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MÊNCIO E XUNZI E A NATUREZA HUMANA: O CONCEITO DE AUTONOMIA MORAL NA ANTIGA TRADIÇÃO CONFUCIONISTA

Maurizio Scarpari*

Mêncio [孟子] (390-305 a. C.). Desenho a carvão e aguarela de Lei Chi Ngok.

Tanto na China como no Ocidente, intelectuais e eruditos, de diferentes áreas do conhecimento, têm vindo a debater, há séculos, um dos temas mais discutidos na história do pensamento filosófico chinês: a oposição, que tem sido interpretada como contradição, entre a bondade inata da natureza humana defendida por Mêncio [孟子] (390-305 a. C.) e a doutrina de que a natureza humana é fundamentalmente má, segundo Xunzi [荀子] (310-219 a. C.), em polémica aberta com Mêncio. A dificuldade consiste em tentar conciliar, sob a mesma escola filosófica (o Confucionismo) duas concepções que são, aparentemente, tão radicais e divergentes. Embora, na doutrina que defende que a natureza humana é má, esta ideia não seja a fundamental, segundo o célebre comentador Qing [清] Wang Xianqian [王先謙] (1842-1918)1, mas tão somente a posição que ele adoptou em resposta a uma época de guerra e caos. E é, precisamente, nas possíveis interpretações daquela doutrina que os estudos mais significativos se têm debruçado, nos últimos anos.2

Mêncio é geralmente considerado um intuicionista, um idealista, com uma concepção optimista do homem, enquanto que Xunzi é apresentado em termos diametralmente opostos. É um racionalista, um pragmatista, o precursor de uma visão pessimista e o iniciador da tendência autoritarista que, segundo alguns, se iria tomar, mais tarde, num elemento particular do Confucionismo. Foi afirmado que Xunzi detinha maior autoridade e prestígio do que Mêncio, no início do período imperial. Apenas, durante as dinastias Tang [唐](618-907) e Song [宋] (960-1279), com o florescimento do Neo-Confucionismo, foi Mêncio venerado como sendo o único e autêntico intérprete do pensamento de Confúcio [孔子] (551-479 B. C.), enquanto Xunzi era referido como heterodoxo indigno. Esta interpretação condicionou muito os trabalhos subsequentes e tornou-se paradoxal na década de 70, durante a campanha crítica levada a cabo contra Lin Biao [林彪] e Confúcio. A campanha, desencadeada no 10° Congresso do Partido Comunista Chinês, em 1973 e orquestrada pelo então chamado Bando dos Quatro, rotulou Xunzi de Legalista, de acordo com a necessidade sentida, no momento, pelo Partido Comunista, de apresentar o Confucionismo e o Legalismo como duas categorias distintas (reacção contra o progresso).3

Seguindo esta linha interpretativa, está a posição assumida, em meados dos anos 70, por Lin Yü-sheng, [林毓生] segundo a qual há dois significados para ren 仁 (que normalmente é traduzimos por "humanidade, clemência, benevolência, virtude, etc.") em Lunyu [論語] (os Analectos de Confúcio): 1) o uso convencional pré-Confucionista, indicando qualidade distintiva do homem, e significando "dignidade, humanidade";2) a nova utilização por Confúcio que deu à palavra um "significado proteiforme" denotando "todas as virtudes morais assim como a mais elevada realização moral que um homem pode atingir na vida, através do esforço humano".4 Por outras palavras, graças à mudança inovadora dentro da tradição, introduzida, pela primeira vez, por Confúcio, a palavra ren alterou implicitamente o seu significado de "dignidade, humanidade" para o derivativo ético "bondade":

O conceito de ren, segundo Confúcio, implica uma noção de processo dinâmico ininterrupto da vida moral. [...] Posto que ren - excelência moral - é o ponto mais alto do crescimento da natureza distintiva do homem, ren pode ser desenvolvido a partir do fluir da natureza do homem. Se um homem deseja atingir o ren, pode cultivá-lo e desenvolvê-lo em cada momento da sua vida. Certamente que este ren em evolução não atingiu o mais alto nível de excelência moral. Mas a excelência moral, mais do que uma mudança, é uma evolução da natureza característica do homem: cada estádio de desenvolvimento moral pode ser concebido como um estádio de excelência moral em potência, já que a afirmação de que "se quisermos o ren, percebemos que ele está mesmo ao nosso lado" [ Lunyu, 7.29]. Esta compreensão do conceito de ren em Confúcio, não significa que este filósofo tenha defendido de forma clara e explícita a ideia da bondade inata da natureza humana. Mas significa que o conceito de bondade inata do homem, de Mêncio é um desenvolvimento do pensamento de Confúcio. [...] Se adoptarmos um ponto de vista estritamente literal, podemos considerar Mêncio como o criador do conceito de bondade inata no homem (Mengzi [孟子] 2A.6 e 6A.1-8). Contudo, se a minha explicação do conceito de ren em Confúcio é válida, então o conceito de bondade humana inata de Mêncio não foi tanto uma ideia original mas o desenvolvimento de uma noção implícita de Confúcio.5

O laço genético entre a doutrina de Confúcio e a teoria de Mêncio da bondade inata da natureza humana foi claramente estabelecida. Assim Li Yü-sheng afirma, como uma consequência lógica, que "embora Xunzi tenha adoptado muitos valores e objectivos de Confúcio, algumas das suas ideias como ponto de partida e seja geralmente olhado como filósofo Confucionista, o seu sistema filosófico é, se considerado como um todo, do ponto de vista deste ensaio estruturalmente incompatível com o de Confúcio".6

A opinião de Philip J. Ivanhoe é diametralmente oposta a este ponto de vista. Recentemente, tem tratado de temas complexos tais com a origem do conhecimento do que é o Caminho (dao [道]) e como é que cada homem chega à sua percepção, para explorar a questão de como os mais antigos confucionistas pensavam sobre o modo como cada um atinge a moral. Por outras palavras, é o indivíduo capaz de descobrir o Caminho por ele próprio, através de um processo de introspecção e reflexão, ou será o Caminho algo que o homem é incapaz de discernir, e que tem de ser aprendido através dum prolongado e difícil processo de aquisição de conhecimentos? O ponto fulcral da análise de Ivanhoe é a polaridade entre si [思] "pensar" e xue [學] "aprender", que não é restrito à primeira fase da tradição confucionista, mas sim um fio condutor que corre através da especulação filosófica subsequente. Ivanhoe distingue entre duas linhas de pensamento diferentes: a primeira, baseada em Confúcio e Xunzi, enfatiza "a necessidade de nos submetermos à autoridade dos ritos e adquirirmos o conhecimento do Caminho através do estudo. Chega-se ao conhecimento do Caminho através da aprendizagem, pelo estudo do legado dos sábios". 7 A segunda, baseada em Mêncio, dá ênfase "à autonomia moral de cada indivíduo". O homem nasce com "gérmens morais" dentro de si que podem servir de guias morais infalíveis. Estes "gérmens morais" são alimentados pelo sentimento de alegria espontânea que acompanha a contemplação da acção moral. E assim alimentados, evoluirão, naturalmente, em direcção a disposições morais elevadas e fortes. Assim, o auto-aperfeiçoamento é o desenvolvimento de uma moral interna que se descobre e nutre através do pensamento. Chega-se ao conhecimento do Caminho pela introspecção e reflexão".8

Ivanhoe insiste nos laços evidentes entre o pensamento de Xunzi e de Confúcio, especialmente no papel fundamental que ambos atribuíram aos Clássicos, aos ritos e aos ensinamentos dos sábios. Por esta razão, a inevitável conclusão de que "Xunzi permaneceu fiel às características mais importantes da visão original do Confucionismo". [Comparado com Mêncio], está mais perto da tradição confucionista ao enfatizar o papel central dos ritos e dos sábios.9 A atitude de Xunzi contrasta, por isso, com a de Mêncio que diminuiu o papel dos rituais e a sua importância no que diz respeito ao auto-aperfeiçoamento moral do indvíduo. Estes e outros aspectos do pensamento de Mêncio "representam um significativo avanço das ideias de Confúcio", afirma Ivanhoe.10

Estas afirmações são, importantes, se comparadas com as de Lin Yü-sheng. Elas parecem repropor o tema original com um vigor renovado: foi Mêncio o intérprete real e continuador dos pensamentos de Confúcio, como defende Lin Yü-sheng, ou Xunzi, como Ivanhoe insiste? De facto, em minha opinião, a verdadeira questão reside em saber se é correcto ou útil manter esta estrutura do problema. Eu penso que responder a esta questão é crucial para a compreensão de alguns aspectos fundamentais da filosofia ética confucionista, como foi expresso no debate sobre a natureza humana. Numerosas hipóteses e interpretações novas de certos aspectos ligados ao tema do conceito de autonomia moral nos primeiros tempos do confucionismo, apareceram nas últimas décadas. Elas sugerem uma reflexão mais imparcial do problema e torna possível a adopção de uma abordagem menos ideológica capaz de oferecer uma solução mais convincente para a aparente e, na minha opinião, inconsistente, contradição que parece estar presente dentro da escola Confucionista.

Para melhor compreender as diferentes posições expressas por aqueles que trataram este tema, as suas motivações, argumentos subtis e os objectivos do debate, temos de partir do próprio Confúcio e explicar em que medida é que as doutrinas de Mêncio e Xunzi não são mais do que a representação de dois modos distintos de interpretar e reelaborar os ensinamentos do Mestre, contudo possíveis e coerentes. São duas correntes opostas, ainda que complementares, que se desenvolveram dentro da escola confucionista.

A pluralidade de argumentos e opiniões entre discípulos, pode, em certa medida ser vista como um resultado das diferentes interpretações possíveis de alguns dos aspectos mais salientes da doutrina de Confúcio como se infere da leitura de Lunyu, a principal fonte disponível para nós. Esta obra que foi reunida, postumamente, por discípulos e seguidores de diferentes épocas, é considerada autêntica apenas em parte. É muito provável que uma versão, mais ampla do que a que chegou até nós, ou mesmo uma série de diferentes versões estivessem disponíveis nos séculos IV e III A. C. O textus receptus é bastante desorganizado na estrutura. Parece uma recolha desordenada de máximas, conversas e anedotas, muitas vezes privadas de contexto específico. O que se expõe é tão lacónico e o estilo tão básico, que são possíveis diferentes leituras. A natureza fragmentária e não-sistemática da compilação deu origem a uma grande colecção de obras de literatura exegética (e que não pára de aumentar) e à formação de correntes distintas de estudiosos em competição constante. De acordo com o filósofo Legalista Han Feizi [韩非子] (280-233 a. C.), dentro da escola Confucionista houve oito facções durante o século III a. C. 11. Deve-se também afirmar que Confúcio não lidou abertamente com a questão de avaliar a natureza humana tendo em vista o que é bom ou mau. Tanto quanto se pode retirar do Lunyu, ela só é mencionada uma ocasião para afirmar que [性相近也,習相遠也] "os homens são parecidos na natureza, mas divergem uns dos outros na acção".12

