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ALMEIDA GARRETT E A QUESTÃO DA CHINA
Um Inédito Revelado

António Vasconcelos de Saldanha*

O Visconde de Sá da Bandeira. Presidente do Conselho Ultramarino

Um projecto de investigação patrocinado pelo Instituto Cultural de Macau permitiu que, recentemente, fosse localizado um texto devido à pena de Almeida Garrett 1. Texto esse a três títulos particularmente interessante: em primeiro lugar, por se dever ao ilustre escritor não na sua actividade puramente literária mas na faceta bem menos conhecida de envolvimento nas matérias do governo e administração pública; em segundo lugar, pelo facto de se tratar de um inédito; finalmente, por respeitar directamente a importante questão do quadro das relações luso-chinesas.

Trata-se de uma "consulta" do Conselho Ultramarino de 19 de Agosto de1853, de que Almeida Garrett foi o relator, e cujo manuscrito original existe, inserido no respectivo processo, nos fundos do Arquivo Histórico Ultramarino, em Lisboa2.

A intervenção de Garrett no Conselho Ultramarino e a ligação deste orgão à "Questão da China" deve ser entendida, antes de mais, no contexto histórico-político português dito da Regeneração. Iniciado em 1851, tal movimento revolucionário foi propício a uma revisão de velhos estilos de governação e à implementação de inovações que arredassem de vez e de todos os sectores da vida da Nação, o espectro do imobilismo e da inépcia que se alegava ter caracterizado o regime do Ministro Costa Cabral, caído em definitiva desgraça em Maio desse ano. Com particular interesse para aavaliação do novo empenho e sistema de tratamento dos problemas ultramarinos, e, particularmente, da "Questão de Macau", convirá recordar que foi a Regeneração, quem, nas palavras de Luciano Cordeiro, procurou «emancipar a política e administração das influências e pressões apaixonadas e doutrinárias dum largo período de luta intestina, e lançar o país num caminho de regeneração e de reconstituição prática e pacífica, iniciando o restabelecimento da instituição dos Conselhos ou estações de consulta e de estudo, por assim dizer, profissional, cooperadoras da gerência govemativa»3.

Relativamente próximo do tribunal régio do mesmo nome que se criara no século XVII e que se fizera extinguir em 1833, o Conselho novo foi restabelecido pelo decreto ditatorial de 23 de Setembro de 1851 com o fim expresso de «prestar à Administração com o seu voto consultivo em todos os negócios importantes do Ultramar na organização de propostas de lei e regulamentos [...]. O Conselho Ultramarino não é uma instituição supérflua, mas uma instituição exigida por todas as razões de interesse público e aconselhada por homens ilustrados do País, não deixando também de ter bom fundamento no exemplo do que praticam outras nações mui adiantadas neste ramo da administração... »4.

Com estas atribuições, era composto o Conselho por sete vogais efectivos e seis extraordinários, apontados entre indivíduos de comprovada experiência jurídica ou administrativa, preferencialmente ligados ao Ultramar, ou por residência, ou por desempenho de cargos, ou comissões públicas. Presidido pelo Visconde de Sá da Bandeira, um nome ilustre da administração ultramarina, no período que nos interessa os interesses de Macau estavam especialmente bem entregues no Conselho: além do Visconde de Almeida Garrett, perito em Direito Administrativo, do Visconde de Lançada, vindo do antigo Conselho, do Juiz de Direito Dr. José da Silva Guardado, do antigo Ministro e Governador de Cabo Verde João de Fontes Pereira de Mello, do Brigadeiro Domingos Correia Arouca, que ocupara igual cargo, do antigo Governador de Timor e Cabo Verde Capitão-Tenente José Maria Marques, os lugares de vogal foram atribuídos a personalidades familiares às questões de Macau: a dois ex-Govemadores-Gerais da Índia, o Par do Reino D. Manuel de Portugal e Castro, Vice-Presidente, e o Dr. José Ferreira Pestana5, ao Dr. Lourenço José Moniz6, ao Dr. Francisco José da Costa e Amaral, antigo Ouvidor de Macau7, a Manuel Jorge de Oliveira Lima, o poderoso Oficial Maior do Ministério do Ultramar e patrono de Ferreira do Amaral, e a Adrião Acácio da Silveira Pinto, antigo Governador de Macau. O próprio Presidente, o Visconde de Sá da Bandeira, ocupara a pasta da Marinha e Ultramar em vários períodos de 1832 a 1838, e a ele se deve o decreto que, com data de Maio daquele último ano, criou a comissão encarregue de «indicar as medidas mais vantajosas para que aquele Estabelecimento possa gozar de uma tranquilidade permanente e adiantar-se nas vias da prosperidade»8. E este capital de experiências não era injustificado, já que uma análise da actividade do Conselho no período posterior ao fim do ano de 1851 nos revela algumas importantes decisões em matéria de política luso-chinesa. Já dessa matéria tivemos oportunidade de tratar9.

Sublinhada a importância da intervenção do Conselho Ultramarino, é conveniente também que se recordem os termos em que, nesse período, se encontravam as relações entre Portugal e a China, depois do governo e dramática morte do Governador Ferreira do Amaral. E o principal facto a notar é que uma acção tão estabilizadora quanto regeneradora dessas mesmas relações - directamente conducente, no seu momento mais alto, às negociações e à celebração do Tratado (não ratificado) de 1862 - é activada neste preciso momento com a tomada de posse do Governo de Macau pelo Capitão de Fragata Isidoro Francisco Guimarães, Comandante da Estação Naval do território, em 19 de Novembro de 1851. Efectivamente, após nove meses de Governo, o antecessor, Francisco Gonçalves Cardoso - ou por reclamar a substituição, desgostado e contrariado em muitas iniciativas com que empenhadamente procurara obstar à ruína progressiva do Estabelecimento, senão mesmo, como é mais provável, por ter caído em desfavor com a dissolução do regime cabralista em Maio desse ano de 1851 -era exonerado com o alegado motivo «de ser empregue numa importante comissão de serviço»10.

Ido para Macau, logo após a morte de Ferreira do Amaral, no comando do navio "D. João I", Isidoro Guimarães era um homem com alguma experiência dos assuntos do Estabelecimento, que integrara o Conselho do Governo formado após a morte do Governador Pedro Alexandrino da Cunha, e a quem, dotado de um carácter menos abrasivo e mais propício à negociação do que o do seu predecessor, cabe o mérito de ter dado os primeiros passos no processo de normalização das relações com a China. A sua posterior passagem pelo Governo, na pasta da Marinha e Ultramar (1865 a 1868) e na Vice-Presidência da Junta Consultiva do Ultramar, confirma-lhe o carácter de competente e vigoroso administrador11. A retirada de Cardoso, o desaparecimento político do Ministro da Marinha e Ultramar Joaquim Falcão e as mortes de Amaral e de Cunha marcavam também o fim da clique formada ainda nos tempos em que Cunha estivera à frente da estação naval de Angola e que os favores do regime cabralista tinham consolidado. Embora contemporâneo desse grupo em África em meados de 40, Guimarães parece ter sido um opositor de Amaral, uma vítima de Cunha, e, não há dúvida, que foi perseguido e hostilizado em Macau pelo Governador Cardoso12.

