Literatura

A FICÇÃO DE DEOLINDA DA CONCEIÇÃO
—O OCIDENTE ENCONTRA O ORIENTE

John Kelly*

Em 1988, numa conferência na UCLA apresentei um trabalho sobre a escritora macaense, Deolinda da Conceição e a sua obra, Cheong - Sam: A Cabaia, com o sub-título Contos Chineses. Desde essa primeira apresentação, visitei Macau duas vezes e muito aprendi sobre a escritora e a génese da sua ficção. A minha pesquisa inicial era circunscrita ao seu livro, a uma Fotobiografia editado pelo filho António da Conceição, e baseada em críticas literárias publicadas nos Diário de Notícias, Diário da Manhã, Século Ilustrado, e O Cronista, todos de Lisboa e numa crítica no Notícias de Macau. 1 De acordo com o prefácio de Cheong-Sam: A Cabaia, a maioria das vinte e três histórias tinha anteriormente aparecido nas páginas do Notícias de Macau, mas foi reunida em volume quando da comemoração do décimo aniversário da fundação do jornal. 2 A segunda edição do livro, publicada, em Macau, em 1979, 3 foi seguida de uma terceira, edição facsimilada da segunda. Esta última reedição publicada pelo Instituto Cultural de Macau comemorava o 30° aniversário da morte de Deolinda.

"O Ocidente encontra o Oriente", uma parte do meu título inicial, provou não ser um cliché mas um retrato rigoroso da escritora e do seu trabalho. Nas suas palavras "Macau querida... onde o Oriente e o Ocidente se deram as mãos, envolvendo-a neste misto de beleza que constitui o seu mais valioso dote".4

A escritora foi mais longe ao definir os residentes como sendo "sem dúvida, portugueses de lei, que continuam a tradição dos primeiros dos nossos maiores que aqui vieram trazer o facho da civilização ocidental, revelando aos povos que habitavam estas paragens a existência dum país distante que rasgou novos horizontes ao mundo... com grande espanto das gentes: PORTUGAL!"

Deolinda apressava-se a corrigir todos os que confundiam os macaenses com outros cidadãos do Império Português, "Há ainda quem neste século das luzes, ignore a personalidade do macaense, e o coloque na categoria dos indígenas das nossas outras províncias ultramarinas. Urge esclarecer este equívoco, porquanto o macaense só diverge dos seus irmãos da metrópole em algumas características de que se vê revestido em virtude da distância que o separa da Mãe-Pátria. Descendente daqueles primeiros filhos de Portugal que aqui vieram estabelecer-se, o macaense tem, é certo, nas suas veias sangue de outras gentes que habitavam esta terra ou que para aqui foram trazidas mas, longe de o depauperar, esta circunstância valorizou-o grandemente. Reunindo em si todas as qualidades do bom português da metrópole, o macaense assimilou ainda algumas características dos habitantes desta Ásia vastíssima, tornando-o num tipo de português, como os vários que habitam as diversas províncias de Portugal continental.

Esta definição viva em defesa dos Macaenses, tão eloquentemente expressa neste artigo irá encontrar expressão estética na sua ficção.

Deolinda, nascida em Macau, em 1914, foi a quarta dos oito filhos de Manuel Salvado, um português, e da sua mulher macaense.5

Após terminar, com distinção, o Liceu de Macau, prosseguiu os seus estudos em Hong Kong. Tornou-se professora de Português e ensinou em Macau e em Hong Kong. Durante a Segunda Guerra Mundial foi directora da Escola Portuguesa dos Refugiados de Hong Kong e traduzia, de Inglês para Português, os telegramas noticiosas, para o jornal A Voz de Macau.

Embora Portugal fosse um país neutro durante a guerra, Macau não foi poupado aos massacres e destruições das forças de ocupação japonesas que controlavam a China e Hong Kong e exerciam grande domínio no território português. Há uma altura, durante a guerra, em que viaja para Xangai e lá vive durante algum tempo com o marido, Luís Alves. Após o seu regresso a Macau integra o recém-publicado Notícias de Macau onde trabalha como editor e na organização das páginas femininas. Foi apenas uma vez a Portugal, em 1956, sobre o qual, durante meses, fez inúmeros artigos, para o jornal de Macau. As suas observações e comentários sobre os portos de escala, em Timor, Goa e o Suez constituem interessante literatura de viagem, mas é a sua primeira impressão de Portugal que encanta o leitor. Após uma breve estadia lá, viaja de avião, com a família, de regresso à Ásia e morre no ano seguinte, em Hong Kong, com 43 anos. O seu legado pode ser encontrado na compilação dos seus contos e também nas história e artigos de jornal dispersos.

