Imagem

O papel de Goano comércio internacional nos séculos XVI e XVII

Agnelo P. Fernandes*

Nos últimos anos, têm surgido em intervalos regulares investigações sobre a história de Goa, embora ainda haja muito por investigar.

Tal afirmação é feita com grande dose de certeza visto que há milhares de volumes de manuscritos em português que se encontram em diversos arquivos de Goa, Portugal e noutros lugares do Mundo, e que estão por consultar.

Goa sempre foi um grande centro comercial na Costa Ocidental da Índia. Durante o domínio português do Oceano Índico, Goa tornou-se na capital do "Estado da Índia ", a base do Sistema de Cartazes dos portugueses e o ponto de partida de muitas das suas viagens comerciais. Neste artigo, farei uma breve análise do funcionamento do Sistema de Cartazes de Goa e passarei de seguida a um pequeno levantamento das viagens comerciais feitas a partir dessa cidade, tentando apresentar a importância do seu papel de interligação com os centros internacionais do comércio do Oceano Índico.

Goa, por volta de 1500

Imediatamente antes da conquista de Goa pelos portugueses, este Território era gover-nado por Adil Shah de Bijâpur. Descrevendo a cidade muçulmana de Goa, Duarte Barboza   afirma: "A cidade era habitada pelos mouros, homens estrangeiros e respeitáveis e comer-ciantes ricos; havia também os gentis-homens e outros senhores, agricultores e homens de ar-mas. Era um lugar de comércio abundante e um excelente porto para o qual acorriam navios de Meca, Adem, Ormuz, Cambaia e Malabar. A cidade era grande, com bons edifícios e ruas vistosas, rodeada de muros e torres" (1). Da mesma forma, em 1511, Tomé Pires também descreve a grandiosidade de Goa. Chama-nos a atenção para o facto de Goa ser um grande cen-tro comercial onde o comércio terrestre de vários Estados do interior, conduzido por cara-vanas, encontrou o comércio marítimo, diri-gido "através de muitas naus que navegavam para muitas partes, sendo as naus de Goa sem-pre respeitadas e favorecidas em todas as par-tes". Os impostos que eram cobrados em Goa valiam por ano cerca de 400.000 pardaos (2). As viagens que Goa era capaz de organizar num ano, sem dificuldade, contrastavam com as que os muçulmanos do Suez não foram capa-zes de efectuar em 20 anos (3). O Dr. M. N. Pearson é de opinião que a anterior descrição de Goa, feita pelos dois escritores portugueses, está "influenciada pelo desejo de elevar a im-portância da conquista portuguesa da cidade" (4). Contudo, existem outros registos que fun-damentam as afirmações destes escritores. Se-gundo Ferishta, quando a notícia da conquista de Goa, em 1472, chegou aos ouvidos do sultão Bahamani, Muhamad Shah, este ficou tão ra-diante que organizou uma grande festa para ce-lebrar a vitória e ordenou que tocassem a mar-cha do triunfo durante sete dias (5). Goa ofere-ceu aos Bahamanis o acesso ao ocidente e uma importante posição no comércio marítimo, com ligação directa aos Golfos e Arábia. Esta conquista e os potenciais comerciais conse-quentes deram aos Sultões Bahamani uma van-tagem em relação a outros reinos do Decão.

As referências às caravanas despejando mercadorias em Goa de reinos distantes da Ín-dia não devem ser subestimadas. As caravanas eram um dos principais meios de transporte ter-restre na Índia. Francisco da Costa no seu "Re-latório sobre o Trato da Pimenta" realça como as caravanas de Malabar viajavam para o Im-pério Mogol até Bengala e ainda para Masuli-patão e Negapatão (6). Quando Sambhaji ata-cou Goa em 1683, as caravanas do comerciante principal de Bardês em Goa consistiam em 3.000 cabeças de gado que faziam 5 a 6 viagens de Goa para o Continente (7).

Cidade da Velha Goa (in "A India Portuguesa", A. Lopes Mendes, Lx. I. N. - 1886).

Goa era um grande centro comercial antes dos portugueses a conquistarem. Estava ligada a toda a costa ocidental através de frotas tripu-ladas por homens locais e com outros centros comerciais no ocidente do Oceano Índico. Esta cidade tinha uma situação privilegiada devido às suas características geográficas. Era o centro ideal onde os carregamentos existentes nos Es-tados da costa ocidental, do norte e do sul, se podiam reunir e através de frotas serem facil-mente expedidos para o interior; a mercadoria do interior podia ser transportada para Goa através de Sahyadris, para exportação. O co-mércio de cavalos, tão vital para o Estado no período em que a cavalaria era o elemento fun-damental do seu poderio, dominava o comércio de Goa. Diz-se que, para fomentar este tipo co-mércio, existiam várias concessões feitas a co-merciantes desta mercadoria quando os portu- gueses conquistaram Goa. Estes mantiveram o comércio e as concessões. Sempre que eram emitidas licenças a navios para os navios irem a Ormuz buscar cavalos, os portugueses exigiam depósitos aos navios para que estes voltassem a Goa (8).