CONFÚCIO

Confúcio propõe um modelo de sociedade ideal, que corresponde, grosso modo, ao que ele pensava ter existido séculos atrás, quando tudo parecia funcionar adequadamente, graças aos conselhos esclarecidos de governantes sábios e ao auxílio tranquilizador oferecido pelo Céu generoso. Uma Idade do Ouro mítica, contemplada por Confúcio, de forma respeitadora e cheia de admiração, durante a qual o dao, o Caminho dos Reis Sábios do passado, esteve presente no mundo. A Idade do Ouro da história chinesa, maravilhosamente descrita nos Clássicos e particularmente no Shijing [詩经] (Clássico das Odes) assumiu-se como um exemplo do que deveria ser olhado com um sentimento de pesar e uma profunda, e quase religiosa, devoção. A contínua referência à antiguidade implicaria o investimento total da riqueza de conhecimento e valores que o homem teria acumulado durante esse período feliz: [周监於二代,郁郁乎文哉! 吾從周] "O Zhou", como Confúcio afirma "é resplandescente na cultura, havendo antes dele o exemplo das duas dinastias anteriores. Eu sou pelo Zhou".13 Confúcio tornou-se o intérprete e arauto desses mesmos valores, o aparentemente perdido dao; [溫故而知新,可以為師矣] "Um homem é digno de ser um professor se chegar ao conhecimento do que é novo e conservar fresco na mente o que lhe é familiar"14

Infelizmente este equilíbrio social foi-se dissolvendo, mas poderia ainda ser recuperado. Como Confúcio disse: [人能弘道,非道弘人] o homem que pode fazer o Caminho grande, não é o Caminho que faz o homem grande".15 Assim quem teve a educação certa e se tornou graças à sua educação, um junzi [君子], um homem superior à média, um verdadeiro cavalheiro, uma pessoa exemplar [君子務本,本立而道生] "devota os seus esforços às raízes, já que uma vez as raízes bem assentes, o Caminho crescerá a partir daí".16 Os sábios do passado são reconhecidos como tendo o mérito de ter compreendido o dao, o Caminho. O dao, o princípio regulador do mundo, dos homens e das coisas, pode, por conseguinte ser aprendido e transmitido. Transmitir o dao é a missão de que Confúcio foi investido. Foi o dao dos homens mais do que o dao do Céu que lhe interessava. Confúcio tinha o devido respeito pelo mundo divino, mas mantinha também uma distância conveniente.17

Mas será realmente possível aprender o dao? É uma tarefa que cada um pode assumir ou será desígnio de eleitos? Confúcio tentou dar respostas convincentes a estas questões e às suas numero. sas implicações. E é este o ponto a partir do qual, de acordo com a minha interpretação do desenvolvimento do antigo confucionismo, as duas principais correntes do pensamento confucionista derivam. Elas correspondem às correntes a que mais tarde Mêncio e Xunzi respectivamente aderiram: a doutrina do ren (humanidade, benevolência, virtude) e a doutrina do li [禮] (ritos, normas tradicionais de conduta ritual).

Confúcio defendia que o amor e o sentido do dever para com a família (primeiro os pais, depois os irmãos mais velhos e por aí adiante) eram sentimentos naturais ao homem. Afecto e respeito dentro da família eram para Confúcio valores fundamentais, os alicerces de um sentimento mais amplo que irradia para a esfera externa, em direcção ao próximo. Atribuiu grande importância a este sentimento, que ele chamou ren. Ren assumiu o papel da maior virtude e foi considerado um todo que englobava todas as qualidades morais presentes no coração do homem, característica distintiva do homem que implicava a noção de bondade inata. Este ponto de vista foi partilhado por Mêncio18 e depois dele por muitos outros confucionistas.

É na relação com os outros que a condição de virtude máxima se torna concreta e se manifesta, tornando-se num profundo sentimento de humanidade, comportamento que é inspirado pela mais ampla compreensão possível e benevolência para com os outros. Isto não é um ideal estático. Antes é dinâmico, e envolve todo o processo de crescimento interior do indivíduo. É um caminho longo e difícil, não obstante, essencial se o indivíduo realmente se quer integrar no contexto social.

A família, por isso, assumiu o papel de paradigma da vida moral do homem e de modelo social. De acordo com esta opinião, a vida social era preenchida com uma estrutura complexa de obrigações, assente em normas específicas, o li, que é geralmente traduzido por "ritos, acção ritual, cerimónia, etc" ou "convenções morais, normas de conduta, etiqueta, decoro, normas de comportamento tradicional etc." Estas obrigações, que remetem à ordem encontrada na natureza e no universo atribuem a cada um lugar e papel específicos. Deste modo uma relação directa foi estabelecida entre o mundo do homem e o sobrenatural. Um respeito rigoroso pelas normas garantiria a cada indivíduo uma posição definida dentro da família e da sociedade. A importância do li foi enfatizada por Confúcio não só devido aos benefícios materiais evidentes que derivariam da sua correcta aplicação, mas acima de tudo na medida em que fornece um modelo de vida em conformidade com os desígnios celestiais.

Foi graças a Confúcio que o li adquiriu o significado de normas e convenções rituais capazes de garantir o comportamento individual a par com uma observância total da herança cultural tradicional. A natureza social e religiosa das normas tradicionais da cerimónia ritual foi exaltada pelo nível de solenidade que lhes era concedido, que lhes dava uma aura de santidade profunda, respeito e temor. Não foi por acaso que Confúcio afirmou que o homem deve [出門如見大賓,使民如承大祭] "em público portar-se como se estivesse a receber em sua casa um convidado importante, lidar com o homem comum como se praticasse um grande sacrifício".19

Xunzi[荀子] (310-219 a. C.). Desenho a carvão e aguarela de Lei Chi Ngok.

Outrora a música e a dança, que eram elementos essenciais precedidos pelo apuramento do carácter de cada um, nas cermónias sagradas, assumiram um papel fundamental na vida social. Como num ballet artístico e bem dirigido, o mestre designa cada homem, de acordo com uma coreografia pré-determinada, um papel específico, indicando as posições precisas e atitudes. Cada actor tinha de desempenhar o papel que lhe tinham distribuido, tão escrupulosa e solenemente quanto possível. A função do mestre podia ser comparada à de um director muito cuidadoso que zela e coordena cada acção de modo que a representação final seja tão perfeita e harmoniosa quanto possível.20

Se a aplicação das normas tradicionais das cerimónias rituais não fossem precedidas e acompanhadas pelo refinamento da personalidade de cada um, elas transformar-se-iam em regras formais vazias de conteúdo, paródias sem sentido, que em breve seriam abandonadas, abrindo, assim, a sociedade aos riscos de degeneração e à desordem e anarquia. A sua principal função teria falhado. Por outro lado, se a educação fosse, simplesmente, um facto privado sem projecção para o exterior, não beneficiaria a sociedade e o homem teria falhado o principal objectivo da sua vida. A relação simbólica entre o ren e o li é, deste modo, evidente: o estado ideal pode ser atingido apenas quando há harmonia completa entre o ren e o li --este é o equilíbrio perfeito, uma meta difícil mas não impossível.

Deve ser possível adaptar ritos e convenções sociais às mudanças implícitas numa sociedade em rápida evolução, de outro modo eles correm o risco de serem repetidos mecanicamente como gestos gratuitos e cristalizações formais. Isto é possível graças ao yi [義], a capacidade para avaliar e reconhecer o que é justo, adequado e correcto, o fundamento do sentimento de justiça que anima o homem de grande virtude, a base do seu elevado sentido do dever, de rectidão e de moral: [君子義以爲質,禮以行之,孫以出之,信以成之。君子哉] "O verdadeiro cavalheiro tem a moralidade como elemento básico, faz o seu desempenho de acordo com os rituais, espalha-a com humildade e completa-a com confiança--este é o verdadeiro cavalheiro".21

As normas cerimoniais e as convenções sociais estabelecidas ao longo dos séculos devem ser olhadas como o resultado final e síntese de escolhas anteriores, condicionadas e determinadas pelo julgamento moral. De acordo com Confúcio, é graças à interacção harmoniosa destes princípios --ren, li e yi-- que o homem é capaz de se dominar e cultivar as suas qualidades morais e intelectuais: [克己復禮為仁。一日克己復禮,天下歸仁焉。為仁由己,而由人乎哉?] "É pela disciplina e submissão à observância dos ritos que um homem se torna de grande virtude" Se durante um só dia alguém se submetesse à obediência dos ritos através da auto-disciplina, então, o mundo inteiro encontraria a virtude. Contudo, para se tornar um homem de grande virtude ele depende apenas de si próprio, e não dos outros".

Cultivar as próprias qualidades significa aplicar-se diligentemente ao estudo, cuja intenção é [為己] "aperfeiçoar-se" mais do que [為己] "impressionar os outros".22 O homem tem de se devotar à aquisição e interiorização dos li, que são a forma mais alta de conhecimento moral. Confúcio, também ele teve de dedicar-se diligentemente: [我非生而知之者,好古,敏以求以者也] "Não nasci com o conhecimento, mas amando a cultura antiga, mais depressa chego a ele".23 O processo de maturação interior pode levar uma vida inteira, como foi o caso de Confúcio que confiou que [吾十有五而志于學,三十而立,四十而不惑,五十而知天命,六十而耳顺,七十而從心所欲,不踰矩] "Aos quinze entreguei o meu coracão ao conhecimento; aos trinta manifestei o meu ponto de vista; aos quarenta perdi as dúvidas; aos cinquenta compreendi a vontade do Céu; aos sessenta ouvia atentamente; aos setenta segui os desejos do meu coração sem transgredir no que era justo".24

Um estudo sistemático e completo da herança cultural é insuficiente; deve ser auxiliado pelo pensamento e pela reflexão, uma das faculdades peculiares do homem, que lhe permite elaborar, com originalidade e criatividade o que aprendeu para o adaptar à realidade social em constante mudança, onde ele está inserido: [學而不思則罔,思而不學則殆] "Se se aprende dos outros e não se pensa, ficar-se-á desorientado. Se, por outro lado, se pensa mas não se aprende dos outros, correr-se-ão perigos".25 Neste sentido, Confúcio está a sublinhar a importância do estudo das normas tradicionais de conduta: [吾嘗終日不食,終夜不寢,以思,無益,不如學也] "Uma vez passei o dia sem comer, e a noite sem ir à cama, mergulhado no meu pensamento. Não me beneficiou nada. Teria sido melhor ter gasto o tempo na aprendizagem".26 Reflectindo sobre os li depois de os ter aprendido a reconhecer e pô-los em prática correctamente, é considerado um exercício essencial no longo percurso que conduz à total compreensão do Caminho. Não é por acaso que o Lunyu começa com uma exaltação do sentimento de realização interior experimentado durante esta caminhada longa e laboriosa: [學而時习,不亦説乎] "Não é uma alegria, tendo aprendido algo, experimentá-lo na altura certa?"27 É graças à interacção construtiva entre o pensamento e a aprendizagem que o indivíduo consegue alcançar a percepção real, a compreensão real, o reconhecimento escrupuloso da realidade circundante. Aprendizagem, reflexão e profundo conhecimento são, por isso, elementos complementares, embora distintos do projecto global de crescimento intelectual do indivíduo, do qual Confúcio foi proponente e seguidor.

Acabaram as diferentes interpretações do papel do si (pensamento) e xue (aprendizagem) no processo de crescimento interior do indivíduo que Mêncio e Xunzi tinha colocado em diferentes caminhos.

