Literatura

O DIÁRIO DE HARRIET LOW NO CONTEXTO DAS VIAGENS FEMININAS NORTE-AMERICANAS DO SÉCULO XIX

Rosmarie Wank-Nolasco Lamas*

1. VIAGENS FEMININAS: DE EXTRAVAGÂNCIA PARA "BOM TOM" E MISSÃO PATRIÓTICA

Enquanto o direito do sexo masculino de se movimentar livremente dentro e fora do seu país, por uma variedade de razões, raramente foi questionado e contestado, esta ideia foi tolerada só em circunstâncias especiais no que diz respeito ao sexo feminino. O ditado português "ao homem a praça (ou seja o mundo), à mulher a casa" resume muito bem a ideologia prevalecente até às primeiras décadas do século XIX inclusivamente nos Estados Unidos. Antes do século XIX, mulheres que fizessem viagens pelo mero prazer de viajar, ou turismo, eram praticamente desconhecidas, ao passo que entre os homens existia o "Grand Tour", cujas origens remontam ao século XV, levando-os a alguns dos sítios mais sagrados da cultura Europeia.

Pormenor de um óleo de George Chinnery, que retrata Harriet Low de livro na mão, evocando o seu passatempo favorito.

A viagem de Harriet Low (1809-1877) entre Maio de 1829 e Setembro de 1834 foi feita num período de transição sócio-económica no seu país. O comércio com o estrangeiro estava também a expandir-se, em larga medida devido ao progresso feito na construção naval. Estava a tornar-se aceitável que uma mulher viajasse por outras razões que não as tradicionais, nomeadamente como filha ou como companheira do seu marido, acompanhando-o ou seguindo-o. Afinal, estas mulheres viajavam por razões femininas, na sua função de seres domésticos. Até então, a peregrinação terá porventura sido a única forma socialmente aceite para o desejo de uma mulher de deixar os limites do seu espaço habitual de viver. A partir da década de 1820, no entanto, um crescente número de mulheres invocaria motivos de interesse próprio para as suas viagens, queriam ser jornalistas, missionárias, professoras, artistas, activistas sociais, escritoras, cientistas, aventureiras, mulheres abastadas à procura de divertimento e conhecimentos: "Num êxodo feminino nunca antes visto, espalharam-se pelo mundo acompanhando a onda de evolução em curso nos campos da ideologia, economia, política e tecnologia. [...] Viajar transformou as mulheres de actores privados em actores públicos no palco mundial" (Schriber, 1997:13).

É óbvio que estes novos desejos das mulheres foram alvo de críticas, mas também de aprovação e até encorajamento por parte da sociedade. Por um lado, temia-se uma influência negativa no bem-estar da família devido à ausência da mãe ou, no caso de raparigas solteiras, temia-se que ficassem expostas a novas imagens e crenças, perturbando as suas mentes, e que fossem incomodadas não só por um nível de vida diferente, assumidamente inferior, mas também pelos olhares e, pior ainda, pelos feitos incalculáveis dos homens estrangeiros. Por outro lado, viajar tornava-se rapidamente num indicador de prestígio social e de poder económico numa economia altamente competitiva. O facto de ter viajado fora dos EUA foi considerado, sobretudo depois da Guerra Civil norte-americana (1861-1865), como um activo para uma jovem burguesa na idade de casamento.

Além destes motivos materialistas a favor do acto de viajar, Schriber (1997:20,21) identifica três motivos ideais que o justificavam e compeliam mesmo os americanos, conscientes de si próprios e da posição suprema do seu país no mundo, a enfrentar esse mundo. Em primeiro lugar, viajavam para obter ganhos dos pontos de vista intelectual e cultural. Em segundo lugar, para se tornarem mais conscientes da sua identidade nacional. Finalmente, para saborearem mais profundamente o sentimento de superioridade política e moral que associavam com o seu país: "Esta é a nação que a Providência ["Disposer of events] determinou ser a estrela orientadora das nações, liderando-as para a luz e a bem-aventurança daquele dia [em que todas as nações regozijarão e serão abençoadas]" (Catherine Beecher, citada por Schriber, 1997:21).

Foi neste ambiente que o número de mulheres a viajar para o estrangeiro sofreu um grande aumento e, tal como os seus compatriotas masculinos, as mulheres partilhavam a mesma ideologia. A missão delas no estrangeiro foi mesmo considerada ainda mais nobre, por representarem o melhor da cultura americana. Durante todo o século XIX, a mulher serviu como símbolo da República, exaltada e honrada em ceremónias na clássica figura da Deusa da Liberdade. As mulheres foram descritas como sendo "tão poderosas como o Novo Mundo", ou como "a incarnação da essência de um continente inteiro" (Schriber, 1997:34, citando vários autores).

Este artigo propõe corroborar o modelo de Schriber relativamente aos três motivos ideais que também estão omnipresentes no diário de Harriet Low, testemunha do "Zeitgeist" prevalente entre os viajantes norte-americanos.

2. O DIÁRIO DE HARRIET LOW, VERSÕES PUBLICADAS E NÃO-PUBLICADAS

O diário de Harriet Low começa em 24 de Maio de 1829, o dia em que deixou a casa dos pais em Salem (Massachusetts, EUA), com rumo a Macau, onde chegou a 29 de Setembro do mesmo ano. Escreveu nele regularmente, quase diariamente. O Diário acaba poucas horas antes da sua chegada a Nova Iorque, em 21 de Setembro de 1834. O título dado ao diário por Harriet é Luzes e sombras da vida em Macau de uma mulher solteira em viagem, e soa bastante mais pesado e grave do que o conteúdo efectivamente é.

O diário é composto por nove volumes de tamanho variado, com uma lacuna entre Setembro de 1830 e Fevereiro de 1831, que porém é parcialmente preenchida por fragmentos de cartas deste período. O original, ao qual a autora deste artigo teve acesso, encontra-se na secção de Manuscritos da Biblioteca de Congresso, em Washington, D. C., inserido no conjunto dos documentos deixados por membros da família Low-Mills. Existem duas versões publicadas. A primeira, editada pela sua filha mais velha, Katherine Hillard, apareceu em 1900 com o título My mother'sjournal. A young lady's diary of five years spent in Manila, Macao, and the Cape of Good Hope from 1829-1834. Em termos de comprimento, esta edição abrange cerca de um terço do original. O corte substancial foi justificado na introdução ao livro por Katharine Hillard da seguinte forma: "Como num diário cobrindo um período tão comprido existe, necessariamente, muita repetição, uma grande parte foi omitida; no entanto, com a excepção de alguns "erros da pena ", nada foi corrigido ou alterado" (Hillard (ed.), 1900: vi, vii).

