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DA CANGE DE GARCIA D'ORTA, À POPULAR CANJA NORTENHA**

Ana Maria Amaro*

M axime quidem oryza Gaudent, ex qua tisanam conficiunt quam reliqui mortales ex hordes.

(Plinius, Naturalis Historia, XVIII, 13)

Garcia d'Orta no seu livro Colóquios dos Simples e Drogas da Índia impresso em Goa e datado, de 10 de Abril de 1563, ao tratar do costo e da colerica passio (Col. XVII) afirma, referindo-se ao tratamento da cólera (ou morxi) pelos índios:"Dam-lhe (ao doente) a beber agoa de espresam de arroz com pimenta e cominhos (a que chamão canje); (...)1

Mais adiante, no Colóquio XXVII, que se refere às hervas usadas contra as camaras, registou que (...) Nestes dias damos a comer ao enfermo leite azedo misturado com arroz, efranguos delidos em agoa deste arroz (a que elles chamão canje) e segundo vemos na fraqueza do enfermo, asi lhe damos a comer: (...)2

Garcia d'Orta refere-se ao tratamento e à dieta prescrita pelos panditas de Goa, com os quais mantinha relações amistosas, recolhendo receituário e práticas de curar nativas, que tomaram o seu livro um valioso tratado, pioneiro de Medicina exótica, escrito por um europeu.

Ao referir-se à agoa de espresam de arroz, apresenta duas formas de a ministrar: com especiarias (pimenta e cominhos) e comfranguos delidos, à maneira portuguesa3, repetindo o nome canje, nome local, ou, pelo menos, aprendido em Goa, o que se pode concluir da frase a que elles (os índios ou os panditas indianos) chamam canje.

Segundo cremos, a palavra pronunciar-se-ia canjê, a avaliar do registo pormenorizado desta dieta indiana que nos legou, um século mais tarde, o médico francês Charles Dellon4 que grafou este termo de duas maneiras diferentes, correspondentes à mesma forma de o pronunciar: cangé e cangez. Dellon registou, também, no seu famoso livro impresso em 1685 a receita desta gangê, afirmando:

"L'on ne donne jamais aux fabricitans, dans les Indes, ny chair ny oeufs, ny boüillon gras, & ce seroit risquer la vie du malade, que de faire autrement: l'on ne leur donne pour boisson que de l'eau simple, & pour nourriture, que du Cangé, qui sera fait en la maniêre suivante.

"L'on fait boüillir demie livre de ris, dans quatre ou cinq pintes d'eau 5, jusques à ce que le ris soit bien crevé, ce qui arrive dans moins d'une heure, l'on passe alors le tout à travers un linge, exprimant fortement le ris, pour en tirer toute la substance, & cela devint en consistance d'une boüillie claire. L'on donne de ce Cangé, aux malades cinq ou six fois par jour, environ une petite écuelée à chaque fois, le faisant chauffer quand'on le doit prendre, & y mettant un grain de sel pour luy donner un peu de goût. Je diray plus bas dans quelles occasions on met du poivre dans les Cangez.

"Le Cangé ne sert pas moins à desalterer les malades qu'à les nourrir, il ne fait pas tant de corruption comme nos boüillons nos consommez, & il me semble que ce regime a bien plus de rapport à celuy des Anciens, qu'à celui qui est en usage parmi nous, plus Fort par la complaisance des Medecins que par leur ordre, en effet n'est pas une chose étrange de voir des personnes prendre beaucoup plus de nourriture étant malade."

Em Goa, diz-nos Dellon, os "portugueses não se serviam senão de Cangez, de arroz, de pão e de água como dieta em casos defluxos de ventre, rejeitando o leite azedo e o ópio dos panditas6". Nessa altura, segundo o mesmo autor, "Si la dissenterie est accompagnée de fièvre, ce qui arrive ordinairement, les Pandites ne donnent à leurs malades que du Cangé & du ris fort cuit, sans sel avec egale quantité de lait caillé aigri ce qu'ils prendent estre un remede souverain pour ce mal (...)7

No caso de apresentarem os doentes urinas claras, considerando os panditas que o mal provinha de causa fria, juntavam pimenta nas suas cangez (...)8 Este depoimento parece confirmar a adopção da canja pelos médicos portugueses já no século XVII, como dieta e como tisana.

