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SALVADOR RIBEIRO DE SOUSA UM REI SEM REINO
Vestígios da Birmânia Seiscentista em Portugal

Maria Ana Marques Guedes*

INTRODUÇÃO

As ruínas desta igreja são o que resta de mais visível da antiga presença portuguesa no Sirião (Foto de LSC).

No decurso das minhas pesquisas sobre a presença portuguesa na Birmânia (país cujo nome actual é, desde 1989, Myanmar) tenho encontrado e tentado chamar a atenção para vestígios menos procurados pelos historiadores do que crónicas portuguesas ou manuscritos de arquivos também portugueses. São os casos das fontes cartográficas (há vários mapas por analisar), das fontes arqueológicas, e das fontes birmanes.

Por meio deste artigo procurarei divulgar uma fonte de carácter arqueológico: o túmulo de Salvador Ribeiro de Sousa, português que por volta de 1600 terá sido aclamado rei em Pegu, reino da Baixa Birmânia. Vejo nesta divulgação dois pontos de especial interesse: Primeiramente, o túmulo é a prova palpável e visível daquilo que só podemos imaginar ao ler as descrições seiscentistas sobre o assunto. Secundariamente, trata-se de um vestígio quase exclusivamente divulgado por levantamentos de património regional, sem o necessário confronto com as descrições mencionadas — as quais, por seu lado, foram divulgadas em escritos separados da autoria de historiadores e investigadores. A intenção é pois a de cotejar informações fornecidas por fontes de tipo diferente mostrando um significado e um alcance diverso daquele que teriam se apreciadas individualmente.

Na verdade, no túmulo — sito no Oratório de Santa Catarina dos Mártires, na vila de Alenquer — encontra-se a seguinte inscrição:

Este capítulo e sepultura é de Salvador Ribeiro de Sousa, comendador de Cristo, natural de Guimarães a quem os naturais do Reino de Pegu elegeram por seu Rei.

Ora, nem Salvador Ribeiro de Sousa foi eleito rei de Pegu nem existe prova da sua naturalidade. No entanto parece estar provado que combateu ao lado de aventureiros portugueses que tentaram assegurar domínio territorial na Birmânia entre 1600 e 1603. Assim tal inscrição pode contribuir para o conhecimento sobre os contactos entre Portugal e Myanmar, caso haja cotejo, análise e interpretação, ou lançar tal conhecimento na obscuridade, caso seja abordada isoladamente e tida como facto indiscutível.

1. O "REI DE PEGU" NA HISTORIOGRAFIA PORTUGUESA

A figura de Salvador Ribeiro de Sousa tem sido tratada em artigos dispersos por publicações de reduzida tiragem. A maior parte desses escritos foram dados à estampa em Guimarães, presumível local de nascimento da nossa personagem, e em Alenquer, vila onde certamente morreu (ou para onde foi trasladado) como parece apontar a desgastada lápide funerária e as crónicas dos franciscanos, ordem a que pertencia o oratório onde a lápide se encontra.

Parece elucidativo, antes de trancar qualquer biografia, assinalar autores e obras que registaram a vida e feitos de Salvador Ribeiro de Sousa.

Em 1617, ainda em vida de Salvador Ribeiro, o Padre Manuel de Abreu Mouzinho, ouvidor em Goa, publicou em Castelhano o Breve Discurso en que se cuenta la conquista del Reyno de Pegu en la Índia de Oriente, hecha por los Portugueses desde el año de mil e seyscientos hasta el de 1603. O pequeno livro conheceria várias reedições em Português, sobretudo por ter acompanhado grande parte das publicações da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto (que dedicou vários capítulos à Birmânia embora em época anterior). Através dele se tornou conhecido o nosso aventureiro, uma vez que os seus feitos foram glorificados pelo padre. O Breve Discurso (cuja última aparição como livro autónomo em língua portuguesa data de 1990, com introdução de M.a Paula Caetano e reeditado pela Europa América) teve ainda projecção internacional: foi traduzido para o inglês por A. MacGregor e publicado em 1926 (Journal of Burma Research Society, XVI, II, 1926: pp. 100-138).

