Cartografia

O ATLANTE DELLA CINA 1DE MICHELE RUGGIERI

Fernando Sales Lopes *

Aobra cartográfica publicada por Eugénio Lo Sardo,2 reproduz aquela que é considerada a primeira descrição completa da China produzida na Europa entre o últimos anos de quinhentos e os primeiros de seiscentos constituindo, segundo o mesmo estudioso, "o único testemunho ocidental sobre a complexa estrutura do império Ming durante o reinado de Wanli (萬歷)".3

Não tendo sido, até há bem pouco tempo, objecto de um estudo aprofundado, foi o organizador desta edição quem, em 1987, num artigo publicado no Bollettino della Società Geografica Italiana, chamou a atenção para a importância daquela obra cartográfica, identificando o seu autor como sendo o padre jesuíta Miguel Ruggieri, o que viria a ser confirmado, ou pelo menos não contestado, por estudos posteriores.

Interessante no livro coordenado por Eugenio Lo Sardo são os textos4 que antecedem as cartas reproduzidas e que constituem um valioso contributo, não apenas para uma sua melhor compreensão, como para o reforço do papel desenvolvido pela Companhia de Jesus no conhecimento exterior do Império do Meio, assim como sobre a personalidade e os conhecimentos profundos daquele, por muitos considerado, como o primeiro sinólogo, que foi Miguel Ruggieri.

Também a vida de Ruggieri, a sua adolescência numa Nápoles atribulada pelas discussões das novas ideias em plena Contra Reforma, a sua licenciatura em direito civil e canónico ao serviço da máquina administrativa espanhola, o abandono da vida secular e o ingresso na Companhia de Jesus, a sua partida para Lisboa, a sua ordenação e ingresso no Padroado português, a vinda para Macau, com passagens por Goa e Cochim, embora de uma forma breve, não deixam de ser abordadas revelando-se de grande importância para o conhecimento da personalidade e formação do proposto autor destas cartas da China.

Logo na introdução, Eugénio Lo Sardo dá-nos uma visão clara e profunda da forma como a Companhia de Jesus penetrou na China assim como da importância de Macau como ponto único e fundamental para a concretização daquele objectivo.

O papel desenvolvido por Ruggieri e Ricci na China nos finais do século XVI é o tema do artigo dos jesuítas Joseph Sebes e Jesús López-Gay5, no qual se sintetiza a aventura portuguesa até à chegada às costas da China, a importância do Padroado português para as ordens religiosas no Oriente e principalmente o papel desenvolvido pela Companhia de Jesus através dos padres Alessandro Vagliani, Miguel Ruggieri e Mateo Ricci.

RUGGIERI E A IMPORTÂNCIA DO MERIDIONAL

Se quanto à datação da obra parece não existirem grandes dúvidas, visto encontrar-se uma anotação autógrafa no próprio manuscrito referindo o ano de 1606, já quanto à sua autoria se poderiam colocar várias hipóteses. Assim, vem Eugénio Lo Sardo, nesta primeira edição impressa do manuscrito, retomar as suas teses partindo da confrontação, entre outras, das obras e suas referências na época e da caligrafia, dos dois homens que, na altura, melhor conhecimento tinham do Império Ming, a saber: Miguel Ruggieri e Mateo Ricci, para, em seguida, com fundamentada demonstração a atribuir indubitavelmente ao primeiro. Entre outras razões aponta a fama de cartógrafo de que gozava Ruggieri, lembrando Daniello Bartoli, um jesuíta que utilizou largamente os arquivos da Companhia para a elaboração da sua famosa obra Della Cina, e as suas referências a Ruggieri e aos anos que este passou no Oriente, bem como a descrição, com extrema precisão, de uma colecção de cartas que correspondem em larga medida ao manuscrito e às cartas geográficas em questão. Quanto aos conhecimentos que Ruggieri possuía sobre o império Ming, Lo Sardo recorda, por outro lado, as referências feitas por Gasparo Balbi, na sua Viaggio alle Indie, publicado em Veneza em 1590, e a fama de que Ruggieri gozava na comunidade de Macau, "como profundo conhecedor da língua e da civilização chinesa".6