Ao que parece a popularidade da canja entre os portugueses, no Oriente, era já grande no século XVII, tendo-se-lhe referido diversos autores, tais como Diogo do Couto (Década X): hum pouco de arroz, de que fazem Canja que são papas (...) e António Bocarro (Déc. XIII), que em 1635 se refere à canja de arroz feita por um china.

No século XVII, aliás, a canja não se usava já só como dieta em casos de morxi ou defluxos de ventre, mas como prato sadio e fresco, próprio para climas quentes. Os Padres Jesuítas numa das suas Ânuas datada de Macau de 16419, ao referirem-se ãfomes e mortandades verificadas nesse ano em Macau, registaram que (...) os corpos estavam acostumados a natural frescura de arroz e suas canjas (...), o que demonstra a popularidade deste alimento nessa altura, entre os macaenses.

É de notar que Garcia d'Orta grafou a palavra cange, Dellon um século depois cangé (ou cangez), o que parece apontar para uma adulteração da pronúncia, difícil de explicar porquanto no século XVII, quando Dellon escrevia cangez (para se ler cangê), os portugueses já escreviam canja, como aliás ficou expresso. E o mais curioso é ainda que o étimo parece ser canji, palavra que no século XIX ainda alguns portugueses assim grafavam e, ainda hoje, se usa em Malaca, tendo também sido registada pelos autores, como os ingleses que escrevem congee (sinónimo de "poorridge").

Relativamente à etimologia dapalavra, o étimo seria o conc. kanji, do tamil kanxi, segundo a Encyclopedía Portugueza Illustrada (Porto, 1886, vol. II, p. 485). No entantd, segundo Monsenhor Sebastião Rudolfo Dalgado, indianista de grande credibilidade10, canja é arroz muito cozido em água e sal e algumas vezes sem sal, comido como desenjoativo, de manhã por almoço e às vezes à tarde por merenda, entendido em dsio-português. Dá-se ordinariamente aos doentes como almoço fraco e de fácil digestão. Corresponde no significado ao conc. péz do sansc. pela peya, "bebivel ou bom para beber".

"Em sânscrito e nos prácritos modernos, Kahji significa "atroz muito diluido e azedado", tal como é usado pelas lavadeiras indígenas em lugar de goma. "Seus [dos malabares] panos brancos são lavados com agoa de cozedura do arroz com que ficão muyto lisos". Porém, em tamil kañji tem ambos os significados: o de arroz cozido em água e o de goma de arroz, enquanto em malaiala o mesmo vocábulo somente se emprega na primeira acepção, sendo a segunda expressa pelo composto kãnji ppaxa —goma de canja. Do que se infere que a dicção indo-portuguesa se originou do malaiala.

"Em indo-português a voz canja também se aplica por analogia a papas de outras substâncias".

Os nossos antigos indianistas empregam a palavra em diferentes sentidos e compreendem sob uma denominação genérica várias espécies de decoctos de arroz, que nos idiomas vernáculos têm expressões especiais ou compostos especificativos"

É possível que a palavra canja se encontre difundida pela Ásia do Sul e corresponda a algum antigo manjar ritual, cuja origem se tenha perdido, embora o seu carácter de certo modo sobrenatural, se tenha mantido sob a forma curativa.

No Tonquim, canja ou cange é o nome dá festa da Agricultura, cujo cereal-rei é, como se sabe, o arroz. (Grand Dictionnaire Un. Larousse, Paris, 1867).

O arroz, ao que parece, entrou na Europa no séc. IV através da Grécia e é de crer que tenham sido os árabes que o tenham trazido para Portugal. Se tisanas de atroz eram populares entre os árabes como o eram entre os romanos11, por qualquer uma das vias poderiam ter entrado em Portugal. Contudo, o arroz no nosso país foi sempre muito caro e difícil de cultivar. Principalmente a Norte do Mondego, o arroz era raro e de elevado custo. Por isso, os caldos de cevada e de cevadinha eram as tisanas populares que o próprio João Curvo Semmedo preconizava.