MÊNCIO

Mêncio deu uma interpretação eminentemente inatista e idealista à doutrina de Confúcio. Fiel aos ensinamentos do Mestre, deu grande importância ao valor das normas tradicionais, entendidas como premissas indispensáveis para um sistema válido de convenções sociais. Contudo, deu-lhe um papel secundário se comparadas com os princípios de humanidade (ren) e rectidão (yi), que ele pensava serem as expressões mais altas do coração, (xin [心]). Para Mêncio, ren e yi pertencem à esfera interior do homem, e por esta razão são considerados valores básicos da moralidade. Quase como se quisesse enfatizar a sua primazia sobre as outras virtudes, Mêncio inventou a palavra composta renyi [仁義], à qual pretendia atribuir o significado de "moralidade".28

O amor dos pais é inato para Mêncio, tal como era para Confúcio. Assim, tem um valor fundamental no homem e deve ser alargado para além da família. Segundo Mêncio, o homem tem uma capacidade inata (liang neng [良能]) e um conhecimento inato (liang zhi [良知]). Graças a estes dons naturais, todas as crianças reconhecem, instintivamente, o seu amor pelos pais e, uma vez adultos, o seu respeito pelos irmãos mais velhos:

[人之所不學而能者,其良能也,所不慮而知者,其良知也。孩提之童,無不知愛其觀者,及其長也,無不知敬其兄也。親親,仁也。敬長,義也。無他,達之天下也。]

O que o homem é capaz de fazer sem ter aprendido é a sua capacidade inata; o que o homem sabe sem ter de pensar é o seu conhecimento inato. Entre as crianças não há nenhuma que não saiba como amar os pais, e nenhuma delas, que depois de adulta, não saiba como respeitar os irmãos mais velhos. Amar os pais é humanidade; respeitar os irmãos mais velhos é rectidão. O que vem a seguir é apenas o alargamento disto a toda a gente.29

[仁之實,事親是也。義之寳,從兄是也。智之寳,知斯二者弗去是也。禮之寳,節文斯二者是也。樂之寳,樂斯二者,樂則生矣。生則惡可已也?惡可已,則不知足之蹈之、手之舞之。]

O conteúdo de humanidade é servir os pais; o conteúdo de rectidão é obediência aos irmãos mais velhos; o conteúdo de sabedoria é compreender estes dois e agarrá-los com firmeza; o conteúdo das normas tradicionais dos rituais de comportamento é a sua regulamentação e adorno; o conteúdo da música é a alegria do deleite. Quando a alegria aparece quem a pode deter? E quando não se pode pará-la, então começa-se a dançar com os pés e a agitar os braços sem o perceber.30

Mêncio deu o maior valor a xin, um termo que, para os chineses, é denotado com o coração e a cabeça, ao mesmo tempo. Xin é a sede das faculdades intelectuais e afectivas, dos desejos e qualidades morais, mas acima de tudo o centro considerado responsável, graças ao pensamento e à reflexão, por guiar o indivíduo nas decisões importantes que tem, constantemente, de tomar: [心之官則思;思則得之,不思則不得也;此天之所與我者] "O mister do coração é pensar. Quando se pensa encontra-se a resposta; quando se não pensa não se encontra a resposta. Foi isto que o Céu nos deu". 31 Mêncio defende que a capacidade de avaliar e optar pelo comportamento mais adequado em cada situação não é construida apenas pela interiorização de normas culturais, mas antes depende de uma faculdade inata no homem, uma possibilidade real que cada indivíduo é capaz de realizar, graças ao pensamento e à reflexão: [仁義禮智,非由外鑠我也,我固有之也,弗思耳矣] "Humanidade, rectidão, normas tradicionais de conduta e a sabedoria não nos são caldeadas do exterior, elas estiveram, desde sempre, em nós. Só que não nos concentrámos nelas". 32

A predisposição do homem para a bondade, um dom precioso do Céu, é muitas vezes descrita metaforicamente por Mêncio como o gérmen ou o rebento de uma planta que cresce até se tornar forte e madura. Desde o nascimento, todo o indivíduo tem quatro impulsos morais no seu coração, chamados duan [端]: "sementes, rebentos, embriões, botões, etc. " Se bem tratados e alimentados desenvolvem-se e dão origem às quatro virtudes cardinais reconhecidas por Mêncio: "o sentimento de compaixão e participação no sofrimento dos outros é o rebento da humanidade e benevolência (ren); o sentimento de vergonha e desagrado é o rebento da rectidão, do sentido de justiça e da moralidade (yi) ; o sentimento de deferência e respeito pelos mais velhos e superiores é o rebento dos ritos e das normas tradicionais de conduta (li); o sentido do que está correcto e do que está errado é o rebento da sabedoria (zhi) [智]:

[人之有是四端也,猶其有四禮也。有是四端而自謂不能者,自賊者也;謂其君不能者,賊其君者也。凡有四端於我者,知皆擴而充之矣,若火之始然、泉之始達。苟能充之。足以保四海;苟不充之,不足以事父母]

Os homens têm estes quatro rebentos tal como têm os quatro membros; e a partir do momento que os têm, dizerem-se incapazes de os desenvolver é um crime contra si próprios; declarar que o seu príncipe não é capaz de os desenvolver é um crime contra o seu príncipe. Cada um de nós tem estes quatro rebentos. Se soubermos como desenvolvê-los e torná-los perfeitos eles expandir-se-ão corno um fogo que tenha sido ateado ou uma fonte a jorrar. Se soubermos como torná-los perfeitos, será suficiente para tudo proteger dentro dos quatro mares; se não os soubermos aperfeiçoar, nem chegará para servir um pai e uma mãe. 33

De acordo com Mêncio, a natureza humana, (xing [性]), não está completa ao nascer. A tendência para a bondade e a moralidade é um potencial, sob a forma de rebentos que têm de ser tratados para crescer. Ao nascer, de facto, o homem é, apenas capaz de responder, instintivamente a estímulos exteriores. O desenvolvimento não tem lugar arbitrariamente, antes deve seguir um caminho específico (dao). Cada rebento tem uma espécie de DNA que o conduz ao longo de um caminho determinado. Ad semen nata respondent: tal como um carvalho não pode nascer de uma semente de pessegueiro, também os rebentos da virtude não podem dar origem a nada que não tenha sido pré-inscrito no seu código genético. Quando muito, podem não crescer, permanecer latentes e até serem reprimidos. Se o homem souber cultivá-los então ele será capaz de encontrar o Caminho que o conduz até à realização completa do eu, à perfeição e sabedoria. Uma reflexão escrupulosa e contínua sobre as próprias acções é a chave que permitirá ao homem compreender e alimentar os seus próprios rebentos de bondade. Actuando em conformidade com a moralidade e reflectindo sobre as próprias acções faz nascer um irreprimível sentimento de alegria, um sentimento que é tão forte que [不知足之蹈之、手之舞之] "começa-se a dançar com os pés e a agitar os braços sem ter a noção disso", e os rebentos morais crescerão e darão flores de forma natural e harmoniosa. As inclinações morais pertencem à natureza tal como o crescimento físico. São tão benéficas para o indivíduo que [其生色也,睟然見於面、盎於背。施於四體,四體不言而喻]"aparecem reflectidas no rosto, dando-lhe um ar doce, estende-se às costas e membros, tornando a sua mensagem intelígivel sem palavras". 34

Não é necessário seguir os ensinamentos dos filósofos, insiste Mêncio. Basta cada um entregar-se às suas predisposições naturais e actuar de forma intuitiva e em harmonia com as forças que regulam o mundo e o todo cósmico, ou seja o qi [氣] (energia psico-física, energia vital, respiração vital, a respiração primordial, o élan vital, etc.). Mêncio reformulou o conceito de qi, atribuindo-lhe um valor ético que anteriormente não tinha e criou uma expressão especial, haoran zhi qi [浩然之氣] "o qi-inundante" [其為氣也至大至剛,以直餋而無害,則塞于天地之間。其為氣也配義與道,無是餒也。是集義所生者,非義襲而取之也。行有不慊於心則餒矣] "Um género de qi que tem o máximo da importância e o máximo da firmeza. Se alimentado pela rectidão e sem interferências, preencherá o espaço entre o céu e a terra. É a espécie de qi que nos guia a direito até ao Caminho; sem isto ele não sobrevive. É originado por uma acumulação de boas obras e não pode ser apropriado por ninguém que apenas apresente, esporadicamente, a sua rectidão. Se algo na conduta de alguém é insatisfatório para o coração ele não sobrevive". 35

Por conseguinte, "é a essência pura da energia vital que é alimentada por uma firmeza de espírito que apenas os verdadeiros cavalheiros e os sábios podem atingir quando baseiam todas as suas acções nos princípios de integridade e rectidão, que são os elementos constitutivos da moralidade. Esta forma peculiar de qi é responsável por condicionar directamente a personalidade do homem, o seu temperamento e vontade. É uma componente fundamental do xin dos verdadeiros cavalheiros, não só porque a sua sede é o coração e ele regula a estabilidade, mas também porque está ligado à força moral (de [德]) que é a base do comportamento altivo dos sábios, do soberano iluminado e do próprio Céu. Ele [塞于天地之間] "preenche o espaço entre o céu e a terra", e permite ao indivíduo tomar-se parte do todo, transcendendo a experiência humana e relacionando-se directamente com o universo inteiro. A contínua acumulação deste qi produz firmeza no indivíduo, que é a atitude característica dos que sabem que têm razão e não têm receio de nada nem de ninguém, uma coragem moral que não conhece o medo baseada, como é, na calma e num sentimento interior de segurança. São elementos essenciais para um espírito inabalável (bu dong xin [不動心]), que é próprio de um sábio.

Mêncio identificou bondade com a tendência inata no homem de ser bom, e considerou a bondade, que podia ser definida como privatio boni mais do que uma realidade efectiva que se opõe ao mal para ser um factor independente nas qualidades naturais do indíviduo.36 É significativo que ao descrever o mal e tendo indicado o conceito oposto a shan [善] "bom", Mêncio nunca tenha utilizado o termo mais comum na literatura contemporânea, e [惡], mas antes bu shan [不善] "não-bom, não se tornar bom". O mal é assim explicado em termos de "fracasso", uma incapacidade para desenvolver o próprio potencial e de estar em harmonia com o dao. Mêncio não vê a realidade positiva do mal, mas apenas a negativa. Ele entendia o mal como algo que, mais do que acrescentar, tira: é uma privação, é "um-não-ser-o que-podia-e-devia-ser".