A segunda versão publicada está inserida num livro editado, em 1953, por uma das netas de Harriet Low, Elma Loines, com o título The China trade post-bag of the Seth Low family of Salem and New York. À excepção de ligeiras modificações, as duas versões são praticamente idênticas. Como o título do livro de Elma Loines sugere, Harriet foi apenas um dos vários membros da família Low a viver em Macau e na China, embora fosse a única mulher.

Existe, além disso, uma versão integral do diário, minuciosamente preparada mas não publicada, de 947 páginas dactilografadas. O seu autor foi Arthur W. Hummel, o então chefe da antiga secção de "Orientalia" da Biblioteca de Congresso. Hummel não se deu apenas ao trabalho de transcrever todo o diário, mas também de o comentar, acrescentando um total de 520 notas de rodapé, que ocupam mais 127 páginas. Uma reprodução da transcrição original, cuja existência era desconhecida da autora, encontra-se junto com os documentos da família Low-Mills acima referidos. 1 O próprio Hummel (1945:975) anuncia que a Biblioteca do Congresso estava a preparar uma edição completa do diário, e Loines (1953: vii) menciona no seu prefácio que Hummel tinha acabado de editar os nove volumes. No entanto, esta obra nunca chegou a ser publicada e parece ter caído no esquecimento.

No que diz respeito ao conhecimento do diário no mundo português, existe da autoria do padre Manuel Teixeira um opúsculo intitulado Macau no século XIX visto por uma jovem americana, publicado em 1981 e baseado na versão editada pela filha Katharine Hillard. Contém excertos do diário relativamente a uma variedade de assuntos, desde descrições de um tufão arrasador até à procissão do Senhor dos Passos, com comentários curtos do autor. No entanto, menciona que não foi o primeiro a traduzir do diário, mas sim Luís Gonzaga Gomes no seu livro Páginas da História de Macau.

Resta saber porque a própria Harriet nunca publicou um livro sobre as suas experiências no Extremo Oriente. A ideia passou-lhe certamente pela cabeça, e foi-lhe aliás proposta por uma personalidade conhecida, a famosa escritora e jornalista inglesa Harriet Martineau (1802-1876). Harriet Hillard (o nome que Harriet Low tomou após o seu casamento com John Hillard) conheceu-a durante o seu "período inglês", ou seja o tempo que residiu em Inglaterra, que se estendeu, com interrupções, de 1836 a 1859, ano em que seu marido morreu e ela voltou definitamente a viver nos Estados Unidos. A sua reacção foi de se sentir lisonjeada, mas ao mesmo tempo incrédula, como é visível numa carta dirigida a seu pai, depois de um encontro com Harriet Martineau: "Que grande ideia essa! Não te esqueças de os mandar empacotar [os volumes do diário] em caixas de lata para que sejam salvos da destruição. Que grande regalo para o público, não duvido!! Todas as pequenas passagens amorosas, e as figuras interessantes nele descritas" (numa carta datada de 5 e 6 de Junho de 1837, entre os documentos da família Low-Mills). Por isso, o elogio de Teixeira ao chamá-la de "grande escritora" (1981) não é totalmente justificado, sobretudo quando a pomos ao lado de outras mulheres que escreviam e publicavam activamente. Ao contrário, o diário tornou-a conhecida apenas postumamente. Nesse sentido, uma citação de Virgina Woolf, escolhida por Hummel para a primeira página da sua transcrição do diário, acerta em cheio: "Se queres ter a certeza de que o teu aniversário vai ser celebrado daqui a trezentos anos, a tua melhor acção é sem dúvida escrever um diário. Mas antes disso tens de ter a certeza de que tens a corajem de fechar o teu génio num livro privado e que tens o humor de regozijar a fama que será tua apenas no túmulo".

3. A AUTORA E AS RAZÃES DA SUA VIAGEM PARA MACAU

A jovem Harriet foi convidada pelo seu tio William Henry Low (1795-1834) para o acompanhar e à sua mulher Abigail (1800-?), pois não tinham filhos, durante um período que se previa de cinco anos em Macau. William Henry Low ia para Macau, ou aliás Cantão, como parceiro da companhia norte-americana Russell & Co., e eventualmente como seu director (Loines, 1953: vi), tendo ingressando naquela companhia em 1 de Outubro de 1829.

Harriet tinha uma irmã mais velha, Mary Ann ou "Molly", e dez irmãos e irmãs mais novos. Como Mary Ann já tinha um noivo e a Harriet se seguiam sete irmãos, a escolha parece ter sido natural. Além disso, Harriet era a sobrinha preferida do seu tio,geralmente referido por "Uncle" no diário, um sentimento que Harriet também tinha para com a sua tia ("Aunt Low" ou "Aunty"). O amor, respeito e carinho pelos tios são temas frequentes no diário. Para além de ser um entretenimento, o diário foi escrito para a sua irmã Mary Ann, que fazia o mesmo relativamente a Harriet. Deve dizer-se, no entanto, que Harriet era uma escritora muito discreta que preferia enviar informações delicadas pelo correio. A frase "no que diz respeito a detalhes, vê a minha carta..." é frequente. Mas também é compreensível, porque ela queria trocar impressões e obter conselhos da irmã e da família, e as cartas escreviam-se e enviavam-se mais regularmente. Mesmo assim, tinham de passar dez meses, em média, até se obter resposta a uma carta. Infelizmente, a maioria destas cartas perdeu-se.

O pai de Harriet, Seth Low (1782-1853), era um comerciante que importava produtos do Extremo Oriente. Dois meses depois da partida de Harriet, a família mudou-se de Salem para Brooklyn (Nova Iorque), onde vários membros e descendentes chegariam a assumir cargos públicos importantes. Desde a abertura do canal Erie em 1825, Nova Iorque tornou-se rapidamente num centro de navegação, enquanto o porto de Salem deixou de poder receber navios maiores devido a problemas de assoreamento.

Harriet é um exemplo típico do que é designado por "WASP" ("white, anglo-saxon, protestant" ou branco, anglo-saxónico, protestante) em inglês, ou seja um membro da classe média do seu tempo, orgulhosa da independência dos Estados Unidos, da coroa britânica. Ela identifica-se plenamente com os valores propagados por esta classe, onde às mulheres competia cuidar dos membros da casa e dos assuntos domésticos, e na qual as viagens femininas eram justificadas apenas por razões de ordem familiar. Pertence à primeira geração do acima referido "êxodo feminino" dos Estados Unidos e, embora tenha inveja da liberdade de movimento dos homens, não a questiona, antes se conformando. Como era característico das famílias protestantes, as filhas também recebiam instrução escolar, antes de tudo para poderem ler a Bíblia e cuidar da sua salvação. A família Low pertencia à Igreja Unitária, um credo ao qual Harriet aderia com muito fervor. Por um lado a sua fé forte facilitava-lhe a vida em Macau nos momentos adversos, por outro lado a sua inflexibilidade neste ponto dificultava-lhe a vida, inclusivamente a vida sentimental, sobretudo no seu contacto com os ingleses em Macau, anglicanos, e consequentemente trinitários.

