Lusíada

O PAPEL DO CRIOULO MACAENSE NA CONSTRUÇÃO DE UMA ETNICIDADE SIMBÓLICA

Maria Isabel Tomás*

Das três comunidades em presença no complexo tecido social do Macau de hoje, a comunidade dita macaense coloca, na sua análise, questões que para um sociolinguista se revestem de particular acuidade: esta é uma comunidade que ao longo da sua história se atribui (e lhe é atribuída por outros) uma dupla e quase contraditória identidade étnica — os macaenses definem-se como portugueses por um lado no contexto comunitário global do território, como filhos da terra por outro, assumindo e reclamando face aos portugueses metropolitanos em presença, uma diferença cuja profundidade e multiplicidade de marcadores nos leva a atribuir-lhes a etiqueta de grupo étnico. Esta dupla identificação étnica correspondeu, historicamente, no plano da língua. à ocorrência simultânea de duas variedades linguísticas autónomas, como expressão da comunidade, o português metropolitano e o crioulo local, por uns chamado de "patois", por outros de "dialecto" e pelos membros da comunidade designado de "lingu makista". As duas variedades descrevem, ao longo do tempo, um percurso entrelaçado na sua função de vectores de auto-identificação da comunidade, ora confundindo-se uma com a outra (o crioulo visto como uma forma do português), ora assumindo-se uma delas (o crioulo) como diferente e como um dos sinais de etnicidade macaense. Esta ambiguidade na definição de um dos vectores fundamentais da identidade de um grupo — a língua resulta, quanto a nós, das pulsõescontraditórias de uma dupla filiação étnica — a portuguesa e a Macaense. A sua oscilação histórica, culminando na extinção da variedade crioulo está intimamente ligada às alterações sociais, políticas e económicas que em momentos particulares alteraram as relações de força entre as três comunidades, levando a comunidade macaense a identificar-se prioritariamente como macaense, ou como portuguesa. O objectivo deste trabalho é procurar algumas evidências não só dessa dupla etnicidade, tanto do ponto de vista dos processos de construção interna como da atribuição externa de uma etiqueta étnica, como do jogo de forças entre as duas identidades, em particular no aspecto linguístico.

A relação entre língua e identidade estabelecida nestes termos, e no contexto social particular em que se insere a comunidade macaense, exige algumas considerações prévias sobre os conceitos de etnicidade e o conceito de variedade linguística utilizados neste trabalho.

Edwards (1977: 254) define etnicidade como a sense of group identity deriving from real or perceived common bonds such as language, race or religion ("um sentido de identidade de grupo derivado de laços comuns, reais ou entendidos como tal, como a língua, a raça ou a religião"). Esta definição de etnicidade, baseada apenas num critério da existência de laços comuns tais como a religião, a raça ou a língua, é no entanto demasiado geral, podendo mesmo aplicar-se, em muitos casos, e a um nível mais lato, a identidade nacional. Nada nos diz também sobre o peso relativo de cada um dos laços comuns na construção da identidade de grupo. Isajiw (1980) considera dois critérios essenciais: a partilha de uma mesma cultura e, um pouco circularmente, a descendência num grupo que se auto identifica e/ou é identificado por outros como tal.

Ethnicity refers to an involuntary group of people who share the same culture or to the descendants of such people who identify themselves and/or are identified by others as belonging to the same involuntary group (p. 241).

("A etnicidade refere-se a um grupo involuntário de pessoas que partilha a mesma cultura, ou aos descendentes de pessoas que se identificam entre si e/ou são identificados por outros como pertencendo a um mesmo grupo involuntário. ")

A definição proposta por Isajiw tem a vantagem de incluir no grupo étnico aqueles que, sem possuírem uma ascendência comum, se identificam com outros pela partilha dos comportamentos e valores que dão conteúdo ao grupo — a cultura.