A consciência do risco de se poder deslizar para o mal é indispensável no aperfeiçoamento do crescimento interior de cada um: [不明乎善,不誠其身矣。是故誠者,天之道也。思诚者,人之道也] "Se o homem não compreende claramente a bondade, não pode ser uma pessoa completa. Por esta razão, ser moralmente completo é o Caminho do Céu; reflectir cuidadosamente sobre a perfeição moral é o Caminho do homem".37 Cada indivíduo tem de trabalhar o mais possível para que possa fruir os valores positivos que o Céu lhe deu ao nascer. É esta a razão porque, de acordo com Mêncio, [盡其心者,知其性也。知其性,則知天矣。存其也,餋其性,所以事天也]"um homem que dá realização completa ao seu coração, compreende a sua própria natureza e o homem que conhece a sua própria natureza comprende o Céu. Guardar o coração e alimentar a natureza — esta é a maneira de servir o Céu".38 Sofrimento e dor ajudam a temperar o carácter e a fortalecer a vontade. Graças à experiência da dor, o indivíduo é capaz de compreender o sofrimento dos outros e assim sentir compaixão. 39

Mêncio estava convencido de que [人皆可以為堯舜]"todos os homens são capazes de se tomarem um Yao [堯] ou Shun [舜]",40 os míticos Sábios Reis do passado, já que tudo ponderado [聖之與我同類者] "os sábios e nós somos da mesma natureza".41 Contudo, ele também tinha consciência que para a maioria dos homens uma realização completa da sua própria natureza era difícil senão impossível graças às condições materiais adversas em que toda a humanidade vive e as influências negativas oferecidas pelo ambiente circundante, que impede o indivíduo de desenvolver as suas inclinações positivas inatas:

[富嵗,子弟多赖,凶岁,子弟多暴。非天之降才爾殊也,其所以陷溺其心者然也。今夫麰麥,插種而擾之,其地同,樹之時又同,浡然而生,至於日至之時,皆熟矣。雖有不同,則地有肥磽,雨露之餋、人事之不齊也。故凡同類者,舉相似也,何独至於人而疑之?“…”至於心,独無所同然乎?心之所同然者,何也?謂理也,義也。聖人先得我心之所同然耳。]

Nos anos bons, os jovens são, na maioria, remissivos, enquanto que nos anos maus são, na sua maioria, violentos. E não é devido ao facto de o Céu ter dotado os homens de qualidades diferentes. A diferença vem do que leva os homens a refrear o seu coração. Por exemplo, peguem em cevada, enterrem as sementes e cubram-mas com terra. O solo é o mesmo e a época de cultivo é também a mesma. As plantas crescem e quando chega o solstício de verão estão maduras. Se as coisas acontecem diferentemente é porque o solo varia em riqueza e não há uniformidade no que diz respeito aos efeitos da chuva e do orvalho e ao montante de esforço humano dispendido a quem zela por isso. Então, as coisas do mesmo género são todas semelhantes. Por que é que duvidamos tanto quando se trata do homem?[...] Prova-se que os corações são uma excepção, porque não têm nada em comum? O que é então comum a todos os corações? Na minha opinião, os princípios básicos da ordem natural e moralidade. O sábio é simplesmente o homem que primeiro descobriu o elemento comum existente nos nossos corações.42

Proporcionar um nível básico de bem-estar, que é um pré-requisito para a educação moral, é, exclusivamente, a preocupação do governante. É uma responsabilidade de que ele deve estar muito consciente e é apenas o começo e não o fim último de uma política governamental sensata —algo que os Reis Sábios do passado tinham sempre presente, de acordo com Mêncio.

[無恆産而有恆心者,惟士為能。若民則無恆産,因無恆心。苟無恆心,放辟邪侈,無不為已。及陷於罪,然後從而刑之,是罔民也。焉有仁人在位,罔民而可為也?是故明君制民之産,必使仰足以事父母,俯足以畜妻子,樂嵗終身飽,凶年免於死亡;然後驱而之善。]

Só o verdadeiro cavalheiro tem um coração firme apesar de uma falta de meios de apoio constantes; sem estes meios, o homem comum não terá um coração firme. Por conseguinte, ele perde-se e cai em excessos. Castigá-los depois de os ter levado a cometer crimes é pôr uma ratoeira ao povo. Como pode um homem de grande virtude na autoridade permitir-se colocar ratoeiras para o povo? Por esta razão, quando na determinação dos meios de apoio o povo deve ter, um governante lúcido deve assegurar que estes sejam suficientes, por um lado, para cuidar dos pais, e, por outro, para o apoio da mulher e dos filhos, para que o povo tenha comida suficiente durante os anos bons e escapem à fome nos maus; só depois ele os guia para a bondade.43

Mêncio valorizava o pensamento e a reflecção entendidos como uma faculdade do coração, dando-lhe a função de avaliar a correcção de comportamentos, sob o ponto de vista moral. O coração, ou xin, foi então reconhecido como autoridade em termos de decisões morais, e não os ritos e as tradicionais normes de boa conduta, ou li. Mêncio atribuiu a máxima importância à capacidade inata do coração de tomar decisões oportunas. A reflexão proporciona ao indivíduo a autonomia moral que lhe permite adquirir a sua própria consciência independente; é a chave que conduz à sabedoria, que uma vez atingida, torna possível a compreensão do Caminho. Esta abordagem, que considera a cultura e a aprendizagem factores importantes para o crescimento interior (embora não seja colocado como elemento básico ou inicial) é perfeitamente concordante com a doutrina de Confúcio do ren (humanidade, benevolência, virtude).

Xunzi, contudo, não pensava que a ideia de que a perfeição moral pudesse ser atingida através da introspecção e da reflecção, fosse plausível ou aceitável. Ele não pensava que o homem fosse capaz de autonomia moral, mas antes, enfatizava a importância do estudo da herança cultural vinda do passado, dos Clássicos e acima de tudo dos ritos e convenções sociais. Estes ritos e convenções tornaram-se, para Xunzi, a base à volta da qual girava todo o sistema, tanto o político como o social e o controle moral do indivíduo. Isto coincide com a doutrina de Confúcio, dos li (ritos, normas tradicionais de conduta).

As teses de Mêncio e Xunzi estão na mesma linha do pensamento de Confúcio. As diferenças são, em muito, devidas à diferente ênfase posta pelos dois filósofos nas doutrinas do ren e dos li e por consequência no papel de oposição entre o si (pensamento) e o li (aprendizagem).

XUNZI

Xunzi que interpretou cuidadosamente a realidade do seu tempo (nas vésperas da fundação do império), reelaborou as doutrinas de Confúcio e de Mêncio à luz das principais ideias de outras escolas do pensamento, que ele, no entanto, não cessou de criticar. Antes de analisar as suas doutrinas, contudo, talvez valha a pena considerar a questão controversa da autenticidade do Capítulo 23 atribuido a Xunzi, dedicado à natureza humana. Alguns estudiosos expressaram, de facto, dúvidas no que respeita à paternidade do capítulo inteiro, alguns apenas a algumas das suas partes e outros muito simplesente a algumas afirmações feitas no capítulo--e sobretudo aquela [ren zhi] [xing e] [人之][性惡] (a natureza humana é má) que dá o nome ao próprio capítulo, uma espécie de estribilho que é usado de forma quase monótona, como se fosse uma antífona, perto do fim das principais partes.

Segundo a minha perspectiva, Xunzi é o autor da maior parte das secções contidas no Capítulo 23, em que a maioria das ideias expressas são compatíveis com as encontradas no resto da obra. Algumas passagens são, simplesmente, a repetição de outras encontradas noutras partes, outras, ainda são paráfrases de passagens encontradas no resto do trabalho; e por vezes temos o "eco" da terminologia usada por Xunzi. No seu todo, o capítulo é um verdadeiro ensaio sobre o tema da natureza humana, deliberadamente elaborado como crítica a Mêncio e às suas teorias. É quase certo que não foi compilado por Xunzi na sua forma actual. Foi habilidosamente construido por Liu Xiang [劉向] (79-6 a. C.) editor da primeira edição do trabalho de Xunzi, o Xunzi [荀子] que "coseu" todos os textos que eram homogéneos no estilo, terminologia e conteúdos, tentando dar uma forma lógica e sistemática às diferentes partes. O ensaio é constituido de duas partes distintas (partes 32.1-5 e 23.6-8, respectivamente), em que a segunda, como alguns estudiosos referiram, é considerada espúria já que não é tão homogénea se comparada com a primeira.44 Isto não significa que as últimas três partes não tenham sido escritas por Xunzi: É o facto de elas terem sido colocadas no fim do Capítulo 23 que parece inapropriado, ou pelo menos questionável. Do mesmo modo, outras passagens e partes podiam ter sido colocadas mais apropriadamente no Capítulo 23, tal como a parte 19.6, que aparece inapropriadamente colocada no capítulo entitulado Lilun [禮論] (Discurso sobre os Princípios Rituais).

Os chamados estribilhos que aparecem no fim de algumas partes principais parecem ser meras interpolações. Não são coerentes com o estilo ou a retórica de Xunzi e, de facto, não são encontrados no resto da obra nem nas secções espúrias inseridas no fim do ensaio. É, por isso, muito plausível que tenham sido escritas por outra pessoa--se não por Liu Xiang ou outro comentador, certamente por um discipulo da ala Legalista mais "fundamentalista", como propôs Kanaya Osamu [金谷治].45 Em minha opinião, esta é mais provável do que a asserção de que Xunzi o teria escrito já tarde na vida, quando a sua desilusão e pessimismo o tinham conduzido a posições extremistas. Sem estes estribilhos, o capítulo inteiro pareceria mais em consonância com o tom do resto da obra. Na literatura filosófica do período clássico há uma forte tendência para reduzir as doutrinas dos adversários a fórmulas simplificadas, resumindo os seus pensamentos de forma esquemática mas eficiente e sugestiva. É, por esta razão, legítimo duvidar que os estribilhos que sublinham as diferenças entre as teses de Xunzi e Mêncio sejam realmente a expressão do pensamento de Xunzi.46

Por fim, devemos considerar a questão terminológica, muitas vezes invocada para minimizar o "conflito insolúvel" entre as teses de Xunzi e de Mêncio sobre a natureza humana. Deve ser referido que, em oposição ao ocidente, o conceito de mal na China não foi compreendido nem tratado em termos "totalizantes". Assim, parece que a noção de "mal absoluto" ou "mal radical", como foi apresentado na nossa cultura, está absolutamente ausente da cultura chinesa. Na tradição chinesa, o mal é concebido mais como uma incapacidade, parcialidade, desvio de princípios naturais, trangressão das normas ou rebelião. Quer, muitas vezes, significar repugnante, com uma marcada caracterização estética, ou perigoso e, neste caso, corresponderia ao que temos definido como "mal natural". Nunca é, contudo, representado como uma força cósmica ou uma entidade absoluta, em oposição à bondade, nem como uma de duas divindades opostas e incompatíveis. As forças do mal nunca aparecem figuradas como tendo força propulsiva; nunca são ocultas, nem são comparáveis às concepções nitzcheanas dos Cíclopes, os arquitectos e pioneiros da humanidade. A noção de pecado original está ausente. E mais, a própria ideia de pecado, tal como foi introduzida na China, por Confúcio, é radicalmente diferente das noções de pecado, culpa e arrependimento, conforme a tradição judaico-cristã. A palavra usada em chinês, e, que geralmente é traduzida por "mal", não tem, certamente, a carga que "mal" e os seus derivativos e sinónimos têm nas línguas e culturas ocidentais. Nunca Xunzi seria capaz de imaginar ou teorizar a existência de um mal ontológico, ou da possibilidade de se ser atraído para o mal como um caminho para o conhecimento de si próprio, ou de uma relação subserviente ou dedicação ao mal de per si. 47 Donald Munro explicou o conceito de mal de Xunzi em termos de um xing, natureza humana inacabada. Fez um grande esforço para indicar as áreas em que Xunzi e Mêncio concordam e foi o primeiro no ocidente a expôr claramente o problema:

As interpretações tradicionais envolvem, muitas vezes grandes simplificações da descrição do xing na obra, geralmente suportadas por algumas citações da primeira parte do capítulo "Sobre a Maldade da Natureza Humana" (Xing e pian [性惡篇]). O estudo detalhado do texto de Liu Xiang sobre o Xunzi, feito por Kanaya Osamu, trouxe à luz do dia argumentos interessantes a examinar, pelo menos na primeira parte daquele capítulo, conforme foi composto por discípulos mais tardios de Xunzi, trabalhando sob a influência da escola legalista de Han Fei. Mesmo nesse excerto a repetição da afirmação de que o xing é mau, é feita para, em parte, enfatizar a crítica a Mêncio. Outros factos para além do testemunho textual discutido detalhadamente por Kanaya, deram grande importância à noção de natureza humana má em qualquer estudo do pensamento de Xunzi. Primeiro, não há outras referências ao xing como mau, no resto da obra, o que seria estranho se fosse algo de tão importante no pensamento de Xunzi. Segundo, o tema com que Xunzi está preocupado é óbvio: como atingir um equilíbrio das virtudes, que são poucas, e dos desejos humanos, que são extremamente numerosos, sem exigir o ascetismo de ninguém. Finalmente, no resto do trabalho, xing aparece, claramente, não como algo de mau, mas como qualquer coisa pouco desenvolvida.48

Chad Hansen faz referência ao vazio existencial que conduz o homem a desejar a bondade, uma aspiração que não brota do mal, mas antes de um desejo de preencher um vazio interno de que o homem é prisioneiro:

Faltam-nos provas de que Xunzi tenha um ponto de vista cristão de um mal positivo na natureza humana. Qualquer que tenha sido o papel da ideia (a natureza humana é má) na distinção da sua opinião da de Mêncio, nós caracterizámo-la ao dizer que a natureza humana é neutra. É neutra no que diz respeito à moral a adoptar, e naturalmente adopta uma. A interpretação coerente mais forte que podemos dar ao conceito é de que o homem viveria no caos e na desordem sem uma moral socialmente condutora. [...] Todo o ser humano tem uma tendência natural para aprender linguagens, rituais e partilhar opiniões. Somos uma espécie com uma tendência natural para a conformidade numa doutrina comum, ou seja a moralidade. Desejamos o bem porque temos aquele potencial não preenchido, um vazio natural na nossa estrutura. Não o desejamos porque somos maus, mas porque estamos ocos. Esse potencial não preenchido é tudo o que Xunzi pode querer significar por mal, se, na realidade, ele for o autor daquele conceito.49

É a esta espécie de vazio existencial a que Xunzi parece referir-se quando, numa das definições de natureza humana que ele caracteriza em termos de e "mal", ele afirma:

[凡人之欲為善者,為性惡也。夫薄願厚,惡願美,狭願廣,貧願富,賤願贵,苟無之中者,必救於外。]

Em geral, os homens querem ser bons porque a sua natureza é má. Os medíocres desejam ser excelentes, os feios desejam ser bonitos, os que vivem em espaços exíguos desejam os espaços amplos, os pobres desejam ser ricos, o inferior deseja ser superior-o que lhe falta dentro dele o homem vai procurar fora.50

Deste ponto de vista, o mal não é algo que seja por si próprio positivo e independente; é antes uma ausência, uma falta, uma lacuna estrutural dentro do homem devida à sua imperfeição natural.

Mesmo o termo chave, em debate, xing, normalmente traduzido como "natureza, natureza inata, natureza original" origina grandes problemas. Um, de natureza transcultural: suspeito que é praticamente impossível encontrar, nas línguas ocidentais, termos correpondentes que sejam tão exigentes e comprometidos como os normalmente usados. Há também, um problema dentro do próprio debate chinês. Como diferentes estudiosos referiram, Xunzi parece ter interpretado mal a posição de Mêncio sobre a natureza humana devido a um significado diferente atribuido a xing. 51 Muitos estudiosos parecem concordar neste ponto -- desde D. C. Lau, de acordo com o qual "Mêncio procurava o que é distintivo enquanto que Xunzi procurava o que é inseparável nela",52 para A. C. Lau, de acordo com quem "Xunzi critica a doutrina da bondade inata a partir de uma definição de natureza humana que não é a de Mêncio, de tal modo que as suas objecções embora argumentadas de forma lúcida, não vão directas ao ponto. Não é fácil localizar os pontos de discórdia".53

Na base destas considerações, vamos examinar a posição assumida por Xunzi. Apoiante convicto de um modelo ideal de universo que vê o homem em perfeita unidade com o Céu e a Terra, ele enfatiza o papel da cultura e da educação e reafirmou vigorosamente a importância dos ritos e das convenções sociais (li). Para Xunzi, os ritos (ou normas tradicionais de bom comportamento, como parece ser preferível traduzir li, na maior parte dos casos) não são mais nada do que uma extensão da ordem presente na natureza: tal como o são as leis e princípios que governam naturalmente o mundo; assim o mundo dos homens é, por seu turno, governado por modelos e regras. Os sábios descobriram-nos e compreenderam-nos e traduziram-nos para um sistema orgânico de normas formais, de modo a que a harmonia entre o mundo natural e o terreno fosse assegurado:

[禮者,治辦之極也,強国之本也,威行之道也,功名之總也。王公由之,所以得天下也;不由,所以隕社稷也。]

Os ritos e as normas tradicionais de conduta são a expressão mais elevada de ordem e discriminação, raiz da força do estado, o Caminho através do qual se cria a autoridade e o foco no mérito e na fama. Governantes e nobres que procedem de acordo com a sua condição ganharam o mundo, enquanto que aqueles que não o fizeram trouxeram ruína para os seus altares de solo e grão.54

[天地以合,日月以明,四时以序,星辰以行,江河以流,萬物以昌,好惡以節,喜怒以當,以為下則顺,以為上則明,萬物變而不亂,貳之則喪也。禮豈不至以哉!]

Através dos ritos, o Céu e a terra estão em harmonia, o sol e a lua brilham, as quatro estações observam o seu ritmo natural, as estrelas e os planetas movem-se ordenadamente, os rios e as correntes fluem e enormes quantidades de coisas florescem. Através dos ritos e normas tradicionais de conduta, as paixões dos homens são temperadas e encontram o seu próprio equilíbrio, os inferiores são obedientes e os superiores iluminados. Através de uma miríade de transformações, todas as coisas adquirem a sua ordem; só aquele que volta as costas aos ritos trará a ruína. Não são eles maravilhosos?55

Estudar diligentemente os ritos e as normas tradicionais de conduta, segui-las com devoção, pondo-as em prática com persistência, estes são, de acordo com Xunzi, os passos fundamentais no processo educacional a que cada indivíduo se deve submeter. Nem todos, no entanto, têm o que é necessário para prosseguir, da mesma maneira, ao longo do caminho. Pelo contrário, para a maioria dos homens é um caminho extremamente difícil de prosseguir, e em alguns casos quase impossível. Em contraste com o que Mêncio defendeu, em que, graças ao pensamento e à reflexão, qualquer um podia comprender-se a si próprio e entender, concretamente, o Caminho indicado pelos Reis Sábios do passado, 56 e de acordo com Confúcio em que [民可使由之,不可使知之] "o homem comum pode seguir o Caminho, mas não o pode compreender", 57 Xunzi afirmou que apenas um pequeno número de pessoas particularmente dotadas era capaz de ser bem sucedido onde outras não eram: [齊明不而不竭,聖人也]: "Só aquele cujo entendimento é de uma agudeza sem limites é um sábio". 58

Só o sábio pode apreciar o significado e valor profundo dos ritos e das normas tradicionais de conduta e seguir o Caminho. Estes objectivos não podem ser atingidos pelo desenvolvimento da natureza inata de cada um, mas antes através de um longo e conscencioso processo de estudo e aprendizagem. Tal como Confúcio que tendo [終日不食,終夜不寢,以思,無益] "passado o dia inteiro sem comer e a noite inteira sem ir para a cama, sempre a pensar, sem receber nada em troca" de tal modo que para ele [不如學也] "teria sido melhor ter passado o tempo a aprender", 59 também Xunzi [嘗終日而思矣,不如須臾之所學也] "passou o dia inteiro a pensar, mas foi de menos valor do que um momento de estudo". 60 Pensamento e reflexão, apenas, de acordo com o Mestre, são de pouco valor. É no estudo e na aprendizagem dos rituais e dos Clássicos da tradição que nos devemos concentrar. Por outras palavras, os princípios morais não são inatos no nosso coração, nem eles estão presentes quando nascemos, conforme Mêncio acreditava. São antes um factor exterior ao coração [聖人之所生也] "criações dos sábios", para usar as palavras de Xunzi, [人之所學而能,所事而成者也]"coisas que as pessoas devem estudar para serem capazes de os seguir e às quais os sábios se devem aplicar para se tornarem perfeitos". 61

Estas ideias são reminiscências de outras, muito mais antigas, postas por Gaozi [吿子](420-350 d. C.). 62 Ele manteve a tese da indiferença moral, uma espécie de neutralidade da natureza humana, que ele viu como condicionada essencialmente por algumas necessidades primárias que têm que ser satisfeitas [食色,性也] "comida e sexo", para usar as suas palavras, "caracterizam a natureza humana". 63 Ele considerou que humanidade (ren) era um sentimento inato ao coração, e a justeza (yi), o elemento base da moralidade exterior. 64 Ele concordou com Confúcio no facto de que cada indivíduo tem uma predisposição natural para amar os membros da sua própria família, mas considerou que este sentimento era insuficiente para definir o homem como bom. Tal como Xunzi faria mais tarde, Gaozi defendeu que a capacidade de avaliar e escolher o comportamento mais apropriado para cada circunstância depende da interiorização de factores externos, tais como as convenções sociais baseadas nos ritos e as normas tradicionais de conduta aprendidas através da educação.

Xunzi atribuiu um papel importante aos Clássicos. Estes, apesar de tudo, descrevem, de forma admirável, a idade de ouro da humanidade e os feitos lendários dos Reis Sábios, do passado. A leitura dos Clássicos permite perceber as regras daqueles homens excepcionais, dar forma concreta aos seus ensinamentos, tentando adaptar a visão idealizada daquela época mitificada à moral crescente e à degradação social. O modelo ideal de sociedade pode ser, assim, estudado, aprendido e reproduzido no presente:

[況夫先王之道,仁義之統,詩、書、禮、樂之分乎。彼固天下之大慮也,將為天下生民之屬長處顧後而保萬世也,其流長矣,其溫厚矣。“…”以治情則利,以為名則榮,以群則和,以獨則足樂,意者其是邪?]

A grande importância dos Reis Sábios do passado, os princípios orientadores da humanidade e justiça, o padrão de vida dado em Classic of Odes, Classic of Documents, Books on Ritual, e Record on Music; estes contêm, certamente, os pensamentos mais importantes do mundo. Motivam, quem nasceu para o mundo, a ter em considerção uma visão alargada das coisas e a pensar nas consequências, protegendo assim, as gerações futuras. A sua infuência é eterna, a sua sabedoria acumulada e pronta a ser reanimada é substancial, e os seus actos e realizações espalham-se por toda a parte. [...] Se os usarmos para trazermos ordem à nossa natureza emocional, beneficiamos com isso. Se os usarmos para fazer nome, ganharemos honra. Se os usarmos na companhia dos outros ficaremos em harmonia com eles. Se os usarmos quando estivermos sós, ficaremos satisfeitos. Que maior alegria pode vir para o nosso intelecto do que isto! 65

A alegria a que Xunzi se refere é a mesma alegia mencionada por Confúcio na primeira passagem de Lunyu ([學而時習之,不亦説乎] "Não é uma alegria, ter aprendido alguma coisa, e experimentá-la na hora certa? "), não a felicidade que vem do conformismo com a moral, que nos faz [不知足这蹈之、手这無之] "dançar e agitar os braços sem darmos por isso", 66 de que Mêncio tanto gostava. Esta espécie de alegria, alimento fundamental para os rebentos morais, era completamente desconhecida de Confúcio e Xunzi.