Outro aspecto relevante a ter em conta para a compreensão deste período, é, naturalmente, a situação política do Sul da China. O desfecho da crise da abertura de Cantão acabara por converter a capital da província num bastião praticamente autónomo em questões diplomáticas, o que acarretou também o reforço das autoridades provinciais envolvidas, o que é dizer, acima de tudo, a preponderância de homens como o Vice-Rei dos "Dois Guangs" [refere-se às províncias de Guangdong e Guangxi-N. E.] Xu Guangjin e do Governador Ye Mingchen. Protagonistas principais da crise aberta em 1849 com o Governo Português, o seu marcado chauvinismo vira-se reforçado em 1850 com a desgraça do todo-poderoso ministro manchú Mu Zhangha e de Qi Ying, e com a inevitável denúncia da «política de apaziguamento» manchú, consequência imediata da morte do Imperador Daoguang e da sucessão de seu filho, o notoriamente xenófobo Xianfeng, em Março de 1850. Não surpreende, pois, que os primeiros anos da década de 50 se caracterizem por um ambiente de patente hostilidade aos estrangeiros, particularmente sentida pelos Ingleses que assim viam progressivamenteabalados os fundamentos lançados com os tratados sequentes à Guerra do Ópio. Humilhado pela recusa total das autoridades provinciais em prestar a mínima das satisfações pelo assassinato de Amaral e vítima impotente do plano que, gizado pela dupla Xu/Ye, arruinava progressivamente Macau pelo desvio dos capitais e da vital actividade dos hang de Macau para Huangpu, o Governo Português de Macau não tinha, assim, muito a esperar tanto do Vice-rei e Comissário Imperial Xu Guangjin, quer especialmente do seu braço direito Ye Mingchen, que, em Setembro de 1852, ao primeiro sucedeu interinamente nesses cargos e cuja posterior carreira confirma a acidez e quase cega intransigência.

É neste contexto que é preciso entender a atitude do Governo Português. Quatro meses antes de morrer, Amaral escrevera a Oliveira Lima, éminence grise do Ministro da Marinha e Ultramar, pedindo-lhe que, «já que acharam um doido e um déspota que quiz carregar com o odioso das reformas, agora não deixem perder Macau... »13. O pedido que Amaral assim jocosa mas premonitoriamente legara ao principal fautor do processo que ele próprio conduzira em Macau, coincidia com os interesses desse mesmo Governo Português, não apenas em termos de dignidade nacional, mas inclusivamente por uma questão de política ultramarina que o Ministério Regenerador, herdando-a do regime cabralista, entendeu não alterar nas suas linhas de solução.

Desconhecemos hoje o paradeiro das instruções que, como de uso, o Ministério da Marinha e Ultramar fez certamente remeter ao Governador de Macau para orientação da sua conduta política e administrativa. Não será, porém, abusivo dizer-se que nelas se manteria a recomendação que, desde as instruções entregues em 1849 a Pedro Alexandrino da Cunha até ao termo do mandato de Gonçalves Cardoso, se constituía como uma regra áurea de governação: «assegurar a conservação e independência de Macau, prosseguindo e firmando o sistema de providências com que o seu antecessor soube reivindicar a integridade dos Direitos de Soberania que a Coroa de Portugal tem sobre aquele Estabelecimento».

Com todas as limitações que acabámos de referir, presentes todas as preocupações que sabia ter garantidamente transmitidas das anteriores administrações, mas contando também com maior atenção e apoio resultantes, não apenas da pacificação política da Metrópole, mas também do funcionamento de novos maquinismos que a Regeneração punha ao serviço da administração ultramarina, será essa ainda a linha mestra da actuação do Governador Guimarães; actuação levada ao extremo que ele mesmo, de boa fé mas precipitadamente, considerou coroar aquele ditame: a celebração de um tratado com o Governo Imperial da China em 1862 e o consequente reconhecimento do novo estatuto de Macau14.

É pertinente e elucidativo dos níveis de sensibilidade da governação portuguesa aos efeitos da actuação de Ferreira do Amaral, analisar o que se entendeu por «prosseguir e firmar o sistema de providências» sobre os quais assentava o que se definia como «integridade dos Direitos de Soberania que a Coroa de Portugal tem sobre aquele Estabelecimento».

Sabe-se que, ao pretender cortar cerces os laços de ligação de Macau com a ordem interna do Império, Amaral subvertera radicalmente o equilíbrio em três áreas fulcrais que, controladas, lhe permitiram afirmar a «independência» do território em relação à China: a ordem territorial (consagrando o domínio português nas águas adjacentes e nos terrenos fora das velhas muralhas da cidade), a ordem administrativa (eliminando a dependência secular da comunidade de Macau da acção do mandarinato local) e a ordem fiscal (sujeição das comunidades portuguesa e chinesa à tributação governamental e extinção das estruturas alfandegárias imperiais).

A análise dos primeiros anos da governação de Isidoro Francisco Guimarães permitem-nos aferir, em algumas situações-chave, das prioridades e da maior ou menor sensibilidade do Governo à alterabilidade das providências tomadas por Amaral. A questão não é despicienda, sabendo nós que o Governo Imperial - o que é dizer o Governo de Cantão - representado durante todo o período que estudamos por dois diehard, Xu Guangjin e Ye Mingchen, partes irremissivelmente ligadas a todo o contencioso com Portugal, se mantin ha «ferido no seu amor próprio» e que o Vice-Rei Xu era dado pelo Governador Guimarães como dominado pelo propósito de «destruir tudo o que fez o Governador Amaral para tornar este Estabelecimento independente»15.

O programático desiderato de fazer reverter a situação à ordem vigente até ao início do Governo de Amaral ficava, aliás, bem manifesto no documento que- em 1852, durante negociações extra-oficiais levadas a cabo com o intuito de reinstalar a alfândega chinesa em Macau - foi apresentado pelos alegados representantes dos hang como contendo as condições essenciais de retomo desses mesmos hang: a retoma do pagamento do foro territorial16, a reinstalação do Hopu em condições favoráveis17, o regresso ao antigo sistema fiscal, a subtracção da população chinesa ao controlo e vigilância das autoridades portuguesas (notoriamente conducente ao regresso do zuotang), e, a rematar, o fortalecimento do poder mandarínico pela sua associação a novas fontes de rendimento provindas das receitas do jogo18. Em suma, pretensões imediatamente resumidas no seu sentido essencial por Isidoro Guimarães: «desfazer tudo quanto fez o Governador Amaral não oferecendo eles nada de positivo da sua parte»19.

Não obstante a considerável melhoria do estilo de comunicações que a ascenção do Príncipe Gong à chefia do Governo Imperial acarretou desde 1860, a verdade é que na pendência das negociações do tratado luso-chinês, entre 1862 e 1866, continuou a ser essa a grande questão em aberto, ao ponto de impedir que a mesma convenção fosse algum dia posta em prática20. E isto porque as autoridades imperiais, por anos que passassem, nunca esqueceram a profundidade da revolução sofrida pela ordem tradicional de Macau em 1849; na oportuna expressão de W. Smith, «the Portuguese Governor had lost the head, the Chinese Emperor was about to lose face»21. Quando em 1865 - a propósito da conturbada ratificação do tratado de 1862 - o Zongliyamen teve que estudar com profundidade a situação actual de Macau, o Governador de Guangdong, o depois célebre diplomata Guo Songtao, fez encaminhar para Pequim uma informação detalhada sobre a situação no território que, nos vários pormenores da subversão da ordem antiga, é, na realidade e da parte da China, uma penosa confissão e o atestado mais completo do sucesso dos esforços do Governador Amaral 22.

De facto, nos anos subsequentes à morte deste Governador e em matéria de ordem administrativa, não admite dúvidas a irremissível anulação da dependência da comunidade de Macau do poder mandarínico: abolira-se o vexatório sistema processual e penal, mantivera-se o corte protocolar com as autoridades chinesas locais (mandarins de Macau, Casa Branca e Xianshan23) e furtara-se definitivamente a comunidade chinesa ao poder do zuotang, atribuindo-se a sua jurisdição ao Procurador da Cidade, na directa dependência da Secretaria do Governo, situação que evoluiu posteriormente para a instituição da Procuratura dos Negócios Sínicos24. Logrou-se, enfim, concretizar a aspiração de Amaral de fazer reconhecer pela China a existência de Cônsules Portugueses nos portos abertos ao comércio estrangeiro.

Se, no plano fiscal, a matéria inaugurada datributação dos Chineses de Macau, não sofreu quaisquer restrições25, também no respeitante à ordem territorial é patente o propósito de salvaguardar as ocupações inspiradas por Amaral, tanto no território alargado até à Porta do Cerco, como nas ilhas da Taipa e de Coloane e na afirmação do domínio marítimo, isentando a navegação da tributação chinesa26.