4. MACAU E A CHINA NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

Na China esse era o tempo do auge do comércio de Cantão, razão pela qual o tio de Harriet se deslocava à China, e simultaneamente do tráfego de ópio. O comércio dos estrangeiros em Cantão, o único porto chinês aberto ao mundo desde 1759, estava sujeito a um grande número de restrições, cuidadosamente observadas pelos chineses e ao mesmo tempo grandemente contestadas pela comunidade estrangeira. 2 De acordo com estes regulamentos, por exemplo, era proibida a entrada de mulheres nas feitorias em Cantão. Deste modo, as mulheres e as famílias dos comerciantes residiam em Macau, enquanto os homens tratavam dos seus negócios em Cantão. Os números indicados por Hsue (1995:151) para o ano de 1836 indicam 307 estrangeiros em Cantão, dos quais apenas 94 eram de origem asiática (Indianos, Árabes, e outros). Não admira, por isso, que qualquer pretexto servisse para de vez em quando descerem de Cantão para respirar o ar livre de Macau, ver a família, ou procurar companhia feminina. De acordo com Harriet, "parecem como se tivessem sido libertados de uma jaula quando descem [de Cantão] por um ou dois dias, cheios de vida e animados" (7.4.1831/HumIII:293). Noutra ocasião observa "[Recebi] um bilhete do Blight dizendo que o Senhor Wood estava em Macau por razões de saúde, mas suponho que é tudo patranha. Fazem qualquer coisa para descer de vez em quando. Visitou-nos esta manhã, parecendo muito bem" (19.7.1832/HumIV:500).

A residência de estrangeiros em Macau estava autorizada desde 1757. Esta medida ia gradualmente transformar a cidade e acordá-la da letargia que se tinha estabelecido com o fim das relações comerciais com o Japão e o colapso do Estado da Índia, há pouco mais de um século. A partir desta data nada impedia a vinda de estrangeiros e os habitantes de Macau começaram a lucrar com a sua presença. Além de pagarem taxas alfandegárias, os estrangeiros alugavam casas aos Macaenses, pois era-lhes proibido adquirir casas ou terrenos. A vinda de mulheres estrangeiras para Macau, no entanto, não aconteceu imediatamente a seguir à licença de residência, e mesmo o número de mulheres portuguesas que vivia em Macau era muito reduzido até ao fim do século XVIII. Não foram tanto as distâncias geográficas que impediram as mulheres de viajar, mas as convenções e crenças sociais relativamente ao sexo feminino, suas funções e capacidades.

A casa onde viveu Harriet Low, em Macau, no Largo da Sé. Foi demolida nos anos 80.

No que diz respeito à comunidade estrangeira em Macau e às suas relações com os Portugueses, podemos dizer que os contactos eram muito reduzidos devido às barreiras linguística e religiosa, e que se restringiam ao mínimo absolutamente necessário. É frequente ler-se nas publicações contemporâneas de Harriet, e também no seu diário, um certo desdenho pelos habitantes de Macau. Wood, um contemporâneo e compatriota de Harriet, que chegou a ser o seu noivo secreto, descreve a população portuguesa de Macau como intolerante, ignorante, fanática, e absolutamente dominada pelo clero católico, admitindo apenas "poucas excepções" (1830:23). Esta opinião também se estende à administração portuguesa de Macau, considerada geralmente ser nominal apenas, e de má qualidade: "Os insultos e extorsões da parte chinesa, existentes desde há muito e raramente contestados, reduziram o poder português a um mero nome, e tanto tempo passou desde que estas medidas opressivas têm sido suportadas pacientemente, que nesse momento parece quase impossível [aos Portugueses] reassumirem os privilégios e as isenções a que originalmente tinham direito por concessão imperial" (Wood, 1830:20).

Parece que os estrangeiros faziam um pouco o que lhes apetecia em Macau, não tomando a administração portuguesa muito a sério, considerando-a um aborrecimento inevitável, como a reacção de Harriet ilustra ao saber que o Governador queria mandá-los embora: "Recebemos ordens do Governador de Macau para sairmos daqui. Diz que recebeu ordens da corte de Lisboa. Ora isto é de tal forma contra o tratado das nações que as razões não se percebem. Diz que não usará a força para nos mandar embora, mas posso dizer-te que não é muito agradável ser ameaçado de ser enviado de um sítio para o outro. [...] As pessoas dizem que o governo de Macau é português apenas nominalmente, e não acredito que haja muito perigo em sermos mandados para casa. Logo após a nossa chegada, o Tio apresentou-se a sua Excelência, como é costume, informando-o sobre a casa que tínhamos alugado, e o Governador disse-lhe que tinha de pedir licença à corte de Lisboa ou de Goa para podermos ficar. Escreveu para Lisboa, mas muito provavelmente demorará três anos até a resposta vir, e nessa altura, suponho, estaremos de partida de qualquer maneira. E é tudo no que diz respeito a ordens, que não nos incomodam muito" (extracto de uma carta de 3.3.1831, citada por Hummel, HumIII:270,271). Wood relata uma história parecida relativamente ao registo dos estrangeiros em Macau do tipo "não se fazem perguntas nem há dificuldades..." por parte das autoridades portuguesas (1830:20,21).

5. VIAGENS COMO INSTRUMENTO DE APERFEIÇOAMENTO PESSOAL E INTELECTUAL

"Todas as pessoas deveriam viajar por mar, pois ninguém sabe das maravilhas da criação até o fazer!" (3.11.1929/HumI:27). Tal a opinião de Harriet, lembrando-se dos crepúsculos compridos e dos pôr de Sol deslumbrantes no mar alto. Mas para além dos cenários espectaculares apresentados pela natureza em todo o mundo, viajar geralmente aumenta o horizonte intelectual e contribui para a formação do carácter dos indivíduos que se atrevem a enfrentar o mundo: "Deixei a casa dos meus pais às 5 horas [da manhã] com sentimentos que não podem ser descritos ou imaginados senão por aqueles que já passaram por uma situação parecida. [...]. No entanto, comportei-me como uma heroína que o tinha resolvido ser - mas às 10 horas fiquei enjoada e também no dia seguinte. Não sofri nada em comparação com outras pessoas, mas pude sentir este estado de desânimo extremo, uma prostração de forças e espírito tão grande como nunca antes conheci nem jamais desejo conhecer" (24.5.1829/HumI:1).