Tal como o homem comum, por si próprio, não é capaz de compreender o Caminho dos Reis Sábios do passado, [學莫便乎近其人] "na aprendizagem, não há melhor método do que a associação com um homem de saber", 67 também Xunzi deu grande importância ao papel dos professores e à influência benéfica dos seus ensinamentos. Graças à orientação oferecida por bons professores, é, indiscutivelmente, mais fácil compreender o Caminho:

[有師法者,人之大寳也;無師法者,人之大殃也。人無师法則隆性矣,有師法則隆積矣,而師法者,所得乎情,非所受乎性,不足以獨立而治。]

Os mandamentos positivos dos professores são o maior tesouro do homem e a falta deles a maior calamidade. Se um homem não tem os preceitos positivos de um professor, ele realçará a sua natureza inata; se ele os tem, realçará a sua natureza adquirida. Portanto, os preceitos positivos dos professores são o resultado de um esforço acumulado e não da natureza inata, pois esta não consegue estabelecer por si própria • um modelo de boa ordem. 68

[禮者、所以正身也,師者、所以正禮也。無禮何以正身? 禮師,吾安知禮之為是也? 禮然而然,則是情安禮也;師云而云,則是知若師也。情安禮,知若師,則是聖人也。]

É através de rituais que o indivíduo pode ser corrigido; é através de um professor que o ritual pode ser corrigido. Se não houver rituais, como pode o indíviduo ser corrigido? Se nos comportamos em conformidade com os ritos e as normas tradicionais de conduta, a nossa natureza emocional será temperada por aquelas normas. Quando se fala como o professor fala, isso significa que o conhecimento se tornou igual ao do professor. Quando a natureza emocional encontra paz em rituais e o conhecimento é igual ao do professor, então tornamo-nos sábios. 69

Xunzi estava convencido que havia um princípio comum a todas as criaturas que vivem entre o céu e a terra: a necessidade de se associarem com o seu semelhante. O homem não é excepção e sendo o mais dotado dos seres, esta tendência é ainda mais forte e sobressai acima de tudo [人之於其親也,至顽强無窮] "no seu amor pelos pais que nunca se extingue até à morte". 70 O homem é a criatura mais nobre da natureza e só ele possui o yi: "o sentido do que é certo e adequado", o fundamento da justeza e da moralidade, e o fen [分]: "a capacidade de organizar a sociedade na base de uma "divisão social e distinção de classes" muito precisa. 71 Se as classes e as suas funções específicas são baseadas em princípios de moralidade e justiça (yi) e são reguladas pelos ritos e pelas normas tradicionais de conduta (li), então a harmonia prevalecerá no mundo. Se houver harmonia, haverá também unidade e força, que são factores determinantes para ultrapassar dificuldades e criar bem estar e segurança para todos. Pelo contrário, se não houver distinção social, ou se ela não fôr respeitada, segui-se-à desordem, violência e pobreza:

[然則從人之欲,則势不能容、物不能贍也。故先王案為之制禮義以分之,使貴賤之等,長幼之差,知賢愚、能不能之分。]

Se todos os homens dessem livre sentido aos seus desejos, o resultado seria difícil de suportar, e os bens materiais do mundo não chegariam para satisfazer a todos. Por conseguinte, os Reis Sábios do passado actuaram de forma a controlá-los com regulamentações, rituais e princípios morais, para, deste modo, dividirem a sociedade em classes, criando, ao mesmo tempo, diferenças de estatuto entre nobres e pessoas de origem modesta, disparidades entre os privilegiados de idade e os jovens, e a divisão entre os inteligentes e os estúpidos, entre os capazes e os incapazes. 72

[禮起於何也? 曰: 人生而有欲,欲而不得,則不能無求;求而無度量分界,則不能不淨;爭則亂,亂則窮。先王惡其亂也,故制禮義以分之,以餋人之欲,給人之求,使欲必不窮乎物,物必不屈於欲,两者相持而長,是禮之所起也。]

De onde surgem os princípios morais? Eu digo que os homens nasceram com desejos. Se não os satisfizerem, isso leva-os a procurarem a sua satisfação, se ao satisfazê-los os homens não usarem moderação nem tiverem limites, será inevitável um combate para encontrarem os meios através dos quais os seus desejos possam ser satisfeitos. Tal combate leva à desordem social e a desordem social à miséria. Os Reis Sábios rejeitaram esta desordem, e por isso estabeleceram regras, rituais e princípios morais para estabelecer uma divisão de papéis, alimentar os desejos dos homens e a sua satisfação. Modelaram as regras de modo que os desejos não sejam totalmente satisfeitos e os bens materiais não sejam esgotados pelos desejos. Deste modo, desejos e bens materiais sustentam-se uns aos outros através dos tempos. Esta é a origem dos princípios rituais. 73

Vitiis nemo sine nascitur: Xunzi teria, certamente concordado com a máxima de Horácio. 74 De acordo com Xunzi, de facto, não só ofen e o yi mas também desejos, emoções e paixões são elementos constitutivos do coração e são parte da natureza emocional (qing [情]) de todos os indivíduos. É, por isso, perfeitamente natural para o homem querer satisfazê-los. 75 É esta a origem do mal; de facto, os desejos e aspirações do homem são muitos e variados, mas os recursos materiais para a sua execução são limitados. Os homens partilham os mesmos desejos e necessitam das mesmas coisas, mas os meios usados para atingir os seus objectivos são diferentes, porque cada um tem uma atitude diferente em relação ao que deseja e precisa: isto é parte da sua natureza. 76 O desequilíbrio entre desejos e necessidades, por um lado, e a escassez de bens por outro, as diferenças de força e inteligência, a falta de funções e divisões precisas, e a ausência de regras claras nas relações entre homens e mulheres, tudo é causa de conflitos contínuos. Se o homem segue as suas inclinações naturais, se é incapaz de as controlar, a agressão e a avareza prevalecerão sobre a cortesia e a deferência, a violência e a desordem substituirão a paz social e a ordem, e os princípios de moralidade e coabitação civil serão destruídos:

[今人之性,生而有好利焉。順是,故爭奪生而辭讓亡焉。生而有疾惡焉。順是,故殘賊生而忠信亡焉。生而有耳目之欲,有好聲免焉,順是,故淫亂生禮義亡焉。然則從人之性,順人之性,必出於争奪,合於犯分亂理而歸於暴。故必將有師法之化、禮義这道,然後出於辭讓、合於文理而归於治。]

A natureza do homem é tal que ele nasceu com uma inclinação para o lucro. Se ele se entrega a este gosto, isso vai levá-lo à agressão e à cobiça. A cortesia e o respeito desaparecem. Os humanos nascem com sentimentos de ódio e inveja. Satisfazer estes sentimentos leva à violência e ao crime. A lealdade e honestidade perigam. O homem nasceu possuindo o que os ouvidos e os olhos desejam: sons e cores. Entregar-se a estes desejos causa libertinagem e intemperança. Os princípios básicos de moralidade e coabitação civil perigam. Por esta razão, o homem que segue a sua natureza interior e se deixa levar pelas suas inclinações naturais, irá manifestar, inevitavelmente, agressão e inveja. Tal virá acompanhado pela violação das distinções das classes sociais e pelo malogro da ordem natural, regressando a um estado de barbárie. É, assim, necessário que a natureza do homem se submeta às influências transformadoras dos preceitos positivos de um professor e seja conduzido pelos rituais e princípios morais. Só depois se desenvolvem a cortesia e o respeito. Juntam-se estas duas qualidades aos princípios básicos da coabitação civil, e o resultado é uma sociedade ordeira. 77

Xunzi parece estar convencido de que a desordem nasce do conflito entre diferentes concepções de moralidade. 78 Tal como Confúcio, reconheceu que os sábios têm o mérito de compreender o dao, de corrigir a sua própria natureza e tornar-se um modelo para a família e para toda a sociedade, criando um conjunto de ritos e convenções sociais e estabelecendo regras e modelos legais para o governo do mundo. 79 Graças aos sábios, o homem é, por sua vez, capaz de transformar a sua própria natureza inata que, deve ser notado, não é má de per si, mas contém um potencial de componentes negativas, que, se não forem corrigidas a tempo, podem levar ao mal. De acordo com Xunzi, é através da educação, do estudo dos clássicos, dos ritos e das normas tradicionais de cortesia e de uma constante atenção em pô-las em prática que se consegue criar para si próprio uma natureza diferente da original. Esta natureza adquirida será totalmente boa, como a dos Reis Sábios do passado:

[聖人積思慮、習偽故以生禮義而起法度,然則義法度者,是生於聖人之偽,非故生於人性也。“…”故聖人化性起偽,偽起而生禮義,禮義生而制法度。然則禮義法度者,是聖人之所生也。]

O sábio reúne os seus pensamentos e ideias, ensina através da prática as competências da sua actividade consciente e os princípios aí envolvidos a fim de produzir ordem moral e estabelecer normas e padrões. Por esta razão, os princípios morais, as normas e os padrões são uma criação da actividade conciente do sábio e não o produto de algo inerente à sua natureza inata. [...] Assim, o sábio ao transformar a sua natureza original começa a desenvolver a sua natureza adquirida, a partir desta, cria os princípios morais; depois de os produzir, estabelece normas e padrões. 80

[凡所貴堯、禹、君子者、能化性、能起偽,偽起而生禮義]

De uma maneira geral, a razão pela qual as pessoas honram Yao, Yu, e os verdadeiros cavalheiros é porque eles foram capazes de transformar a sua natureza inata e foram capazes de desenvolver a sua natureza adquirida, que, por sua vez, produziu princípios morais. 81

A transformação (hua [化]) é uma operação essencial, contudo superficial, que não altera definitivamente a base das coisas, mas que produz mudanças positivas [狀變而實無則而為異者,謂之化] "Transformação significa mudança da forma das coisas sem alterar a sua substância; embora tenham mudado a forma, não são distintivamente novas, porque são as mesmas na realidade, apenas aparentam ser diferentes", 82 como a crisálida que se transforma em borboleta: continua a ser o mesmo insecto, mesmo que o seu aspeto tenha mudado radicalmente. 83

De acordo com Mêncio, xing, a natureza inata, pode ser identificada com as potencialidades positivas que o homem alberga no coração quando nasce. De acordo com Xunzi, xing, é uma entidade estática: representa a matéria prima de que o homem é feito, algo que não muda substancialmente com a passagem do tempo; é a base que tem de ser trabalhada para criar uma natureza diferente, fictícia e artificial, contudo completa e perfeita. O termo usado para designar esta conduta é wei [偽], que significa "arte, artificial, fabricado, falso" e "desempenho consciente, esforços acumulados, experiência". Xunzi usa esta palavra em ambos os significados, e acrescenta um novo: "natureza adquirida". É por isso através da actividade consciente (wei) que o homem transforma (hua) a sua própria natureza inata (xing) e a sua natureza emocional (qing) em natureza adquirida (wei) a quem é conferido um valor moral completo. Esta operação, embora não altere a substância original não é simplesmente transferida para a criação de uma natureza nova e melhor, que tem de interagir, constantemente, com a natureza inata [性偽合,然後聖人之名,一天下之功於是就也]. "Só depois da natureza inata e da natureza adquirida se terem unido é que aparece o verdadeiro sábio, e se consuma a tarefa de unificação do mundo". 84 Com estas palavras, Xunzi sublinha a diferença entre diferentes tipos de natureza.

