritmo crescente ia corroendo e fazendo esboroar o Império. O "ir-se ao prego" converteu-se num factor importante de gestão financeira que após a Restauração, principalmente com D. João V, dominava a lista de prioridades da política externa nacional, e pelo exemplo que dava, entrava também nos hábitos da nossa gente como elemento cultural consagrado em tradição castiça e ritualfstica.

É que ousadia e coragem são de facto factores prioritários e importantes na criação dos Impérios, mas a garantia da sua consolidação, sobrevivência e prosperidade depende somente da actuação de gestores competentes, honestos, dedicados, imbuído de um sentido de dever e de missão imperial, eficazmente apoiados por uma máquina administrativa e judicial afinada e bem ajustada, equipada por funcionários eficientes e moralizados, guiados por políticas coerentes, claras, justas e adaptadas ao meio onde eram de ser aplicadas, e só modificadas para se moldarem a novas circunstâncias que calhem de acontecer, e à evolução natural das solicitações e necessidades das populações, bem como a utilização inteligente e apropriada dos recursos naturais. Mas neste aspectos a intelligentzia de Portugal e suas elites falharam estrondosa e escusadamente. A massa dos portugueses era boa, só que faltavam os padeiros que soubessem trabalhar com ela. Portugal tinha Cinattis a menos e Côrtes-Reais a mais.

Os responsáveis pela gestão de Portugal e dos portugueses preferiram seguir a chamada política do presunto (Ham policy) um termo cunhado por um analista da história inglês (Sir Arthur Bryant), quando a um dirigente de visão se seguia outro de pensamento gorduroso, inerte, opaco, denso, serôdio -- o unto do presunto.

Só que esta política, noutros Impérios era de carácter temporário e não sobrevivia períodos de tempo muito longos, ao contrário do caso lusitano, em que qualquer governador, capitão-geral, vice-rei ou procurador real que, por acidente, revelasse visão, presciência, sentido de missão, qualidades de eficiência administrativa e capacidades de comando (a fêvera do presunto) involuntariamente assustava as autoridades centrais, que reagiam substituindo-o por outro menos controverso e mais amorfo, passivo e previsível (a camada de unto que se segue à fevêra). Quando a situação piorava até chegar a um nível de ruptura que de tão baixo se tomasse excessivamente perigosa e explosiva, lá mandavam alguém de melhor qualidade e experiência, em ciclos repetidos se bem que bastante irregulares.

Assim, a política de presunto (unto-fêvera, fêvera-unto), no nosso caso mais unto do que fêvera, perdurou durante séculos e, malgrado o esbanjamento dos recursos naturais e de matérias primas — que raramente eram processadas racionalmente, satisfazia os poderes centrais já que sempre iam recebendo qualquer coisa, sem grande trabalho (embora o mesmo não se podia dizer daqueles ligados ao seu transporte), indiferentes ao facto de que os grandes lucros derivados da transformação, manufactura e aproveitamento dessas matérias primas e produtos ultramarinos eram ganhos pelos outros países europeus para onde eram reexportados, entre os quais, por incrível que pareça, o maior inimigo de Portugal desses tempos, a Holanda era o que mais lucrava e se aproveitava do esforço de transportar as mercadorias de terras longínquas para a Europa. Era o caso tradicional das pérolas deitadas a quem as não sabia apreciar ou compreendia as suas potencialidades para fazer avançar o progresso social e bem-estar do Povo.

A perpetuação desta política do presunto, como classificada com grande inspiração e sentido observador pelos nossos "aliados" britânicos ou, à francesa, de "Laissezfaire, laissez passer", e a sua dominante influência no panorama sócio-político nacional era passível devido ao tipo único, — talvez inacreditável os defina melhor — dos gestores e governantes lusitanos e das razões esotéricas e herméticas que controlavam a escolha dos iluminados que, independentemente das suas experiências e currículos relevantes, iriam determinar e conduzir os assuntos ultramarinos e dos negócios estrangeiros, para maior glória e prosperidade da Nação. Um exemplo típico já bem dentro do século XX melhor elucidará o leitor:

O Boletim da Agência Geral das Colónias n. ° 5 de Novembro de 1925 publicou o necrológio do Director Geral dos serviços Centrais e Secretário Geral do Ministério das Colónias, do qual se destaca o seguinte extracto: — "Convidado a sobraçar a pasta das colónias em 1912, e mais tarde a da guerra, em 1914, depressa revelou as suas altas qualidades de estadista, de que é prova flagrante o magnífico relatório ministerial que então apresentou ao Congresso da República e de que apenas existe publicado o primeiro volume, estando o segundo ainda em provas"... "Êsse trabalho, um dos mais brilhantes que honra a biblioteca colonial portuguesa, deixa-nos maravilhados pelo conhecimento, profundeza, clareza e erudição com que os variados, vastos e complexos do nosso problema aí são tratados, e tanto mais quanto é certo que Cerveira de Albuquerquenunca visitou nenhuma das nossas colónias. Nesse relatorio em que todos as colonialistas muito têm que aprender."

É indiscutível que os colonialistas muito mais teriam a aprender e, mais maravilhados ficariam, caso o senhor Albuquerque se tivesse dado à pachorra de, na verdade, as ter visitado, mas no entanto, e pela mesma lógica macaca, o exemplo deste senhor ex-ministro ao quadrado, (Colónias e guerra), leva-nos a crer que, possuísse Vasco da Gama as mesma altas qualidade e presciência desta individualidade, ele não teria necessidade alguma de sair fora da boca da barra do Tejo para conseguir descobrir o caminho marítimo para a Índia, nem o Luís de Camões precisava de saber ler para escrever os "Lusíadas", malgrado haver ainda quem se recusasse a acreditar que certos efeitos pudessem acontecer na ausência de visitas aos locais onde eles aconteciam, como era o caso dos embarcadiços, militares em longas comissões de serviço no Ultramar, pessoal ocupado em campanhas da faina da pesca do bacalhau, etc. que, regressados após meses e anos de ausência, encontravam as suas mais que tudo à espera de bebés, o que eles acreditavam ser impossível sem as suas visitas e contribuições pessoais, pelo que muitas zaragatas ocorreram devido ás suas incompreensões, o que felizmente não aconteceu ao senhor Cerveira d'Albuquerque e seu tratado colonial.

Esta suprema confiança, este indestrutível optimismo no valor da teoria fantasiosa sobrepondo-se à prática realística e ao " saber da experiência feito", comum aos estadistas que despendiam os seus talentos e os seus ócios nos Gabinetes, Galerias, Secretarias dos Paços, Chancelarias, etc. onde os assuntos do Estado Português eram conduzidos, foram o azeite das lamparinas mortiças que desde os tempos remotos do Século XVI alumiavam as estratégias políticas das estruturas governativas nacionais, um fenómeno praticamente desconhecido em qualquer parte do globo, com excepção de algumas tribos isoladas em locais remotos da Arábia Felix e Norte de África onde crença em Kismet — equivalente ao fatalismo do fado lusitano — é uma filosofia de vida. Criou-se assim uma série de hábitos, uma burocracia azelha de procedimentos e códigos de actuação os quais em combinação com a política do presunto, já acima mencionada, conseguiram sufocar e amordaçar as vozes da Razão, Inspiração e Experiência, um sucesso, causado pela maior espessura e predominância do unto (simbólico) sobre as fêveras (simbólicas), pelo que o Império Português, o primeiro onde o Sol nunca se punha (e não o Espanhol — que foi o segundo, nem o Britânico — que foi o quarto) falhou em atingir o desenvolvimento que as suas enormes potencialidades permitiam. O cerne da questão não se resumia simplesmente à aquisição de riquezas e seu transportes para o Reino. Era preciso também saber investir essas riquezas. E os Portugueses não souberam fazer. Hoje mesmo continuam a não saber. Em Portugal, o amadorismo reinava supremo, e um presunto fumado era o seu símbolo e brasão.