A CANJA NO ORIENTE NOS NOSSOS DIAS

O Senhor Santa Maria, luso-descendente de Malaca, um dos entusiastas cultores das tradições cristãs do seu grupo, prestou-nos a seguinte informação acerca da cangi ou kanji de Malaca:

"Kanji is an Indian word meaning Broth.

There are many types of Kanji. Kanji was introduced to Malacca and the East by the Portuguese.

"The Portuguese while introducing the Kanji to Malacca evolved it's own specialties suitable to local environment and local inhabitants. Kanji pertaining to rice, is referred to, even to this day by the local Portuguese as 'Kanji Papar'. ('Papar' - meaning broth). Thus we have the word 'Kanji Papar' when literally translated means, broth broth. However, the 'Kanji Papar' or rice broth in recent years has experienced a strong Chinese influence.

"As for Kanji Papar being rice base meat is used especially chicken, pork, liver or fish. Rice is washed and boiled in stock or water until very soft. Finely cut meat is added and boiled together with the rice. When ready to serve sprinkle shredded ginger, spring onions, fried sliced onions, a dash of pepper, and soya sauce.

"Besides Kanji Papar, we have Kanjis which are a popular aspect of our cuisine namely:

1. Kanji Mungu — green beans broth

2. Kanji Pulot Pratu — black glutinous rice broth

3. Kanji trigu - wheat broth

4. Kanji cha cha — sago based broth with yam, sweet potato, etc."

Da leitura deste apontamento ressalta-nos um flagrante paralelismo com o que se passa em Macau. Ali também se faz canja de mungo e de ginkgo, além da famosa canja de abstinência usada na 6a. feira de Paixão. Esta é uma canja leve e saborosa feita com arroz, peixe de água doce, amendoim e alface cortada às tiras.

É que a canja, além de ser considerada um alimento neutro, próprio para qualquer pessoa, mesmo doente, é também considerada um fortalecente. Os chineses, por exemplo, que têm até um ideograma correspondente à canja no sentido de "arroz muito cozido em água, formando uma espécie de papa leitosa", conservam várias receitas de canja enriquecida com ervas medicinais próprias para o tratamento de várias doenças e entre elas a canja de Apocynus juventus L., que se admite ser promotora de juventude e longa vida.

Analisando o ideograma chok (粥) canja, ele aparece-nos composto por arroz (ideograma central) e dois (Kong), que significa arcos de arremessar flechas. Não encontrámos quem nos explicasse esta combinação de rasgos, que deve ter algo que ver com a origem deste alimento. Seria comida própria dos antigos archeiros chineses do Sul?

A ser assim, fica-nos em aberto o problema da origem da canja como alimento e como dieta para doentes. Se pedirmos, porém, a um chinês do Norte que saiba português, que nos escreva a palavra canja, ele escreverá kai tóng (鷄湯). caldo de galinha. Se fizermos em Macau igual pedido a um chinês local, ele escreverá chok (粥). Por outro lado, os macaenses (portugueses de Macau) raramente usam o caldo de galinha e quando se lhes fala em canja, analogam-na com a papa de arroz das canjas chinesas que se vendiam até pelas ruas em tendas ambulantes, nos anos 60-70.

A CANJA EM PORTUGAL

Seja qual for a origem da canja12, a verdade é que ela entrou em Portugal por via popular e foi entre o povo que o seu uso e o seu nome se difundiram. Consultando os mais antigos livros de culinária que encontrámos13 não descobrimos neles a mínima referência à canja. Das várias edições do livro Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, consta uma "Sopa de galinha à francesa", cuja receita se aproxima da canja popular portuguesa:

"Lave-se tres ou quatro vezes em agoa morna meio arratel de arroz e ponha-se a escorrer em hum peneiro, depois deite-se a cozer em huma panelinha, com um pouco de caldo, hum bocado de presunto, huma cebola com dois cravos e deixe-se ferver pouco a pouco por espaço de hora e meia, ou duas horas; depois de cozido, acabe-se de molhar com hum bom caldo, e duas colheres de sultanas de vitella, tira-se-lhe depois o presunto, a cebola, e a gordura, estando com bom gosto, sirva-se nem muito grosso, nem muito ralo".