Assim, se Amaral morreu nas circunstâncias sobejamente conhecidas27, deixou imposto ao Império um statu quo que em Macau jamais viria a ser alterado. Todavia, a radical oposição chinesa a esta situação, os desastrosos efeitos económicos dessa resistência para os interesses comerciais de Macau e a impossibilidade prática de Portugal poder gozar na China dos privilégios administrativos e comerciais angariados por outras nações europeias sem o assentimento do Governo Imperial, por um lado, e por outro a convicção de que a China também era prejudicada pela impossibilidade de enquadrar na nova ordem criada pelos tratados a actividade oficial e extra-oficial dos Portugueses de Macau, levava direito a uma só conclusão: a necessidade de obter da China uma «contratualização» ou uma definição convencional do estatuto de Macau, oponível a outras nações europeias, e que, simultaneamente, ao oficializar o estabelecimento face ao Império, permitisse a montagem de um sistema de representação consular nos portos chineses e a extensibilidade dos privilégios gozados por outras nações europeias ao comércio nacional.

Na sequência de iniciativas como a que o Leal Senado propusera logoem Outubro de 1849, vai ser essa uma das preocupações dominantes da política externa portuguesa desde 1851: a de procurar empenhadamente um entendimento com a China que, curando as feridas do passado, permitisse restabelecer velhas relações, sem, contudo, abdicar do essencial do estatuto de autonomia criado pelo Governador Ferreira do Amaral.

José Ferreira Pestana. Vice-presidente do Conselho Ultramarino

Neste mesmo momento, um conjunto de circunstâncias excepcionais iria criar no Governo Português as maiores expectativas de concretizar esse desiderato.

Considerada como um dos maiores movimentos de revolução social de toda a história, a revolução dos taiping rebentaria na província de Guangxi, escassos meses passados sobre a data da ascenção ao trono de Xianfeng, em 1850. Originários das províncias meridionais dos Dois Guangs (Guangdong e Guangxi), precisamente onde o poder e o prestígio imperial era mais ténue ou sofrera maiores abalos na sequência da Guerra do Ópio, os revolucionários taiping - procurando corresponder (especialmente em Guangxi) a tremendas carências sociais, agrícolas e administrativas - alçavam o estandarte da revolta anunciando um programa duplo de instauração de uma nova monarquia universal, o Reino Celestial da Grande Paz (Taipingtienguo) e de uma inovadora política de distribuição de terras e abolição dos grandes monopólios comerciais. Fundada numa doutrina que confusamente incluia elementos do Confucianismo, do Cristianismo, do esoterismo das sociedades secretas, de comunismo primitivo e de nacionalismo anti-Manchú, a verdade é que nenhuma outra rebelião anti-dinástica deu origem a uma doutrina tão elaborada e a uma administração pseudo-imperial a tal ponto convincente.

Beneficiando da fraqueza ou da falta de consciência do Governo Imperial, os exércitos taiping foram avançando em cruzada de multidões através do Sul e Centro da China, até atingirem a cidade de Nanquim, que, com grande horror do Governo Qing, caíu nas mãos dos rebeldes em Março de 1853, para nelas se conservar durante onze anos até ao final esmagamento do movimento.

A instalação dos revoltosos na velha capital dos Ming, rebaptizada de Capital Celestial, marca decisivamente a natureza do movimento: de cruzada voraz de massas, os taiping surgiam agora como um poder regional constituído, de algum modo legitimado e indubitavelmente propenso ao controlo progressivo de todo o território chinês e ao derrube da dinastia reinante. O que levava as potênciaso cidentais, observadoras atentas e apreensivas do fenómeno (especialmente as comerciais), a concluirem da necessidade premente de definir uma atitude em relação aos beligerantes. O representante inglês Bonham daria o tom quando, após uma visita ao novo governo de Nanquim, aconselhou categoricamente a neutralidade; atitude seguida -mesmo contra as eventuais e naturais simpatias pró-taiping dos governos que registavam agravos contra o regime manchú - pela França, pelos Estados Unidos e por Portugal: abstenção de fidelizações até à clarificação final da balança do poder. No caso dos Portugueses, a razão era simples e vinha na continuidade da tradicional política seguida na China; tal era a opinião religiosamente mantida pelo Governador Guimarães ao longo de todo o conflito: «a minha posição é muito delicada e preciso de empregar todo o cuidado em me não comprometer com partido nenhum [...] espreito atentamente os acontecimentos para assim me decidir. Creio que esta é a política que convém a uma nação pequena como aquela a que pertencemos... »28.

Mas, para além das informações vindas de Macau, as diversas legações portuguesas - maxime as de Paris, Londres e S. Petersburgo - não deixariam de ir relatando as atitudes que cada uma das chancelarias ia definindo. Um dos movimentos mais interessantes tivera lugar em Londres, no princípio de Maio de 1853, quando Lord Clarendon, em resposta às informações e pedidos de orientação que lhe iam chegando de Bonham, redigiu uma minuta de instruções onde era definida uma política de estrita neutralidade face aos dois partidos, bem como a abertura à cooperação com os E. U. A. e a França com vista à revisão dos tratados que um acumular de circunstâncias verificadas desde a questão da entrada em Cantão parecia impôr. Interessado em sondar a sensibilidade das potências a tal política, Clarendon, através das embaixadas em Paris, Washington e S. Petersburgo, convidava cada um dos respectivos gabinetes à cooperação «with the view of turning to the best account the opportunity offered by the present crisis in China for opening that Empire to the commercial enterprise of foreign nations»29.

Para além das informações de que a imprensa europeia andava cheia, é mais do que natural que em Lisboa houvesse conhecimento destes factos mais íntimos, e que deles - aplicando uma táctica de "colagem" às grandes potências que tomaria a ensaiar no termo da 2a Guerra do Ópio - imediatamente procurasse extraír o proveito concreto da abertura de negociações com o Império, fosse qual fosse a dinastia que a guerra acabasse por impor no Trono do Dragão. Assim, não é, certamente, acidental a investidura no Governador de Macau do cargo de Comissário Régio, provido de poderes para negociar e concluir um "Tratado Luso-Chinês de Comércio e Navegação", logo em 15 de Junho de 1853 30, ou seja, uma semana passada sobre o envio a Bonham das instruções concebidas por Clarendon «with the view of turning to the best account the opportunity offered by the present crisis in China for opening that Empire to the commercial enterprise offoreign nations». Não será coincidência também que o Conselho Ultramarino, em consulta de Agosto desse mesmo ano, reiterasse a concessão urgente de poderes ao Governador de Macau que o acreditassem «junto a qualquer Governo que persista ou venha a formar-se na China», tendo presente ser «incontestavelmente sabido que está passando na China uma grande revolução e que os resultados dela hão-de ser favoráveis às comunicações e ao comércio intelectual e material das nações europeias».

A iniciativa das medidas assim celeremente tomadas para acorrer às solicitações do momento, pertencia ao Ministro dos Negócios Estrangeiros, António Jervis de Atouguia, que então também acumulava a pasta da Marinha e Ultramar. É, pois, natural, que outras providências fossem simultâneamente tomadas neste âmbito para acorrer às mesmas solicitações. Embora ignoremos os trâmites e os termos do pedido nascido certamente naquele último Ministério, a verdade é que a questão das providências a tomar nesta conjuntura, especialmente com respeito a Macau, subiu ao Conselho Ultramarino. Ignoramos também porque razão o relator da consulta foi - não o Dr. Francisco da Costa e Amaral, a quem as questões relativas ao Estabelecimento eram normalmente distribuídas31 - mas a um dos fautores do prestígio deste orgão(senão mesmo o inspirador do seu renascimento) o administrativista Visconde de Almeida Garrett32, então no auge da sua carreira política, recém-nobilitado, Par do Reino (1851) e Ministro dos Negócios Estrangeiros (1852).