Goa e o Sistema de Cartazes dos Portugueses

A chegada de Vasco da Gama ao Oceano Índico, em 1498, resultou no primeiro contacto directo da Europa cristã com os países do litoral deste Oceano. Os europeus tinham iniciado a colonização dos países do Oceano Índico. Os portugueses alegavam que o Oceano Índico era colónia sua, por o terem conquistado e desco-berto. De acordo com o seu pensamento, o facto de todos os países da região serem infiéis servia para fundamentar ainda mais tal alega-ção. O rei de Portugal proclamou-se "O Senhor da Conquista, Comércio e Navegação da Etió-pia, Arábia e Índia". Os portugueses começa-ram então a submeter às suas leis os indígenas que navegavam no Oceano Índico. Este sis-tema de leis foi denominado o Sistema de Car-tazes, tendo sido vigiado pela Armada.

Este sistema foi explicado pelo Dr. M. N. Pearson (9). Um breve esboço será apresen-tado aqui para realçar o papel de Goa no seu funcionamento. O Sistema de Cartazes foi um tipo de sistema de receitas desenvolvido pelos portugueses para governarem o seu novo Im-pério oceânico. Este sistema forçou todas as potências indígenas que desejavam navegar no Oceano Índico a obterem a permissão dos por-tugueses. Foi de tal forma engenhoso que não só manteve a soberania portuguesa nos mares mas sujeitou também todas as mercadorias transportadas por mar às taxas das alfândegas portuguesas.

A licença (escrita) que os navios indígenas tinham de comprar de forma a poderem nave-gar denominava-se Cartaz. Este documento re-feria o navio, os pormenores da tripulação, a rota da viagem e as regras a serem cumpridas. As regras excluíam certas mercadorias do mer-cado tradicional, que os portugueses consideravam monopólio seu; exigiam que as taxas refe-rentes às mercadorias transportadas pelo navio fossem pagas numa das alfândegas portuguesas e proibiam a presença de nacionais de países inimigos de Portugal a bordo dos navios. Qual-quer navio que fosse encontrado sem cartaz ou violasse as regras podia ser atacado e captura-do, bem como saqueado ou afundado em caso de oferecer resistência. Apenas os grandes na-vios viajando individualmente eram obrigados a ter Cartaz.

O Sistema de Cartazes funcionou em Goa desde que esta se tornou no principal centro dos portugueses no Oriente. Os comerciantes ou seus agentes na costa ocidental da Índia visi-tavam Goa com o intuito de comprar os Carta-zes para os seus navios. Os Cartazes para via-gens ao estrangeiro só podiam ser obtidos em Goa, enquanto que os Cartazes para as viagens ao longo da costa podiam ser conseguidos em qualquer dos centros portugueses mais próxi-mos. Com o obectivo de verificar o funciona-mento deste sistema, os portugueses organiza-ram diferentes Armadas. As Armadas mais im-portantes eram:

- A Armada do Alto Mar, a Armada do Mar Vermelho, a Armada do Golfo, a Armada de Malaca, as Armadas do Norte e do Sul e as Armadas locais tais como as de Diu, Cambaia, Malaca, etc..

Se algum navio fosse detectado a violar as regras do Sistema de Cartazes, seria tomado e aprisionado e levado para Goa para julgamen-to. Em caso de inocência seria libertado, caso contrário seria leiloado e vendido com toda a sua carga.

Geralmente, a maior parte dos governan-tes e comerciantes do subcontinente indiano aceitou o Sistema português de Cartazes. As-sim, no que dizia respeito às viagens marítimas, continuaram subordinados a Goa, pagando os seus impostos pelos produtos que transacciona-vam nas alfândegas portuguesas. Desta forma, a obediência à supremacia naval dos portugue-ses no Oceano Índico tornou-se numa forma de vida para estes governantes e comerciantes. Foi uma grande honra para os portugueses verem o embaixador de Akbar, o grande Aurangzeb ou outros governantes poderosos da Índia, du-rante os séculos XVI e XVII, visitarem Goa com o propósito de requererem os Cartazes.

Perante estes factos, não me é lícito con-cluir que a força das armadas portuguesas e a sua aceitação por parte dos governantes locais tenha levado à completa eficácia do Sistema de Cartazes. Contudo, a aceitação foi maior que a reprovação. É óbvio que o comércio de merca-dorias como as especiarias, cujo monopólio era reclamado pelos portugueses e que eram local-mente produzidas, podia ser efectuado pelos comerciantes hostis. Todavia, não se deverá concluir que o Sistema de Cartazes teve pouca ou nenhuma influência no Oceano Índico.