No que diz respeito à formação pessoal e intelectual, a viagem, com paragens em Manila na ida, e na África do Sul, na ilha de Santa Helena e em Inglaterra na volta, bem como a estadia em Macau proporcionaram-lhe oportunidades únicas neste campo. Se Harriet tivesse ficado em Salem, teria certamente que ajudar a mãe a tomar conta da casa e dos irmãos, com pouco tempo livre para ler ou estudar. Em Macau, ao contrário, não havia nada a fazer deste género: os tios não tinham filhos e o governo da casa estava entregue aos chineses, organizados numa hierarquia de trabalhos domésticos. Harriet ficou deslumbrada com esta situação e descreve várias vezes a facilidade em receber visitas para tomar chá: "Gostava que pudesses participar nestas pequenas festas maravilhosas. Não fazes ideia de quanto prazer dão. As festas de chá em casa [nos EUA] são uma maçada tão grande que é impossível gozá-las, mas aqui tudo é fácil. Se qualquer coisa correr mal, toda a culpa é dos empregados e não da dona da casa, ao contrário do que acontece em casa" (5.4.1830/HumII:168).

Além disso, tendo uma posição de destaque em Macau por ser uma das poucas mulheres jovens anglófonas e não casadas, Harriet teve de perder a sua timidez e insegurança e aprender a fazer conversa com pessoas que pouco ou nada conhecia e que muitas vezes a aborreciam: "Lembras-te como achava desagradável estar à mesa com meia dúzia de senhores? Os tempos mudaram desde então e agora não me importa serem 30 ou 40, ou tantos quanto quiseres. [...] O momento crítico é a altura em que as senhoras vão para a mesa. É essencial posicionar-se entre duas pessoas agradáveis, mas sendo pobres criatures dependentes, temos de aceitar quem nos aceita. No entanto, não me vou queixar, pois geralmente tenho muita sorte" (12.5.1830/HumII:194).

A casa dos Low, onde também viveu uma amiga de Harriet entre Dezembro de 1831 e Março de 1833, deve ter sido uma das casas mais frequentadas pelos estrangeiros em Macau, alguns dos quais vinham com propostas de casamento, e outros simplesmente pela companhia feminina tão rara e agradável. O relato do capitão de um barco vindo das ilhas Sandwich [Hawaii] a Macau merece o seguinte comentário de Harriet: "Diz que chegaram notícias às Ilhas e à Costa de que me iria casar com três ou quatro pessoas. Eu respondi que uma já chegava. É engraçado saber da notoriedade da minha fama; podia estar muito orgulhosa. Ele diz que a minha fama se estende de pólo para pólo, e tudo sem dúvida porque sou uma mulher solteira num país distante. Poderia ter ficado na América até ao fim da minha vida e nunca me ter tornado conhecida para além do meu lar. E mesmo agora, se me casasse, cairia na insignificância. Bem, é o destino das mulheres solteiras serem objectos da especulação" (28.1.1833/HumV:600). A ansiedade e preocupação de acabar os seus dias como "solteirona" também são temas frequentes no diário. 3 Visto que pretendentes não faltavam, resta saber porque não se casou com nenhum deles. Teixeira (1981:27) indica duas razões: "A primeira é porque a Maria-que-vai-com-todos, fica sem nenhum. A segunda é aquela que eu ouvi a uma madrilena [...] - lo que yo quiero no me quiere e lo que me quiere yo no lo quiero... ". Uma leitura integral do diário, no entanto, não admite a primeira razão indicada por Teixeira. Não há espaço nem para a dúvida que o idioma exprime. Harriet era uma rapariga séria, com princípios morais firmes. Corroboramos a segunda razão, mas apenas parcialmente. É óbvio que havia mais pretendentes do que homens aos quais respondia com sentimentos iguais. Mas chegou a ter um noivado em secreto com o já referido Wood, o qual terminou por pressão dos tios. Além disso, nutria sentimentos muito profundos por dois ingleses, o capelão Vachell e o médico oftalmologista Colledge. Aqui, em nossa opinião, o maior obstáculo para a felicidade era uma certa timidez ou falta de coragem e a sua firme convicção de unitária que, ironicamente, a fazia sofrer muito e ao mesmo tempo lhe dava a força para superar desapontamentos profundos.

A vida materialmente desafogada e aparentemente fácil em Macau teve também os seus inúmeros pequenos e grandes reveses, pondo à prova os seus habitantes. O diário ilustra bem as lutas contra o sentimento de se considerar inútil, exactamente devido ao facto de não haver nada a fazer, ou de se fazerem sempre as mesmas coisas, no mesmo espaço restrito durante anos e anos, e de se verem sempre as mesmas caras. Uma palavra frequentemente usada é a de "blues" (que se poderia traduzir por depressão), provocado por uma variedade de causas, mas sobretudo pela saudade da casa dos pais e pela demora na correspondência. Para não cair no desespero devido à monotonia da vida em Macau, sobretudo durante a longa ausência da esmagadora maioria dos homens em Cantão, as mulheres ocupavam-se com imensas de tarefas e afazeres. Visitavam-se umas às outras regularmente; faziam - sempre que o tempo admitia - passeios a pé; aprendiam línguas (espanhol e francês no caso de Harriet); tinham lições de desenho com o grande mestre Chinnery ou posavam para ele; organizavam passeios e piqueniques à Ilha Verde e à Ilha da Lapa, geralmente só se também houvesse companhia masculina; modificavam os vestidos de acordo com os últimos gritos da Índia e da França; faziam jardinagem e visitavam os belos jardins de Macau, o aviário de Beale, o museu de então; etc., etc.. No que diz respeito a Harriet, era uma viciada na leitura e adorava receber e escrever cartas. O diário vibra com as lamentações sobre o atraso dos barcos e do correio, e sobre a preguiça das suas correspondentes, que não respondiam às cartas prontamente ou o faziam de uma forma curta demais. O desespero chega a ter tons sarcásticos como na seguinte observação: "O barco chegou a Singapura e o capitão escreveu que tinha muitas cartas para todos nós, mas não sei quando as receberemos. No entanto, recebemos a carta dele; se ao menos as tivesse mandado para cima. Suponho que prefere ficar com elas e mostrar-lhes Manila e Whampoa, antes de nós as veremos. Se calhar pensa também que melhoram com a idade" (22.6.1831/HumIII:329).

Como Harriet tem o hábito de mencionar no diário os livros que lê, fica-se, ao fim de quatro anos e meio, com uma lista impressionante, incluindo aproximadamente 150 títulos, alguns dos quais em francês e espanhol. Relativamente ao seu gosto literário, diz preferir livros de história, sobretudo biografias e as histórias de países e dinastias, pelo seu carácter verídico e educativo: "É impressionante o número de crimes e a maldade que se encontra ao ler História; que contrastes de carácter! [...] É raro encontrar um homem simultaneamente bom e grande - parece quase incompatível. Adoro ler História, mas ao mesmo tempo provoca-me aversão à natureza humana. Que estranha a nossa inclinação para admirarmos homens grandes e poderosos, mesmo que cada página da sua história esteja manchada de crimes" (23.3.1833/HumVI:636). E mais adiante, depois de ter lido sobre história natural: "Adoro estabelecer o contraste entre as discórdias humanas e a harmonia natural. A História diminui o nosso respeito pelo homem, o estudo da natureza leva-nos a admirar ainda mais o autor de tudo" (22.5.1833/HumVI:672).