Macau, apesar do seu estatuto especial diferente do das outras colónias, em várias ocasiões também foi afectado pela política do presunto, como no Macau do tempo de Demétrio Cinatti, em que ao unto de Joaquim José da Graça se seguiu um Governador de notáveis e soberbas qualidades, tanto humanas como de gestão, competente, carismático, de fino tacto diplomático e sensibilidade no seu tratamento e contacto pessoal tanto com nacionais como estrangeiros. Thomaz de Souza Roza era um dirigente que deixou obra, a qual tipicamente, e como era de esperar nestas alternâncias de competência, não foi continuada com a mesma eficiência, inspiração e sabedoria por alguns dos seus sucessores do fim daquele século e do seguinte.

É que semelhante ao M. D. C. (máximo divisor comum) das Matemáticas, os regimens políticos lusitanos que se seguiram, quaisquer que eles fossem, monarquia, República, ditaduras, anarquia, Democracia, etc., todos eles tinham um factor de divisão comum: a política do presunto, uma política inerentemente hostil a todos os Cinattis deste mundo e àqueles que seguem os mesmos princípios e defendem os mesmos valores que os notabilizaram.

Canhoneira Rio Tâmega. Na década de 1880, foi utilizada no programa de sondagens, medições, recolha de elementos hidrográficos levado a cabo por Demétrio Cinatti. (Foto extraída de "A Marinha em Macau", Capitania dos Portos de Macau, 8 de Julho de 1997.)

NOTAS

1 O alcance da decisão desse Governador, Ferreira do Amaral, de estender a Cidade para além das' muralhas, ainda hoje não foi compreendido, ou sequer reconhecido pelos contadores de histórias chineses pois, com a remoção das sepulturas que polvilhavam a área fora-muros e a drenagem e secagem dos pântanos e charcos de águas estagnadas, habitats ideais para a incubação de moscas, mosquitos e proliferação de micro-organismos mortíferos como os germes responsáveis pelo paludismo, febre amarela, cólera-morbo, tuberculose, malária, encefalite letárgica, etc. que tantas'vítimas causavam principalmente entre as populações chinesas. Este Governador, tão maldosa e rancorosamente caluniado, salvou milhares de vidas chinesas, um facto geralmente omitido ou "esquecido" pelos cronistas quando descrevem ou analisam aquela época. Para mais, a expansão dacidade tonara-se essencial para alojar a própria população chinesa que nela preferia morar, em contravenção do preceituado nos primórdios de Macau, quando os Mandarins proibiam os seus súbditos de viver e misturarem-se com os "bárbaros do ocidente" (Sai Yan Kwai). Nos séculos anteriores, as portas das muralhas eram fechadas à noite, e qualquer chinês que não tivesse saído a tempo só se podia deslocar nas ruas desde que munido com uma lanterna não tanto para se alumiar mas mais para que a sua qualidade de nacional chinês fosse visível a qualquer potencial assaltante. É que a morte de um chinês acarretava consequências para a população da cidade, de tal modo sérias que as eventualidades de um engano tinham de ser totalmente eliminadas.

2 O caso mais típico e potencialmente mais embaraçoso aconteceu nos anos de 1975-76 quando os bonzos do templo Lin Fung Miu(Templo do Lótus) protestando acerca de umas obras na vizinhança do Templo, mostraram serem, por concessão imperial, proprietários de quase toda a área em volta do pagode compreendida entre as colina de Mong-Ha e o litoral do Porto Interior. Afortunadamente, o caso foi resolvido a contento de todas as partes sem que os bonzos do único templo taoísta de Macau reindivicassem, a restituição dos seus terrenos.

3 A única possibilidade de se determinar os planos correctos e fiéis desta Fortaleza talvez se encontre nos arquivos militares ou nos do antigo Ministério do Ultramar. O Boletim da Província de Macau e Timor n° 46, volume XXIX de 17 de Novembro de 1883, página 409, publicou um relatório do Comandantedo 1. ° batalhão do Regimento de Infantaria do Ultramar sobre o aproveitamento dos alunos do 1. ° e 2. ° ano da classe de sargentos da escola daquele batalhão cujo 9. ° parágrafo era do seguinte teor: "Tambémenvio juntas a V. Exa. para serem devidamente apreciadas pelo Exmo. Governador da província, e terem o destino que sua Exa. julgar conveniente, as plantas das fortalezas levantadas pelos 5 alumnos do 2. ° anno, para o que em tempo pedi auctorização em meu ofício n. ° 215 de 14 de Setembro e logo que esteja terminada a cópia, que se estilo fazendo, enviarei para o mesmo fim a planta de todo o terreno desde S. Lázaro até às Portas do Cerco egualmente levantadas pelos mesmos alumnos, tudo trabalhos realisados debaixo da direcção do referido tenente Palermo d'Oliveira, e cuja exactidão S. Exa. terá occasião d'avali'ar" (Conservou-se a mesma grafia do Boletim). É possível que estes trabalhos e outros tivessem sido bastante ajudados pelo mapa de Cinatti, como referência preciosa e de confiança. (Boletim Provincial de Macau e Timor d. 25 de 24 Junho 1802).