A projecção do livro arrastou consigo a projecção do seu herói, de modo que autores britânicos e birmanes se interessaram pelo português que teria sido rei na sua colónia (lembre-se que a Birmânia esteve sob o domínio inglês entre 1886 e 1948) ou no seu país. Foi o caso do historiador Vivian Ba, que efectuou investigações em Portugal, na década de 1960, em resultado do que publicou um artigo (The Guardian, Rangum, Julho de 1967) dedicado a essas pesquisas, em geral, e a Ribeiro de Sousa, em particular. Foi precisamente Vivian Ba quem me forneceu, em Paris, algumas informações sobre a sepultura de Alenquer, a qual eu já vira referida em relatos dos missionários franciscanos e em documentação de Arquivos Portugueses.

Entre o livro seiscentista do Pe. Abreu Mouzinho e o artigo do nosso contemporâneo Vivian Ba, outros escritos versaram o tema aqui tratado.

Quase todos eles se basearam no Breve Discurso pouco acrescentando à narrativa do padre. Saídos maioritariamente das penas de supostos conterrâneos de Salvador Ribeiro e embuídos de sentimentos românticos — encarando o misterioso aventureiro como herói nacional mal conhecido — tais escritos apareceram sobretudo no final do século xIx e no início do século xx. São os casos de Alenquer e o seu Concelho de Guilherme J. C. Henriques, 1873; Portugal Antigo e Moderno, Pinho Leal, 1874; Guimarães. Apontamentos para a sua História, Pe. A. Ferreira Caldas, 1881; Massinga in "Domingo Ilustrado", Julho de 1898, n. ° 86; Salvador Ribeiro, El- rei Massinga in "Oriente Português", VI, n. ° 34, 1909.

2. VIDA E FEITOS DE SALVADOR RIBEIRO ATÉ 1600

Em Guimarães, onde, segundo o Pe. Abreu Mouzinho e a lápide funerária que fotografámos, teria nascido Salvador Ribeiro de Sousa, chegou mesmo a celebrizar-se o "herói", dando-se o nome de "Rua do Rei de Pegu" — denominação mudada pela Câmara Municipal em 1988, para "Rua dos Bombeiros Voluntários", topónimo que se mantém.

Contudo não foi achada ainda qualquer prova documental confirmativa de que Salvador Ribeiro nasceu em Guimarães. É certo que a menção "natural de Guimarães" da inscrição tumular está de acordo com o Breve Dircurso, onde se especifica: "natural do Couto de Ronfe, distrito de Guimarães, na Província de Entre Douro e Minho, em Portugal, onde nasceu em Quintães, herdade de seu pai Fructuoso Gonçalves de Sousa de limpo e nobre sangue". Não obstante, nem as pesquisas levadas a cabo naquela cidade, no Arquivo Municipal Alfredo Pimenta (quer pela Sr.a D. Maria Adelaide Pereira Morais e pela Sr.a Dr.a Manuela Alcântara, do Museu Alberto Sampaio; quer pela Sr.a D. Isabel Sousa, directora daquele arquivo) nem nos arquivos de Lisboa (por mim própria) lograram encontrar notícia acerca da filiação e nascimento do "Rei de Pegu".

Em contrapartida, no Nobiliário das Famílias de Portugal (Felgueiras Gayo, 1.a edição de 1938) é apresentada relação dos descendentes do nosso aventureiro, que curiosamente aí figura com o nome de Salvador Dias Ribeiro. Que se trata certamente da mesma pessoa, aponta-o não só a semelhança do nome como ainda a alusão aos "seus feitos de armas na Índia e especialmente em Pegu".

Filiação e naturalidade permanecem, portanto, na obscuridade — o que, julgo ser dificultado pela falta de registos anteriores a 1580 data em que, como indiciam os restantes dados biográficos, o "Rei de Pegu" não teria ainda nascido.