As observações do Prof. C. R. Boxer de que não se deveria afirmar "que a supremacia naval portuguesa do séc. XVI no Oceano Ín-dico foi constante e eficiente em toda a região" é correcta. O facto de Malabar e Atjah fornece-rem especiarias ao Mar Vermelho não pode ser negado. Estes dois estados eram inimigos dos portugueses e continuaram aliados dos turcos, os quais tinham controlado o comércio no Oceano Índico antes da chegada dos portugue-ses, tendo sido depois expulsos por estes. Tam-bém é verdade que os turcos e os gujaratis esta-vam envolvidos em Atjah - comércio do Mar Vermelho. Perante tudo isto, nenhum país de-safiou a soberania portuguesa no Oceano Índi-co. Eram os "Senhores do Mar". Compreende—se a impossibilidade de se fazer uma inspecção exaustiva dos transgressores, mesmo que esse fosse o desejo dos portugueses, devido à vasti-dão do Oceano. Além disso, a escassez das for-ças portuguesas tornava essas inspecções prati-camente impossíveis.

Alfândega de Nova Goa (in "A India Portuguesa" A. Lopes Mendes, Lx. I. N.-1886).

O principal resultado que se esperava ob-ter com a entrada em vigor do Sistema de Car-tazes não foi só o fracasso ou sucesso da gestão do comércio das especiarias no Mar Vermelho. Foi também assegurar que os navios locais, re-conhecendo a sua soberania através de trata-dos, da compra dos Cartazes e pagamento de impostos referentes às mercadorias transporta-das, pudessem efectuar as suas viagens sem so-bressaltos e lucrativamente. Excluindo as pri-meiras décadas do séc. XVI, os portugueses não conseguiram monopolizar a exportação de especiarias para a Europa. O Atjah - a ligação do Mar Vermelho e a exportação de especiarias por Malabares parece ser a razão principal para a renovação do comércio de especiarias para a Europa, via Mar Vermelho, em meados do séc. XVI (12). A entrada dos países da Europa do Norte no comércio oriental e mais tarde a as-censão dos Omanis, destruíu completamente a pretensão dos portugueses de monopolizar as especiarias. É também claro que os portugue-ses conduziram livremente este comércio atra-vés de navios de Carreira durante todo o séc. XVI. Além disso, os nativos bem como os co-merciantes independentes portugueses eram li-vres de negociar na zona do Mar Vermelho ou-tras mercadorias, nos termos das regras do Sis-tema de Cartazes.

As potências locais que fizeram acordos políticos com os portugueses, aceitando aberta-mente o Sistema de Cartazes, reconheciam a soberania dos mares pelos portugueses e com-pravam os seus Cartazes. Contudo, à medida que os anos passavam, foram sendo descober-tas várias falhas no Sistema.

Os processos de evasão aumentaram e passavam multas vezes à inspecção das patru-lhas da armada portuguesa. Excluindo este as-pecto, é evidente que os portugueses continua-ram a aplicar este sistema na parte ocidental do Oceano Índico, a partir de Goa, até à primeira metade do séc. XVIII (14).

O Comércio Marítimo a partir de Goa

O comércio marítimo a partir de Goa, no-tável já antes da chegada dos portugueses, atin-giu o apogeu quando Goa se tornou a capital do Estado Português da Índia. Albuquerque ti-nha-a transformado num entreposto comercial de grande importância. Em 1519, foi-lhe conce-dida a carta de previlégios quase iguais aos que Lisboa tinha (15).

À medida que o comércio convergia para Goa através das viagens comerciais, os merca-dores da Arábia, Arménia, Pérsia, Cambaia, Bengala, Pegu, Sião, Malaca, Java, Molucas, China e outros países (16), atraídos pelos bai-xos preços devido à abundância de mercado-rias, acorreram para Goa (17). O resultado vi-sível do afluxo e da riqueza deste comércio foi o nascimento da "aúrea Goa", que veio a ser considerada como um dos centros de riqueza mais famosos do Mundo de então. Goa atingiu o apogeu da sua glória durante as vice-realezas de D. João de Castro e de D. Luís de Ataíde.

A economia portuguesa no Oriente, que funcionava a partir de Goa, baseava-se nas via-gens comerciais, e era reforçada pela imposição do Sistema de Cartazes. Existiam três tipos de viagens comerciais organizadas pelos portu-gueses:

- A Carreira da Índia (Lisboa-Índia-Lis-boa), as Cáfilas e as viagens inter-portos. Estas viagens ligavam Goa aos centros mais conheci-dos do comércio do Oceano Índico.