4 Como bastantes vezes se tem referido, um País, que não conhece o seu Passado é um País que cedo se perderá no Futuro. É a História duma Nação que serve de argamassa unificante aos seus elementos, e basta lembrar o exemplo do Povo Judaico que, expulso do seu território e disperso por todo o Mundo, perseguido, separado, dividido, humilhado e massacrado durante milhares de anos conservou a sua identidade e sobreviveu como Nação sem terra porque o registo das suas origens, História, vitórias e derrotas, glórias e vergonhas, grandezas e misérias, etc. tambémsobreviveu graças à devoção e sacrifícios que fizeram para a sua preservação. A esse registo, os judeus chamam Torah; os cristãos, esses dão-lhe o nome de velho Testamento e incorporaram-no no livro a que chamam Bíblia. É com, desalento que se assiste ao desleixo a que o estado da nossa História está votado e é triste ver estudantes universitários na Televisão Portuguesa exibirem a sua ignorância total sobre a biografia da sua Pátria; um, num programapopular de distribuição de prémios a quem responder às perguntas do compère, foi incapaz de enumerar mais do que 3 nomes próprios dos nossos Reis, e outro, perguntado sobre l. ° Rei de Portugal e Fundador da Pátria, após muito pensar aventou "D. Sancho II". Este universitário de Economia, não só revelou a sua ignorância mas também a sua estupidez dando azo a especular-se sobre se este académico será uma excepção ou um caso típico da sua classe, mas certamente que ajudará a fazer-nos compreender as razões que presidem à destruição do nosso Património Nacional, cada vez mais diminuído e degradado.

5 Entende-se por "porto de Macau" o território de todo o enclave, pois Macau era referido usualmente como "porto de Macau, na China".

6 Assim mergulhando voluntariamente na mesma fossa séptica onde o seu secretário gostava de chafurdar.

7 Com o que ninguém discordava. Só que, conforme se veio a apurar, as faltas e irregularidades aqui descritas tinham sido praticadas exclusivamente pelos encarregados do governo de Macau, tanto o efectivo como o seu suplente. Afinal, os acusadores e julgadores é que deviam ser os réus, os superiores eram, no final das contas, inferiores; às excelências faltavam-lhes excelência e, pelo contrário, eram de um estofo muitíssimo ordinário. Os aristocratas burocráticos não tinham nobreza de procedimento.

8 E quando o fez, o senhor Joaquim José da Graça ignorou essas mesmas leis e indeferiu-lhe o requerimento. É que há uma grande diferença promulgar leis e obrigar os responsáveis pela sua aplicação a cumpri-las eles próprios.

9 Em 1901 este indivíduo era juiz de Direito em Quelimane, onde actuou até 11.3.1903 e depois desde 7.1.1904. Transferido para S. Tomé por decreto de 24.2.1904, aí tomou posse em 1.3.1905 e por lá ficou a apodrecer até 1.6.1908. Espera-se que malgrado o primitivismo daquela colónia tenha exercido um critério de justiça mais desenvolvido do que o que exibiu em Macau, embora o ditado "quem nasce torto, tarde ou nunca se endireita" talvez se possa aplicar merecidamente a este magistrado.