Obviamente também devorou romances, muitos dos quais de autores conceituados como Walter Scott, Washington Irving, Cervantes, Madame de Staël, Madame de Genlis, Maria Edgeworth e outros. No entanto, escreve: "[...] não gosto de romances. Detesto vê-los chegar à nossa casa, porque nos enfeitiçam. Mas devemos ler os romances actuais, para podermos fazer conversa ["small talk"]" (14.8.1832/HumV:514). Todavia, como isto foi escrito num momento de mau humor, depois de ter recebido um romance de um admirador que tinha caído em desgraça, restam algumas dúvidas na sinceridade desta afirmação. Além disso lia drama (Shakespeare, Molière, Moratin), poesia (Byron, de preferência), literatura de viagem, correspondência literária (Madame de Sevigné), e até obras de carácter teológico ou filosófico (Paley, Beattie, etc.). Não se podem também esquecer as suas colecções particulares de livros de sermões de sacerdotes unitários (Buckminster, Thatcher, Priestley, Channing), lidos regularmente nos domingos, muitas vezes depois de ter voltado da missa na capela protestante, para compensar os "disparates" doutrinais pregados pelos sacerdotes ingleses.

Uma outra grande escola de conhecimentos aberta pelas viagens tem a ver com o conhecimento não apenas de indivíduos, mas de novos povos e culturas diferentes. Vamos ouvir as impressões de Harriet neste campo, que tal como a grande maioria dos seus compatriotas conhecia o estrangeiro apenas através de livros e jornais, ou de relatos de pessoas que tinham estado fora. Ao longo da sua viagem teve a oportunidade de ver com os próprios olhos e de rectificar as suas ideias sobre uma multiplicidade de assuntos, sendo em muitas ocasiões as diferenças entre as expectativas e a realidade significantes. Alguns meses depois de ter desembarcado em Macau comenta: "Durante toda a passagem ele [o Senhor Ammidon, um passageiro no barco "Sumatra"] queria convencer-nos que isto [Macau] seria um lugar horroroso. Mas não o lamento muito, porque se nos tivesse feito acreditar que iríamos para um lugar perfeito, com a minha imaginação fértil, teria ficado desapontada" (25.3.1830/HumII:154).

6. VIAGENS COMO VEÍCULO DE CONSCIENTALIZAÇÃO NACIONAL

O filósofo alemão Keyserling (1880-1946), ele próprio muito viajado, exprimiu numa simples frase o que qualquer viajante vai reconhecer: "O caminho mais curto para descobrirmos quem somos, leva-nos à volta do mundo". É em confrontação com as maneiras diferentes de ser e de estar das culturas vizinhas e longínquas deste mundo que o viajante se torna mais consciente dos valores e práticas na sua "cultura-mãe". Viajar implica sempre o perigo de mudança pessoal, visto que os novos conhecimentos podem influenciar o viajante tanto positiva como negativamente. O pai de Harriet, muito preocupado com as tentações a que estava exposta a sua filha sobretudo em matérias de fé, adverte-a numa carta escrita anteriormente à sua partida: "Posições que consideras invulneráveis, porque nunca as viste atacadas, podem ser derrotadas de surpresa. [...] Se não estiveres preparada com argumentos para uma defesa em todos os pontos, a tua fortaleza mais forte pode ser demolida, levando-te de um lugar para o outro em sua defesa, até perderes a confiança em ti própria e encarares as tentações sucessivas com menos e menos coragem e decisão, acabando por julgar a tua fé e os teus princípios como indefensáveis" (Loines, 1953:20). Mas já sabemos que Harriet ganhou a batalha da fé unitária com distinção.

O grande ponto de referência e comparação durante a sua estadia em Macau iriam ser os ingleses, pelas muitas afinidades e influências que existiam entre os norte-americanos (do género "WASP") e os ingleses em termos linguísticos e culturais, e por serem aqueles com os quais mais se davam. Além disso, Harriet conheceu em Macau Irlandeses, Escoceses, Franceses, Espanhóis, Holandeses, Suecos, e obviamente Portugueses, Macaenses, Chineses e Africanos, e mestiços de várias raças. Indirectamente, através de relatos de capitães dos barcos, de missionários e de viajantes ficou a conhecer muitas outras partes do mundo, tal como a Índia, as ilhas que hoje constituem a Indonésia, a América do Sul. No entanto, a preocupação com os ingleses é visível ainda no prefácio da primeira versão publicada do diário, escrito pela sua filha Katharine Hillard. Nem sequer menciona a palavra "português", ou que Macau estava sob administração portuguesa, mas diz que a sua mãe "[...] foi viver para a China sob os auspícios da Companhia das Índias, e em toda a luxúria e formalismo da sociedade inglesa daquele tempo" (Hillard, 1900: vi).

Gruta de Camões. (c. 1833-38) George Chinnery. Aguarela em papel. Toyo Bunko.

Uma das diferenças mais visíveis, ou seja audíveis, visto que exteriormente deve ter sido difícil distinguir um norte-americano de um inglês, foi a língua e o uso de certas palavras. O que era linguagem corrente e normal para uns, provocava admiração, riso e também troça noutros, como o seguinte episódio dos "slapjacks" americanos ilustra. Os "slapjacks" são uma espécie de panquecas, mas o sentido literal da palavra quer dizer "dá uma pancada no João" ("slap + Jack"). Harriet escreve: "O Senhor L. diz, 'espero que não coma "Slap Jacks"'. Afirmei que comia dois todas as manhãs. Para dizer a verdade como quatro, mas não queria escandalizá-lo mais do que necessariamente. Suplicou para eu encontrar uma designação mais apropriada, suplicou para eu não dizer que comia "Slap Jacks", "que horror" diz" (13.4.1831/HumIII:278). Os "slapjacks" adquiriam uma certa fama em Macau e os Lows convidaram mesmo um casal inglês para os experimentarem, a uma hora pouco vulgar para visitas, às 8.30h de manhã, quando são feitos fresquinhos. Vieram, experimentaram, gostaram. Os americanos, por outro lado, ficavam admirados com o emprego num sentido mais amplo pelos ingleses das palavras "clever" (esperto, inteligente) e "nasty" (sujo, asqueroso), por exemplo. No entanto, Harriet admite que os ingleses "geralmente falam muitíssimo correctamente" (1.7.1833/HumVI:696).