Barth (1969) desenvolve o conceito de linha de demarcação entre grupos ("boundaries"). As culturas circunscritas por determinadas linhas de demarcação podem mudar — e mudam, já que todo e qualquer grupo está sujeito a uma dinâmica decorrente do processo histórico. A continuação das linhas de demarcação em si é algo de muito mais resistente e durável. A partir do conceito de linha de demarcação de Barth, Edwards (1985) redefine etnicidade nos seguintes termos:

Ethnic identity is allegiance to a group — large or small, socially dominant or subordinate — with which one has ancestral links. There is no necessity for a continuation, over generations, of the same socialization or cultural patterns, but some sense of a group boundary mustpersist. This can be sustained by shared objective characteristics (language, religion, etc.) or by more subjective contributions to a sense of groupness, or by some combination of both. Symbolic or subjective attachments must relate at however distant a remove to an observable real past (p. 10).

("Identidade étnica é fidelidade a um grupo-pequeno ou grande, socialmente dominante ou dominado-com o qual se mantém laços ancestrais. "Não há necessidade, para a sua continuação ao longo de gerações, dos mesmos padrões de socialização ou culturais, mas deve continuar a existir um sentido de linha de demarcação entre grupos. Isto pode ser mantido através de características objectivas comuns (língua, religião) ou de contribuições mais subjectivas no que diz respeito ao sentimento de grupo, ou por uma combinação de ambas. Os vínculos simbólicos ou objectivos devem referir-se a um passado real observável.")

Esta acepção de etnicidade, ao reconhecer a dinâmica inevitável na percepção do grupo como tal, reflexo da sua construção e reconstrução ao longo de um processo histórico, é a que melhor nos parece adequar-se ao entendimento da identidade macaense, numa perspectiva de etnicidade como projecto (Pina-Cabral & Lourenço 1990). A ênfase desloca-se agora para o critério da permanência de um sentido de demarcação do grupo, face aos outros, mesmo quando os traços objectivos da diferença, as marcas exteriores de etnicidade sofram alteração mais ou menos profunda, como acontece em relação à língua no caso macaense.

Um segundo conceito requer, neste caso, uma consideração mais detalhada: o conceito de variedade linguística, que nesta análise, intencionalmente, substitui o conceito de língua.

Quando, no quotidiano, utilizamos o termo língua, associamo-lo em geral a uma ideia de país: em Inglaterra fala-se a língua inglesa, a língua portuguesa (falada pelos portugueses) tem que ser defendida, ele está a aprender alemão (a língua falada na Alemanha pelos alemães). Esta identificação do termo com uma unidade geo-política — o país — pressupõe uma visão do fenómeno língua como uma manifestação homogénea de uma sociedade homogénea —todos os membros individuais dessa sociedade falam exactamente a mesma língua, conhecem as mesmas construções e as mesmas palavras, com a mesma pronúncia e a mesma esfera de sentidos para cada palavra. De sociedade para sociedade, o falante comum, a instituição escolar e os organismos responsáveis pela educação e pela cultura, partilham em geral desta ficção de homogeneidade da língua (e da sociedade), em que todos os comportamentos linguísticos que se não conformem com o padrão oficial estabelecido, são remetidos para a esfera da incorrecção, do desvio, do regionalismo, para uma marginalidade social que nem a referência mais ou menos enternecida ao pitoresco de sotaques regionais, no caso da variação regional, consegue atenuar. As sociedades, porém, não são homógeneas, e muitas delas nem sequer monolingues. Mesmo quando o são, factores de ordem vária: idade, sexo, classe social, educação, ocupação, origem geográfica, etc. actuam como factores de variação linguística, determinando diferentes distribuições sociais dos itens linguísticos, em termos de falantes e circunstâncias). O indivíduo situa-se num espaço mutidimensional, cujas dimensões são definidas pelos grupos com que se identifica, na sua sociedade.

Facsimile de um excerto de "Adivinhas" em patoá- "inéditas e de origem exclusivamente popular". In Ta-Ssi-Yang-Kuo, Arpuivose Anais do Extremo-Oriente Português, Série I-Vol. I-II, p. 319.

A descrição das relações da linguagem com a sociedade não pode, por isso, ser feita em termos de categorias linguísticas globais, tais como "língua X",, e categorias sociais 'globais' tais como "comunidade Y". O termo variedade linguística, definido como um conjunto de itens linguísticos com uma mesma distribuição social, permite assim distinguir as diferentes manifestações de expressão linguística numa comunidade: a língua padrão, uma variante [dialecto] social ou regional, um registo particular numa variante, ou a língua ou línguas faladas por um indíviduo em particular.