Um dos derradeiros textos políticos de Garrett (falecido em Dezembro de 1854), a consulta do Conselho existe ainda hoje, e - além de ser um inédito do ilustre escritor que com muita honra revelamos - trata-se de um documento de muito interesse, quanto mais não seja por revelar e "cristalizar" a doutrina do point d'honneur que indubitavelmente explicou e sustentou a decisão do Governo em manter aquela longínqua, dispendiosa e desvalorizada possessão oriental.

Era neste contexto que o Conselho -adoptando integralmente a minuta de Almeida Garrett - apelava em tom dramático para a «herdeira e sucessora e representante dos Senhores Reis D. João II, D. Manuel e D. João III», a quem, como ao restante da Nação, impunham «estes gloriosos títulos deveres que é altamente necessário e não menos útil cumprir». E começava por declarar não pretender no exame das causas da revolução que grassava subvertendo a ordem secular do Império Chinês. Bastava-lhe o conhecimento «ali se chocam e estão lutando as duas civilizações, a material e a espiritual». E - continuava Garrett - «se houvermos de acreditar o que geralmente se diz e escreve, o materialismo vai de vencida». De facto, reflectindo um dos maiores equívocos que as primeiras notícias da revolta dos taiping geraram na opinião pública europeia, apressadamente crente na natureza cristã do movimento, Garrett admitia que o «polido materialismo de Confúcio, dos filósofos e das classes superiores, juntamente com a idolatria brutal e obscura da plebe, têm de ceder da posse de tantos séculos à sublime e singela crença da Cruz, que tanto serve e contenta ao ignorante como ao sábio, ao pobre como ao rico».

A esta luz e pela pena de Garrett, surgia mais nítido o futuro de Macau, aqui delineado tal qual era idealmente interpretado o seu passado, isto é, purificado de todas as vicissitudes da mesquinha conjuntura local e elevado à sua verdadeira dimensão no contexto das pioneiras relações entre o Ocidente e o Oriente:

«Senhora! A Coroa de V. M. impera ainda sobre uma apartada e estreita colónia que a Religião e o Comércio fundaram na extremidade de uma orla marítima desse vasto e misterioso Império que se denomina Celestial, e que o Céu parece efectivamente ter protegido e conservado tantos séculos para perpétua prova e documento de que uma alta civilização material, uma indústria pasmosamente desenvolvida, uma população extraordinária, uma fertilidade imensa, leis sábias e todas as outras condições de prosperidade física, não são nada sem o progresso moral, sem as crenças espirituais que elevam a alma do homem e fundam as bases da sociedade em alguma coisa mais subida e mais alta que as do que as meras vantagens da vida animal.

Tão limitada como é e de tão contingente existência, esta pequena colónia portuguesa, que bem se poderia dizer não há muitos anos ainda era uma colónia de missionários e negociantes, tem exercido todavia sobre aquela grande Nação uma influência prodigiosa. Durante séculos ela foi o quase único meio de comunicação entre a China e a Europa, por ela entrou o Evangelho na pátria de Confúcio, e ela trouxe também ao mundo ocidental as revelações de uma antiga e desconhecida civilização, de suas fabulosas riquezas, de sua incrível história.

Os serviços que assim prestámos à Europa nem sempre foram agradecidos porque a inveja e o ciúme nos foram em todo o sentido guerrear àqueles confins da Ásia. Mas a Nação Chinesa permaneceu constante e fiel à amizade que com ela fizemos e lembrada sempre dos bons ofícios que lhe prestámos. Ali não foi o poder das outrora invencíveis armas portuguesas, ali foi outro motivo ainda mais glorioso e ilustre que nos deu a influência: a lealdade do nosso carácter, a superioridade de nossa inteligência e a sublimidade das nossas crenças religiosas. Onde não chegaram as armas de nossos Capitães, chegaram as letras e a ciência dos nossos matemáticos, e onde não podiam penetrar os arcabuzes de nossos soldados, iam e venciam as sotanas e as sandálias de nossos missionários. Ali cederam as ármas à toga; ali foram os livros mais adiante do que as lanças, e Pedro Nunes excedeu a Afonso d'Albuquerque.

E quando os nossos erros, ignorância e infelicidade, por um lado, e a boa fortuna e diligência de outras nações ocidentais, por outro, nos suplantaram na Ásia e não deixaram de nosso domínio e supremacia no Oriente senão um clamor imenso que já outra coisa não é senão esse clamor, a sombra poética daquela grandeza, e ainda assim faz respeitar o nosso nome, Macau - a conquista pacífica do Comércio, da Ciência e da Religião - ainda permaneceu e nos foi conservada pela gratidão e pelos interesses da Nação Chinesa. Apesar das suas vicissitudes e de sua presente decadência, Macau ainda hoje é, não o estéril padrão de uma glória que não pode voltar, mas o seguro alicerce de uma dominação e influência espiritual que pode ser tão duradoira quanto as coisas humanas podem sê-lo se o Governo de V. M. não deixar, como decerto não há-de, perder as favoráveis ocasiões de o sustentar e consolidar... ».

Assim, tendo presentes duas ordens de razões, uma de oportuna conjuntura de política internacional na China, e outra de ordem mais particular, que passava pelo próprio destino de Macau33, entendia Garrett que o Governo Português «não possa, queira, nem ouse (porque há casos em que a indolência é ousadia) ficar indolente e preguiçoso espectador». Impunham-se, pois, providências. Não as providências ordinárias de uma regular administração - «por mais rectas e inexcepcionais que sejam, seriam aqui preguiça criminosa, repreensível e culposo abuso, e os Ministros de V. M. não querem decerto que sobre eles pese tal responsabilidade... » - mas providências que o Conselho não tinha pejo em classificar de «urgentes» e «extraordinárias». A saber:

Em primeiro lugar, «mandar poderes amplos e por nenhum modo restritos ao Governador de Macau, se ele merecer a V. M. a confiança que o Conselho julga poder merecer, e se assim não é, a pessoa que a tenha e seja digno dela. Estes poderes devem ser não só governativos, políticos e militares, mas diplomáticos também, e tais que o acreditem junto a qualquer Governo que persista ou venha a formar-se na China». De facto, como o próprio Garrett sublinhava, «seja qual fôr o futuro que está nos imprescutáveis desígnios da Providência, é incontestavelmente sabido que está passando ali uma grande revolução e que os resultados dela hão-de ser favoráveis às comunicações e ao comércio intelectual e material das nações europeias».

Em segundo lugar - consagrando definitivamente o encerramento da questão das "reparações" devidas pelo assassínio de Ferreira do Amaral e erradicada a ideia de um conflito do que se pretendia fosse o panorama futuro das relações luso-chinesas - previa-se o fortalecimento dos meios de defesa do território; além dos homens e do armamento indispensável, «um barco de vapor pequeno, mais do que um se possível fosse, seria de grande conveniência. E em falta disso, algumas embarcações de guerra pequenas, não para a conquista - é tão absurda e ridícula como a ideia -mas para a defesa e precaução. Em um país tal, com tal guerra civil, ninguém a tanta distância pode prever o que haverá e as contingências a que Macau pode ficar sujeito, não só da parte de um ou outro governo mais ou menos regular e legítimo, mas dos piratas que ainda em plena paz infestam aqueles mares e costas, e das forças anómalas e desregradas que na guerra civil surgem em toda a parte à voz da ambição, da cobiça e das pretensões individuais ou provinciais».

Em terceiro e último lugar, um apelo (na verdade o primeiro desta natureza em toda a série de directivas ou orientações destinadas desde 1842 a utilizar em conversações com a China34) relativo aos deveres nacionais em matéria de missionação:

Isidoro Francisco Guimarães, Governador de Macau e Ministro Plenipotenciário de Portugal na China.