Cheong-Sam retrata uma mistura única de Oriente e Ocidente, na sua relação com o tempo, o ambiente, o ponto de vista narrativo, a caracterização das personagens e, mais importante, a língua. Visto todos os contos terem sido primeiramente publicados no jornal, a sua dimensão era ditada por restrições editoriais impostas à autora. Tal como tinham sido originalmente publicadas no formato pequeno do jornal local, os contos ocupavam uma página em colunas. Na edição de Lisboa de 1956, a alteração da dimensão dos contos foi mínima.6 Apenas no que diz respeito às 22 páginas do conto que dá o título ao livro e ao conto Dinheiro Maldito, com 11 páginas, as restantes 25 histórias apresentavam um média de sete páginas na edição comemorativa, facsimilada. João Gaspar Simões, em 1956, na sua crítica a Cheong-Sam observou precisamente como a escritora "... soube servir-se de uma arte de contar que se filia muito mais na tradição dos apólogos seculares da velha literatura budista, do que propriamente no conto moderno de contextura magazinesca. "

Perto da conclusão da sua análise, ele reconhece outra qualidade importante nas suas histórias:

"Estávamos desabituados de ler histórias de tradição oral, e o certo é que a leitura dos contos de Deolinda da Conceição, por mais realistas e dolorosos que alguns deles se nos revelem, guardam seja o que for dessa admirável magia das histórias de fadas, sobrevivência moderna dos velhos apólogos orientais".7

Na China, o conto evoluiu a partir de uma forte tradição oral originada nos contadores de histórias das feiras até às narrativas escritas, não muito diferentes da chamada literatura de cordel. A minha tese inicial de que Deolinda da Conceição teria sido influenciada pela evolução literária chinesa parece-me agora irrealista visto ela não saber ler nem escrever chinês, porque como tantos outros macaenses, "vive-se em português". O seu conhecimento de guangzhougua (cantonense) era essencialmente ouvido e falado. Num artigo de 1950 ela tece comentários sobre as competências linguísticas dos macaenses:

"Raro é aquele que, além da sua (língua portuguesa), não fale mais duas línguas. Todo o macaense fala o chinês e o inglês, sendo, ainda, muitos aqueles que manejam com facilidade o francês. "Sem dúvida que as tradições orais dos falantes de cantonense e português inspiraram algumas das suas histórias. O uso da língua em Deolinda reflecte o encontro do Oriente e do Ocidente. Hoje a língua portuguesa é falada por cerca de 3% dos mais de 400.000 habitantes de Macau, ou seja cerca de 12.000 pessoas e o patois, língua di Macau, está hoje praticamente extinta. 8 Nos anos 40, período em que se passa a maioria das histórias de Cheong-Sam, a população de Macau era metade da que é hoje. Jorge Morbey, do Instituto Cultural de Macau, explica:

"Convém referir que o crescimento demográfico explosivo de Macau, a partir da década de 40 foi marcado fundamentalmente pela fixação, temporária ou definitiva, de grandes fluxos migratórios originários do interior e, simultaneamente, pela saída para diversos países... de significativo número de famílias macaenses, herdeiras dos padrões culturais portugueses e aqui recriados em Macau e enriquecidos por valores culturais chineses e malaios". 9

Esta explosão populacional atribuível a uma afluência de refugiados chineses e aos distúrbios que se seguem à guerra civil, na China, talvez tenham estimulado a autora a captar em Português a sociedade colonial a braços com uma mudança indesejável. As suas palavras revelam, claramente, o seu envolvimento cultural e étnico:

"... o jornal, onde trabalhei,... tem contribuído grandemente para a defesa dos interesses de Portugal e da minha terra, não só no Extremo-Oriente como em todos os pontos onde ele vai levar as notícias de tudo quanto se faz em Macau para prestígio da Mãe-Pátria." (Cheong-Sam p. 7).