Igualmente obscuras são a infância, a partida para a Índia, que se terá verificado por volta de 1587, e as circunstâncias que o terão levado a terras da Birmânia.

Destruído em 1613 o estabelecimento do Sirião, várias comunidades de portugueses (bayingys) ficaram radicados em terras birmanes. Aspecto actual das ruínas da igreja do Sirião (Foto LSC).

Salvador Ribeiro de Sousa antes de aportar a Pegu teria servido treze anos de soldado no Estado da Índia. De acordo com documentação régia da época a sua actividade militar desenrolou-se a bordo de armadas da costa indiana do Malabar. Segundo o Pe. Mouzinho percorreu os mares índicos que os Portugueses patrulhavam, desde Meca a Ceilão. A fiarmo-nos na mesma fonte, perto do fim de quinhentos tencionaria vir a Portugal dar conta de seus serviços militares e dos de dois irmãos seus mortos em combate no Oriente. Com o fito de embarcar para Lisboa numa das naus da "Carreira da Índia" ter-se-ía dirigido a Goa. Condições adversas de navegação terão alterado os seus propósitos tendo arribado ao delta do rio Ganges (no norte do Golfo de Bengala) em Junho de 1600. Daí teria feito viagem, não se sabe como, para o litoral sul da Birmânia onde desembarcou no porto de Sirião, próximo da cidade de Pegu.

3. SALVADOR RIBEIRO NA BIRMÂNIA, 1600-1603

É pouco verosímil a história da casualidade da travessia do Golfo de Bengala. O mais provável é que a nau onde se encontrava Salvador Ribeiro tivesse rumado voluntariamente em direcção a Arracão, antigo reino situado ao longo do litoral oeste da Birmânia e que fazia fronteira com Bengala. O Arracão era um dos locais de eleição dos aventureiros portugueses (e onde estes se moviam livremente), por se achar fora da esfera de influência do Estado da Índia. Escapando às autoridades de Goa, esses aventureiros iam comerciar por conta própria ao Arracão e muitos acabavam por se fixar naquelas paragens, onde passavam a exercer actividades mercenárias e mercantis ao serviço dos reis locais.

Entre os portugueses ao serviço do Arracão destacou-se, nessa época, o conhecido Filipe de Brito de Nicote de quem Salvador Ribeiro viria a ser companheiro de armas.

Em 1600 uma expedição militar do rei arracanês Min Razagri, desceu sobre Pegu, na altura capital do II Império Birmane. A finalidade da expedição era dar o golpe final ao então decadente Império, rival do Estado arracanês — também birmane mas nunca anexado por aquela formação política. O corpo expedicionário integrava vários mercenários portugueses. Tomada e saqueada a capital, o soberano arracanês regressou com grande aparato aos seus reinos: deixou, contudo, algumas tropas como garante e salvaguarda da recente conquista.

Parece provável que Salvador Ribeiro tivesse descido da zona fronteiriça de Bengala — mais propriamente do Arracão — para a região de Pegu integrado nos exércitos arracaneses. Aliás, vários portugueses acompanharam a campanha, assim como missionários jesuítas que a relataram. O certo é que: 1) Salvador Ribeiro de Sousa chegou a Pegu por altura do saque e da tomada da capital; e 2) se juntou aos aventureiros portugueses que, comandados por Filipe de Brito de Nicote, permaneceram teoricamente dependentes do rei arracanês Min Razagri.

Tais aventureiros uma vez instalados no Sirião resolveram subtrair-se a autoridade de Min Razagri: ergueram, à revelia, uma fortaleza; neutralizaram as forças arracanesas deixadas no sul da Birmânia, bem como poderes birmanes hostis ao pretendido domínio português; angariaram o apoio das populações locais (maioritariamente de língua e etnia mon), desgastadas pelas constantes lutas e consequente devastação que tinham caracterizado as últimas décadas (entre 1580 e 1600) do II Império Birmane.