Outro tema frequente são os costumes dos ingleses que Harriet geralmente considera como antiquados e enfadonhos. Os jantares formais da Companhia Inglesa das Índias merecem o comentário de serem "a maior de todas as maçadas" (26.8.1830/HumII:250). Comparando a maneira aberta de falar sobre todos os assuntos dos espanhóis, exemplificada pelo seu professor de espanhol, que às vezes até fazia corar Harriet e a sua amiga Caroline, escreve: "Os franceses e os espanhóis não parecem ter nenhumas destas ideias de delicadeza (que talvez possa ser designada como falsa delicadeza) que os ingleses têm. " (10.3.1832/HumIV:417). No que diz respeito ao amor e às tradições de casamento, um tema abordado com uma certa regularidade, Harriet comenta: "É estranho as ideias que os ingleses têm sobre o casamento. Ele [Colledge] diz que qualquer pai deveria esforçar-se por veras suas filhas casadas e enquanto estão prósperas também. Dissemos-lhe para não falar assim perante um grupo de americanos, porque os nossos motivos para casar geralmente não são tão mercenários como os deles"(18.2.1832/HumIV:410). Um costume americano, rejeitado pelos ingleses, nomeadamente o de casar com o viúvo ou a viúva de uma irmã ou irmão, é confirmado ser "muito comum" nos EUA por Harriet, embora diga: "Devo admitir que não gostava de me casar com um cunhado" (6.3.1831/HumII,273).

Em Macau Harriet experimentou também o que inúmeros viajantes podem confirmar: quanto maior a distância da terra natal, menores as barreiras entre classes sociais e outros factores que restringiriam o contacto entre os mesmos indivíduos no país de origem. Embora os Estados Unidos já nessa altura tivessem a fama de constituirem uma sociedade mais igualitária do que as do velho continente europeu, maioritariamente compostas por monarquias, um facto que é várias vezes referido no diário, o seguinte comentário de Harriet ilustra que não era bem assim: "O Senhor Sullivan visitou-nos esta manhã [...]; é um jovem bastante interessante e um bom exemplo de um [norte-]americano. É um dos aristocratas de Boston e se calhar não falaria connosco em casa. Aqui, no entanto, são afáveis e muito bem-educados" (19.7.1831/HumIII:342). Mais tarde, comentando sobre o mesmo jovem Sullivan, escreve: "Disse-lhe que era um jovem muito orgulhoso, ao que consentiu; diz, no entanto, já ter melhorado. Assim podemos esperar que ele corrija este sentimento depois de ter visto um bocado mais do mundo e de ter amadurecido" (3.7.1832/HumIV:492). No entanto, a seguinte observação de Harriet relativamente a Chay Beale, filho de Thomas Beale, o dono do famoso aviário, evidencia que a família Low também não se daria socialmente com certos indivíduos nos EUA: "Este jovem [Chay Beale] se calhar não faria parte das tuas relações (dependendo das tuas ideias escrupulosas do que é bom e decente), por ser um filho ilegítimo, mas ele foi educado na Inglaterra e frequenta a sociedade mais alta de aqui. Ai, estes delitos são demasiado frequentes no mundo oriental para serem consideradas com a vergonha que mereceriam"(27.3.1832/HumIV:425).

Um outro assunto que é mencionado várias vezes é a situação dos comerciantes americanos em Cantão comparativamente aos ingleses. Wood, que não era um grande amigo dos ingleses, tenta no seu livro rectificar a ideia que existia no estrangeiro, e sobretudo nos EUA, sobre a Companhia Inglesa das Índias: "Entre outras impressões erradas que se criaram existe a do destaque e da importância da Companhia Inglesa das Índias. Muitas pessoas pensam que a feitoria da Companhia é a única, ou que todas as feitorias pertencem à Companhia, e que outras nações visitando Cantão estão sob a protecção e o controlo deste monopólio. [...] A unidade dos membros como um corpo tem-lhes permitido executar medidas que dependiam da cooperação incondicional das partes em questão. O mesmo tem sido impossível entre os americanos e outros [...]. (Wood, 1830:64,65). Harriet sofreu a verdade desta observação pessoalmente quando da sua visita clandestina à cidade celestial, em companhia da sua tia, em Novembro de 1830. Nessa altura já havia várias mulheres e filhos de membros da Companhia das Índias a viver em Cantão por períodos de vários meses. A primeira mulher ocidental a visitar e a viver em Cantão, a Senhora Baynes, mulher do então presidente do Comité Selecto, instalou-se em Cantão em Fevereiro de 1830, seguida por várias outras mulheres. No entanto, as duas senhoras americanas são mandadas voltar a Macau pelos chineses, poucas semanas depois de lá estarem, sob a ameaça de o comércio com a firma Russell & Co. ser interrompido se não o fizessem: "Estes chineses desprezíveis, que não merecem a nossa atenção, têm o poder de nos incomodar a todos. [...] Isto é tanto mais provocador quanto as senhoras da Companhia, representando um corpo e capazes de os ameaçar, podem ficar e nós, pobres criaturas, temos de nos ir embora" (15.11.1830/HumII:261). Quando os chineses comunicaram aos ingleses que iam enviar soldados e expulsar a senhora Baynes pela força, o seu marido mandou colocar 100 marinheiros armados e um canhão em frente da feitoria inglesa, o que foi suficiente para alterar a opinião dos chineses.

Noutra ocasião lamenta a maneira como o governo dos EUA, coloquialmente designado por "Uncle Sam", negligencia os seus empregados na China: "Têm existido algumas dificuldades com o [nosso] cônsul em Cantão. É uma grande vergonha que o nosso rico "Uncle Sam" não torne o consulado em Cantão mais respeitável. Deveria existir uma remuneração e um estabelecimento, mas em vezdisso não há nem honra nem proveito, não chega para apoiar a bandeira" (31.5.1832/HumIV:468). "O nosso presidente [cônsul] aqui, para começarmos, não aufere tanto como o responsável da feitoria britânica, nem metade, [...] e os oficiais da marinha, pobres criaturas, como é que podem sustentar uma família - e se falecerem, não há apoios para as viúvas" (28.11.1832/HumV:565).

No que diz respeito às outras nacionalidades e culturas presentes em Macau, os chineses, com poucas excepções, são olhados de cima para baixo e por isso aparecerão sobretudo no capítulo seguinte. Os portugueses também não servem como modelo de comparação, embora não fossem rejeitados da mesma forma que os chineses. Além disso, os contactos com membros destas duas culturas eram muito restritos. A única qualidade, se calhar, que Harriet descobre nos chineses é a de uma certa cortesia perante as mulheres estrangeiras. Menciona várias vezes que os seus compatriotas masculinos nos EUA teriam demonstrado um comportamento mais curioso ou até insultante para com senhoras estrangeiras em certas circunstâncias, tal como assustá-las ou até tentar tocar-lhes. Mas a cortesia dos chineses tem os seus limites de credibilidade para Harriet. Quando ela suja o pé até ao joelho durante um passeio e até perde o sapato na lama, um chinês-cule prontamente procura o sapato perdido, ajuda-a a lavar o pé num riacho e ainda lava o sapato. A conclusão de Harriet e Caroline relativamente a este comportamento inesperado de um chinês é que se deve ter tratado de um admirador disfarçado (6.10.1832/HumV:538,539).