O Português falado por Deolinda é sintaticamente idêntico à forma continental contemporânea, mas o uso abundante de diminutivos assemelha-se mais ao Português do Brasil do que ao de Portugal. Nas palavras de João Gaspar Simões:

Deolinda da Conceição (Quinta a contar da esquerda, na fila da frente) numa foto de conjunto da redacção do Notícias de Macau. Pedro José Lobo, emérito macaense, está ao centro. In "Fotobiografia de Deolinda Salvado da Conceição", ICM, 1987.

"Em que medida é que a sua familiaridade com um povo alheio às tradições da sua língua e às manifestações da psicologia comum à gente do meio em que foi criada a habilitou com uma linguagem tão simples e uma arte de contar tão pura, não o sabemos dizer... ... São qualquer coisa de invulgar no panorama da nossa literatura de ficção". 10

Embora o chinês seja a língua mais falada em Macau, curiosamente há, em Cheong-Sam, no máximo dez palavras cantonenses, todas elas com tradução anotada. Deolinda, aparentemente, nunca considerou o seu trabalho linguisticamente pitoresco ou mestiço. Os floreados retóricos do Português, com longas orações intercaladas, estão ausentes destas histórias. Estilisticamente há uma concisão e economia nas suas frases que podem ser devidas ou a restrições do jornal ou ao seu gosto por frases curtas e pouco rebuscadas. Deve ainda ser notado que apesar da correcção lexical e sintática do seu Português, por vezes, tem-se a impressão distinta de que as histórias são traduzidas de outra língua.

A utilização do tempo na narrativa de Deolinda pode também revelar a confluência de percepções asiáticas e europeias.

Em todos os contos, excepto em sete deles, o tempo flui cronologicamente a partir de um narrador presente ou a partir de um ponto no passado até à sua conclusão no presente narrativo. Cheong Sam, O calvário de Lin Fong, Conflito de sentimentos, Aquela mulher, O refúgio da saudade, O sonho de Cuai Mui, e A Louca empregam uma estrutura temporal circular. Começam com a descrição de uma personagem ou de uma situação no presente narrativo. Quer o tempo seja linear quer circular, quase todas as histórias são contemporâneas da experiências da autora, em Macau e na China. Os contos históricos de Deolinda acompanham geralmente os tumultos devidos à invasão da China pelos japoneses, nos finais da década de trinta até ao bombardeamente de Nagasaqui, em Agosto de 1945. A promessa, O casamento de Vong Mei, e Uma profecia que não se realizou, tal como as histórias de tradição oral, ocorrem num tempo distante e impreciso.

Com excepção de dois contos, em todos os outros, o cenário corresponde à experiência de Deolinda. Fatalismo oriental (conto japonês) tem lugar, respectivamente, no Japão e no novo mundo e estes lugares, desconhecidos da autora, ajudam a explicar a fragilidade destes contos quando comparados com os que têm ambientes chineses ou macaenses. Cinco dos contos passam-se certamente em Macau, enquanto os outros têm como cenário a China. Xangai, Pequim, Kei Hou e Hou Mun (Macau) são os únicos lugares reais mencionados, contudo a maioria das histórias têm uma inconfundível atmosfera chinesa, embora as descrições específicas de paisagens sejam raras e por isso muito circunscritas.

Vinte e três contos são narrados na terceira pessoa. Apenas Arroz e lágrimas, O romance de Sam Lei, Aquela mulher, e Fome são relatados por um narrador presente muito difuso. O abundante uso de diminutivos, de nomes e adjectivos com uma grande carga emocional, reflecte uma perspectiva feminina. Os narradores, nunca indiferentes, compadecem-se com o destino das outras personagens.