Parece-nos que ainda está por realizar um estudo exaustivo destas viagens. Autores como C. R. Boxer, N. M. Pearson, K. S. Mathew, M. A. P. Meilink, Roelofsz, V. Magalhães Go-dinho e outros (18), deram indubitavelmente uma grande contribuição com os seus traba-lhos. Na minha tese de doutoramento, tentei elaborar um estudo detalhado sobre o aspecto deste comércio que envolvia algumas das mer-cadorias originárias do império Mogol. Estas viagens, não só recebiam directrizes de Goa, conforme ordens reais, como também contri-buíam para Goa com uma percentagem fixa das taxas no comércio nelas envolvido, em quase todos os centros portugueses.

O primeiro tipo de viagem organizada pe-los portugueses no Oriente, foi viagem de Car-reira. A primeira destas viagens (1497-1498—1499) pode ser considerada como um feito in-comparável conseguido pelos portugueses. O conhecimento da geografia do Mundo tinha testemunhado uma revolução. O Oriente en-contrara o Ocidente no Oceano. A primeira rota comercial oceânica entre o Ocidente e o Oriente foi dessa forma conseguida. Esta des-coberta destruíu o monopólio da rota terrestre através dos centros italianos, do domínio islâ-mico-afro-asiático. As mercadorias orientais, que passaram a chegar à Europa através desta rota marítima, faziam concorrência às que eram transportadas por terra, especialmente no que se referia a preços. Os portugueses tive-ram êxito, pois conseguiram fazer escassear as especiarias na rota terrestre, pelo menos du-rante as primeiras décadas do séc. XVI (19). Embora os portugueses não tenham sido tão bem sucedidos neste sentido como o foram as Companhias em anos anteriores, o início da queda da rota do Levante estava para breve.

Os navios da Carreira (20) eram geral-mente carregados em Goa, desde que, mais tar-de, se tornou na Metrópole dos portugueses no Oriente. Desta forma, Goa pôs-se em contacto directo com todos os centros e comerciantesque forneciam cargas para estes navios ou que negociavam as cargas por eles trazidas.

VISTA PANORÂMICA DA VELHA CIDADE DE GOA

1. Dangim 2. Igreja de Sta. Luzia 3. Igreja de N. Sra. do Monte 4. Hospital de S. Lázaro (ruínas) 5. Igreja de S. Thomé (ruínas) 6. Ruínas da igreja e colégio de S. Paulo 7. Ruínas do Convento das Carmelitas 8. Ruínas do Convento de S. Domingos 9. Forca 10. Ruínas da Alfândega 11. Igreja e Convento de S. Caetano 12. Arco da Conceição 13. Ruínas do Palácio dos Vice-Reis 14. Cais e arco dos Vice-Reis 15. Ruínas do Senado 16. Ruínas do Cárcere 17. Ruínas da Inquisição 18. Sé e Palácio do Arcebispo 19. Igreja e Convento de S. Francisco 20. Três Igrejas e casas da Misericórdia 21. Açougue 22. Pelourinho 23. Bazar 24. Ruínas do hospital da cidade 25. Ruínas da igreja da Trindade 26. Ruínas da igreja e convento da Cruz dos Milagres 27. Ruínas do priorado da Luz 28. Igreja e casa do Bom Jesus 29. Convento de S. João de Deus 30. Colégio do Populo (ruínas) 31. Fonte de Banguenim 32. Ruínas do Convento de S. Agostinho 33. Capela de St. António 34. Ruínas do Colégio de S. Roque 35. Mosteiro de Santa Mónica 36. Ruínas do priorado do Rosário 37. Capela de Sta. Catharina 38. Ruínas do Aljube 39. Ruínas do grande hospital 40. Arsenal 41. Colégio de S. Boaventura 42. Forca de Tipeti 43. Pirâmide geodésica.

(in "A India Portuguesa" A. Lopes Mendes, Lx. I. N. - 1886).

O centro principal da rota entre Goa e Lis-boa era Moçambique, onde os navios se abaste-ciam de alimentos, água, etc., para o resto da viagem (21). Frequentemente, os capitães dos navios tinham ordens para não se aproximarem de portos que não fossem os mencionados e para seguirem directamente para Lisboa (22). Assim que estas viagens comerciais se torna-ram regulares, Goa tornou-se no centro onde os comerciantes que negociavam através da Carreira estabeleceram as suas agências (23).

As especiarias eram a mercadoria princi-pal dos navios da Carreira, com origem no Oriente, no século XVI. No século seguinte, os europeus do norte acabaram com o monopólio português, capturando as áreas de fornecimen-to das especiarias. Este facto alterou o tipo de carga dos navios da Carreira. Ainda que a pi-menta tenha continuado a constituir grande parte da carga, o sal, diamantes, têxteis, almís-car, etc., tornaram-se mais importantes no séc. XVII (24).