É esta emergência do poder português na costa meridional birmane que Mouzinho descreveu. Fê-lo com considerável exactidão. Reportando-se ao período conturbado entre 1600 e 1603 descreveu pormenorizadamente as batalhas travadas entre os portugueses do Sirião e os seus opositores, traçando um quadro que corresponde à realidade política e cultural da Birmânia de então. O Breve Discurso é fonte menos fiável no que toca ao nosso aventureiro. Diferentemente de fontes portuguesas e birmanes, mesmo daquelas que não demonstram qualquer simpatia por Nicote, tenta desmerecer este último atribuíndo a Ribeiro de Sousa os louros da conquista.

A asserção do Breve Discurso é pois a de que Filipe de Brito de Nicote gozou de proveitos e honras que, por direito, cabiam a Salvador Ribeiro de Sousa. Denunciou (sem provas) por inexactos, testemunhos favoráveis a Nicote — como a correspondência do Bispo de Cochim e do vice-rei Aires de Saldanha; e argumentou que os serviços de Ribeiro de Sousa podiam ser demonstrados por cartas que, ou desapareceram, ou ainda não foram encontradas.

A verdade parece ser que o herói do Breve Discurso nunca passou de mero ajudante, talvez braço direito, de Brito de Nicote. A organização e a liderança da resistência armada no Sirião bem como a iniciativa do envio de embaixadas com vista a obter apoio militar e reconhecimento da oposição portuguesa no sul da Birmânia, foram obra de Nicote. Os vários reinos em que o Império Birmane se refragmentou por 1600, assim como Goa, receberam Nicote ou os seus enviados, reconhecendo-lhe supremacia. Às digressões diplomáticas chamou Mouzinho de absentismo, alegando que coube a Ribeiro de Sousa erguer e defender a fortaleza do Sirião.

As razões apontadas para tal ausência são pouco credíveis: segundo Mouzinho, Nicote ausentara-se para o Arracão continuando a servir Min Razagri como vedor da fazenda arracanesa. Ora, de acordo com outras fontes Nicote foi ao Arracão em negociações diplomáticas e mais tarde foi sob o seu comando que se afastaram as armadas de represália de Min Razagri e que se chegou a reunir forças para acometer o Arracão.

4. UM REI PORTUGUÊS EM PEGU

Apesar das reticências postas quanto ao Breve Discurso, não deixa de ser desconcertante a forma como Mouzinho descreveu a coroação de Ribeiro de Sousa como Rei. E é desconcertante precisamente pela exactidão das referências culturais birmanes, o que contrasta com a fragilidade da asserção fundamental. Será possível que faltasse à verdade no geral mas não nos pormenores? o inverso é mais comum o que nada prova.

Lápide tumular conservada no interior das ruínas. Túmulo de Maria Dias, casada com António Fernandes, e falecida em 1732.

Afirma Abreu Mouzinho que os "Banhas" (aportuguesar do termo birmane "bayin", sub-rei) e os "Ximins pegus" (aportuguesar do termo mon"Shemin", governante) tinham comunicado, ao Rei de Tangu (cunhado e eventual sucessor do último imperador do II Império Birmane que antes da descida dos arracaneses sobre Pegu acometera a capital, depondo e matando o cunhado) a sua intenção de fazer aclamar Salvador Ribeiro de Sousa por "seu rei e senhor". Descreve a cerimónia da coroação: de Tangu (reino entre a Alta e a Baixa Birmânia) teria partido um enviado régio com um séquito de quinhentos cavalos, e uma coroa de ouro. Em acto público e solene ao som de instrumentos musicais tradicionais e perante uma populacho posternada por terra, o capitão português teria sido coroado como "Rei Massinga de Pegu" — título que legitimamente lhe adviria por ter ferido mortalmente um príncipe do mesmo nome. Os pormenores da narração de Mouzinho vão de encontro aos costumes locais: o novo rei foi homenageado com um betleiro de ouro (conjunto de bandeja e apetrechos próprios para o ritual de mascar o betle, era oferecido como sinal de deferência), e passou a usar um "chapéu branco com cairel de ouro" (sombrinha que constituía insígnia da realeza). Recebeu peças de damasco alaranjado, rosas de ouro e uma iguaria própria dos reis, como presentes, respectivamente, dos reis de Ava (poderoso reino na Alta Birmânia), de Jangomá (Chiengmai, reino então sob influência birmane e sito na actual Tailândia), e de Prome (antigo reino, perto de Tangu).