Consta, também deste livro, uma sopa de arroz para dias de peixe, que se assemelha às canjas de Macau, pois associa-se o atroz a raízes e legumes, podendo, no entanto, usar-se aletria ou outras massas italianas, em vez de arroz.

Consta, ainda, uma receita de caldo para convalescentes e outra de caldo para doentes e sãos:

- Caldo para convalescentes — peito de galinha e de capão, depois de assados com miolo de pão e gema de ovo misturado com caldo de galinha e vitela passado por uma peneira.

- Caldo para doentes e para sãos — Mettão em huma panella de barro dois arrateis de polpa de vitella, e huma gallinha, deitem-lhe carrada e meia de agoa, escorre-se, quando for tempo, tempere-se depois de sal, deitem-lhe huma cebola com dois cravos, e deixe-se ferver pouco a pouco; cozida a carne, a gallinha e o caldo reduzido a metade, passe-se este pelo peneiro, tire-se-lhe a gordura, e sirvão-se delle, segundo lhe for necessario.

A CANJA POPULAR NORTENHA

Seria interessante comparar o lugar que ocupa a canja na alimentação popular a Norte do Mondego com o lugar que esta ocupa no Sul de Portugal, onde praticamente se não usa, a não ser como dieta para doentes, contrariamente ao que seria de esperar-se.

De comum, na região de Entre-Douro e Minho há a registar alguns aspectos interessantes.

Nos jantares de festa, o povo do Norte usava e aliás continua a usar em muitas aldeias, como pratos tradicionais, o cabrito assado, o cozido à portuguesa, a canja e a aletria doce como sobremesa.

Quando falamos em festas, não estamos a falar propriamente em manjares rituais, mas em pratos que sublinham acontecimentos importantes, tais como casamentos (festas de bodas e baptizados). Conforme as posses de cada um e as economias conseguidas, assim nestes jantares se servem, por vezes, outros doces, o que varia de ponto para ponto: em muitos casos, estes doces são verdadeiras especialidades regionais como, por exemplo, os populares formigos minhotos.

Pratos especiais são porém confeccionados em certos dias bem definidos — festas cíclicas anuais que se celebram em todo o Portugal: Entrudo, Páscoa, São João e Natal, os quatro períodos sazonais que todas as antigas civilizações agrárias comemoravam.

No Entrudo, coze-se orelha de porco, preparando-se uma espécie de cozido à portuguesa, mas com feijão em lugar de arroz. Nalguns pontos da região de Vila da Feira juntam-se neste prato chouriços, carne de porco, frango e tripas. Este "cozido" era feito com cebola picada e azeite, aos quais se juntavam as carnes "tudo em cru" e vinho branco maduro, quando começava "a abrir".

Na Páscoa, usava-se churrasco de galinha, carne estufada e cabrito assado ou a "comida do Natal". Na Vila da Feira, também se comia o "mesmo que pelo Natal" e além disso pão-de-ló e figos secos.

No São João, é o anho assado com batatas, que é manjar ritual em todas as aldeias do Norte.

No Natal, a consoada merece particular atenção, porque a famíia se reúne e a festa é a maior celebração do ano. É uma data carregada de tradição que precede o próprio Cristianismo na Península Ibérica. É uma data de abstinência. Nada de carne, nem a canja dos dias festivos. O galo aliás, não se mata nem se come até ao Ano Novo.

Porquê? Foi sempre assim. Não é bom matar o galo. O galo anuncia o nascimento do Menino Jesus. Não é verdade que à meia-noite é a Missa do Galo? Respondem-nos as anciãs, algumas quase escandalizadas por poder sequer alguém admitir que se mate um frango e se coma canja pelo Natal.

Noutras festas sim. Mesmo na Páscoa. No Natal nunca se come canja. Foi sempre assim. E continuará a ser.

Tradição de "comeres da consoada", isso é o bacalhau cozido com batatas e "tronchas", polvo cozido, rabanadas douradas com mel escorrendo, ou calda de açúcar (no dia seguinte) e aletria doce.