Relativamente à estrutura da obra, demonstra Eugénio Lo Sardo que, para além da clara influência da cartografia chinesa na sua produção, são de salientar algumas particularidades bem demonstrativas de um novo olhar, ou um olhar subordinado aos interesses europeus, sobre o Império do Meio. A China aparecia, ao tempo, subdividida em quinze províncias, tendo como referência a capial do norte, Pequim, ou a capital do sul, Nanquim, o que, segundo o autor citado era também fielmente seguido por uma das fontes de Ruggieri, o célebre Kuang-yu tu (廣與圖)7 Mapa terrestre exaustivo. Ora Ruggieri optou por uma outra fórmula, ou seja, a representação da sua China deixando de ter como referência as capitais imperiais, mas sim a repartição geográfica do país, província a província, a partir da China meridional marítima. Para Eugenio Lo Sardo esta forma de ver a China era idêntica à dos coevos portugueses e, acrescentamos nós, era essa a China que interessava a quem tinha por objectivo princípal o comércio - a costa sul-sueste e as regiões limítrofes. A China do interior, o Grande Império no seu pormenor, esse para além de poder satisfazer a curiosidade e alimentar as fantasias da Europa sobre o quase, senão mesmo, mítico Cataio, interessava sim aos que tinham por objectivo concretizar o sonho de Francisco Xavier, que morreu às portas de China - a cristianização de todo o Império do Meio, para engrandecimento da fé. Um sonho antigo que o Exército saído da Contra Reforma se propunha levar a cabo.

AS FONTES CHINESAS

Muito importante ainda para a compreensão das cartas publicadas é o artigo de Luciano Petech8, La Fonte Cinesi delle Carte del Ruggieri. Chama a atenção para diversos pormenores, como o da construção das cartas segundo o sistema chinês, ou seja, tendo como base uma malha quadrangular correspondendo a distâncias convencionadas9, sistema que não era usado na Europa de então. Justifica o autor que a utilização das fontes chinesas por Ruggieri se pode justificar, entre outros motivos, pelo facto de o jesuíta poucas viagens ter efectuado pela China, o que não lhe terá permitido ocupar-se de uma geografia prática, em vez de uma geografia tratada a partir de cartas já existentes.

Faz ainda um breve historial da cartografia chinesa até à data da elaboração do atlas de Ruggieri, assim como da importância da cartografia portuguesa sobre a China, referindo-se com algum ênfase à Relação de Galeote Pereira, prisioneiro na China em 1549, composta em 1561, adiantando, no entanto, que "o primeiro livro verdadeiramente feito sobre a China se deve ao dominicano português Gaspar da Cruz (c. 1520-1570) intitulado Tractado em que se contam muito por estenso as cousas da China, publicado em Lisboa em 1570".10 Obras em que se tentava já dar a conhecer os nomes, ainda que nem sempre correctos, das províncias, e a fornecer números aproximados sobre as cidades. Conclui Petech que, apesar da sua importância no campo da geografia e da cartografia, não foram estas obras muito conhecidas fora de Portugal.11

Deveras importante pela visão global que nos dá do que foi a representação da China na Cartografia europeia dos séculos XV-XVII é o artigo de Filippo Bencardino12, que se publica nesta edição da Revista de Cultura.

UMA GEOGRAFIA ADMINISTRATIVA, MILITAR, E ECONÓMICA

Toda esta cartografia, onde se incluí a obra de Ruggieri, Ricci e tantos outros, pretendia dar a conhecer o desconhecido de parte a parte, de forma a responder às perguntas formuladas quer pela Europa quer pela China. Por isso se produziram na Europa mapas sobre o Império chinês e na China, mapas, como o célebre mapa-mundi de Ricci, que se tomou célebre pelo facto de ter colocado a China no centro do mapa (no centro do mundo!) indo ao encontro do pensamento e orgulho chineses bem patentes na auto-designação do Império do Meio.

