História Diplomática

GOA-MACAU: o elo vital do Império

Benjamim Videira Pires, S. J.*

No prefácio à edição chamada crítica da "Peregrinação" (1), António José Saraiva distin-gue dois aspectos e duas cidades portuguesas, no Oriente: Goa, a capital militar, administrativa e religiosa, que mantinha e controlava para o Rei de Portugal o monopólio do comércio marítimo entre o Oriente e a Europa, de um lado; e Macau, "fundada em espaço deserto como cidade livre por mercadores aventureiros portugueses, em meados do século XVI e que só no século XIX vem a ser integrada no Estado Português", do ou-tro lado.

Várias meias-verdades se encerram nesta afirmação, mas, tomada em conjunto, a tese é fal-sa.

No Golfo de Bengala, nomeadamente em Hugli, Sanduípa, Siriam, Sião (Tailândia) e Bir-mânia, viviam, desde princípios do século XVII, é certo, vários milhares de aventureiros portugue-ses, à margem da autoridade central do Vice-Rei da Índia. Foi esta uma das principais causas do en-fraquecimento do nosso esforço nacional na Ásia.

Macau, porém, embora se ressentisse, na sua fundação e consolidação, do individualismo dos navegantes e comerciantes portugueses com a China e Japão, principiou a ter uma vida política, social e religiosa cada vez mais unida a Goa, desde o seu nascimento, em 1554, com o tratado ou "assentamendo" político-comercial do capi-tão-mor das viagens Goa-Japão, Leonel de Sou-sa. Desde o início, pois, o já em 1564 (senão an-tes) baptizado "Porto do Nome de Deus" foi go-vernado pelo "capitão de terra", que era o que ar-rematava e comprava em Goa a viagem de Goa--Malaca-Macau-Nagasaqui (ida e volta).

O primeiro "capitão de terra" foi Francisco Martins que, em 1555, aportou com 5 galeotas (nas quais muito provavelmente chegava Luís de Camões) em Lampacau. A partir do primeiro nú-cleo de 900 portugueses que, em 1557, residem na península, organiza-se gradualmente a Cidade--República, sempre debaixo da autoridade de Goa, repetimos.

A diocese separa-se da jurisdição de Malaca e funda-se em 1576. O Senado, à semelhança do governo das duas cidades francas do Japão, Sakai e Hakata (Fukuoka), é eleito pelas autoridades civis e religiosas, em 1583, e confirmado, logo a seguir, pelo Vice-Rei da Índia. A constituição do Senado é a seguinte: 6 Vereadores (entre os quais dois Ouvidores ou Juízes ordinários, cujo parecer era decisivo óbviamente, em assuntos legais, co-mo a nomeação de nova mesa), um Procurador ou Chefe do Executivo e três Vereadores "do mês", alternadamente. Este Senado detinha o po-der político, económico e administrativo; e o "ca-pitão de terra" e, depois de 1623, o "capitão-ge-ral", somente tinham voz vinculativa em assuntos militares e de relações estrangeiras, com aqueles relacionadas. Mais: A ronda ou "ordenança" da cidade, dia e noite, composta, desde 1719, por 3 casas fortes (ou quartéis) nos bairros principais e 21 praças, dependia directamente do Senado, ex-cepto na formalidade de ir receber o santo-e-se-nha do "capitão-geral".

Esta quase omnipotência do Senado, que muito se prestigiou, em 1580, com não arriar a bandeira portuguesa perante os chineses e os es-tranhos, merecendo-lhe de D. João IV o epíteto honorífico de "não há outra mais leal", manteve-se até 1845, quando o Governador Soares An-drea (o primeiro de direito e de facto), sob ordens de Lisboa, reduziu o glorioso organismo à simples condição duma câmara municipal. D. Maria I ainda tentou antes modificar a situação, durante poucos anos, mas as resistências de macaenses e chineses obrigaram-na a voltar ao regime ante-rior.

E diga-se a verdade que o Leal Senado de Macau cumpriu nobremente a sua missão de en-grandecer e preservar a presença de Portugal no Extremo Oriente, através de todas as dificuldades e dos maiores perigos.

A linha comercial entre Macau e Goa reve-lou-se vital para a preservação do Império Portu-guês na Ásia, pois dela procediam as matérias-primas (ferro, aço, espadas, artilharia, sedas e porcelanas, além de outras), para a manutenção das fortalezas, disseminadas principalmente pela costa do Coromandel, Conkan, Gujarate, Emira-dos Árabes, Ormuz e Costa Oriental da África. As fundições e fábricas de pólvora do Chunam-beiro, com fundores do calibre dos Bocarros e Manuel Cruz, auxiliaram mesmo as campanhas da Restauração de Portugal metropolitano.

Os Serviços de Saúde (hospitais e farmácias) e de Educação germinaram e frutifi ciaram, até hoje, à sombra da Igreja. Eles aí estão a atestar uma presença secular e actual.

Caponesas de Korlay/Chaúl. A saia-calção subida na perna é distintivo social das mulheres cristãs.

Igreja de S. Francisco, um dos mais imponentes monumentos de Goa.

As fortalezas e igrejas testemunham tam-bém eloquentemente o nosso glorioso passado. Desde o primeiro bispo residencial, D. Leonardo de Sá, a diocese de Macau tomou parte nos Con-cílios de Goa, a sua metrópole eclesiástica.

Vários macaenses se distinguiram na Índia, como Lopo Sarmento de Carvalho, almirante do Norte, e os arcebispos Galdino e Costa Nunes.

Foi sobretudo depois da conquista de Mala- ca, em 1641, que Macau se ergueu mais alto, como o único baluarte de Portugal no Extremo Oriente.

E agora, que o Sueste Asiático e toda a Ásia adquiriram, de novo, a importância antiga, como posição estratégica e fonte de matérias-primas, sem falar já da mão-de-obra e dos imensos merca-dos de consumo, na política e economia mun-diais, a Macau está seguramente reservado um papel preponderante, nesse contexto. Assim, congregando novamente todos os nossos valores e esforços, saibamos aperceber-nos dos sinais dos tempos e unir-nos mais uma vez, para bem da nossa cultura e para bem do mundo todo.

Ao escol intelectual da Índia culturalmente Portuguesa dirijo uma sentida saudação e um apelo sincero para a união e cooperação com Ma-cau, neste sentido.

Os Impérios passam, mas as ideias e os fac-tos permanecem.

(1) Fernão Mendes Pinto, "Peregrinação e Outras Obras", texto crítico, prefácio, notas e estudo por António José Saraiva; Sá da Costa Editora, Lisboa, 1a ed. 1964. ps. XIII e XIV.

Igreja Matriz, Goa (in "A India Portuguesa" A. Lopes Mendes, Lx. I. N.- 1886).

*Lic. em Literatura portuguesa e Filosofia (Univ. Lisboa); orientalista e investigador da história por-tuguesa no Oriente e da Missão Jesuítica na Ásia; Governador da International Association ofHisto-rians of Asia.

desde a p. 3
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