W. J. F. Jenner, um estudioso da literatura chinesa, observou que os leitores ocidentais de ficção chinesa contemporânea esperam, muitas vezes, uma maior exploração da personagem individual11 É um ponto em comum em todos os contos de Cheong-Sam, onde a maioria das personagens é anónima. Curiosamente, a nenhuma personagem europeia é atribuido um nome, e os chineses com nome, têm-no apenas para clarificar a narrativa. O conto que dá o título ao livro, Cheong-Sam, é o que mais se aproxima do conceito ocidental de mudança e evolução de uma personagem num conto, através da descrição psicológica e de um diálogo revelador. Nos contos, de construção circular, as mudanças circunstanciais afectam a personagem mas esta não se desenvolve, ele ou ela reagem apenas a estímulos exteriores. Também, na China, o conto era uma das poucas formas literárias em que as personagens femininas eram importantes.

De acordo com Jennifer Anderson e Theresa Munford, havia basicamente três imagens femininas na Literatura Chinesa. 1) mulher-objecto 2) a mulher fatal, perigosa para os homens e 3) a sentimental" que emana sensibilidade, uma suave melancolia e uma inesgotável capacidade de sofrimento".12 Era esta última imagem que as mulheres escritoras, muitas vezes, assumiam como reflexo da sua própria condição. Na literatura antiga, as mulheres eram descritas por escritores homens para outros homens, porque antes do "Movimento de 4 de Maio de 1919", a maioria das mulheres era iletrada. Grande parte das personagens principais de Deolinda da Conceição é mulher e pertence na sua quase totalidade à terceira categoria. Martírio é a palavra que perpassa estes contos e que é utilizada tanto para as mulheres como para a China. Vale a pena chamar a atenção de que um terço dos seus contos, oito para ser exacto, não têm nenhuma personagem masculina.

A escritora discursando num acto solene. In "Fotobiografia de Deolinda Salvado da Conceição", ICM, 1987.

Cheong-Sam faz a ligação do Oriente ao Ocidente através dos seus temas entrelaçados. Obediência, estoicismo, fatalismo, a desumanidade do homem para com o homem, o papel da mulher na sociedade e o encontro entre o Oriente e o Ocidente, estão entre os temas mais evidentes, mas os sub-temas ligados à guerra, à fome, à exploração, ao amor e à caridade estão entre os principais. A obediência filial e a sua extensão confucionista, obediência civil e ordem, são evidentes em cinco contos. Estranhamente, em alguns contos a obediência é uma espada de dois gumes. Há consequências irónicas e trágicas: as personagens desobedientes são, claro, castigadas mas também o são algumas das obedientes. Este tema oriental refere-se à anulação do indivíduo face ao grupo. O estoicismo, face a uma adversidade esmagadora, vem sempre acompanhado do fatalismo, ao longo dos contos de Cheong-Sam. Em O calvário de Lin Fong, o narrador descrevendo a personagem principal reflecte: " tanta felicidade exigia por certo o seu preço e a dor que sentia na alma devia ser o tributo que a vida lhe impunha" (pag. 48). O verbo "impor" surge algures noutra parte do livro, aumentando o efeito de que as personagens, vítimas das circunstâncias, nunca controlam os seus destinos. Estoicismo e fatalismo dão um carácter distintivo a cada conto de Cheong-Sam. É difícil atribuir a sua origem pois tanto chineses como portugueses têm fortes tradições fatalistas. A guerra e a desumanidade do homem para com o homem, também componentes principais da maioria das histórias, fragmentam-se em sub-temas narrando assaltos, roubos, raptos e assassínios. Fome, miséria, ciúme e vingança formam também importantes sub-enredos em alguns dos mesmos contos. É interessante notar, por exemplo, que a morte pela fome era comum na China durante este período, mas os escritores chineses como não estavam, directamente, ameaçados por ela, raramente tratavam o assunto na sua ficção.13 Em Cheong-Sam, o tema da fome tem papel de relevo em cinco histórias. Tal pode ser devido ao facto de Deolinda ter passado fome durante a ocupação japonesa nas imediações de Macau. Devido à censura imposta por Salazar à imprensa, só indirectamente se aludia, nos jornais locais, ao sofrimento diário dos macaenses, ao racionamento, aos cortes, às epidemias, falências e mortes.14