Dois outros termos — dialecto e crioulo requerem uma clarificação terminológica, pela frequência com que são confundidos nas referências internas e externas ao comportamento linguístico dos macaenses.

O termo dialecto pressupõe na sua utilização comum a existência de um padrão, isto é, de uma variante que, por razões históricas, adquiriu em determinado momento um estatuto de prestígio face às outras variantes da língua. Tal estatuto atribui-lhe exclusividade na escrita formal, na escolarização dos falantes, em suma, em todas as funções associadas com as formas de organização social e a escrita: governo, tribunais, documentos produzidos na esfera burocrática, académica, científica e literária. A esta variante se associam os conceitos de "correcção" e "pureza" que informam em geral os comportamentos avaliativos sobre a língua e o seu uso. O termo dialecto é por consequência aplicado a todas as variantes, sociais ou regionais, que difiram da variante-padrão de prestígio, com a consequente conotação negativa que a ausência de prestígio lhe impõe.

É nesta acepção e com estas implicações que o termo é aplicado em todas as referências que encontramos ao falar "típico" dos macaenses. De notar também que a utilização deste termo implica inevitavelmente a consideração de uma ligação estreita deste falar com o português, considerando-o apenas uma forma regional da língua portuguesa, com uma estrutura gramatical igual ou pelo menos aproximada, diferindo apenas na pronúncia e em algum léxico, e facilmente descodificada pelos falantes metropolitanos. Consideramos, no entanto, que a mútua intelegibilidade entre o português-padrão e os ditos "dialectos portugueses" africanos e asiáticos (os crioulos) é uma ficção cujas motivações foram e são de ordem ideológica e não linguística.

A estrutura gramatical dos crioulos de base portuguesa é radicalmente diferente da estrutura sintática, morfológica e semântica do português. O reconhecimento de lexemas com uma configuração idêntica à do léxico português leva o leigo a entender e a justificar a diferença estrutural dos crioulos como uma redução, uma simplificação levada ao extremo (sobretudo na sintaxe) das "regras" gramaticais do português. São frequentes ainda hoje afirmações dotipo: o crioulo não tem gramática. Por outro lado aquilo que é entendido como uma pronúncia estropiada do português é na verdade, consequência de um inventário fonológico diverso, tanto a nível dos sons, como dos princípios prosódicos.

Com uma relação de parentesco com o português, inegável e inevitável, já que o português foi um dos componentes na sua formação, e que transparece ainda hoje claramente no léxico, os crioulos são línguas autónomas, "estrangeiras", se assim quisermos, em relação ao português. O estatuto de desprestígio que lhes foi atribuído (tal como é atribuído aos dialectos releva ainda, no caso dos crioulos, de factores que se prendem com as relações sociais entre as várias comunidades nos territórios onde eles se desenvolveram, em especial das relações entre a comunidade metropolitana (detentora do poder político, social e económico e falante do português-padrão) e as comunidades crioulas, cuja subalternidade varia em grau de área geográfica para área geográfica, determinada localmente pela forma particular que o poder colonial aí assumiu. As atitudes perante as variedades de língua em presença, por parte de qualquer destes grupos, estão assim profundamente ligadas a factores de ordem social, não linguística.

Consideramos por isso a variedade por vezes designada de "dialecto macaense" como um crioulo, diferenciado e autónomo do português. A variedade designada neste trabalho por "português" é entendida no sentido de "português-padrão".

O OLHAR DOS OUTROS

Na documentação portuguesa relativa à fase inicial da expansão, o "encontro" entre os portugueses e os outros é descrito utilizando as categorias nós (os portugueses) e as gentes locais, os naturais ou nativos.