Arroz doce? Não. Isso é lá para Coimbra. Aqui é a massa, a massa fina ou a aletria. Arroz só nas canjas de parturientes e de pessoas enfermas. Porquê? Porque o arroz é mais delicado e fortalece.

Em muitas aldeias do Norte, a canja, feita com meia galinha cozida num boa panela de ferro de tripé, ("daquelas que se colocam na lareira") com os miúdos desfeitos e depois com uma ou duas boas mãos cheias de massinha pevide ou estrelinha. É uma sopa "fina" muito estimada em ocasiões festivas. E isso porque "sai do ordinário das pessoas pobres", que comiam, diariamente, sopas de couves e de batatas. Dantes, era um luxo. "E com atroz pior, porque era coisa rara. Era servida em tigelas barreiras e comida com colheres de estanho", daquelas baratas que se derretiam no azeite a ferver; era uma delícia".

Na Vila da Feira, havia, dantes, quem juntasse, carne de porco à galinha, para fazer canja. Mas depois deixou de se fazer assim. Só se faz com a galinha e com os miúdos. Também há quem goste de juntar rodelas de chouriço, porque dão mais gosto. Contudo, a maioria das informadoras afirmam que nunca suas mães ou avós fizeram canjas com quaisquer enchidos.

A canja deixou, pois, no Norte de Portugal, de ser o caldo de arroz que Garcia d'Orta registou, para se tomar num caldo de galinha com massa.

Que evolução sofreu esta receita e sob que pressões? A nosso ver, o caldo de galinha do Ocidente ter-se-ia fundido na Índia com a canja oriental. Dali, trazido para Portugal, teria feito a sua triunfal entrada, destronando os apistos de galinha simples e os caldos de cevada hipocráticos.

No Norte, como já atrás se referiu, o arroz não encontrou condições climáticas próprias para se cultivar. Muito caro estava fora do alcance das classes trabalhadoras. Foi substituído primeiro por cevadinha, e, de depois por massa miúda, que a imita, quando esta apareceu no mercado. Daí, a actual canja nortenha.

Desengordurada e com arroz por ser melhor para o estômago, no dizer das senhoras locais, a canja destina-se aos enfermos e às parturientes. E isto com sacrifício, porque não só as galinhas como o arroz, eram caros. Daí, os ditos populares em toda a região:

- "Quando'um pobre come canja de galinha, um dos dois está doente" E ainda,

- "30 galinhas, 30 dias", dito referente à dieta de canja das parturientes14.

Em Vilar do Paraíso recolhemos uma história sobre a canja, que a seguir reproduzimos, tal como nos foi transmitida:

"Era um grupo de homens e mandaram vir canja e quando veio a canja, esta não deita fumo como a sopa e houve um que disse para o outro, come a canja que ela está fria, e o outro muito fiado meteu-se a comer a primeira colherada que meteu à boca e escaldou-se, porque ela estava a ferver".

Nos arredores do Porto, a canja era até há pouco tempo, um luxo que sublinhava uma festividade importante: casamento, baptizado, reunião de família ou preparava-se, desengordurada, para doentes e parturientes.

Curiosamente, há a registar 3 pontos quanto ao uso e à preparação da canja no Norte de Portugal:

1 - Nunca se faz a canja pelo Natal.

2 - Não se usa o arroz, mas sim massa miúda e nalgumas aldeias aduba-se com um pouco de carne de porco.

3 - Usa-se a canja de galinha com arroz para as parturientes, para as crianças de colo e para os doentes. Neste caso, desengordura-se o caldo e não se tempera com outras carnes.

O desinteresse pela produção cerealífera e a falta de braços para a agricultura no séc. XVI, impôs a importação dos vários cereais, inclusivamente a cevada15.

O arroz era também importado: das Colónias e do estrangeiro, sujeito a elevadas pautas alfandegárias. Contudo, no Norte, era pouco apreciado, tanto que no Mercado de Viana do Castelo nas listas de preços dos sécs. XVI-XVII constam o trigo, o milho e o centeio, mas não consta o arroz. Na praça de Lisboa o arroz era frequente, mas os preços eram bastante elevados, fora do alcance de muitas bolsas.