7. VIAGENS COMO CONFIRMAÇÃO DO SENTIMENTO DA SUPERIORIDADE POLÍTICA E MORAL DOS EUA

Embora os ocidentais não tivessem vindo para a China como "mestres coloniais", vieram com uma atitude colonial, prontos a julgar o Oriente e as suas culturas de acordo com as ideias prevalecentes do seu tempo. No que diz respeito à China, no século XIX a consideração do Ocidente pelos chineses tinha chegado a um ponto muito baixo comparativamente à imagem transmitida da China pelos Jesuítas, ou ainda à admiração dos enciclopedistas para os quais a China servia como modelo de comparação e de crítica da própria sociedade. 4 Que contraste maior podia existir entre uma jovem democracia e uma monarquia várias vezes milenária? Não admira pois que Harriet celebre o 4 de Julho, dia da Independência dos EUA, mais entusiasticamente de ano para ano e muito provavelmente mais conscientemente do que teria feito em casa. Quando o médico inglês Colledge, numa das habituais conversas de comparação entre os EUA e a Inglaterra, profetiza que mais cedo ou mais tarde os Americanos hão-de ter um rei, depara com o protesto cerrado da parte americana. Harriet comenta: "Ele é cem por cento inglês, algo aristocrático, e adora os velhos costumes. Os ingleses são muito parecidos com os chineses a este respeito; mesmo que a razão lhes diga que estão errados, são fiéis aos velhos hábitos" (1.2.1833/HumV:603). De acordo com Harriet, o uso da "razão" era exactamente o que distinguia os americanos do resto do mundo, sendo visível o progresso económico dos EUA particularmente durante a presidência de Andrew Jackson (1829-1837), não obstante os problemas de política interna.

O conhecimento de Harriet sobre a China e os chineses é muito restrito e caracterizado pelos preconceitos existentes na época. Na sua extensa lista de leitura não aparecem livros sobre a China, à excepção do livro de Wood. Nem jamais lhe passou pela cabeça aprender a língua chinesa, ao contrário dos missionários e de alguns, embora poucos, comerciantes ocidentais em Cantão, tais como William C. Hunter ou John F. Davis. Quando se refere aos chineses no diário é geralmente por ter tido quaisquer problemas e mal entendidos, sobretudo de ordem caseira, e para descrever as suas festividades e hábitos, ou os poucos encontros directos com alguns dos comerciantes chamados "Hong". Os chineses, tal como os ingleses, também são vistos como escravos das suas tradições: "[...] mas asseguro-te que os chineses não se comparam a qualquer outra nação do mundo. Não admitirão qualquer inovação relativamente ao 'velho costume', e repetirão estas palavras nos teus ouvidos eternamente, a não ser que seja no próprio interesse deles em o violar, o que é uma coisa completamente diferente. Um outro facto que reconhecem é que não'podem ser razoáveis' ['cannot talky reason'; uma expressão em "Pigeon English"], e que têm de ser 'ameaçados'" (25.1.1831/HumII:265, de uma carta). Observações nitidamente racistas são muito raras no diário e geralmente acompanhadas de desculpas de não poder julgar por não conhecer bem os chineses. A frase mais forte neste contexto é a seguinte, escrita ao saber da morte por afogamento de cinco chineses numa tempestade: "É difícil explicar a indiferença que sentimos no que diz respeito a estas criaturas; ouvimos como morrem e se afogam e outras calamidades de natureza variada, sem os sentimentos, no entanto, que teríamos em casos semelhantes no nosso próprio país ou na Europa. Deve ser por não termos nenhuma simpatia para com eles. Parecem-me um elo de união entre o homem e o mundo animal, mas certamente não igual ao homem civilizado. E vendo a ordem diferente e elos em todo o resto das obras da natureza, não será razoável assumir a existência de classes superiores e inferiores de homens? Certamente não possuem a sensibilidade e os sentimentos de outras nações. E quando ouvimos falas destes desastres, a nossa imaginação nunca pensa em famílias aflitas e em famílas felizes destruídas, porque conhecendo os seus costumes brutais, não podemos imaginar que tais aflições existam" (23.2.1833/HumV:620,621). Mas como advogada firme do progresso espera que o dia da libertação também chegará para os chineses: "Nós vamos ver, ou outros verão estes chineses serem exaltados, a vez deles há de chegar, penso. As barreiras devem ser demolidas, a ignorância deve dar lugar ao conhecimento, e a escravatura à liberdade. Nessa altura, as mulheres serão exaltadas" (17.2.1833/HumV:615).

Ao ouvir a descrição de um casamento chinês, observado pelos estrangeiros em Cantão, com a noiva incapaz de se movimentar livremente por causa dos pézinhos de lótus, escreve: "Não deveríamos ser gratos por a nossa civilização ser muito mais avançada? Embora o requinte e a civilização tenham os seus próprios pecados, têm um carácter mais requintado e civilizado" (17.2.1833/HumV:616). No entanto, quando um chinês compara o hábito ocidental de as senhoras apertarem a cintura com o dos pézinhos de lótus na cultura chinesa, Harriet comenta: "Parece que eles ficam muito admirados de 'como conseguimos catchy chow-chow', quer dizer de como podemos comer; para eles seria certamente mais grave do que não poder andar" (17.2.1833/HumV:615). Um bom argumento para ilustrar o requinte mais "civilizado" das torturas das senhoras elegantes na sociedade ocidental!

No que diz respeito aos Portugueses, a qualidade que é mais repelente aos olhos de Harriet, é de serem católicos. Não percebe de todo a obediência aparentemente cega da população ao clero, citando alguns exemplos impressionantes. Os católicos são acusados de não usarem a razão em matérias de fé, de executarem os seus deverers cristãos mecanicamente e sem os perceber intelectualmente, de se esgotarem em rituais e ceremónias vazios e até blasfémicos. Na medida em que ciclicamente se repetem as festividades católicas, se repete a crítica de Harriet. Informada por um servente chinês que o "Deus dos Portugueses iria sair à rua", ela assiste à sua primeira procissão em Macau: "É quaresma agora, e têm muitas destas procissões. Quando vejo estas coisas agradeço a Deus por ter nascido [num país] onde o adoram de uma maneira mais cristã, e onde, pelo menos, todas as pessoas sabem o que adoram, e onde, espero, se é mais sincero do que penso ser-se aqui. Mas não quero julgar" (8.2.1830/HumII:133). No fim da sua estadia em Macau, depois de ter visto e ouvido muito dos católicos, pronuncia a seguinte esperança: "Gostava de saber se jamais virá o tempo em que esta religião (se a podemos chamar assim) católica desaparecerá. Sim, pouco a pouco, acho que sim. Imagina o tempo em que toda a Europa estava no mesmo estado. Mas à medida em que o mundo se torna iluminado, este fanatismo e superstição desaparecerão. [...] A religião de Jesus Cristo espalhar-se-á pelo mundo todo. O espírito suave da Caridade Cristã está a crescer na América, e não pode deixar de se espalhar" (17.2.1833/HumV:614,615). Mais uma vez a América está a mostrar o caminho ao mundo. 5