10 Esta pérola literária, embora denuncie um caso extremamente avançado de caruncho mental a corroer inexoravelmente os caroços cerebulosos do ilustre falante, para quem termos absolutos podem ser sujeitos a gradações qualificativas de ordem relativa e quantitativa — (e assim ter-se-á que aceitar termos como — "um defunto mais ou menos falecido", "uma madame mais ou menos grávida", "um analfabeto mais ou menos culto", "uma donzela mais ou menos virgem", poderia ser a persuasora de um novo estilo literário se os seus defensores tivessem a coragem de arrostar com o labéu de serem chamados mais ou menos idiotas. Porém, com a implementação de uma política de "mais ou menos" por entidades dum sexo mais ou menos masculino e de sanidade e faculdades mentais de mais ou menos, não admira que a Nação fosse conduzida por uma senda mais do que menos irrevogavelmente direita à ruína e a um futuro mais ou menos prenhe de miséria, pobreza, ignorância eatraso. Os políticos ofereciam a consolação alvar e bacoca do slogan "orgulhosamente sós", como se isso bastasse para os Zés Povinhos se conformarem com as suas condições desesperadas de "permanentemente pelintras", "culturalmente ignorantes", "irremediavelmente atrasados"; isto num país que, incapaz de sustentar, alimentar e educar o seu aumento demográfico, e apesar dos imensos espaços que controlava tinha de recorrer à emigração tanto legítima como clandestina, mas principalmente clandestina para países que aceitassem o nosso excesso populacional, assim contradizendo as patetices constantemente apregoadas pelos desgovernantes do Terreiro do Paço, estes sim "orgulhosa e ridiculamente sós", isolados do seu Povo e considerados como párias pelos países mais prósperos do resto do Mundo, países estes razoavelmente livres, relativamente civilizados, sensatamente desenvolvidos e sem necessidade de recorrerem a esmolas, devido a serem competentemente governados, pois quando o não eram possuíam os meios institucionais e jurídicos de fazer substituir e responsabilizar os trapalhões governativos, os porcalhões da corrupção, os irresponsáveis administrativos e os Lords da parvoíce burocrática.

11 É difícil conceberem-se tantas asneiras em tão poucas palavras, mesmo no tipo de discursos farfalhudos e vazios de conteúdo, sempre repetidos, sempre iguais, dos homens públicos nacionais que, embalados por uma compulsão de exercitar as suas cordas vocais tendem a esquecer-se de as engrenar aos sectores' cerebrais apropriadados pelo que proferem as declarações mais insanas e absurdas sem disso se aperceberem, um fenómeno cultural que já nesse tempo caracterizava a oratória e prosódia das elocuções sempre obrigatórias e nunca ausentes durante as cerimónias a decorrer por ocasião de comemorações ou actos públicos que se desejavam solenes e de profundo significado.

Mas o ápice da tolice oficiosa do discurso, do conceituado Presidente do Conselho de Macau do ano, de 1883, a reflectir o pensamento peculiar do senhor ministro, plenipotenciário Joaquim José da Graça, foi considerar a situação de inferioridade e discriminação contra os portugueses residentes na China e no Japão, privados como ele próprio revela das vantagens, regalias e deferência gozadas pelos nacionais de outros países como "parecendo ser mais ou menos lisongeira". Torna-se evidente que num banquete dado pelo Mikado ou pela Corte de Pequim ao corpo diplomático creditado nas capitais daqueles dois Impérios, se o representante português tivesse que comer na cozinha entre os criados de mesa, claramente que ele teria que considerar tal acto como sendo, — mais ou menos lisonjeiro — e sentir-se-ia muito honrado com tal convite, lugar e companhia.

12 Em pleno Século XX, os privilégios da classe do brasão em várias regiões do País ainda englobava aspectos do mais negro e primitivo feudalismo, como o "droit du seigneur", às vezes transmutado, ou sublimado no acto mais simbólico da cerimónia pós-nupcial da "pernada", uma ocasião festiva bastante concorrida e com a presença do cónego local para lhe dar extra solenidade, conceder a sanção eclesiástica, e controlar qualquer excesso devido à euforia do acto.

* Licenciado em arquitectura pela Universidade de Hong Kong, em 1969. Ultimamente, tem trabalhado no Departamento de Urbanismo da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT). Investigador da História de Macau, conta com colaboração dispersa pela Imprensa e publicou o livro "As Fortificações de Macau" (Macau, ICM, 1969,1984).

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