«Digne-se V. M. recordar-se agora mais do que nunca dos inauferíveis direitos da Sua Real e Gloriosa Coroa Temporal. Digne-seinclinar a sua consciência às obrigações resultantes daqueles direitos. A Augusta Padroeira das Igrejas do Oriente é também Padroeira da Igreja da China. Os milhões de súbditos que o não são de Sua Coroa Temporal, e o são todavia fidelíssimos de Seu Real Padroado, a grandes brados lho têem clamado: hoje mais que nunca clamam por V. M. e invocam o seu nome. É preciso, Senhora, mandar para ali nesta ocasião crítica, missionários, munições e material de guerra espiritual não para a conquistar também, mas para defender as Igrejas Católicas que ali têm o Seu Padroado e que privadas de pastores, abandonadas, quase enjeitadas pela ignavia e sordidez material dos tempos calamitosos, que ainda bem já lá vão!, persistem todavia constantes em dar um documento, único no mundo, de lealdade a V. M. e ao nome português, que ainda na maior parte daquelas terras é sinónimo de Cristão e de Católico».

A oportunidade desta veemente e inesperada chamada de consciência tem, quanto a nós, duas justificações. Em primeiro lugar, recorde-se que Portugal vivia nesse preciso momento uma das mais graves crises suscitadas pelo confronto dos interesses da Propaganda Fidei e do Padroado Português, personalizada depois na violenta polémica travada entre o Vigário Apostólico Anastácio Hartmann e o Bispo de Macau D. Jerónimo da Mata. Questão cujo desfecho desfavoreceu Portugal e que, até à celebração da polémica Concordata de 1857, agitou profundamente uma opinião pública a cujos sentimentos feridos e à consciência de derrota exemplarmente deu voz Alexandre Herculano35.

Em segundo lugar, é natural que Portugal não ficasse indiferente ao inicial entusiasmo suscitado no resto da Europa pela informação de que a rebelião taiping, revestida de um aparente carácter cristão, podia ser lida como uma dramática e quase escatológica pugna entre o Cristianismo e o Paganismo: «... se houvermos de acreditar o que geralmente se diz e escreve, o materialismo vai de vencida. O polido materialismo de Confúcio, dos filósofos e das classes superiores, juntamente com a idolatria brutal e obscura da plebe, têm de ceder da posse de tantos séculos à sublime e singela crença da Cruz, que tanto serve e contenta ao ignorante como ao sábio, ao pobre como ao rico».

Convicção que caíu progressivamente a partir de 1853; primeiramente, no mundo católico, quando os louros desse aparente triunfo começaram a ser reclamados pelos Protestantes, suscitando um realinhamento de sentimentos pró e contra os Qing, de que é paradigma a França, que, arrogando-se de tradicional protectora do Catolicismo na China, não teria dúvidas em apoiar o Trono de Xianfeng36. Em segundo lugar, porque até os círculos protestantes acabaram por se desiludir quando notaram a dimensão exacta da blasfémia ou da heresia contida na doutrina religiosa dos taiping, fruto de uma amálgama de conhecimentos bíblicos e rudimentos do Cristianismo recebida em Cantão com uma malassimilada instrução protestante dos dois líderes Hong Xiuquan e Hong Rengan.

É curioso notar-se que os acontecimentos ultrapassaram celeremente o potencial efeito da consulta do Conselho Ultramarino que Almeida Garrett minutara. Apesar do carácter bicéfalo do portfolio ministerial de Jervis de Atouguia, quando o Conselho solicitou em Agosto a atribuição de poderes diplomáticos que acreditassem o Governador «junto a qualquer Governo que persista ou venha a formar-se na China», a sugestão perdera o seu sentido face à prévia concessão dos mesmos pela Raínha através do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Junho de 1853:

«... Faço saber aos que as presentes letras virem que estando animada do desejo de manter e estreitar cada vez mais os laços de amizade que felizmente subsistem entre a Minha Corôa e a de Sua Majestade o Imperador da China, e querendo fomentar as relações comerciais de ambos os países por meio de um Tratado de Comércio e Navegação, que, sendo firmado sobre bases de recíproca vantagem, contribua para a sua maior prosperidade, Hei por bem Nomear, como por estas Nomeio Meu Comissário ao Capitão de Fragata Isidoro Francisco Guimarães, do Meu Conselho, Governador da Provincia de Macau, Timor e Solor para que conferindo com o Comissário, ou Comissários igualmente nomeados para esse fim por Sua Majestade o Imperador da China, possa tratar, estipular, concluir e firmar até ao ponto de ratificação um Tratado de Comércio e Navegação fundado nos princípios da mais bem entendida reciprocidade de interesse para ambas as Nações»37.

Pela primeira vez na história de Macau, um Governador do território via-se assim dotado de amplos poderes, poderes esses, como queria o Conselho Ultramarino, «não só govemativos, políticos e militares, mas diplomáticos»38. Por eles clamara incessantemente desde o termo da Guerra do Ópio o Governador Silveira Pinto e o mesmo sugerira o Leal Senado em Outubro de 1849, quando profetizou o insucesso de qualquer iniciativa junto da China que não passasse por negociações convencionais: «... sem um tratado fixo, que mantenha os interesses de ambos os povos e que marque os deveres dos dois Governos, Macau continuará na oscilação em que se acha»39.

O Governo acabara, enfim, por dotar o Governador de Macau com os poderes adequados ao efeito, e, curiosamente, tendo no pensamento o regresso à estaca inicial das negociações cometidas em 1843 ao Governador Silveira Pinto. Por essa mesma razão, as instruções que em Junho de 1853 acompanhavam a carta de Pleno Poder remetida ao Governador para a negociação de um tratado com a China, eram as que dez anos antes se tinham feito entregar a Silveira Pinto, e o projecto de tratado o mesmo que na altura se redigira para uso do mesmo Comissário 40.

Reagindo de algum modo à irrealista decisão do Governo em remeter simplesmente para soluções velhas de dez anos, o Governador Isidoro Guimarães faria notar o facto de que «a maior parte das concessões de que tratam as mesmas Instruções já estão obtidas de facto, e só falta consigná-las num Tratado, mas Macau carece mais do que aquilo que se pretendia em 1843: precisamos de vantagens comerciais para este Estabelecimento que tanto perdeu pela expulsão do Hopu, e consequente saída dos hang. Como já tenho dito a V. Ex. a a ocasião não é própria para tratar; não sabemos mesmo quem regerá a China no mês seguinte, mas convém estar habilitado com instruções. Todas as Potências que têm interesses na China se preparam para os grandes acontecimentos que se esperam... »41.

Assim determinado pelo desígnio tenaz de manter a presença nacional em Macau, o fecho do ciclo era marcado pela mesma preocupação que dominara o seu início em 1843: negociar com a China e consignar convencionalmente uma "ordem nova" que garantisse a sobrevivência daquela presença em condições favoráveis. Mas «Macau carece mais do que aquilo que se pretendia em 1843», escrevia acertadamente o Governador. E não eram só as "vantagens" que se buscavam. Percorrendo todas as estações de uma arrastada via dolorosa, o Governo Português lograra, em final, concretizar o desígnio cometido em 1846 pelo Ministro Falcão ao Governador Ferreira do Amaral: em 1849, Macau fôra, efectivamente, «um estabelecimento a refundir e criar de novo». E à recém-adquirida situação de autonomia de Macau frente ao Império, mesmo que mantida de facto, estava disposto o Governo Português a defendê-la com a maior tenacidade, até à sua final consagração num instrumento convencional sancionado pelo Direito das Gentes.

APÊNDICE Consulta do Conselho Ultramarino sobre a Política Portuguesa na China(19.8.1853)

Senhora! O Conselho Ultramarino entende que faltaria às suas primeiras obrigações e à lealdade que deve a V. M. que o instituiu e o colocou de guarda e vigia aos interesses ainda grandes e à glória sempre imensa que a Nação Portuguesa tem que honrar e sustentar nas suas longínquas possessões da Ásia, se com todo o respeito e submissão, mas com toda a confiança também, não viesse aqui hoje ante o Augusto Trono de V. M. recordar-lhe, Senhora, que V. M. é a Herdeira e Sucessora e Representante dos Senhores Reis D. João II, D. Manuel e D. João III, e que V. M., assim como a esta Nação, impõem estes gloriosos títulos deveres que é altamente necessário e não menos útil cumprir.