NOTA FINAL

O diário de Harriet Low pode ser considerado como uma fonte valiosa para o estudo deste período do "China trade" e da residência dos estrangeiros em Macau, sobretudo se for lido em conjunto com outros relatos contemporâneos. Embora os conhecimentos de Harriet sobre Cantão e sobre o "China trade" fossem necessariamente muito restritos, por não terem feito parte da esfera da vida das mulheres, são ricos noutros planos. O diário é um dos poucos relatos femininos deste período de Macau, o único conhecido até agora que se estende sobre um período de vários anos. Dá-nos uma visão mais clara da vida diária das mulheres, dos momentos altos e baixos, e da vida diária da comunidade estrangeira em Macau, entre a qual se contam muitas individualidades famosas como George Chinnery, Robert Morrison e sua família, Thomas Colledge, Anders Ljungstedt, John F. Davis e outros. Através da pena de Harriet conhecemos não apenas a qualidade que os tomou famosos, mas também o seu lado humano, dando-nos uma ideia mais completa e integral destas pessoas. A vantagem do diário comparativamente aos livros de William C. Hunter, por exemplo, que foram escritos várias décadas depois da estadia dele em Macau e Cantão e largamente reconstruídos de memória, consiste exactamente no facto de ser "fresco", e além disso em não ser influenciado por quaisquer ambições literárias nem intenções de publicação.

Além disso, a leitura do diário é interessante por ter sido escrito por uma pessoa com gosto e poder de introspecção. Conta dos desafios que esperam o viajante não só no plano intelectual ou cognitivo, mas também nos planos religioso e emocional-sentimental, e como o indivíduo trata com eles. Enquanto autores masculinos raramente escrevem sobre desafios do último tipo, como por exemplo problemas como o "blues", porque seria interpretado como um ponto fraco no sexo forte, sabemos através do diário que também tinham de lutar contra ele.

Assim, o diário pode ser examinado de várias ângulos, sendo o modelo de Schriber relativamente aos três motivos ideais a favor do acto de viajar na cultura norte-americana do século passado apenas um instrumento de análise. Como vimos, o diário oferece ampla evidência para corroborar as teses de Schriber. No fim da sua estadia em Macau, reflectindo sobre a sua decisão de acompanhar os tios, Harriet escreve: "Nunca me esquecerei da variedade de sentimentos que tive - a inclinação puxando-me numa direcção e o dever noutra; desistir por um tempo tão largo de todas as delícias da casa [...], mas tenho de admitir ter um respeito maior pelo meu carácter e pela minha resolução do que teria tido se me tivesse rendido à sua fraqueza [do carácter]. Ganhei um mundo de experiência nesse tempo que espero não será perdido" (23.5.1833/HumVI:673).

BIBLIOGRAFIA

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Hsue, Immanuel C. Y.: The rise of modern China. New York and others: Oxford University Press, 5¶h ed., 1995

Hummel, Arthur W. (ed.): The journal ofHarriet Low. (manuscrito dactilografado; 1075 pages)

Hummel, Arthur W.: "The journal of Harriet Low". The Library of Congress Quarterly Journal of Current Acquistions. Vol. 2, nos. 3 and 4, 1945, pp. 972-989

Hunter, William C.: Bits of Old China. Shanghai and others: Kelly and Walsh, Limited, 1911

[Hunter, William C.]: The "Fan Kwae " at Canton before treaty days 1825-1844 by An Old Resident. Shanghai and others: Kelly and Walsh, Limited, 1911

Loines, Elma (ed.): The China trade post-bag ofthe Seth Low family of Salem and New York. Manchester (Maine): Falmouth Publishing House, 1953

Ljungstedt, Anders: An historical sketch of the Portuguese settlements in China and of the Roman Catholic Church and mission in China & description of the city o f Canton. Hong Kong: Viking Hong Kong Publications, 1992 (versão integral da primeira edição de 1836)

Mackerras, Colin: Western images of China. Hong Kong and others: Oxford University Press, 1991

Schriber, Mary Suzanne: Writing home. American women abroad, 1830-1920. Charlottesville and London: University Press of Virginia, 1997

Teixeira, Manuel, Padre: Macau no século XIX visto por um jovem americana. Macau: Direcção dos Serviços de Educação e Cultura, 1981

Wood, W. W.: Sketches of China: with illustrations from original drawings. Philadelphia: Carey & Lea, 1830

NOTAS

1 As referências ao manuscrito dactilografado de Hummel far-se-ão pela indicação das três primeiras letras do seu nome, seguidas pela indicação do volume em números romanos e pelo número de página em números árabes. Por exemplo, uma citação da página 158 do segundo volume da transcrição referir-se-á como HumII:158.

2 Hunter publicou dois livros dedicados ao tema do comércio de Cantão, descrevendo a vida dos estrangeiros naquela cidade, as suas relações com os chineses e em particular com os comerciantes "Hong", os regulamentos aos quais tinham de obedecer e aos quais não obedeciam, e os produtos comercializados. Existe um mapa das feitorias em Cantão no seu livro Bits ofOld China, inserido entre as páginas 220 e 221.

3 A ideia de ficar solteira pairava como um espectro sobre as mulheres de então. As atitudes da sociedade para com as mulheres solteiras são muito bem documentadas no livro editado por Fraisse e Perrot (artigo de Dauphin, nas páginas 427-442) e noutro por Perrot (um pouco por todo o livro). Harriet menciona no diário que nessa altura, de acordo com um censo recente, existiam mais 14.000 mulheres do que homens no seu estado natal, Massachussetts, razão suficiente para deixar inquieta qualquer mulher que não queria ficar para "vieille fille".

4 Mackerras eludicia a questão das ideias e imagens que existiam no Ocidente sobre a China ao longo dos vários séculos, examinadando também os criadores destas imagens (missionários, comerciantes, viajantes, filósofos).

5 É interessante notar a evolução por que a Igreja Unitária passou desde então. Uma consulta da sua "homepages" na Internet confirma que se afastaram totalmente da Igreja Cristã, intitulando-se "Igreja da Mente Aberta", "religião liberal", etc. A Harriet de então muito provavelmente não concordaria com o caminho percorrido nos últimos 170 anos pela fé Unitária.

* Magister Artium em Antropologia Social, Filosofia e Ciência Política (Universidade de Mainz) e pós-graduação em Ciência de Informação (Universidade Católica Portuguesa). Tradutora de Alemão, Inglês e Português, desde 1988, é professora do Instituto de Formação Turística de Macau e assistente da Faculdade de Gestão de Empresas da U. M..

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