No processo de consolidação, as características da expansão levam à criação de categorias adicionais, que descrevem comunidades diversas e diferenciadas, produto dessa mesma expansão. Encontramos assim a categoria "casado, designando o português europeu estabelecido localmente e que aí constituiu família. As distinções seguintes, de tipo somático, são indicadoras do aparecimento e desenvolvimento na Europa de avaliações baseadas em supostos ingredientes raciais: os "crioulos", nascidos de pais europeus puros, por oposição aos "reinóis", os portugueses nascidos na Europa, no reino. A estas duas categorias contrapõem-se as categorias que referem os produtos das uniões mistas, entretanto realizadas: "os mestiços", filhos de pai europeu e mãe nativa e os "castiços", filhos de pai europeu e mãe eurasiana. Esta classificação permanece operante durante alguns séculos e é adoptada pelos outros poderes coloniais. Uma Memoria holandesa de 17621 utiliza as mesmas categorias para a classificação dos súbditos holandeses no Ceilão: Europeesch, Casties, Mixties e Pusties (estes os descendentes dos "castiços"). A cristianização e consequente assimilação cultural e linguística leva ao aparecimento da categoria "christãos", que abrange não só as categorias anteriores, mas inclui também os nativos convertidos.

Nos textos referentes a Macau, quer se trate de documentação oficial, de relatos de viagem de autores portugueses ou estrangeiros, ou de textos históricos — crónicas — (de contemporaneidade mais ou menos relativa) encontramos de início o termo genérico "portugueses":

Pe. João Baptista del Monte, S. J. afirma em 1562: "o número de portugueses que agora estão em terra serão perto de oitocentos2".

O estabelecimento com carácter duradouro, implicando a constituição de unidades familiares transparece no aparecimento do termo "casados":

Diogo Caldeira do Rego, escrivão do Leal Senado, relata na Breve Relação do estado da Cidade do Nome de Deos reino da China de seu princípio até ao anno de 16233. ... em número de moradores da cidade é hoje hua das principais deste oriente avendo nella mais de 400 portugueses casados... afora muitos casados naturais da terra e de for a e de muita outra gente de varias nações...4

Em 1635, António Bocarro escreve:

Os cazados que tem esta cidade são oitocentos cincoenta portugueses e seus filhos que são muito mais bem despostos, e robustos, que nenhum que haja neste oriente...

Alem deste numero de casados portugueses tem mais esta cidade outros tantos casados entre naturais da terra, Chinas casados que chamam jucubassas.

Tem alem disto esta cidade muitos marinheiros pilotos e mestres solteiros Portugueses os mais delles cazados no reino, outros solteiros e assy tambem muitos mercadores solteiros...

A discriminação entre a origem local crioula, castiça ou mestiça e o sangue português puro, reinol, requisito para a ocupação de cargos públicos é evidente no alvará de confirmação dos privilégios da cidade de Macau de 1689, que reserva tais cargos para os Cristãos Velhos Portugueses de Nação e geração5. Instruções vindas de Goa em 17156 reafirmam a preferência que deve ser dada ao portugueses reinóis, mesmo na atribuição de cargos inferiores. Portugueses pobres mas honestos eram mais desejáveis do que os "filhos da terra".

A discriminação não vai tão longe no que se refere à aceitabilidade de comportamentos sociais e de sinais exteriores associados com os europeus. Aqui a ligação pelo sangue legítima a marca exterior de portugalidade. Um édito do leal Senado de 17747 proíbe o uso de cabeleiras e chapéus de sol aos que não fossem Europeus de nascimento ou ascendência. A este édito respondem os naturaes de Macau, os nativos, cristãos e europeizados, com uma petição em que invocam a sua ligação com os portugueses, através do casamento, desde longa data, e a sua condição de católicos.

O decreto pombalino de 2 de Abril de 1761, com a injunção "Sua Majestade não distingue seus vassalos pela cor mas por seus méritos" informa os poderes coloniais que, a partir dessa data, "os súbditos asiáticos da Coroa Portuguesa que se tivessem baptizado cristãos deviam ter o mesmo status legal e social que as pessoas brancas nascidas em Portugal."8

A documentação de carácter oficial destes séculos utiliza também uma outra categoria, a de "moradores", nomeadamente no que se refere à atribuição de cargos e aos direitos e obrigações dos residentes. Sob esta designação, que estabelece o pressuposto da residência efectiva vão cair todas as categorias relativas ao termo genérico "os portugueses". Vemos assim desenvolver-se uma tipificação étnica no discurso oficial que se baseia em critérios de filiação genética sangue não português, português puro, e português miscigenado, partilha da religião portuguesa (catolicismo) e residência efectiva no território.