Aquando do regresso de Filipe de Brito de Nicote, o "Massinga" terá altruisticamente renunciado, no seu companheiro de armas, o título de rei e as honrarias inerentes. Teria prescindido do trono por Nicote ter regressado de Goa empossado pelo vice-rei português do cargo de "capitão-geral do Sirião e das partes do Pegu": o que equipara a delegar no seu superior, e em última análise no rei de Portugal, a soberania adquirida.

Nada disto é comprovado. É certo que existe notícia de uma doação tácita dos reinos de Pegu às autoridades portuguesas. Em 1608 D. Filipe II assumia-se como rei de Pegu por delegação dos "naturais" não em Ribeiro de Sousa, mas em Filipe de Brito de Nicote. Fê-lo baseado em alegações do próprio Nicote que afirmou renunciar em favor do rei de Portugal. Embora a palavra do aventureiro nem sempre fosse merecedora de crédito (afinal traíra o Estado da Índia e o rei arracanês acabando, depois de se conciliar com um e outro, por não cumprir nada do que acordara), parece que as suas alegações neste caso eram fundamentadas. O facto do capitão-geral ter sido considerado rei é corroborado por crónicas mons e birmanes, que o apontam como rei do Sirião por um período de doze anos.

Embora não caiba aqui desenvolver a actuação de Nicote até à sua morte no Sirião é bom notar a coincidência das crónicas locais com outros testemunhos, como crónicas e relatos europeus e fontes arqueológicas na própria Birmânia. Nicote, o Nga Zinga das fontes locais, foi registado como rei (estatuto referido para além do regresso de Ribeiro de Sousa a Portugal) na documentação oficial ibérica e birmane, nos relatos de missionários católicos e nas descrições de viajantes italianos, ingleses, holandeses e franceses. Mais: aparece mencionado numa inscrição de um pagode birmane com referência ao seu governo no Sirião e à sua morte às mãos de Anaukhpet-lun, o poderoso rei de Ava que reunificou Alta e Baixa Birmânia formando o III Império Birmane. Mais ainda: quando Nicote morreu, em 1612 ou 1613, Ribeiro de Sousa encontrava-se em Portugal há cerca de dez anos. Encontrava-se já em Portugal por 1607, época em que se redigiu um documento intitulado "Questão acerca do direito do reino de Pegu e como pode pertencer a Sua Majestade", documento esse que nem sequer menciona Ribeiro de Sousa, embora refira portugueses cuja interferência foi notória na História da Birmânia, bem como principais personalidades e poderes birmanes. Trata-se de um longo e erudito manuscrito anónimo onde para além de se constatar o poder de Nicote se procura legitimar, à luz do Direito europeu, a soberania portuguesa sobre Pegu.

Em nenhum dos testemunhos referidos se dá qualquer relevância a Salvador Ribeiro, que, aliás, só muito raramente é referido. Subsiste uma hipótese (que me ocorre porque possível, mas em que não creio porque inconsistente) de ter havido duas renúncias: uma primeira, de Ribeiro em Nicote; e uma segunda de Nicote em D. Filipe II.

5. DE VOLTA A PORTUGAL

A razão que terá levado Salvador Ribeiro de Sousa a abandonar a Birmânia, em 1603, não foi explicada nem por Mouzinho nem por qualquer outra fonte conhecida.

Vários manuscritos comprovam o seu regresso e dão notícia dos seus feitos militares, apontando, todavia, o papel secundário que desempenhou na Birmânia.