[生之所以然者謂之性,性之和所生,精合成應,不事而自然謂之性。性之好、惡、喜、努、哀、樂謂这情。情然而心為之擇謂之慮。心慮而能為之動謂之偽。慮積焉、能習焉而後成謂之偽。]

Aquilo que caracteriza o homem desde o nascimento, aquilo que é harmonioso nele, que é capaz de se compreender através dos sentidos e de responder a estímulos, espontaneamente, e sem esforço -- isto chama-se natureza inata. Os sentimentos de gosto e desagrado, de deleite e raiva, de dor e alegria -- é a chamada natureza emocional. A escolha da mente entre diferentes emoções — a isto chama-se pensamento. Quando a mente pensa em algo e a acção chega como consequência --isto chama-se actividade consciente. Quando os pensamentos se acumularam o suficiente, o corpo está bem treinado e a acção é conduzida a bom fim -- a isto chama-se natureza adquirida. 85

[性也者、吾所不能為也,然而可化也;情也者、非吾所有也,然而为為也。]

O que me é impossível criar, mas que, contudo, eu posso transformar -- isto é a natureza inata. O que eu não possuo, mas posso criar -- isto é a natureza adquirida. 86

[凡性者、天地就也,不可學,不可事。禮義者、聖之所生也,人之所學而能,所事而成者也。不可學、不可事而在人者,謂之性。可學而能、可事而成之在人者,謂之偽。是性、偽之分也。]

De uma maneira geral, a natureza inata é a que nos é dada pelo Céu, que não pode ser aprendida e que não exige recurso a um mestre. Os princípios morais, por outro lado, são criações dos sábios. É algo que se tem de estudar para se ser capaz de os seguir e aos quais nos devemos aplicar antes de os conduzir à perfeição. O que não pode ser ganho pela aprendizagem e não pode ser dominado pela aplicação, mas contudo se encontra no homem, a isto se chama natureza inata. O que pode ser aprendido antes que o homem seja capaz de o fazer e ao que ele se deve aplicar antes de o dominar, a isto se chama natureza adquirida. É esta precisamente a distinção entre natureza inata e natureza adquirida. 87

A moralidade, assim, não é inata mas um factor cultural que qualquer pessoa pode adquirir através do estudo e da prática. Própria do homem, contudo, é a capacidade de discernir entre o bem e o mal e a propensão para se ajustar à realidade.

CONCLUSÃO

As doutrinas de Mêncio e Xunzi representam dois diferentes desenvolvimentos interpretativos do pensamento de Confúcio e estiveram presentes nas épocas seguintes. Sobre a definição de bem e mal, os seguidores de Confúcio podiam ter concordado com Xunzi quando ele afirmou que [凡古今天下之所謂善者,正理平治也;所謂惡者,偏險悖亂也] "em regra, desde a antiguidade até aos dias de hoje, o mundo tem chamado de bom à integridade, em conformidade com princípios naturais, paz e ordem social; o que se tem chamado de mal é a parcialidade, transgressão dos princípios naturais, rebelião e desordem social". 88 E sobre as causas do mal que eles não estão de acordo, mesmo se, na análise final, as suas doutrinas pudessem parecer, embora com diferentes nuances, compatíveis com o pensamento do Mestre. As diferenças são principalmente devidas às diferentes ênfases dadas a aspectos distintos dos seus ensinamentos.

Em particular, ambos mantêm o postulado de acordo com o qual o homem é naturalmente predisposto a amar a família, e ao mesmo tempo é enfatizada a importância dos princípios morais, das convenções sociais e da educação. Mêncio pôs o acento nas potencialidades positivas inerentes ao coração e a necessidade de cultivá--las para evitar a degeneração e a consequente propagação do mal. Ele exalta a doutrina do ren e do yi (por vezes aparecem juntos, renyi, com o significado de "princípios morais") mais do que a do li, e dá ao papel do si (pensamento, reflexão), um lugar de destaque, sendo visto como base e origem de uma consciência independente autêntica. Xunzi, por outro lado, dá ênfase ao risco inerente nas inclinações mais emocionais e apaixonadas do homem, valorizando, mais do que Mêncio, a doutrina do li e do yi (muitas vezes juntos, liyi [禮義], com o significado de "principios morais") e insistindo, como Gaozi já tinha feito, no valor cultural do xue (estudo, aprendizagem), a inevitável via entre o homem e a moralidade. Ambos estão, cada um à sua maneira, de acordo com o pensamento de Confúcio. Seria, por isso, desnecessário querer estabelecer qual dos dois filósofos deve ser considerado como o autêntico intérprete do pensamento de Confúcio — ambos o são à sua maneira.

Finalmente, deve também ser referido que na tradição chinesa a complementaridade, intrinsecamente positiva, entre o bem e o mal é aceite sem grandes problemas. Yang Xiong [楊雄] (52 a. C.-- 18 d. C.) tentando um compromisso entre as posições de Mêncio e Xunzi, considerou a natureza humana como um todo indistinto, uma amálgama de bondade e maldade. Antes dele, Dong Zhongshu [董仲舒] (179-104 a. C.) tinha associado a natureza humana que era potencialmente boa ao yang [陽]-- o princípio activo, luminoso, masculino -- e os desejos e paixões ao yin [陰] — o princípio passivo, obscuro, feminino. Esta perspectiva que põe de lado a visão antitética dos dois termos, foi mantida durante muitos anos, se bem que com variações e diferentes tonalidades. Pelo contrário, na cultura ocidental, a visão não antitética do bem e do mal seria impensável. O Cristanismo identifica o Bem Supremo com Deus. A origem do mal, a sua coexistência com o bem e a sua personificação no diabo (o que divide) são fontes de dificuldade para especulação teológica e estão envoltas em mistério. A lacuna entre os conceitos de bem e de mal, é contudo anulada no paradoxo dafelix culpa (presente na liturgia da Quaresma). De acordo com a tradição, aceite tanto por S. Paulo como por St. Agostinho e teorizada por Leibnitz, Deus permitiu a existência do mal para obter um bem maior. O pecado original, que deu origem a todo o mal, provocou a queda da humanidade para a condição de sofrimento, mas ao mesmo tempo constituiu a premissa necessária para a vinda de Cristo, com a consequente libertação do homem.

Traduzido do inglês por Iva Flores.

NOTAS

1 Ver o Prefácio ao Xunzi jijie [荀子集解] (Collected Commentaries ofthe Xungzi), 1891

2 Sobre o tema da natureza humana no antigo confucionismo existe uma extensa bibliografia. Para uma vista geral do tema, ver os meus dois volumes: La concezione della natura umana in Confucio e Mencio, Veneza, 1991, e Xunzi e il problema del male, Venezia, 1997

3 Esta visão do pensamento de Xunzi está presente nas duas principais correntes interpretativas, que estão representadas no Ocidente por, respectivamente, Homer H. Dubs e Antonio S. Cua, cujos trabalhos exerceram uma acentuada influência nos estudiosos e continuam a exercer. Dubs, autor do estudo "Mencius and Sündz on Human Nature" (Philosophy East and West, 6, 1956, pp. 213-222), é representativo do que Philip J. Ivanhoe refere como a corrente agostiniana na tradição confucionista: "Dubs argumenta que Xunzi acreditava que a natureza humana era essencialmente má e que, por isso, precisava de ser reprimida; e assim ele criou o slogan xing'e (que Dubs traduziu como "a natureza humana é má") para se opor ao compassivo Mêncio. Dubs vê esta proposta de Xunzi como iniciadora do tema do autoritarismo no pensamento chinês, um tema que Dubs vê como tendência dominante da tradição confucionista. Embora a sua análise seja merecedora de algum mérito, este aspecto da sua interpretação parece-me errada e enganadora. É injustificável atribuir a Xunzi, ou a algum outro pensador chinês antigo, o ponto de vista de que a nossa natureza, no todo ou em parte, é fundamentalmente e incorrigivelmente má. Não há nada no pensamento de Xunzi que se aproxime da noção agostiniana de pecado, entendido como rejeição deliberada da vontade de Deus. Não há sinais nos seus escritos que nos possam levar a pensar que ele acreditava que extraímos um prazer preverso em proceder mal. Isto é um ponto importante, pois que para fazer frente à teoria de Mêncio, como Dubs acredita que faz a teoria de Xunzi, este deveria ter dito exactamente isto." (Philip J. Ivanhoe, "Human Nature and Moral Understanding in Xunzi", International Philosophical Quarterly, 34, 1994, pp. 167-175:172). Antonio S. Cua, por outro lado, que escreveu um número verdadeiramente espantoso de trabalhos sobre Xunzi (Fiz a listagem de todos eles em Xunzi e il problema del male, pp. 94-96) é considerado por Ivanhoe como sendo o expoente máximo da interpretação da componente pessimista: Essencialmente, os proponentes desta posição de que a teoria "pessimista" de Xunzi complementa a visão mais optimista de Mêncio sobre a natureza humana. Vêem Mêncio indicar prazenteiramente que o copo está meio cheio (ou seja nós já somos parcialmente bons), enquanto Xunzi taciturnamente foca o copo meio vazio (ou seja nós ainda somos meio-maus). Mêncio oferece-nos um ideal em direcção ao qual nos devemos esforçar e que é visto como um encorajamento para desenvolvermos o que já há de bom em nós. Xunzi levanta restrições às nossas acções e avisa-nos para refrearmos as nossas tendências inatas para errar. Um traço crucial desta posição é a controvérsia de que estes dois pontos de vista são essencialmente o mesmo, diferendo apenas nos aspectos a que eles dão ênfase" (Ibid., pp. 172-173) Obviamente, Ivanhoe critica este tipo de abordagem, também porque ela "obscurece o optimismo profundo da posição de Xunzi" já que a diferença entre as teorias dos dois filósofos "não é de grau é de género" (Ibid., p.174).

4 Lin Yü-sheng ([林毓生]), "A Evolução do significado pré-confucionista de Jen ([仁]) e a concepção confucionista de Autonomia Moral", Monumenta Serica, 31, 1974-75, pp. 172-204:184. O sistema de transcrição, o pinyin [拼音] foi usado para uniformizar todas as citações ao longo do texto

5 Ibid., pp. 185-186.

6 Ibid., p. 172, nota de rodapé 2. Os itálicos são da responsabilidade do autor.

7 Philip J. Ivanhoe, "Thinking and Learning in Early Confucionism", Journal of Chinese Philosophy,17, 1990, pp.473-493:487.

8 Ibid., p.48

9 Ibid., p.486. Os itálicos são da responsabilidade do autor. Benjamin I. Schwartz defende uma tese semelhante: "A concepção de aprendizagem de Xunzi é muito próxima da dos Analectos e pelo menos neste aspecto parece estar mais próximo dos Analectos do que Mêncio. A aprendizagem no sentido literal é levada ao nível do sagrado. Envolve como em Confúcio muito mais do que o simples acumular de experiências. Fundamentalmente envolve a tarefa herculínea de refrear as forças anárquicas da natureza humana. Só pela exposição à verdadeira sabedoria corporizada na herança cultural se adquire este poder. Tem-se a sensação de que, apesar da insistência de Confúcio na "unidade" que sublinha toda a aprendizagem, ele teria certamente apreciado a ênfase que Xunzi deu à aprendizagem concreta, cumulativa e contínua e ficaria algo desconcertado pela "fácil" confiança de Mêncio no seu discernimento intuitivo. O conhecimento deve ser adquirido a partir do nada (Benjamin I. Scwartz, The world of thought in Anciente China, Cambridge, Mass., The Belknap Press Of Harvard University Press, 1985, p.297).