Os comerciantes de outros países da Eu-ropa deslocavam-se a Lisboa para comprar e vender, quando os navios de Goa ali chegavam. Desta forma, a fama de Goa espalhou-se por toda a Europa. Era semelhante o que acontecia em Goa quando os navios vindos de Lisboa ali ancoravam. A distribuição e o fornecimento das cargas dos navios de Carreira estavam in-terligados com as cáfilas e as viagens entre por-tos.

Contudo, para além das cáfilas regulares ou viagens entre-portos, eram organizadas Ar-madas particulares ou viagens especiais para se conseguirem abastecimentos para os navios da Carreira; por exemplo, uma armada especial seria enviada para os portos de Canara para se abastecer de pimenta, no caso das cáfilas regu-lares se atrasarem e os navios terem de partir antes das monções. Também, no séc. XVII, os mercadores iam a Bengala por causa dos carre-gamentos de sal ou os negociantes em diaman-tes recebiam ordens para abastecerem os na-vios desta mercadoria (25). Todas estas viagens e transacções comerciais tornaram Goa num pólo de atracção internacional.

Veremos a seguir o papel de Goa nas via-gens entre portos. Pode-se ter uma ideia de como Goa se ligou aos diferentes centros do Oceano Índico através das curtas descrições dessas viagens por Pedro Barreto Rezende e António Bocarro (26). Contudo, é necessário fazer uma investigação mais profunda sobre es-tas viagens para se ter uma imagem mais clara do comércio envolvido. As poucas páginas das descrições não são suficientes para elucidar os longos séculos de comércio entre Goa e estes centros. Considero que, se não for exagero, as fontes de informação para tal trabalho podem encontrar-se em manuscritos portugueses.

Parece que depois de a metrópole dos por-tugueses ter sido mudada de Cochim para Goa, em 1530, os portugueses começaram a organi-zar as viagens mercantis numa base regular para diferentes centros do Oriente. Tais via-gens não eram conduzidas por um único navio, mas sim por vários. Devem ser diferenciadas das viagens oferecidas, as Mercas (Prémios, Recompensas), a indivíduos ou como privilégio de possuírem um certo estatuto, como o de ca-pitão. Neste último caso, um só navio poderia tentar efectuar a viagem oferecida. Contudo, em qualquer dos casos, os navios envolvidos nas viagens entre portos eram obrigados a se-guir a rota determinada; só podiam visitar os portos autorizados na viagem; só podiam nego-ciar as mercadorias permitidas e tinham de obe-decer às regras do Sistema de Cartazes, tais como o pagamento de impostos alfandegários.

Goa tinha ligações portuárias com a África Oriental através de duas rotas, uma para Moçambique e outra para a Costa Suaili (Mom-baça); na região do Golfo Pérsico, até 1622, a rota era para Ormuz, a qual se prolongava até Basra. Após a queda de Ormuz, Muscate tor-nou-se o novo centro. A partir de 1650, quando os Omanes capturaram Muscate, os portugue-ses operavam da sua feitoria em Bandar Kung (Congo); os portugueses tinham também uma viagem comercial a. Sindi. Possuíam uma fei-toria em Tatta, a qual foi um grande centro co-mercial no império Mogol (27). Os navios que visitavam Sindi, iam também a Muscate, Bah- rain e Basra (28), mas regressavam a Goa via Sindi. Antes do domínio dos holandeses na costa Oriental do Oceano Índico, os portugue-ses efectuavam viagens comerciais de Goa a Malaca, China, Manila, etc.; Goa estava tam-bém ligada a Bengala pelas viagens. Contudo, a maior parte do comércio para Bengala esta-va nas mãos dos comerciantes independen-tes (29).

As viagens entre portos, envolvendo um enorme capital e grande variedade de mercado-rias, trouxeram grande prosperidade ao Estado da Índia. No séc. XVII, estas viagens eram "de longe muito mais prósperas que as viagens da Carreira" (30). Goa teve vários benefícios com estas viagens mercantis. Em primeiro lugar, as viagens dirigidas de Goa angariavam impostos substanciais para as suas alfândegas, para além de inundarem o mercado de Goa com quase todo o tipo de mercadorias de todas as zonas do Oceano Índico. Recebia 2% e 1% dos impostos alfandegários cobrados em todos os outros cen-tros do Estado da Índia relativamente às via-gens conduzidas a partir daí. O produto dos im-postos deveria ser aplicado em diversas obras (31). Acima de tudo, quando os capitães e ou-tros oficiais envolvidos nas viagens voltavam ri-cos e com muito capital, ofereciam parte dos seus lucros aos menos privilegiados e viviam sumptuosamente, dando, desta forma, um to-que de opulência a Goa (32).