O papel da mulher na sociedade, como se mencionou atrás quando se falou da caracterização, é um tema particularmente importante e interessante. As mulheres são representadas, quase universalmente, como vítimas de uma sociedade machista. Concubinagem, poligamia e a venda ou assassínio dos filhos indesejados, geralmente mulheres, são elementos deprimentes da narrativa. Espancamento da mulher, injúrias, abandono e ciúme são elementos comuns nestes contos. Mesmo a obediência filial, uma virtude confucionista, toma-se um instrumento usado contra a mulher. Por exemplo, em A vingança de A-Lin, a personagem do título da obra frustra os planos de casamento do pai e o esquema de vingança contra um velho inimigo, ingerindo veneno. Em O refúgio da saudade, uma outra filha "sempre obediente, fizera-lhe a promessa de que, enquanto vivesse, cumpriria o seu dever e aceitaria as imposições (o itálico é meu) da família" (p. 113). Ironicamente, no dia seguinte, os pais encontraram a filha morta. Numa nota ao lado da cama lia-se "cumpri a minha promessa". (p. 114) Só uma mulher, em todo o livro, sobressai e tem uma pequena vitória. Em O romance de Sam Lei, um letrado de meia idade pede a Sam Lei para ser sua concubina, não sua esposa. A jovem mulher, inocente e apaixonada, ficou muito desiludida com a proposta, recusou-a e, em breve, casa com um homem abastado que "se mostrava temo e lhe oferecia segurança incondicional" (p. 96). Alguns anos mais tarde ao ver o letrado, "... este foge-lhe, como que pressentindo o olhar escarninho da rapariga, mais bonita agora do que quando, tímida e assustadiça, se deixara seduzir pelas declarações de amor de um letrado velho" (p. 97).

A feiticeira, (uma psicóloga) é um caso à parte pelos seus elementos humorísticos, contudo Uma profecia que não se realizou, O desabrochar duma vida nova, Sai Iong Cuai, O modelo, e O casamento de Vong Mei têm um final mais ou menos feliz. Todas as histórias de Cheong-Sam contêm uma mensagem ou uma moral e os contos chineses partilham esta característica: há sempre uma moral ou uma lição a ser retirada da narrativa.15

Oitos dos contos têm como tema o encontro, muitas vezes conflituoso, das culturas asiáticas e europeias. Este encontro, contudo, manifesta ignorância e equívocos que muitas vezes terminam em violência, resignação ou ódio. No conto que dá o título ao livro, Chan Nui parte para o novo mundo, os Estados Unidos, "partira tímida e hesitante, regressava uma mulher perfeita, elegante, falando desembaraçadamente e de gestos firmes, segura de si e ciente da sua educação esmerada" (p. 27). Após dois anos no estrangeiro, regressa e, fiel á promessa para com o pai casa com A-Chung. Neste casamento, arranjado segundo a tradição, "Chan Nui ouvia, silenciosa, as opiniões do marido e procurava adaptar-se ao seu modo de ser, mas havia nela algo de distinto, de impressionante que nada conseguia destruir, nem o corte da cabaia que passou a ser menos estilizado, nem a ausência do batom que o marido lhe impunha". (p. 29).

Chan Nui era uma mulher "moderna". Quando a guerra chegou, ela, A-Chung e os dois filhos são forçados a fugir para o sul. Depois de terem vendido a maior parte dos seus bens para comer, a única coisa de que não se desfaz é do seu elegante cheong-sam. Quando A-Chung não consegue arranjar trabalho, Chan Nui veste a sua adorada cabaia e toma-se empregada num dancing. O casamento em desagregação desgasta-se até ao ponto de ruptura e uma noite A-Chung, enraivecido, chicoteia Chan Nui até à morte. A sua educação, o cheong-sam parecem ter contribuido para o seu destino fatal e o vestido tradicional tornou-se um símbolo complicado da tradição versus mudança, da subserviência da mulher, da degradação cultural e pessoal. Em O calvário de Lin Fong, um pastiche de Madame Butterfly, um jovem soldado português, prometendo voltar, deixa Lin Fong grávida e rejeitada pela sociedade chinesa. Na verdade, é condenada a um calvário sem esperança, pelas suas próprias mãos. O Oriente encontra o Ocidente em A esmola, conto de grande crueldade, em que a principal personagem, filho de pai europeu e mãe chinesa, é retratada no cais esperando pela iminente partida para estudar no país do pai. Vítima por ser filho ilegítimo e de raça mista, ele medita no passado e no futuro que lhe sorri. De repente, uma mulher chinesa aparece forçando o caminho até ele e, com horror, ele reconhece a mãe. Para salvar a face na presença de europeus, tira uma moeda do bolso e dá-a à mulher angustiada, cuja histeria aumenta quando compreende que o seu próprio filho a quer fazer passar por uma mendiga. Ele rejeita o seu lado asiático na tentativa de "passar" por europeu. O conto é uma alegoria cautelosa do colonialismo. O refúgio da saudade põe o Ocidente e o Oriente juntos em uma outra história de amor trágico. O arquitecto europeu apaixona-se pela bela rapariga chinesa. Os pais europeus aceitam o seu desejo de casar mas os pais chineses estão aterrorizados e fazem a filha prometer nunca mais ver o jovem, desde aquele dia. Fiel à sua palavra, ela suicida-se depois de o ver uma última vez. Em termos mais felizes o Ocidente encontra o Oriente em Sai Iong Cuai