Em 1578 o alqueire de trigo (mais ou menos 13 litros), custava 100 a 130 réis, ao passo que a arroba de arroz (15kg) custava de 672 a 700 réis (preço de 1572).

Em 1635 o trigo custava 400 réis o alqueire, ao passo que o arroz custava 1.784 a arroba (preço de 1636) (32 arratéis — 32x459g)

Em 1730 — 440 réis era o preço do alqueire de trigo e em 1723 — 1.727 réis o arrátel de arroz.

O poder de compra da maioria da população portuguesa, principalmente a nível rural, não lhe permitia pois fazer canja à maneira do oriente, senão em casos muito especiais.

Antes de terminarmos, resta-nos procurar uma explicação para a exclusão do galo (ou frango) das ementas da festa do Natal. Não é apenas a observância do ritual de abstinência que exclui o galo do festim16. Segundo cremos, é algo de mais profundo que vem do fundo do tempo, nascido do mito e transformado em uso ou superstição. Analisemos brevemente a mitologia do galo no Ocidente.

A MITOLOGIA DO GALO

Na mitologia clássica grega, Alektruon, cujo nome significa galo, era o companheiro de Marte, com o qual partilhava as libações e os amores clandestinos. Quando Marte passava a noite com Vénus, ele chamava-o ao nascer do Sol. Um dia, deixou-se adormecer e não preveniu Marte, sendo este e a sua companheira surpreendidos pelo Sol. Para castigar Alektruon da sua negligência, Marte metamorfoseou-o em galo, completamente armado como estava e com vistoso capacetè emplumado na cabeça.

O galo é universalmente conhecido como um símbolo de vigilância e de ressureição e, por conseguinte, de imortalidade. Foi, por isso, consagrado a Hermes, Apolo e a Esculápio. O próprio Pitágoras proibia os seus adeptos de comerem esta ave, tão carregada de simbolismo ela era.

"O galo canta a riqueza e o sucesso".

Dois galos enquadram outros elementos de boa fortuna, numa estampa usada pelos comerciantes nos estabelecimentos.

In "L'imagerie populaire chinoise", Ermitage, St. Petersburg.

Antes dos gregos, já os caldeus pensavam que o galo, e só ele, recebia, de madrugada, um fluxo divino emanado do planeta Mercúrio, pelo que foi consagrado a Hermes-Thot, consagração depois retomada pelos gnósticos e pelos alquimistas.

Os maometanos acreditavam, também, que seria um galo gigantesco, a ave que acordaria os mortos no dia do julgamento final. Pelo contrário, para os Escandinavos, seria um galo vermelho que anunciaria o fim do mundo.

Consta da própria Bíblia um episódio envolvendo o canto do galo. Cristo disse a São Pedro: "Esta noite, antes que o galo cante, negar-me-ás três vezes". Esta cena foi muitas vezes representada sobre os sarcófagos paleocristãos, passando, talvez por isso, a constituir um símbolo de ressurreição entre os povos que seguiam o Cristianismo.

Era também frequente representar-se um combate de galos nos primeiros monumentos cristãos, simbolizando a luta do Bem contra o Mal e da Morte contra a Vida Eterna.

No entanto é de assinalar que o Natal nem sempre se celebrou no Mundo Cristão a 25 de Dezembro. Esta data foi fixada por deliberação do Papa Júlio I (337-352), sobrepondo-se à festa do Sol Novo, que os romanos celebravam, nesta altura, na capital do Império17, o que permitia levar a crer que diferentes valores simbólicos se tenham passado, assim, a confundir.

Com o decorrer dos tempos, porém, os símbolos desvaneceram-se, passando o galo a representar, apenas, um emblema de vigilância. É assim que, desde o século XIII apareceu na Europa a sua figura, fixada sobre os campanários e também no eixo dos cataventos. Nesta segunda posição "comanda os ventos e serve de sentinela afastando os demónios"18 e também os raios.

Na antiguidade ocidental, o galo era também considerado um símbolo de virilidade e de fecundidade19, aparecendo no fim do século XVII, como símbolo da própria França.