Na sexta década do século XVII, o Estado da Índia tinha sido reduzido, perdendo, da forma que havia ganho, a maior parte dos seus centros lucrativos. O comércio sofreu, os lucros foram reduzidos e Goa reduzida à penúria. Contudo, a situação foi parcialmente reme-diada com o renascimento das viagens mercan-tis para a África Oriental (33).

O terceiro tipo de viagens mercantis a par-tir de Goa, organizadas pelos portugueses, en-volvia as pequenas embarcações dos mercado-res locais. De acordo com uma proclamação dos portugueses, nenhuma embarcação de pe-queno calado podia navegar independente-mente ou sozinho ao longo da costa ocidental da Índia. Eram obrigados a movimentarem-se em cáfilas sob a orientação da armada portuguesa (34). As cáfilas, por conseguinte, como as caravanas em terra, eram grupos de peque-nas embarcações costeiras que negociavam ao longo da costa ocidental da Índia sob a direcção da Armada portuguesa. As embarcações que faziam parte das cáfilas não eram obrigadas a possuírem cartazes, mas foram forçadas a obe-decer a este sistema assim como a seguir todas as regras pelo mesmo exigidas (35).

Arco dos Vice-Reis.

O ponto de partida das cáfilas era em Goa. Todos os navios que se associavam às cáfilas juntavam-se no rio de Goa onde as suas cargas eram avaliadas e os impostos pagos. Após este processo, a cáfila podia partir na hora determi-nada sob a direcção do capitão da Armada que a acompanhava.

As cáfilas eram divididas de acordo com a direcção em que navegavam. Assim, as que na-vegavam para o norte de Goa eram referidas como as "cáfilas do norte" e as que se moviam para o sul eram as "cáfilas do sul". As primeiras ligavam Goa aos centros costeiros até Sindi, e a última até ao Cabo Camorim, Ceilão e ainda além do Cabo até Coromandel. Não tenciono fazer uma abordagem exaustiva do sistema das cáfilas, contudo deve-se ter em mente a impor-tância que um estudo detalhado sobre elas, te-ria. De acordo com o Prof. Ashin Das Gupta, o estudo da frota da costa indiana tem sido negli-genciado. Ele demonstra a importância desse estudo para o Historiador da economia da Ín-dia. Todavia, pensa que esta negligência deriva do facto de as fontes à disposição do investiga-dor não servirem normalmente para este tipo de inquérito (36). Um estudo detalhado sobre as cáfilas baseado nas fontes portuguesas pode satisfazer, até certo ponto, a questão acima re-ferida.

Retomando a nossa questão, durante a florescente Goa portuguesa o número de em-barcações a remos das cáfilas que se reuniam no rio de Goa excedia, por vezes, 500 (37). Como se vê, a resposta dos comerciantes locais a estas viagens comerciais foi muito grande. Pode-se imaginar a abundância de mercadorias em Goa, após o regresso bem sucedido das cáfilas.

Eram estes os três tipos de viagens mer-cantis que ligavam Goa a muitos dos centros do mundo conhecidos nessa época. Goa tornou-se num grande entreposto a partir do qual as mer-cadorias destes centros eram transportadas pe-las cáfilas, os navios das viagens da Carreira e entre portos.

Goa foi a metrópole do império português no Oriente. Os impérios nascem e morrem por-que se baseiam normalmente na força. Os por-tugueses usavam a força da sua Armada para impor o Sistema de Cartazes no Oceano Índico. O Sistema de Cartazes facilitou o funciona-mento das viagens mercantis. Quando, no fim do século XVII, as frotas do norte da Europa desafiaram as armadas portuguesas, não po-dendo estas contrariar esse desafio, todo o sis-tema foi afectado. Durante os primeiros ses-senta, anos desse século, o império português foi sendo desmembrado, os fortes iam-se per-dendo aos poucos assim como os privilégios. No entanto, o seu Sistema de Cartazes e as via-gens mercantis, conquanto grandemente muti-ladas e funcionando a partir de Goa, continua-raro a ser eficazes na zona ocidental do Oceano Índico. Nos finais do século XVII, Goa era so-mente uma sombra do seu passado, com o res-plendor da abundância perdida e a decadência da deserção e arrastada pobreza (38).

A criação de uma Companhia era uma vãtentativa de revitalizar o comércio português no Oriente (39).

O sol começara a pôr-se no império português e Goa encontrava-se quase no crepúsculo.

NOTAS

(1)Duarte Barboza, A description of the Coast of East Africa and Malabar in the beginning ofthe 16th cen-tury. (Trad. por H. E. J. Stanley) Londres, 1866, p. 74, conforme citação de J. N. da Fonseca, An Histo-rical and Archaeological sketch o f the city o f Goa. Bombaim, 1878, p. 132.