Os textos de autores estrangeiros, europeus, enunciam uma tìpificação semelhante. J. P. Coen (1621). PeterMundy (1637), Marco d'Avalo (1638), Houckgeest (1770), entre outros, notam a coexistência no Macau visitado, de três comunidades de moradores, a chinesa, a portuguesa e a portuguesa de sangue mestiço, cujos traços culturais (vestuário, alimentação, hábitos sociais) alguns deles referem. O esterótipo inferiorizante da comunidade eurasiana, produto de um preconceito rácico comum, culmina em observações como as do sueco Ljungstead (1836), referindo-se ao portugueses que se estabeleceram em Macau e à sua descendência:

Malay, Chinese, Japanese, and other women became their partners in wedlock, and mothers of a generation, the descendants of which are still members of the community. Their progeny is distinguished by the denomination of "Mestiços", or mongrels.9 ("Malaias, Chinesas, Japonesas e outras mulheres tornaram-se suas companheiras pelo casamento e mães de uma geração, cujos descendentes são ainda membros da comunidade. A sua descendência é classificada com a denominação de "Mestiços "ou cruzados.")

e do brasileiro Francisco A. de Almeida (1874):

A terra onde Camões [...] terminou os Lusíadas, é hoje apenas habitada pelos descendentes de uma raça europea, atrozmente degenerada pelo sangue indiano e chinês.10

Esta comunidade de "mestiços" diferencia-se também no olhar dos visitantes portugueses dos séculos 18 e 19. Bocage (1789) descreve Macau num soneto11.

Um governo sem mando, um bispo tal De freiras virtosas um covil Três conventos de frades, cinco mil Nhons e chinas cristãos, que obram mui mal. Uma Sé que hoje existe tale qual Catorze prebendados sem ceitil Muita pobreza muita mulher vii Cem portugueses tudo em um curral12

Facsimile de pauta"Cantilenas macaistas", do Cancioneiro popular Crioulo.

In Ta-Ssi-Yang-Kuo, Aarquivos e Anais do Extremo-Oriente portugues, Serie I-Vol. I-II, p. 239.

Os Nhons de Bocage surgem na obra Macau e seus habitantes, de Bento da França (1897), apelidados de Macaístas:

De todas as curiosidades que os macaistas possam oferecer aos observadores europeus, nada é de certo mais interessante do que a linguagem de que entre si se servem: é uma especie de dialecto em que, de envolta com portuguez de 1500, andam locuções chinezas e phrases inglezadas.

Os homens, mais afeitos ao nosso convívio, pode dizer-se que fallam comnosco um portuguez aceitavel, se bem que a pronuncia venha afectada do descanso e adocicado de que enfermam as línguas neo-latinas nos climas inter-tropicais. Entre elles, porem, e, sobretudo, na sociedade feminina, e usada uma linguagem por extremo curiosa, que nos, europeus, mal podemos decifrar, mercê do que tem de caprichosa e convencional.

Bento da França tem para nós o interesse de apontar a saliente diferença linguística (que nós europeus mal podemos decifrar) dos macaenses face ao grupo dos 'portugueses' ('observadores europeus'), a variedade linguística que na época funciona como um dos marcadores de etnicidade — o crioulo.

O OLHAR DE SI

Não encontramos uma auto tipificação, uma categoria de uso interno por parte da comunidade macaense que acompanhe cronologicamente as categorias externas que exemplificámos atrás. A expressão filhos da terra, que aparece em textos portugueses dos séculos 17 e 18, ocorre no crioulo (filu da terra), língua oral, impedindo a datação deste termo de auto-referência. Nos finais do Século19, quando os crioulos começam a despertar o interesse de estudiosos na Europa (vide Schuchardt, Adolfo Coelho, Sebastão Dalgado, Leite de Vasconcellos), recolhem-se e publicam-se textos em crioulo macaense, É-nos então possível determinar, para a época, quais as categorias de auto referência utilizadas pelo grupo que hoje denominamos "macaense": O termo mais comum parece ser o de Macaísta, em contraste com as categorias europeu, reinol ou português, e china, que o grupo atribui às outras comunidades em presença. O termo macaense parece ser usado sobretudo na acepção de habitante de Macau.