"Méritos e glória, riqueza e fama".

Entre vários elementos propiciadores, o galo ao centro. É um símbolo anunciador da boa fama.

Logo ao despertar do dia, ele é o arauto da boa nova ao mundo circundante. Em chinês, glória e cantar representam-se em caracteres homófonos (ming). In "L'imagerie populaire chinoise", Ermitage, St. Petersburg.

O galo, porém, não é apenas um símbolo europeu sendo, outrossim, considerado, universalmente, um símbolo solar, porque o seu canto anuncia a aurora. Na Índia, é o atributo de Skanda, divindade que personifica a energia solar. Igual simbolismo aparece entre os chineses, que o associam também à fertilidade e à prosperidade20e entre os japoneses, que o consideram um símbolo de virtude e de coragem, relacionando-o com o nascer do Sol e com o fenómeno da ressurreição. Por este motivo, são frequentes os galos e suas figurações nos templos xintoístas. Ideia semelhante parece inferir-se da recomendação que o próprio Sócrates fez a CrÍton, antes de morrer, lembrando-lhe que não se esquecesse do ritual de sacrificar um galo a Asclépios (Esculápio) no seu templo, embora fosse um animal consagrado ao Sol e à Lua.

É que este ritual tinha por fim promover a condução da alma do defunto pelo galo, que a levaria ao "Outro Mundo", onde teria lugar o seu novo nascimento.

Talvez devido ao pensamento subjacente a este ritual, próprio da tão brilhante civilização grega, se atribui, de certo modo ao galo, propriedades curativas e dali talvez os caldos de frango e os antigos apistos, como dieta para doentes.

O sangue de galo é ainda considerado um poderoso demonífugo e daí a prática de se abrir um galo sobre um doente de gravidade em casos desesperados, quando a cura parece impossível21.

Havendo ainda no Norte de Portugal vestígios do culto dos mortos associado às festividades da oitava do Natal22, a relutância que se nota em matar-se esta ave antes do Ano Novo e a exclusão da canja como manjar ritual natalício, estará relacionado com o velho simbolismo paleocristão atrás descrito, como Culto dos Antepassados, ou com o culto do Sol e da Lua, ainda mais antigo?

Estas sugestões não passam de meras hipóteses, sem apoios consistentes. O tempo apaga e transforma os antigos mitos e o Norte de Portugal foi repositório das mais variadas crenças e modos de pensar, que aí se teriam fundido, substituído ou por vezes sobreposto.

O povo nortenho dos nossos dias é, porém, simples nas suas explicações:

— O galo não se pode matar; anuncia o nascimento do Menino Jesus, dizia-nos o Senhor Joaquim Pereira, octogenário, contador de histórias famoso em terras do Douro.

— O galo anuncia o nascimento do Menino Jesus! dizia a Senhora Olinda...

— O galo canta ao nascer do Sol. Canta a anunciar a aurora. A Ressurreição. A vida!

Não é este, aliás, o próprio simbolismo do Natal Cristão?

BIBLIOGRAFIA PRINCIPAL

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SOARES, Rodrigo de Moraes — Resumo histórico dos preços dos cereais e outros géneros alimentares no Cont. do Reino, in "Archivo Rural", 29 Ano, Lisboa, 1859

Templo chinês em Macau (templo de A-Má). c. 1857

Desenho de Heine, gravado por Lith of Sarong and Co., New York. Colecção do Museu de Arte de Macau.

NOTAS

1 Garcia d'Orta — Colóquios dos Simples e Drogas da Índia por (...), Lisboa, Imprensa Nacional, 1891. (Ed. original impressa em Goa em. 1563), p. 264.

2 É de notar que G. d'Orta diz "lhe damos".

3 Para os doentes, já era prática tradicional portuguesa, preparar caldo de galinha muito desfeita na cozedura, o famoso apisto para o qual se fabricavam apisteiros, que ainda existiam nos hospitais portugueses nos princípios do século XX.