(2)A Suma Oriental de Tomé Pires. A. Cortesão (ed) Londres, 1944, pp. 215-217.>

(3)Ibid. p.214.

(4)Coastal Western India, Nova Deli, 1981 (consultar capítulo li sobre "O Porto da cidade de Goa") p. 69.

(5)M. K. Ferishta, History o f the Rise of Mehamedan Power in India (trad. por J. Brigas), 4 vols. Calcutá, vol. II, p. 485.

(6)Documentação Ultramarina Portuguesa, vol. III, Lisboa, 1963, pp. 295-379.

(7)Livro de Cartazes..., Biblioteca da Ajuda, Lisboa, cód. 51-VII-23, Fl. 296, Conselho de Fazenda, Ar-quivos Históricos de Goa (= AHG), Ms 1127, fl.154.

(8)Provisões, Alvarás e Regimentos, (1515-1526), AHGMs.3027, fl.20-20v.

(9)Merchants and rules in Gujarat, Deli, 1976, capítulo I I. Foquei muitos outros pontos novos na apresenta-ção da minha tese intitulada "Portuguese and the Mughals, 1627-1707", Universidade de Bombaim, 1987, (capítulo II).

A partir de 1630, no império Mogol, os mercadores foram autorizados a comprá-los em Damão. A. P. Fernandes, "Rustom Manock and the Portuguese at Surat"in IHC(1981) pp. 224-32.

"Uma nota sobre as reacções portuguesas ao renas-cimento do mercado de espécies no mar Vermelho e o nascimento do Atjeh, 1540-1600". Journal of South East Asian History, 1969, p. 415.

(12)C. R. Boxer, Ibid., pp. 415-428; A. Das Gupta, "Os mercadores Gujarates e o comércio no mar Verme-lho" in Age of Partnership, Europeans in Asia be-fore Dominion, Blair B. Bling e M. N. Pearson, Ho-nolulu, 1979.

V. M. Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, 4 vols., Lisboa, 1982, vol. III, pp. 129-131.

(14)Livro de Cartazes (1704-1766), AHG: Ms. 1363; M. A. P. Meilink Roelofsz, "As estruturas para o co-mércio na Ásia nos séculos XVI e XVII", in Mare Luso-Indicum, IV, Panis, 1980, p. 5., consultar tam-bém o capítulo II da minha tese.

(15)Raquel S. de Brito. Goa e as praças de Norte, Lis-boa, 1966, p. 96-97.

(16)Van Lisnschoten conforme citação de David Lopes, Expansão da Língua Portuguesa no Oriente nos Sé-culos XVI, e XVIII, Lisboa, (2a edição), p. 6.

(17)M. A. P. Meilink - Roelofsz, Asian Trade andEuro-pean influence in the Indonesian Archipelago be-tween 1500 and 1630, Haia, 1962, p. 185.

(18)Prof. N. Steensgaards nota que "Os portugueses co-bravam impostos e o Estado da Índia era uma insti-tuição que redistribuia". The asian Trade Revolu-tion of the Seventeenth Century, Londres, 1973, p. 86. Contudo, foi-lhe dada uma resposta apropriada pela Sra. M. A. P. Meilink Roelofsz no seu artigo "As estruturas para o comércio na Ásia nos séculos XVI e XVII" in Mare Luso-Indicum, IV, Paris, 1980, p. 1-43.

(19)V. Magalhães Godinho, op. cit., vol. III, p. 81-110; K. S. Mathew, Portuguese Trade with India in Six-teenth century, Nova Deli, 1983, pp. 200-225.

(20)Os navios podiam ser Naus, Navetas, Galeões, Ca-ravelas.

(21)C. R. Boxer, "A ilha de Moçambique e a Carreira da Índia", Studia VIII, Lisboa, 1961, pp. 95-132; e "A ilha de Moçambique como estação intermediária para os portugueses da Índia Oriental". Mariner's Mirror, XLVIII, Londres, 1962, pp. 3-18; Por vezes, os navios da Carreira também paravam no Brasil e Angola. Registo de cartas Régias para a Índia (1642 —78), Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, Ms. E, VIII, p. 10, no. 1221, fl. 297v.

(22)Livro dos Segredos N° 1 (AHG), no seu sumário, in-cluído no Boletim da Filmoteca Ultramarina Portu-guesa, N° 6, tem "Regimentos" diferentes para os capitães dos navios que iam para Lisboa entre 1634 e 1647; consultar também Alberto Iria, Da Navegação Portuguesa no Índico no Século XVII, Lisboa, 1973, p. 53-58.