Encontramos nas amostras de crioulo dessa época referências claras à variedade "lingu makista" "doci papiá", por oposição ao "português de Portugal". A utilização preferencial da categoria macaense ocorre já neste século quando macaísta adquire uma conotação negativa e passa a ser utilizado em substituição do termo china, que entretanto se tornara claramente injurioso.

O macaense Marques Pereira, a quem se deve a publicação de quase todo o corpus crioulo recolhido na época, descreve, no virar do século (1901), três formas, "pelo menos" que seria conveniente distinguir no patois do seu tempo e que ele considera 'bem vivo', "senão fallado publicamente e em conversa com os reinoes, pelo menos no seio das famílias":

a) o macaista cerrado ou macaista puro (se assim se pode chamar), e que é o mais interessante. E fallado principalmente pelas classes mais baixas.

b) o macaista modificado pela tendencia a approximar-se do portuguez corrente. E usado pela gente mais polida e que etsá mais em contado com o elemento reinol.

c) o macaista fallado pelos chins. 13

É evidente nesta descrição a oscilação, em decurso na época, da va. riedade crioulo para a variedade português, pelo menos nas classes altas (gente mais polida), mais próximas dos portugueses continentals detentores dos cargos do poder político, militar e religioso, e que com estes mais se identificavam. A descrioulização das classes altas culminara no desaparecimento do crioulo como língua funcional nas primeiras décadas deste século. A variedade crioulo desaparece como marcador étnico concreto e a linha de demarcação linguística esbate-se.

Esta oscilação é patente nos textos crioulos publicados por Marques Pereira:

Que pena eu non pode escrevé portuguez assim galante como aquele bulicioso de manjor Rua: mas mesmo cusa tudo portuguez-portuguez que ta bem curtido ja com nosso lingu de Macao, logo entendê esse rabuçenga que eu esteve14.

Sam divera sinti ung-a ancusa pezado na coracam quando uvi inglezada fazé chacota do nosso boborica. Nós otro. Sium co eu, sam nós ja nacé na Macau: mas nosso gente sam tudo de aqui, por isso nós sinti vergonha ola este um poco, vai pa ala sevandizia com tudo china-china. Qui sabe Sium lôgo entende estê linguazi o nadi.

Nôsso rancho nunca sa fala assim sa: mas eu ja prende com dos chancha mas vela de Macau, promor de sinu sarao deça cava ung-a lingu assi chistosa. Oze em dia tudo nhonhonha sã fala porteguezado: carega na R com acung-a Chente.

Estunga linguazi ja servi pra eu anos trazado visti bobo na Quarentona na mas, St. Sium nom pode intendê, eu logo fala modo de agora meo portuguezado, meo ingrezado. 15

    Sã linguaze de estudante
    nosotro nunca entendê, 
    porque, quando eile criança, 
    algu cusa ja prendê
    
    Nunca sã cimo otro criança
    sua lingu caregado
    vai estudo, vén pá casa
    sa fala porteguezado
    
    Nôs nun sã chomá porcobezo? 
    Elle nunca — stára óla: 
    elle fala percebejo, 
    tudo "r" caregado 16 16
    
    A — Primo falla erradamente 
    Fala apenas um "patois". 
    J. F. — Masqui patua, tudo gente 
    Entende cusa eu falla. 