Ao apisto refere-se, por exemplo, um médico anónimo do século XVII, na descrição dum caso de peste. Segundo Raphael Bluteau, o apisto é o "succo da carne picada, ou muito cozida, que se dá aos doentes que não podem mastigar".

Foi talvez este apisto que em Goa os nossos médicos de quinhentos juntaram às canjas dos panditas indianos, originando as canjas que entraram em Portugal através do povo.

4 Charles Dellon, médico e viajante francês, nasceu cerca de 1649. Em 1668 embarcou para o Malabar. Exerceu clínica em Damão e depois de uma vida agitada regressou a Lisboa, de onde passou a França. Mereceu favores reais, mas perdeu-se o seu rasto, ignorando-se a data e o local da sua morte. (Grand Dictionnaire Univ. Larousse, séc. XIX). É autor de alguns livros sobre a Índia, entre os quais o Traité des Maladies particulières aux pays Orientaux, à Paris chez Claude Barbin, M. DCL. XXXV.

5 Um pinte é uma medida antiga de capacidade para líquidos, equivalente, aproximadamente, a um litro, para menos (Dictionnaire Bordas, Paris, Bruxelas, Montréal, 1972).

6 Dellon, ob. cit. — Traité des Maladies particulières aux pays Orientaux, p. 41.

7 Ob. cit., P. 37.

8 Ob. cit., p. 28.

9 Jesuítas na Ásia, Mss. da Biblioteca da Ajuda, Cod. 49-IV-61, 25/10 fl. 105 (1641).

10 Mons. R. Dalgado — Glossário Luso-Asiático, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1919, p. 286.

11 A canja era conhecida em Roma no tempo de Horácio, que põe na boca dum médico a seguinte receita: "Ora vamos! Toma esta tisana de arroz". Mas o doente recusa-a por ser cara: "Que me importa que morra de enfermidade, de furto ou de roubo".

12 Roschevicz (1931) e outros autores, consideram o arroz Oryzasativa L. uma planta originária da Índia que, dali se difundiu para o ocidente através da Pérsia, tendo sido conhecida na Europa depois da expedição de Alexandre Magno à Índia, como se depreende das notícias registadas por autores gregos e romanos contemporâneos. É natural que a sua expansão para Oriente tivesse, sido mais precoce, atingindo a China, talvez em épocas muito recuadas.

13 Arte de Cozinha, de Domingos Rodrigues, Ed. de 1693, dividida em tres partes (...) Lisboa Occidental Na Officina Ferreiriana M. DCC. XXXII (Ed. de 1758) e O Livro de Cozinha da Infanta D. Maria, Ed. da Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1987.

14 Às vezes a canja também era dada aos bebés de peito, por ser considerada um alimento muito leve.

15 É de lembrar que as áreas de maior produção de cevada eram a Estremadura e Entre-Douro e Minho, onde se cultivavam duas variedades, tremês e cavalar (Hordeum hexastichum), cevada de Inverno e H. distichum, cevada de Primavera.

16 Esta relutância alcançou também Macau, onde se come galinha e capão, mas nunca galo.

17 Armando de Lucena —Arte Popular, Usos e Costumes Portugueses, Lisboa, 1944, p. 20.

18 Jean-Paul Clébert— Dictionnaire du Symbolisme Animal — Bestiaire fabuleux. Albin Michel, Paris, 1971, pp.125a127.

19 O galo estilizado, como é o caso, por exemplo, do galo de Barcelos, aparece muitas vezes representado segundo a imagem duma dupla foice: provavelmente relacionado com a fertilidade agrícola.

20 Em chinês, a palavra ki (em língua oficial) — kái (em cantonense) é homófona de favorável e considerada uma expressão de bom augúrio.

21 Consta que ao célebre milionário Lou Lim Iôc foi aplicada esta prática, antes de morrer em Macau, nos princípios do século XX.

22 Ernesto Veiga de Oliveira — Festividades cíclicas em Portugal, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1984, p. 207. e seg.

** Palestra proferida nos Primeiros Colóquios de Etnografia de Vila Nova de Gaia, por ocasião do centenário da "Revista Lusitana", em 23-25 Out. de 1987.

* Doutorada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a "International Association of Anthropology".

desde a p. 79
até a p.