("Demónios do Ocidente", significando os portugueses). Os demónios estrangeiros são vistos pelos refugiados chineses primeiro, com receio e depois com um suave afecto, quando um guarda português lhes começa a servir comida. Em A feiticeira, a jovem educada no Ocidente regressa à China e pratica o seu "ofício", com um conhecimento moderno e profundo de psicologia, para espanto dos locais. Ela é reconhecida como feiticeira boa, diferente das tradicionais velhas. O conhecimento aqui identifica-se com modernidade e o Ocidente é a sua fonte.

Em conclusão, deve ser referido que os contos de Cheong-Sam dão-nos um conhecimento da China e Macau visto da perspectiva sensível de alguém que os conhece intimamente. Os contos captam e mantêm a atenção dos leitores. O seu didatismo, a sua "oralidade" e temas revelam uma sinceridade e simplicidade atraentes e uma tentativa, muitas vezes bem sucedida, de aproximação entre duas visões tão diferentes do mundo: a Oriental e a Ocidental.

Traduzido do inglês por I va Flores.

Camilo Pessanha, visto Por Carlos Marreiros. Desenho a tinta da China.

NOTAS

1 Todas as críticas de Lisboa foram publicadas no "Notícias de Macau", a 26 de Outubro, 4, 11 e 18 de Novembro de 1956. A crítica local apareceu a 30 de Setembro de 1956.

2 Esta edição celebrou o 10° aniversário do "Notícias de Macau", em 1956.

3 Secretaria dos Assuntos Sociais e Cultura.

4 Macau e os macaenses, "Notícias de Macau", 25 de Junho de 1950, p.7.

5 Esta outra informação biográfica foi baseada em Fotobiografia de Deolinda da Conceição (Instituto Cultural de Macau, 1987) e numa entrevista com o seu autor em Maio de 1988.

6 A maioria das versões originais dos contos foram consultadas nas edições periódicas da Biblioteca do Leal Senado de Macau que representa uma importante fonte de pesquisa sobre autores recentes de Macau.

7 Crítica do " Diário de Notícias" publicada no "Notícias de Macau" em 26 de Outubro de 1956, p.3 e p.11.

8 Jorge Morbey, "A Cultura em Macau: perspectivas do futuro", n° 2 ( Julho, Agosto, Setembro, 1987), p.116.

9 "Revista de Cultura", n° 2, pp. 115-116.

10 Simões, p. 3.

11 "Modern Chinese Stories (London: Oxford Univ. Press, 1970), p. xiii.

12 "Chinese Women Writers", p. xiv.

13 "Modern Chinese Stories", p. vii.

14 "Eu Estive em Macau durante a Guerra" de António de Andrade e Silva (Instituto Cultural de Macau, 1991) conta em detalhe o sofrimento da população civil de Macau durante a "ocupação" japonesa.

15 "Modern Chinese Stories", p. xiii.

* Doutor e Mestre em Estudos Latino-Americanos (University of Southern California). Professor de Espanhol e Português da North Carolina State University e membro do N. C. Japan Center.

desde a p. 147
até a p.