Senhora! A Coroa de V. M. impera ainda sobre uma apartada e estreita colónia que a Religião e o Comércio fundaram na extremidade de uma orla marítima desse vasto e misterioso Império que se denomina Celestial, e que o Céu parece efectivamente ter protegido e conservado tantos séculos para perpétua prova e documento de que uma alta civilização material, uma indústria pasmosamente desenvolvida, uma população extraordinária, uma fertilidade imensa, leis sábias e todas as outras condições de prosperidade física, não são nada sem o progresso moral, sem as crenças espirituais que elevam a alma do homem e fundam as bases da sociedade em alguma coisa mais subida e mais alta que as do que as meras vantagens da vida animal.

Minuta da consulta do Conselho Ultramarino sobtre a questão da China. Autógrafo assinado pelo seu relator, o visconde de Almeida Garrett.

Tão limitada como é e de tão contingente existência, esta pequena colónia portuguesa, que bem se poderia dizer não há muitos anos ainda era uma colónia de missionários e negociantes, tem exercido todavia sobre aquela grande Nação uma influência prodigiosa. Durante séculos ela foi o quase único meio de comunicação entre a China e a Europa, por ela entrou o Evangelho na pátria de Confúcio, e ela trouxe também ao mundo ocidental as revelações de uma antiga e desconhecida civilização, de suas fabulosas riquezas, de sua incrível história.

Os serviços que assim prestámos à Europa nem sempre foram agradecidos porque a inveja e o ciúme nos foram em todo o sentido guerrear àqueles confins da Ásia. Mas a Nação Chinesa permaneceu constante e fiel à amizade que com ela fizemos e lembrada sempre dos bons ofícios que lhe prestámos. Ali não foi o poder das outrora invencíveis armas portuguesas, ali foi outro motivo ainda mais glorioso e ilustre que nos deu a influência: a lealdade do nosso carácter, a superioridade de nossa inteligência e a sublimidade das nossas crenças religiosas. Onde não chegaram as armas de nossos Capitães, chegaram as letras e a ciência dos nossos matemáticos, e onde não podiam penetrar os arcabuzes de nossos soldados, iam e venciam as sotanas e as sandálias de nossos missionários. Ali cederam as armas à toga; ali foram os livros mais adiante do que as lanças, e Pedro Nunes excedeu a Afonso d'Albuquerque.

E quando os nossos erros, ignorância e infelicidade, por um lado, e a boa fortuna e diligência de outras nações ocidentais, por outro, nos suplantaram na Ásia e não deixaram de nosso domínio e supremacia no Oriente senão um clamor imenso que já outra coisa não é senão esse clamor, a sombra poética daquela grandeza, e ainda assim faz respeitar o nosso nome, Macau - a conquista pacífica do Comércio, da Ciência e da Religião - ainda permaneceu e nos foi conservada pela gratidão e pelos interesses da Nação Chinesa. Apesar das suas vicissitudes ede sua presente decadência, Macau ainda hoje é, não o estéril padrão de uma glória que não pode voltar, mas o seguro alicerce de uma dominação e influência espiritual que pode ser tão duradoira quanto as coisas humanas podem sê-lo se o Governo de V. M. não deixar, como decerto não há-de, perder as favoráveis ocasiões de o sustentar e consolidar.

Não pretende o Conselho entrar no exame e disquisição das causas que moveram o Império da China à grande revolução por que está passando hoje. Parece, contudo, evidente que ali se chocam e estão lutando as duas civilizações, a material e a espiritual. E se houvermos de acreditar o que geralmente se diz e escreve, o materialismo vai de vencida. O polido materialismo de Confúcio, dos filósofos e das classes superiores, juntamente com a idolatria brutal e obscura da plebe, têm de ceder da posse de tantos séculos à sublime e singela crença da Cruz, que tanto serve e contenta ao ignorante como ao sábio, ao pobre como ao rico.

Seja, porém, qual for o futuro que está nos imperscrutáveis desígnios da Providência, é incontestavelmente sabido que está passando ali uma grande revolução e que os resultados dela hão-de ser favoráveis às comunicações e ao comércio intelectual e material das nações europeias.

Ninguém ousará duvidar que a sorte de Macau há-de fixar-se por muitos anos, e que esta, ainda agora quase única verdadeira colónia na China, pode, na convulsão e conflagração do terreno em que está fundada, ou subverter-se de todo, ou levantar-se mais forte e prosperada que nunca.

Em circunstâncias tais não julga o Conselho que o Governo de V. M. possa, queira, nem ouse (porque há casos em que a indolência é ousadia) ficar indolente e preguiçoso espectador.

As providências ordinárias de administração regular, por mais rectas e inexcepcionais que sejam, seriam aqui preguiça criminosa, repreensível e culposo abuso. E os Ministros de V. M. não querem decerto que sobre eles pese tal responsabilidade.

Entende o Conselho que algumas providências extraordinárias é urgente dar e já, sem a mínima demora.

Seria a primeira mandar poderes amplos e por nenhum modo restritos ao Governador de Macau, se ele merecer a V. M. a confiança que o Conselho julga poder merecer, e se assim não é, a pessoa que a tenha e seja digno dela. Estes poderes devem ser não só governativos, políticos e militares, mas diplomáticos também, e tais que o acreditem junto a qualquer Governo que persista ou venha a formar-se na China.

Certamente, a amplidão de tais poderes demanda grande previdência, reserva e tacto político na pessoa que tem de exercê-los, ou governando ou negociando em tão difíceis circunstâncias. Mas V. M. e o seu Governo bem saberão acolher a quem os confiar e eles são absolutamente necessários.

O Conselho abstém-se de enumerar e ponderar as muitas e várias eventualidades que lhe parecem poderem ocorrer, nas quais, a existência a tempo de tais poderes ali pode ser indispensável para salvar, para engrandecer e para consolidar a colónia. Mas a sabedoria e perspicácia do Governo de V. M. as avaliará ainda melhor.

Algumas munições em homens e material de guerra e alguma força marítima é também indispensável: um barco de vapor pequeno, mais do que um se possível fosse, seria de grande conveniência. E em falta disso, algumas embarcações de guerra pequenas, não para a conquista - é tão absurda e ridícula como a ideia - mas para a defesa e precaução. Em um país tal, com tal guerra civil, ninguém a tanta distância pode prever o que haverá e as contingências a que Macau pode ficar sujeito, não só da parte de um ou outro governo mais ou menos regular e legítimo, mas dos piratas que ainda em plena paz infestam aqueles mares e costas, e das forças anómalas e desregradas que na guerra civil surgem em toda a parte à voz da ambição, da cobiça e das pretensões individuais ou provinciais.

Senhora! Não deixe V. M. de acreditar (e os factos o provarão bem cedo) que as crenças religiosas têm, tiveram e hão-de ter nesta grave revolução do Extremo Oriente uma grande parte. Sinceramente invocadas por uns, hipocritamente por outros, elas actuam fortemente, inevitavelmente no ânimo dos povos. A religião de Cristo ali há-de muito breve ou triunfar ou sucumbir por muitos anos.

Digne-se V. M. recordar-se agora mais do que nunca dos inauferíveis direitos da Sua Real e Gloriosa Coroa Temporal. Digne-se inclinar a sua consciência às obrigações resultantes daqueles direitos. A Augusta Padroeira das Igrejas do Oriente é também Padroeira da Igreja da China. Os milhões de súbditos que o não são de Sua Coroa Temporal, e o são todavia fidelíssimos de Seu Real Padroado, a grandes brados lho têm clamado: hoje mais que nunca clamam por V. M. e invocam o seu nome. É preciso, Senhora, mandar para ali nesta ocasião crítica, missionários, munições e material de guerra espiritual não para a conquistar também, mas para defender as Igrejas Católicas que ali têm o Seu Padroado e que privadas de pastores, abandonadas, quase enjeitadas pela ignávia e sordidez material dos tempos calamitosos, que ainda bem já lá vão!, persistem todavia constantes em dar um documento, único no mundo, de lealdade a V. M. e ao nome português, que ainda na maior parte daquelas terras é sinónimo de Cristão e de Católico.