Já antes da partida de Salvador Ribeiro, as autoridades portuguesas tinham reconhecido o valor militar de Nicote, fazendo-lhe mercê condicional (a condição era a de que a fortaleza do Sirião fosse colocada sob dependência da Coroa) do hábito de Cristo com tenda anual de 150 pardaus; poucos meses depois, o Estado da Índia atribuiu a Nicote o título de capitão-geral do Sirião e das partes de Pegu, dotando a fortaleza de regimento próprio no qual Ribeiro de Sousa, que pela mesma altura voltara para Portugal, não é mencionado; em 1604 foi-lhe confirmada a tença; em 1607 a capitania tornava-se hereditária; e em 1608 Nicote era definitivamente nobilitado, concedendo-se-lhe brasão de armas.

Datam precisamente do ano de 1607 as primeiras notícias que encontrei sobre a presença em Portugal de Salvador Ribeiro, cujo rasto entre 1603 e aquele ano não consegui reconstituir por falta de documentação. A carreira militar do presumível "rei de Pegu", atestada por papeís e petições que se sucederam entre 1607 e 1622, foi comparativamente bem mais curta e a sua ascensão bem menos fulgurante que a de Nicote. Só esteve três anos na Birmânia e como serviços aí prestados apenas alegou: a participação na defesa da fortaleza do Sirião, um ferimento no rosto em combate, e o facto de ter matado muitos birmanes entre os quais um príncipe. Nunca se referiu à aclamação como "rei de Massinga" descrita por Mouzinho, e que decerto lhe angariaria apreciável recompensa. Pelo contrário aceitou mercês tardias e honras muito inferiores às alcançadas por Nicote.

Depois de várias petições foram reconhecidos os méritos de Salvador Ribeiro de Sousa. Serviu 16 anos na Índia, três dos quais em Pegu, pelo que lhe foram concedidos por sucessivos alvarás: o hábito de Cristo com tença de 200 cruzados, promessa de comenda de 150 mil reis, pagos na Índia com condição de para lá voltar. Apesar de não constar que tenha cumprido a condição, acabou por receber a comenda de Sto. Eurício e de São Fins do Bispado de Lamego. Esta notícia, de 1622, é a última que encontrei sobre o "rei de Pegu".

Data de um ano depois, a finalização das obras de reedificação pelos franciscanos do oratório de Santa Catarina dos Mártires, na vila de Alenquer, em cuja casa do capítulo se encontram as lápides alusivas a Salvador Ribeiro de Sousa. Ainda hoje se pode ver, numa das fachadas do edifício, a gravação "1623".

A obra de reedificação foi financiada por diversas contribuições. Contam as crónicas dos franciscanos que se destacaram os donativos do rei, de alguns fidalgos da corte, de beneméritos anónimos, e em especial de Salvador Ribeiro de Sousa -- cujo donativo se elevou a 370 mil reis. Talvez por motivo de tão avultado donativo, Salvador Ribeiro foi sepultado no pequeno capítulo (sito no próprio claustro), e a sua memória dignificada pela inscrição onde se afirma ter sido eleito rei de Pegu. A lápide encontrava-se no chão da casa do capítulo à esquerda de uma outra, também alusiva ao benemérito, onde se lê: "Tem de obrigação missa cotidiana conforme o contracto que fez. Pede um Padre Nosso e uma Avé Maria, com responso na missa".

Ambas as lápides foram removidas e colocadas na parede defronte da entrada, ladeando um pequeno altar. Apesar deste e de outros esforços para as conservar legíveis, as lápides encontram-se muito deterioradas. Parece que houve uma reparação completa por volta de 1840 e uma tentativa camarária (em data incerta, que localmente nos afirmaram remontar à década de 1960) de preservação e realce das letras, preenchendo-as com uma massa preta, parte da qual já se descolou.

O capítulo, tal como o vimos e o fotografámos, é uma pequena divisão só iluminada através do arco que o liga ao claustro -- o interior é escuro ao ponto de não ser possível ler as inscrições sem ajuda de iluminação artificial portátil (não é electrificado).