Vós lôgo sinti grandi diferença na minha modo di escrevê. " Eu já aperfeiçoa bastante neste um põco tempo. Tudo este escola novo de machu e femia, e aquela gazeta Ta-ssi-Kuo já faze indretá bastante nosso lingu.17

A consciência da oposição português — nosso lingu de Macao, de alguns dos items linguísticos em cuja utilização as duas variedades mais divergem (a inexistência da consoante [R] no sistema fonológico do crioulo, por exemplo), levando a fenómenos de hipercorrecção ("perrcebejo"), motivo de troça dentro do grupo, são temas que percorrem os textos referidos. Nos últimos textos apresentados reconhece-se o papel da escolarização no português-padrão como acelerador da adopção cada vez mais generalizada da variedade-padrão pelos macaenses. Marques Pereira refere também os efeitos da escolarização em português:

Teem-se modificado sensivelmente essas circumstancias nos ultimos annos com as medidas tomadas pela metropole no sentido de aportuguezar a instrucção publica da colónia. Não é agora occasião, nem este o logar, para discutir se essas medidas foram bem orientadas, mas, o certo e que os resultados teem-se visto, quer no modo como os macaistas, que nunca vieram ao reino, fallam; quer pela maneira como redigem hoje os seus jornaes, na generalidade mais bem escriptos e em melhor portuguez que os indianos.18

Nos anos quarenta o processo de desaparecimento do crioulo, em todos os estratos sociais que integram o grupo 'macaenses', tinha-se concluido, embora alguns traços crioulos permanecessem no português falado por este grupo.

Apesar de tudo isto (escolarização), o português aprendido na escola não é integralmente empregado na linguagem familiar. Aqui aparecem certas expressões e construções que as pessoas sabem ser incorrectas e que por vezes modificam, quando falam com metropolitanos. Dizem, por exemplo, três pataca, mas sabem como se diz e podem dizer três patacas. 19

Para lá de fenómenos morfológicos como o apontado acima. Batalha encontrou ainda numerosos vestígios do crioulo, quer a nível fonológico, quer a nível sintáctico e semântico.

O PAPEL DO CRIOULO NA CONSTRUÇÃO DE UMA ETNICIDADE SIMBÓLICA

A comunidade, no entanto, optara irreversivelmente pela variedade-padrão e o crioulo desapareceu como lingua funcional, pelo menos no aspecto comunicativo. Sendo a língua um de entre vários marcadores de etnicidade, as linhas de demarcação do grupo mantêm-se, passando a identidade étnica a ser objectivada por outros marcadores. Os marcadores de etnicidade de carácter público, de função não simbólica, como é o caso da língua, tendem em geral a desaparecer mais rapidamente num contexto de assimilação do que os marcadores de tipo privado e simbólico. Uma língua, marcador público, preenche outras funções para lá da comunicativa. Entre elas, a função simbólica, que no quotidiano transporta e reflecte a cultura e a tradição do grupo. Em grupos minoritários, e em grupos em que a mudança para uma outra variedade linguística ocorreu num passado ainda próximo, o valor da língua como símbolo pode permanecer apesar da ausência da função comunicativa.

A sobrevivência do crioulo macaense no seu aspecto simbólico e exemplo da utilização de um marcador simbólico, cuja função comunicativa e pública desaparecu.

Muito tempo depois da adopção da variedade-padrão pelas camadas altas e mesmo depois do desaparecimento do crioulo como expressão comunicativa na comunidade em geral, ele continua a ser usado em áreas sócio culturais restritas (Tomás: 198):

1. folclore— canções tradicionais, adivinhas, lengalengas, canções e jogos infantis, provérbios, etc..

2. Letras em crioulo adaptadas a melodias contemporâneas populares: Hello Dolly, Kiss me goodbye, Springtime in the Rockies, etc..

3. Convites para festas e menus escritos em crioulo.

4. Até aos anos 50, durante o Carnaval, os mascarados dirigiam-se aos passantes em crioulo, troçando das suas fraquezas ou traços físicos particulares.

5. O patois foi até recentemente usado em operetas e peças de teatro, representadas por amadores.

6. Nos últimos anos foram publicados alguns livros de poesia em crioulo.

7. Encontramos abundantemente documentada nos fins do século, com sobrevivência até 1944, uma forma de crítica social, com raízes na Idade Média, e que assumiu em Macau uma forma característica — o pasquim. Escritos em crioulo, sob a forma de carta e anonimamente distribuídos dentro da comunidade macaense, os pasquins, num jogo complexo de máscaras (da autoria de homens, eram escritos e assinados como se de mulheres se tratasse; os homens autores, nem sempre eram macaenses, embora o veículo utilizado fosse o crioulo) satirizavam situações, acontecimentos e personalidades locais.