E a Europa? O que impressionava a Europa de então era a máquina administrativa chinesa centralizada. E é por isso que o atlas de Ruggieri tenta dar até à exaustão informação pormenorizada. Como salientava Daniello Bartoli, no atlas de Ruggieri a hierarquia administrativa do Império Ming encontrava-se detalhadamente descrita. Facto que leva Lo Sardo a afirmar: "com efeito, o que ressalta ainda hoje da obra que agora se publica é a tentativa do autor de mostrar, com todo o rigor, a perfeição formal da grande máquina administrativa chinesa."13

Na verdade o atlas de Ruggieri compõe-se de 37 folhas de descrições geográficas e de 27 cartas. É nas descrições que surge o levantamento das quinze províncias chinesas de então, com informações relativas às distâncias, produções agrícolas e mineiras, circunscrições administrativas, guarnições militares e postos de guarda do Império.

Ruggieri faz preceder, duma forma precisa e constante, as cartas provinciais das descrições a que anteriormente nos referimos: inicia-as com a província (sheng, 省), seguem-se a perfeitura (fu, 府); os dados relativos da distância desta para as outras "fu" confinantes e à capital imperial. Depois de esgotado este primeiro tema, surge o elenco das cidades adjacentes na circuscrição, segundo a hierarquia canónica do "ceu" (zhou, 州) e "hhien" (xian, 腺). Pelas designações pode saber-se, entre outras informações, por exemplo, a quantidade de cereal produzido. Interessantes também as indicações da presença de guarnições militares, através dos qualificativos wei (衛) e suo (所). Fornecia ainda Ruggieri, informações complementares em algumas províncias como, por exemplo, sobre as localidades onde residiam membros da família imperial, algumas culturas particulares como a do chá, a existência de escolas, universidades de medicina e religião.14

Sem menosprezarmos a importância desta obra para o conhecimento da China no Ocidente e, ainda, para a identificação de Ruggieri como um cartógrafo de grande importância para a sua época, não nos podemos, de forma alguma, deixar de referir à influência que ela terá sofrido dos cartógrafos portugueses e a importância daquele que foi efectivamente o primeiro mapa a representar o interior da China - o Chinae, olim Sinarum regionis, noua descriptio de Luís Jorge de Barbuda, vindo a lume duas dezenas de anos antes. Também este mapa fornecia a localização aproximada das quinze províncias da China, a importância das cidades e sua designação chinesa, a eficácia da máquina administrativa, o seu sistema judicial, acrescentando-lhe ainda dados resultantes da observação das populações, de quem relata usos e costumes, para além do seu aspecto físico.15

Revisão final de texto de Fátima Gomes

NOTAS

1O manuscrito assim designado, recentemente atribuído a Miguel Ruggieri, encontra-se depositado, segundo Eugénio Lo Sardo, na Biblioteca do Arquivo do Estado, de Roma, ms. 493.

2Atlante della Cina, RUGGIERI, S. I., Miguel; LO SARDO, Eugenio, Roma, Istituto Poligrafico e Zecca Dello Stato: Libreria Dello Stato, 1993.

3Op. cit. p. 11

4São os seguintes os artigos publicados: History of the Mission in China at the end of the 16th Century and the Role of Miguel Ruggieri and Mateo Ricci, por Joseph SEBES e Jesús Lopez GAY; La Fonte Cinese delle Carte del Ruggieri, por Luciano PETECH; e La Cina nella Cartografia Europea dei Secoli XV-XVII, por Filippo BENCARDINO.

5Op. cit. pp. 35-40.

6Cf. op. cit. p. 14.