(23)Para os diferentes mercadores Europeus que esta-vam financeiramente envolvidos na Carreira, con-sultar K. S. Mathew, op. cit., pp. 157-69.

(24)Relativamente às mercadorias de que constituiam a carga da Carreira, no início do séc. XVI, consultar N. Steensgaard, "O regresso das cargas da Carreira no séc. XVI e início do séc. XVII", documento apre-sentado no Seminário Internacional Indo-Portu-guês-III (1983); K. S. Mathew op. cit., pp. 113-156; e nos séculos XVII e XVIII, Livro das cartas gerais que vão para a Índia e vêm de lá, Ms 47, Arquivo Ge-ral da Alfândega de Lisboa, publicado na Documen-tação Ultramarina Portuguesa, vol. IV, A. da Silva Rego, (ed.), pp. 1-409; AHG, L. de Estanco; Para cravo-da-índia a partir de 1621, consultar Museu Britânico (Londres), Papéis Vários, colecção Eger-ton, Ms 1335, fl. 159v.

(25)Para o comércio dos portugueses, de sal e diaman-tes, lero capítulo VII da minha tese.

(26)Barreto Resende, B. N. Ms 140 illuminados, Biblio-teca Nacional, Lisboa; António Bocarro, "Livro das plantas de todas as fortalezas, cidades e povoações do Estado da Índia Oriental, in A. B. de Bragança Pereira, ed., Arquivo Português Oriental, livro 4, vol. 2, pt. 1-3; o relatório de Bocarro sobre estas via-gens entre portos é resumida pelo Dr. T. R. D'Souza em "Goa base do comércio marítimo português no início do séc. XVII". The Indian Economic and So-cial History Review, XII, 1976, pp. 433-42; consultar também C. R. Boxer, Portuguese India in the Mid. Seventeenth Century, Deli, 1980, pp. 43-46.

(27)Irfan Habib, The Atlas ofthe Mughal India, Deli, 1982, p. 16.

(28)Livro de Mercês Gerais, (AHG), vol. III, fl. 287v.

(29)O papel destes comerciantes, no que diz respeito ao comércio de sal, foi analisado pormenorizadamente no cap. VII (Viagens mercantis) da minha tese.

(30)C. R. Boxer, op. cit. p. 42.

(31)Para mais pormenores, consultar Leis, Alvarás e Provisões, Biblioteca da Academia das Ciências (= BAC), Lisboa, Ms. a-98 fl. 9v-10; Senado de Goa, AHG Ms 7747, fl. 4; e Cartas da Junta do Comércio de Moçambique, AHG, Ms. 832, fl. 30v.

(32)Carta da Câmara de Goa ao Rei, 14.10.1686, Cartas dos Governadores e Reis de Portugal (1676-1708), AHG, Ms. 7865, fl. 61 v. O Prof. C. R. Boxer afirma que a maior parte dos lucros foram destinados à construção e manutenção dos magníficos edifícios na "áurea Goa". Para além das grandes somas dadas pelos fidalgos portugueses às suas dançarinas india-nas (bailadeiras), A Fortaleza de Jesus e os Portu-gueses em Mombaça, Lisboa, 1960, p. 51.

(33)Carta da Câmara de Goa ao Rei, op. cit., fl. 61; E, Axelson, Portuguese in South East Africa (1600—1700), Joanesburgo, 1960, p. 145; ver o meu artigo "A Companhia Mercantil Portuguesa e o seu im-pacto no comércio de Diu-Moçambique (1694-99)" in Purabilek Puratatvah vol. V (1986) p. 16.

(34)Os gastos com a armada que escoltava a cáfila de câ-mara rondavam 20. 000 xerafins por ano.

(35)O Dr. M. N. Pearson focou as cáfilas em relação ao Sistema de Cartazes português no seu trabalho Mer-chants andrulers of Gujarat, pp. 45-47; Este assunto foi mais aprofundado no capítulo VII da minha tese.

(36)"Mercadores indianos e a região ocidental do Oceano Índico: O Início do séc. XVII" Modern Asian Studies, 19.3. (1985) pp. 483.

(37)Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa, Ms. Tomo III E, fl. 21; Em 1678, a cáfila do norte era constituída por mais de 100 navios. BAC, Lisboa, Ms. A-500, Segunda-feira, 2 de Janeiro, 1670 (fólios não numerados).

(38)Cartas da Câmara de Goa ao Rei, queixando-se da pobreza da cidade de Goa. Consultar AHG, Ms. 7865, fl. 61v, etc.

(39)A. P. Fernandes "A Companhia Mercantil Portu-guesa e o seu impacto no comércio de Diu" 1694-99, op. cit., pp. 15-27.

*Dout. História pela Univ. Bombaim; investigador--bolseiro da Fund. C. Gulbenkian.

desde a p. 38
até a p.