10 Philip J. Ivanhoe, "Thinking and learning in Early Confucionism", p.486. Os itálicos são da responsabilidade do autor.

11 HanFeizi,50

12 Lunyu, 17.2. Zigong um dos discípulos favoritos de Confúcio, confirma umas certas reticências não só sobre a própria questão, mas também sobre a sua possível relação com o Caminho do Céu: "Conseguimos ouvir falar da herança cultural do Mestre, mas não conseguimos ouvir falar do seu ponto de vista sobre a natureza humana e o Caminho para o Céu. (Ibid., 5.13).

13 Ibid., 3.14.

14 Ibid., 3.11.

15 Ibid., 15.29.

16 Ibid., 1.2.

17 "Trabalhar para as coisas a que as pessoas comuns têm o direito e manter a distância em relação aos deuses e espíritos enquanto se lhes mostra o devido respeito — tal pode ser chamado de sabedoria" Afirma Confúcio em Lunyu, 6.22. Ver também Lunyu, 7.22 e 11.12.

18 Mengzi, 7B.16

19 Lunyu, 12.2.

20 Ibid., 1.12.

21 Ibid., 15.18.

22 Ibid., 14.24.

23 Ibid., 7.20.

24 Ibid., 2.4.

25 Ibid., 2.15.

26 Ibid., 15.31.

27 Ibid., 1.1.

28 Mengzi, 6A. 11 e 6A. 1

29 Ibid., 7A. 15

30 Ibid., 4A. 27.

31 Ibid., 6A. 15.

32 Ibid., 6A. 6. Si significa mais "concentrar" do que "pensar, reflectir". Ver Bryan W. Van Norden, "Mengzi and Xunzi: Two views of Human Agency", International Philosophical Quarterly, 32, 1992, pp. 161-- 184: 169.

33 Mengzi, 2A. 6.

34 Ibid., 7A. 21.

35 Ibid., 2A. 2.

36 Ibid., 6A. 6.

37 Ibid., 4A. 12.

38 Ibid., 7A. 1.

39 Ibid., 2A. 6e7B. 31.

40 Ibid., 6B. 2

41 Ibid., 6A. 7

42 Ibid.,

43 Ibid., 1A. 7

44 Yang Junru, "Guanyu Xunzi benshu de kaozheng" (Philological Issues Concerning the Text of the Xunzi), Gushibian, 6,1938, pp. 120-146. A numeração de John Knoblock tem sido usada para indicar os capítulos e secções de Xunzi (ver John H. Knoblock, Xunzi: A Translation and Study of the Complete Works, Stanford, Stantford University Press, 1988, vol. I, bks 1 -- 6; 1990, vol. II, bks 7 — 16;1994, vol. III, bks 17 -- 32

45 Kanaya Osamu [金谷治], "Junshi no bunkengakuteki kenky [荀子?文獻學的研究] (A Textual Study of the Xunzi), Nihon gakushi-in kiy [學士院记要] 9,1951, pp. 19-33:31.

46 Eis o que A. C. Graham tem a dizer sobre o argumento: "Não está em questão se Mêncio e Xunzi têm teorias distintas e complexas sobre o homem que surgem de atitudes opostas de confiança ou desconfiança na espontaneidade. Contudo, já que usam os seus respectivos preceitos como rótulos e base de debate, pode-se suspeitar que eles perceberam que as fórmulas simplificavam, indevidamente, o que tinham para dizer. No caso de Xunzi, há boas razões para duvidar que a fórmula que ele utilizou para o distinguir de Mêncio dê uma ideia exacta da sua posição. De acordo com Xunzi, o Céu e a terra são moralmente neutros, e o curso espontâneo das coisas não joga nem contra nem a favor do homem; os desejos contraditórios com que o Céu nos dotou, tal como os ciclos das estações e recursos da terra, são factores neutros com os quais temos de lidar. A natureza do Homem, tal como o seu meio ambiente, tem de ser convertida a uma ordem se ele quiser satisfazer os seus desejos; mas não pode haver cultura sem algo para cultivar, e à parte "A Nossa Natureza é Má" a tendência de Xunzi é pensar na natureza e na cultura, cada uma delas contribuindo para uma vida melhor" (A. C. Graham, Disputers of the Tao: Philosophical Argument in Ancient China, La Salle, I11., 1989, p.251).

47 Para uma visão global sobre as diferentes posições assumidas pelas principais escolas do pensamento, durante o período clássico, sobre o problema do bem e do mal, ver o meu trabalho Xunzi e il problema del male.

48 Donald J. Munro, The Concept of Man in Early China, Stanford, 1969, p.78. Munro voltou, recentemente, ao assunto, reiterando as suas reservas sobre a autoria do capítulo Xing'e. Ele também sublinhou as numerosas contradições encontradas no tema sobre a natureza humana em Xunzi, de uma maneira geral, e reforçou que a disputa entre Xunzi e Mêncio foi tão enfatizada que obscureceu o assunto principal da crítica de Xunzi, o filósofo Mo Di (Donald J. Munro, "A Villain in the Xunzi", em Chinese Language, Thought and Culture: Nivision and His Critics, editado por Philip J. Ivanhoe, Chicago e La Salle, I11., 1996, pp. 320-323)

49 Chad Hansen, A Daoist Theory of Chinese Thought: A Philosophical Interpretation, New York and Oxford, 1992, p.337. Hansen não é o único a considerar que a posição de Xunzi sobre o tema da natureza humana é "neutra". Sobre as implicações interessantes a que conduzem esta leitura dos pensamentos de Xungzi, ler o meu trabalho "Gaozi, Xunzi e I capitoli 6A1-5 del Mengzi", em Studi in onore di Lionello Lanciotti, editado por S. M. Carletti, M. Sachetti, e P. Santangelo, Napoli, 1996, pp. 1275-1294, onde se constata que os capítulos 6A1-5 de Mengzi, que dizem respeito ao debate sobre a natureza humana que, presumivelmente, teve lugar entre Mêncio e Gaozi no sec. IV a. C., foram possivelmente escritos após a morte Xunzi (mais ou menos na segunda metade do sec. III a. C.) talvez durante a Dinastia Han, na primeira metade do sec. II a. C. Esta hipótese explicaria a razão pela qual toda a literatura pré-Qin, excepto no que diz respeito a Mengzi e de uma passagem discutível em Mozi [墨子], ignora, completamente Gaozi e, mais particularmente, por que é que Xunzi o faz. Nem mesmo quando Mêncio é duramente criticado pela sua doutrina da bondade da natureza humana, alguma vez Xunzi se refere a Gaozi ou à sua filosofia, apesar das evidentes e substanciais afinidades das suas ideias sobre o assunto, como pode ser inferido de uma comparação directa das teorias de Gaozi e Xunzi, onde a posição de Xunzi deve ser reconsiderada à luz de uma leitura abrangente do seu trabalho (que é uma tendência actual entre os estudiosos do pensamento Chinês Clássico) e não apenas do Capítulo 23 de Xunzi.

50 Xunzi, 23.2b.

51 Sobre este ponto, ver os estudos de Kanaya Osamu, "Junshi no bunkengaketuki kenky_", pp 30-31; D. C. Lau, "Theories of Human Nature in Mencius and Shyuntzyy", Bulletin of the School of Oriental and African Studies, 15, 1953, pp. 541-565; A. C. Graham, "The Background of the Mencian Theory of Human Nature", Qinghua xuebao [清華學報] (Tsing Hua Journal of Chinese Studies), 6,1-2,1967, pp. 215-217 (reeditado em Studies in Chinese Philosophy & Philosophical Literature, editado por A. C. Graham, Singapore, 1986, pp. 7-68); Id., Disputers of the Tao, p. 249; Xu Fuguan [徐復觀], Zhongguo renxing lun shi [中國人性論史] (A History of Theories of Human Nature in China), Taizhong [台中], Donghai daxue [東海大學], 1963, pp. 237-238; Roger T. Ames, " The Mencian Conception of Ren Xing: Does it Mean "Human Nature"? em Chinese Texts and Philosophical Contexts: Essays Dedicated to Angus C. Graham, editado por Henry Rosemont, Jr., La Salle, I11., 1991, pp. 143-175; Irene Bloom, "Mencian Arguments on Human Nature (Jen-hsing)", Philosophy East and West, 44, 1994, pp. 19-53; Id., "Human Nature and Biological Nature in Mencius", Philosophy East and West, 47,1997, pp. 21-32; Kwong-loi Shun [信廣來], "Mencius on Jen-hsing", Philosophy East and West, 47,1997, pp. 1-20.

52 D. C. Lau, Mencius, Harmondsworth, 1970, p.21

53 A. C. Graham, Disputers of the Tao, p.250.

54 Xunzi, 15.4. Pensa-se que esta passagem é parte do capítulo 19.

55 Ibid., 19. 2c.

56 Mengzi, 6A. 6.

57 Lunyu, 8.9

58 Xunzi, 2.10.

59 Lunyu, 15.31.

60 Xunzi, 1.3.

61 Ibid., 23. lc.

62 Pouco é sabido sobre este filósofo, mas há um debate interessante à volta da sua figura e do papel que ele desempenhou no debate filosófico do sec. IV a. C. Para uma análise detalhada da sua doutrina, ver o meu trabalho La concezione della natura umana in Confucio e Mencio, pp. 105-122 passim., e o estudo recente de Kwong-loi Shun, Mencius and Early Chineses Thought, 1997, pp. 87-126. Sobre a relação entre a sua doutrina e a de Xunzi, ver o meu trabalho "Gaozi, Xunzi e I capitoli 6A1-5 del Mengzi".

63 Mengzi, 6A. 4.

64 Ibid.

65 Xungzi, 4.11.

66 Mengzi, 4A. 27.

67 Xunzi, 1.10.

68 Ibid., 8.11.

69 Ibid., 2.11.

70 Ibid., 19.9b.

71 Ibid., 9.16a e 10.4.

72 Ibid., 4.12.

73 Ibid., 19.1a.

74 Horace, I, 3, 68

75 Xunzi, 4.9, 4.11, 5.4 e 23. 1e.

76 Ibid., 10.1

77 Ibid., 23. 1a

78 Ibid., 3. la.

79 Ibid., 23. 1a e 23.2a.

80 Ibid., 23.2a.

81 Ibid., 23.4a.

82 Ibid., 22.2h.

83 Ibid., 22.74

84 Ibid., 19.6. Esta passagem muito provavelmente pertence ao capítulo 23 e foi erroneamente introduzido no capítulo 19.

85 Ibid., 22.1b

86 Ibid., 8.11.

87 Ibid., 23.1c.

88 Ibid., 23.3a.

* Director da Secção de Sinologia e vice-presidente do Departamento de Estudos Hindus e Extremo-Orientais da Universidade de Veneza. Professor de Chinês Clássico, é membro das Associações Europeia e Italiana de Sinologia.

desde a p. 5
até a p.