Certo de que hão-de ser ouvidas estas súplicas o Conselho põe de novo aos Augustos pés de V. M. as dos povos do Oriente com as suas. V. M. as atenderá, mandando o que houver por bem.

Lisboa, em Conselho, aos dezanove de Agosto de 1853. [ass] José Ferreira Pestana, Vice-Presidente, [ass.] João de Fontes Pereira de Mello, [ass.] Almeida Garrett, [ass.] Francisco José da Costa e Amaral, [ass.] Lourenço José Moniz.

Revisão de texto de Joaquim Leal;

revisão final de Fátima Gomes.

NOTAS

1Uma parte dessa investigação está recolhida in SALDANHA, António Vasconcelos de, Estudos Sobre as Relações Luso-chinesas, edição conjunta do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, e do Instituto Cultural de Macau, Lisboa, 1996. O documento agora sob análise está publicado em anexo ao estudo «"Um Estabelecimento a refundir e criar de novo". Macau e a Política Externa Portuguesa na China», incluído nesse mesmo volume. Esse mesmo estudo, com o patrocínio da Fundação Macau, foi recentemente publicado em chinês com o título "葡萄牙在華外交政策。一八四一至一八五四"(Putaoya Zaihua Waijiaozhengce 1841-1854).

2Este texto está publicado na íntegra em anexo a este estudo. Veja-se o original no Arquivo Histórico Ultramarino, Conselho Ultramarino, Livro 1° de Consultas e Representações, (1851-1853), Consulta de 1853, fols. 216-218, «Representando a Urgência de se Tomarem Providências em Relação ao Estabelecimento de Macau». Também no AHU (Conselho Ultramarino, Arquivo, Pasta 9,16.8.1853, (Livro 1, n° 304) a minuta do punho e assinada por Almeida Garrett.

3CORDEIRO, Luciano, «Marinha e Colónias. Estudos sobre a sua Administração e Reforma» in Obras de Luciano Cordeiro. I. Questões Coloniais, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1934, p.707. Sobre o Conselho Ultramarino - além deste estudo fundamental - que os seguintes autores citados estranhamente omitem, vide também CAETANO, Marcello, O Conselho Ultramarino. Esboço da sua História, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1967; SERRÃO, Joaquim Veríssimo, in História de Portugal, Vol. IX, Lisboa, Ed. Verbo, 1986, pp. 91-92.

4Relatório explicativo da formação do C. U., in idem, p.708.

5D. Manuel de Portugal presidira à Comissão que em 1838 fôra encarregue de se debruçar sobre as medidas de reforma do Estabelecimento; foi ele também que 1831 redigiu a resposta a Lord William Bentinck, Governador-Geral da Índia Britânica, quando este pôs em causa os direitos de Portugal em Macau; vide SALDANHA, António Vasconcelos de, «A Luta pela Legitimidade: a "Memória" do Visconde de Santarém no contexto de três séculos de argumentação histórica e jurídica em favor da soberania portuguesa em Macau» in Estudos Sobre as Relações Luso-chinesas..., cit. Ferreira Pestana governava a Índia aquando do assassinato de Ferreira do Amaral e a ele se devem as medidas de auxílio financeiro requeridas e o envio para Macau do primeiro contingente de reforço militar.

6Pertenceu à Comissão acima referida.

7Sobre este interessante personagem veja-se a biografia publicada por SILVA, Francisco Inocêncio da, Diccionário Bibliographico Portuguez. Estudos de Francisco Innocêncio da Silva. Applicaveis a Portugal e ao Brazil, Tomo IX, Lisboa, 1870, p..312, e TEIXEIRA, P. Manuel, Os Ouvidores de Macau, Macau, Imprensa Nacional, 1976, pp. 170-179.

8Veja-se o Decreto de 25 de Maio e o Relatório da Comissão de 24 de Julho de 1838, in Annais Maritimos e Coloniaes, n° 9, Julho de 1841, pp.405-423.

9Vide SALDANHA, António Vasconcelos de, «"Um Estabelecimento a refundir e criar de novo". Macau e a Política Externa Portuguesa na China», in Estudos..., cit.

10Veja-se o Boletim do Governo de 19.11.1851. Embora se desconheça qual tenha sido essa comissão de serviço, a posterior carreira de Gonçalves Cardoso não foi desprovida de brilho e destacam-se as suas funções de Vogal do Conselho Ultramarino (1863-65) e de Governador de Angola (1866-1869), onde, mais de vinte anos antes, com Ferreira do Amaral, servira sob as ordens de Pedro Alexandrino da Cunha.

11Segundo António Feliciano Marques Pereira, que o conheceu de muito perto, «à sua elevada inteligência, à sua incontestável aptidão administrativa e à sua não menos incontestável felicidade, reunia o actual Visconde um finíssimo tacto para evitar dificuldades internacionais e para lhe anular a importância quando inevitáveis. Ainda que a feição constante da sua habilidade diplomática era a prudência e a cortesania, os arquivos atestam que ele não deixava sem digna resposta quaisquer ousadas pretensões dos Mandarins... », in PEREIRA, António Feliciano Marques, As Alfândegas Chinesas de Macau, Macau,1870, p.60. Também SERRÃO, Joaquim Veríssimo, in História de Portugal, Vol. IX, Lisboa, Ed. Verbo, 1986, pp. 94-95, destacou recentemente os méritos de I. F. Guimarães como administrador colonial.

12Vide sobre esta questão SALDANHA, António Vasconcelos de, "Um Estabelecimento a Refundir e Criar de Novo...", in Estudos..., cit., pp. 330-331.

13Carta particular de Ferreira do Amaral a Oliveira Lima, de 19.4.1849, in Lia FERREIRA DO AMARAL, O Significado do Governo de Ferreira do Amaral, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1944, II, p.101.

14Veja-se SALDANHA, António Vasconcelos de, «O Problema da Interpretação do Tratado Luso-Chinês de 1887 no respeitante à Questão da Soberania Portuguesa em Macau», in Estudos..., cit..

15Ofício N° 92, de 26 de Setembro de 1852, do Governador ao MU, in AHU, 2a Seccção, Macau, Caixa de 1852/1853.

16Sobre esta questão vide SALDANHA, António Vasconcelos de, Um Estabelecimento a Refundir..., cit. pp.341-343.

17Sobre esta questão vide idem, pp. 344-354.

18Documento anexo ao ofício n° 116 de 25.1.1853, do Governador ao MU, in AHU, 2a Seccção, Macau, Caixa de 1852/1853.

19Idem, ibidem.

20Sobre este tema, vide "Aproximar Portugal e a China num entendimento amistoso". As ofensivas diplomáticas chinesas para a compra de Macau. Contributo para o estudo das missões do Zongliyamen ao Ocidente (1869-1891) in Estudos..., cit... Veja-se também e sobretudo a documentação contida in Colecção de Fontes Documentais para a História das Relações entre Portugal e a China. Volumes II e III. Documentos Relativos às Negociações do Tratado de Amizade e Comércio Luso-Chinês e ao Processo da sua Ratificação (1853-1873), Direcção e Organização de SALDANHA, António Vasconcelos de, Macau, Centro de Estudos das Relações Luso-Chinesas da Fundação Macau, 1996, (daqui por diante referido como CFD II e III).

21SMITH, W. H. C., Anglo-Portuguese Relations 1851-1861, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1970, p. 146.

22Veja-se este importante documento in CFD, II, doc. 96.

23Em Junho de 1852, Guimarães participou ao Ministério que fôra nomeado novo mandarim da Casa Branca; comunicando ao Governador o sucesso, o magistrado chinês inquiriu da possibilidade de se deslocar à Cidade com bátegas («sinal de autoridade»). Respondeu-lhe Guimarães que poderia visitar a Cidade quando o desejasse, mas sem «sinais de jurisdição»; vide o ofício N°77 de 20 de Junho de 1852, in AHU, 2å Seccção, Macau, Caixa de 1852/1853.