Temos assim uma língua não funcional... utilizada num domínio sócio cultural restrito — uma gama de actividades culturais e linguísticas ligadas ao "ludus" — ao conceito do prazer e do jogo, tanto linguístico como social: adivinhas, canções, folclore infantil lengalengas), teatro, as inúmeras referencias ao "chiste" ou "graça" como motivação do seu uso no presente. O enquadramento temporal da maior parte das ocorrências situa-as tambem na área do jogo social, no domínio da Festa colectiva-carnaval, festas, representações, etc.20

Esta sobrevivência revela a importância da variedade-crioulo na construção de uma etnicidade simbólica por parte dos macaenses.

BIBLIOGRAFIA

BARTH, F. (ed.) 1969, Ethnic groups and boundaries. Boston: Little, Brown.

EDWARDS, John, 1977, "Ethnic identity and bilingual education", in H. Giles (ed.), Language, ethnicity and intergroup relations, London Academic Press. 1985, Language, Society and Identity, Oxford, Basil Blackwell Ltd.

ISAJIW, W. 1980. "Definitions of ethnicity," in J. Goldstein & R. Bienvenue (eds.), Ethnicity and ethnic relations in Canada, Toronto: Butterworth.

PINA-CABRAL, João e Nelson Loureiro, 1990, Methodological Prolegomena for the Study of Macanese Ethnicity and Family. Comunicação apresentada na Univesidade de Zongshan University.

TOMÁS, Maria Isabel, 1988. "O Crioulo Macanese (algumas questões)", Revista de Cultura 5: 36-48.

Avenida Almeida Ribero, edificio do Leal Senado. Slide de Mica Grande.

NOTAS

1 Memoir, de Schreuder, citado em Michael Roberts et al. (1989). People in Between — The Burghers and the Middle Class in the Transformations within Sri Lanka, 1790-1960. Ratmalana: Sarvodaya Book Publishing Services.

2 In Macau e a sua Diocese, III, p. 136, citado pelo Pe. Manuel Teixeira, em "Os Macaenses". Mc. I. V. p. 19.

3 In Mendes da Luz (1952). O Conselho da Índia. Lisboa, p. 606.

4 Citado em Macau na época da Restauração, C. R. Boxer, pp. 28-29.

5 Citado em C. R. Boxer (1965). Portuguese Society in the Tropics, Madison e Milwaukee. The University ofWisconsin Press. p. 67.

6 Citado em Boxer, ibid. p. 69.

7 Citado em Boxer, ibid. p. 69.

8 C. R. Boxer (1963). Race Relations in the Portuguese colonial empire 1415 1825. Londres: Oxford University Press. Tradução portuguesa: Relações raciais no Imperio colonial português. Porto: Edições Atrontamento, p. 74.

9 An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China, Boston; James Munroe & Co. p. 27.

10 Citado por Marques Pereira, in Ta Ssi Yang-Kuo, serie II, vols. III e Iv. p. 677.

11 Transcrito em Boxer, Portuguese society in the tropics, p. 64.

12 Itálico nosso.

13 Marques Pereira, op. cit. vol. I, p. 55. O itálico pertence ao original.

14 Marques Pereira, op. cit. Série I (1889), Vol. I, p. 124.

15 Marques Pereira, op. cit., III: 781.

16 Ibid. I 59-60.

17 Ta-Ssi-yang-Kuo, 1. a série, 5 de Janeiro de 1865.

18 Marques Pereira, op. cit. p. 55.

19 Graciete Batalha (1959) "Estado actual do dialecto macaense", Separ. da Revista Portuguesa de Filologia, vol. IX, 1958, Coimbra, p. 1.

20 Tomás, 198, p., 39.

* Investigadora do Departamento de Linguística da Universidade de Austin (Texas); bolseira do Instituto Cultural de Macau.

desde a p. 163
até a p.