7O atlas de Lo Hung-hsien (1504-1564), inicialmente impresso em 1555, em quatro fascículos, compreendia 48 cartas sendo a primeira uma carta geral do Império, seguida das referentes às treze províncias da China, e das dos territórios dependentes de Pequim e de Nanquim. Cf. com os artigos de Luciano Petech, La Fonte Cinese delle Carte del Ruggieri, op. cit. pp. 41-44, e o de Theodore N. Foss, Uma Interpretação Ocidental da China -Cartografia Jesuíta, in "Revista de Cultura", IIa. Série, Macau, Outubro/Dezembro 1994, (21), pp.129-151.

8La Fonte Cinese delle Carte del Ruggieri, op. cit. pp.41-44.

9Foss, no artigo citado, na pág. 129, escreve: "Nos mapas chineses, o posicionamento dos pontos não era feito através da observação astronómica, mas sim pela medição das distâncias de ponto a ponto."

10Vitorino Magalhães Godinho dá-nos informação muito mais alargada quanto a estas obras:"Quanto à China, depois da primeira visão directa que nos dão as cartas dos cativos Cristóvão Vieira e Vasco Calvo, de 1524, é um outro cativo, anónimo, que em 1554 conta em Malaca a Enformação de alguas cousas acerca dos costumes e leis do Reyno da China, e Galeote Pereira, feito também prisioneiro (em 1549), que escreve um tratado sobre a China do sul, especialmente importante quanto àjustiça (...). O Tratado em que se contam muito por estenço as cousas da China do dominicano Frei Gaspar da Cruz (que utiliza Galeote Pereira) (...) foi o primeiro livro impresso na Europa sobre o Celeste Império. Descreve os costumes chineses, trata do chá, refere a Grande Muralha, trata do aproveitamento da terra, dos ofícios mecânicos, do vestuário, da administração pública, dos ritos e adorações (apesar da atitude negativa que perante eles assume); está a par da antiga expansão chinesa(...). No conjunto, um quadro perfeitamente válido e que por longas décadas não será ultrapassado". In Mito e Mercadoria, Utopia e Prática de Navegar, séculos XIII-XVIII, Lisboa, Difel, 1990, pp. 291-292.

11Foss no artigo já citado, a pág. 130 afirma que "O primeiro passo importante do processo europeu de produção do mapa da China foi o mapa feito pelo cartógrafo português Luís Jorge de Barbuda (1580), publicado no Theatrum Orbis Terrarum, de Abraham Ortelius (1527-1598), em 1584. (...)Lançou também as bases europeias da cartografia jesuíta da China, uma vez que, no mesmo ano, 1584, Ricci, que tinha chegado à China no ano anterior, produziu uma versão chinesa de um mapa-múndi europeu que havia levado consigo".

12Op. cit. pp. 45-60.

13Op. cit. p. 13.

14Cf. op. cit. pp. 33 e 55.

15A ele se refere em pormenor Rui Manuel Loureiro, ao afirmar: "A nova descrição da China, ao contrário do que já foi afirmado, marca um momento de total ruptura na representação cartográfica da China. Para além de ser a primeira carta europeia exclusivamente dedicada ao Celeste Império, é o mais antigo mapa ocidental a fornecer informações abundantes sobre as regiões do interior. (...) continha a localização aproximada das quinze províncias chinesas, dezenas e dezenas de topónimos, acompanhados de pequenos desenhos ilustrativos, um esboço muito alargado do sistema hidrográfico, e ainda uma delimitação clara dos limites terrestres da China. A cartografia portuguesa abandonava resolutamente a linha de costa, para se infiltrar pelos caminhos do interior, em busca de uma imagem mais realista da topografia do Império do Meio." in "A China de Fernão Mendes Pinto. Entre a Realidade e a Imaginação", artigo publicado na obra Estudos de História do Relacionamento Luso-Chinês, séculos XVI-XIX, Macau, IPOR, 1996, p. 164.

*Licenciado em História pela Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa.

desde a p. 5
até a p.