24Sobre este tema, e com bibliografia vária, vide HESPANHA, António Manuel, Panorama da História Institucional e Jurídica de Macau, Macau, Fundação Macau, 1995. Para um quadro muito interessante das actividades da Procuratura, veja-se o Boletim do Governo, n. °s de 1851-1853.

25Vejam-se as várias disposições das autoridades portuguesas sobre a tributação dos Chineses publicadas no Boletim do Governo, n. os de 1851-1852.

26Vejam-se as várias disposições publicadas pelas autoridades portuguesas relativas à utilização das águas de Macau no Boletim do Governo, n. °s de 1851-1853.

27Esta matéria é detidamente analisada em SALDANHA, António Vasconcelos de, Um Estabelecimento a refundir..., cit. pp.259-289.

28Ofício "Confidencial E" do Governador ao MU, de 24 de Dezembro de 1853, in AHU, 2a Seccção, Macau, Caixa de 1852-1853.

29Uma completa análise da questão da "política de cooperação" in FAIRBANK, John King, Trade and Diplomacy on the China Coast. The Opening of the Treaty Ports, 1842-1854, Stanford, Stanford University Press, 1969, p.414.

30Carta de Pleno Poder entregue a Isidoro Francisco Guimarães, AMNE, L.331/L° de Plenos Poderes, 15 de Junho de 1853, pp. 149-150, publicada in CFD II, doc.1.

31O que não quer dizer que não viesse a subscrever a consulta, juntamente com Ferreira Pestana, Lourenço Moniz, Fontes Pereira de Mello e Garrett.

32Sobre esta faceta menos conhecida de Garrett e o seu destacado papel na política colonial portuguesa, vide CAETANO, Marcello, «Garrett Administrativista no Conselho Ultramarino» in Páginas Inoportunas, Lisboa, Livraria Bertrand, s. i. d., pp.65ss.

33«Ninguém ousará duvidar que a sorte de Macau há-de fixar-se por muitos anos, e que esta, ainda agora quase única verdadeira colónia na China, pode, na convulsão e conflagração do terreno em que está fundada, ou subverter-se de todo, ou levantar-se mais forte e prosperada que nunca».

34É realmente notória essa falta (por contraste, por exemplo, com as preocupações dos Franceses aquando da negociação do tratado de 1846), procurada colmatar aqui e com um breve reflexo na adenda às instruções a Isidoro Guimarães aquando das negociações do Tratado com a China. Em ofício de 26.4.1861 o Plenipotenciário respondeu ao MNE em termos muito significativos: «Tenho a honra de accusar a recepção do officio de V. Exciade 16 de Fevereiro proximo passado, ordenando-me para na qualidade de Plenipotenciário Portuguez encarregado da negociação de um tratado com o Imperio da China, fazer consignar no tratado que se houver de fazer a condicção de poderem os Portuguezes estabelecer no territorio Imperial Igrejas do Culto Catholico onde possam exercer-se todos os actos religiozos, do mesmo modo que foi concedido á França e outros paizes pelos ultimos convenios. Quando chegar a occasião de entrar em negociações não deixarei de dar cumprimento ás ordens do Governo de Sua Magestade, e persuado-me que não haverá difficuldade em conseguir que no nosso tratado (quando elle se faça) se estipule a respeito da religião o que foi concedido ás demais Potencias. Será uma condição que a decencia e decoro Nacional reclamam que se consigne no tratado, mas não porque della se tenham de aproveitar os Portuguezes, porque estando todos os Bispados na China entregues á Propaganda Fidei, que em todos os portos abertos ao Commercio, tem edificado Igrejas, não é de esperar nem mesmo talvez convenha que os portuguezes alli estabelecam templos seus, ainda que houvesse Padres, dinheiro, e espirito para o fazer. Mesmo em Cantão que pertence pela Concordata ao Bispado de Mácao está a Propaganda construindo uma grande Cathedral, como se tal Concordata não existisse... », in CFD, II, ofício de 26.4.1861 do Plenipotenciário Português ao MNE.

35Veja-se HERCULANO, Alexandre, «A Reacção Ultramontana em Portugal ou a Concordata de 21 de fevereiro» in De Longe à China. Macau na Historiografia e na Literatura Portuguesas, Instituto Cultural de Macau, II, pp.399-446. Um enquadramento da questão das relações com a Santa Sé in BARATA, David Sampaio Dias, O Governo Português e a Crise do Papado nos anos de 1848-1870, Lisboa, 1979. Sobre a questão e a intervenção do Bispo de Macau no erroneamente denominado «cisma de Goa», que lhe está na base, vide per. tot. REGO, António da Silva, O Padroado Português no Oriente e a sua Historiografia (1838-1950), Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1978, e a biografia do Bispo D. Jerónimo in TEIXEIRA, Manuel, Macau e a sua Diocese. Vol. II, «Bispos e Governadores do Bispado de Macau», Macau, Imprensa Nacional, 1940, pp. 404-433. Já em 1848, aquando do início das conversações do Conde de Tomar com o representante papal, fôra solicitado ao Bispo D. Jerónimo, na sua qualidade de Bispo de Macau, um parecer sobre a questão do padroado. Esse parecer de 25.8.1848, resultante do contributo e da crítica dos Bispos Eleitos de Pequim e de Nanquim, é um interessantíssimo documento sobre a situação das missões na China, conservado no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Fundo MNE, Correspondência do Ministério da Marinha e Ultramar, caixa 387, anexo ao ofício de 9.12.1848 do MU ao MNE. Interessantes considerandos tb. in CALDEIRA, Carlos José, Considerações Sobre o Estado das Missões e da Religião Cristã. Sobre a situação da questão durante as negociações do tratado luso-chinês vide a nota supra.

36Cf. FAIRBANK, J. K., Trade and Dipolomacy..., p.414. No mesmo sentido vejam-se os comentários do Governador Guimarães sobre as posições das autoridades protestantes de Hong Kong, no ofício ao MU, in AHU, 2a Seccção, Macau, Caixa de 1852-1853.

37Carta de Pleno Poder entregue a Isidoro Francisco Guimarães, AMNE, L.331/L° de Plenos Poderes, 15 de Junho de 1853, pp. 149-150, publicada in CFD II, doc.1.

38As instruções que Silveira Pinto recebeu em princípios de 1843 provinham não de Lisboa, mas do Governo Geral da Índia. As que promanaram do Governo de Lisboa, em Agosto de 1843, eram dirigidas a Silveira Pinto, na sua qualidade de Comissário Régio, mas tinha já deixado cargo de Governador de Macau. Vide SALDANHA, António Vasconcelos de, Um Estabelecimento a Refundir..., cit.

39Ofício do Senado (subscrito por Goularte, Lourenço Pereira, António Carlos Brandão, I. José de Freitas, José Francisco de Oliveira, Manuel Pereira), ao MU, de 26 de Outubro de 1849, in AHU, 2å Seccção, Macau, Caixa de 1849.

40«... Acompanham aqueles Plenos poderes três cópias das instruções que em 1843 foram mandadas ao Conselheiro Adrião Acácio da Silveira Pinto, a fim de que as mesmas Instruções me sirvam de guia nas negociações que se entabolarem devendo com tudo sujeitá-las às alterações que as circunstancias exigirem», in ofício "Confidencial C" do Governador ao MU, de 4 de Setembro de 1853, in AHU, Macau, 2a Secção, Cx. 1852/53, publicado in CFD II, doc. 3. O Projecto do Tratado e as instruções entregues a Silveira Pinto estão anexas a este estudo.

41Ofício "Confidencial C" do Governador ao MU, de 4 de Setembro de 1853 in AHU, Macau, 2a Secção, Cx. 1852/53, publicado in CFD II, doc. 3. As Instruções de 1854 nunca chegariam a ser usadas. Guimarães continuaria a pedir por instruções actualizadas que, no entanto, só vieram a ser concedidas em 1859.

*António Vasconcelos de Saldanha, investigador na área das relações políticas luso-chinesas, é Professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, da Universidade Técnica de Lisboa.

desde a p. 47
até a p.