O estado de degradação em que se encontra todo o conjunto é agravado pelo amontoado de bancos velhos, papéis de parede desbotados, baldes, bicicletas enferrujadas e outros objectos que se abrigam junto às lápides; e, principalmente, pelos constantes despejos de águas das casas circundantes, cujas janelas se abrem sobre o claustro. Chão e paredes são escorregadios e húmidos, por via quer desses despejos, quer da proximidade do rio.

A quem queira ver as lápides e o pequeno oratório franciscano onde se encontra a referência ao suposto "Rei de Pegu", deixo duas advertências:

1) Não se confunda o Convento de S. Francisco de Alenquer, no alto da vila, com este pequeníssimo convento, também franciscano, na base da colina, junto ao rio.

2) O convento encontra-se fechado, e o acesso é facultado por entidades camarárias ou pelo Senhor Professor António Rodrigues Guapo, a quem agradecemos a boa vontade com que nos receberam, ou ainda, pelo Senhor Padre José Eduardo Martins.

Resta-me fazer votos que os interessados apressem a sua visita, caso contrário arriscam-se a deparar com a ruína das ruínas aqui descritas.

AGRADECIMENTOS E BIBLIOGRAFIA

A minha investigação sobre os Portugueses na Birmânia tem sido em grande parte apoiada primeiro pela Fundação Oriente e actualmente pelo Instituto Cultural de Macau, o que reconhecidamente agradeço. No que respeita à pesquisa para o presente artigo quero ainda agradecer as informações e colaborações amavelmente prestadas pelo historiador Vivian Ba, que hoje trabalha na Embaixada da Birmânia em Paris; pela Sr. a D. Maria Adelaide Pereira de Morais, Museu Alberto Sampaio, em Guimarães, e Sr. a Dr. a Isabel Sousa, directora do Arquivo Municipal Alfredo Pimenta, também em Guimarães; pelo Sr. Prof. António Rodrigues Guapo e pelo vereador Sr. José Maurício, que nos receberam e assistiram em Alenquer; e pela Sr. a D. Isabel Portugal que me acompanhou a Alenquer em Dezembro de 1993 e me ajudou a fotografar o convento e as lápides.

Aparte a bibliografia citada no texto, foram utilizados: a) vários estudos e fontes referidas no meu livro Interferência e Integração dos Portugueses na Birmânia c. 1580-1630, Fundação Oriente, 1994; b) outro material não usado no livro referido: História Seráfica da Ordem dos Frades Menores de S. Francisco na Província de Portugal, por Frei Fernando da Soledade e Frei Manoel da Esperança, 5 tomos, Officina Craesbeekiana, Lisboa, 1656, 1666, 1705, 1709 e 1721; ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Chancelarias da Ordem de Cristo, Livros 4, 17 e 22, fls. 101; respectivamente:24V, 36V 158, 358, 447V; e 54-55V; O Concelho de Alenquer: Subsídios para um Roteiro de Arte e Etnografia, por António de Oliveira Melo, António Rodrigues Guapo e José Eduardo Martins, 4 volumes, Comissão Municipal da Feira da Ascensão de Alenquer e da Associação para o Estudo e Defesa do Património Cultural, 1986-1991.

Trabalho apresentado no decurso de uma

bolsa de investigação subsidiada

pelo Instituto Cultural de Macau, DEIP.

NOTA DA REDACÇÃO

Da autora, e com o mesmo título, foi este texto publicado no n° 27/28 da RC, edição em Língua Portuguesa. Inexplicavelmente, e pela primeira vez, a versão impressa saiu falha de quatro páginas do original, desvertebrando-o do sentido e de lógica.

Pedindo que nos relevem a omissão, e em ressarcimento da autora e dos leitores, republicamos nesta edição o texto na íntegra.

*Doutoranda em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Bolseira do I. C. M. / DEIP.

desde a p. 65
até a p.