Artes

ESTÉTICA DA GRAVAÇÃO DE CARIMBOS O carimbo de Yi Da An

Mio Pang Fei

A gravação de um carimbo, do ponto de vista estético, é essencialmente uma arte de linhas e suas combinações. Consequentemente, também, da harmonia das linhas com o espaço.

Numa gravação, há geralmente linhas muito finas e linhas espessas ou muito grossas. Na linguagem técnico-estética tradicional da arte do carimbo, há expressões sugestivas dos principais tipos de linhas. Por exemplo, utilizam-se as expressões "teia de aranha" ou "perna de mosquito" para referir o tipo da linha muito fina; ou "força do búfalo" para sugerir a espessura e o dinamismo das grossas.

No que toca às formas e direcções possíveis, elas podem ser rectas ou curvas, contínuas ou não, tracejadas ou cruzadas - uma trama de possibilidades infindável e de cuja combinação e urdidura pode resultar a beleza do conjunto. Todos e cada um dos elementos têm, pois, uma linguagem própria, uma mensagem especial, e hão-de harmonizar-se para resultar numa impressão global de calma, silêncio, delicadeza, vivacidade, dinamismo, simpleza, etc..

Em comparação com os processos da arte ocidental, os chineses dão maior importância à linha, sua beleza e traçado, talvez em obediência ou em harmonia com um dos instrumentos fundamentais da arte chinesa - o efeito do claro/escuro.

"Um bom calígrafo escreve com os ossos" - eis uma sentença que resume um princípio essencial da execução da caligrafia chinesa. Isto é, o bom calígrafo deve imprimir força e secura ao gesto de gravação dos caracteres. Uma escrita de aspecto débil, sem segurança nem firmeza, é de certeza de um mau calígrafo e por isso se diz dela que é feita com a carne, e não com os ossos. Um exemplo da pintura com analogia à caligrafia: uma só linha horizontal pode denunciar o bom artista quando, num contexto em que se pretende significar céu ou montes, ela nos surge densa de matizes internos sugestivos das ondeações ou nuvens. Isto consegue-o o verdadeiro artista por perfeito domínio das tonalidades da tinta, entrosando as mais saturadas com as mais esbatidas.

Está neste exemplo contido, também, um princípio estético do traçado horizontal (conotações "Yin" de leveza, passividade, etc.) que, com o traço vertical e o ponto, conformam os três sinais básicos de toda a escrita e caligrafia.

"Traçar as linhas verticais como raízes de árvore milenar" - é outra expressão sentencial que aconselha que o artista se inspire nas raízes velhíssimas dos cipós para delinear os traços verticais, com a força que os seus troços vigorosos inculcam no observador.

O ponto, por sua vez, deve ser posto "como uma pedra no alto da montanha"; isto é, para o traçar, o artista deve transmitir a ideia de força estável, de solidez e de apoio - o dinamismo da pedra que cai e fica no cume do monte.

O fluir da escrita requer uma experiente administração da energia.

Um executante normal, para gravar, por exemplo, um traço horizontal, fá-lo de um lanço, com repentismo mais ou menos uniforme, como sequência de um impulso espontâneo inicial. Não assim o artista experiente. Desde o princípio, ele escoa subtilmente uma certa energia em cada momento do traçado, vai com força mas contidamente, com espontaneidade controlada, como se tivesse sempre no lado direito uma força de contenção, uma fronteira virtual que sucessivamente se opõe ao ímpeto inicial de cada gesto. Assim ele consegue concentrar e transmitir com maior intensidade a carga emotiva sentida e desejada.

Outro aspecto interessante a assinalar, para uma melhor apreciação, é o da diferença de princípios que subjaz, grosso modo, à arte da linha entre a arte ocidental e a oriental. Muito embora numa perspectiva reduccionista, mas para melhor fazer compreender, por contraste, o espírito da arte chinesa, é uso atribuir à arte ocidental uma tónica de força, utilizando a luta como termo de comparação: é o murro, no boxe, em que há oposição de cargas iguais, afrontamento, ímpeto contra ímpeto, choque de movimentos, embate, colisão. Luta por ou dentro de um espaço. Na arte chinesa, como no Kung Fu, a regra é a fuga à confrontação e ao entrechoque; há lateralização e desvio, há oposição mas equilibrada e contida, há compensação, e mais suavidade e convívio interior e pacífico dos elementos em jogo.

Procura-se que cada elemento tenha a sua situação ou lugar, do conjunto resultando uma impressão geral de calma e serenidade.

Há dois elementos essenciais na arte do carimbo: a caligrafia e a gravação ou técnica de corte.

No início, os caracteres da escrita tinham apenas valor ideográfico, de comunicação de ideias ou mensagens, isto é, eram apenas funcionais ou utilitários. Só mais tarde foram cultivados esteticamente e considerados objectos de arte. Na primeira fase, os traços dos ideogramas limitavam-na seguir, mais dependente e directamente, as formas reais do objecto a designar ou significar.

Depois, acontecida a libertação estética, foram surgindo vários modos ou formas de autonomia gráfica dos pictogramas, arrumadas historicamente em tipos, estilos ou escolas de caligrafia, contando-se seis tipos fundamentais na evolução da escrita chinesa: o tipo antigo ou primitivo, o Li (隸), o Cao (草), o Zhen (眞), o Xing (行) e o Zhuan (篆). No geral, para o entalhe dos carimbos, utilizam-se sempre os caracteres do estilo da caligrafia Zhuan (篆). De resto, os outros tipos usam-se raramente, como por exemplo na Dinastia Qing em que se utilizaram oito formas diferentes de caracteres no carimbo.

É preciso não confundir este tipo Zhuan (篆) com o tipo de escrita chamado Da Zhuan (大篆) ou "Zhuan grande", cujos caracteres são também designados Zhou (籀), que é o tipo antigo, anterior à Dinastia Qin (秦), e que até agora só se conhece gravado em dois documentos, um sino e um trípode.

O sábio Wang Guo Wei (王國维) refere, a propósito, no seu estudo sobre os caracteres da escrita chinesa: "No período das guerras com o reino Qin (秦), este estado usava o tipo de carácter Zhou (籀), e os restantes estados utilizavam outras formas da escrita antiga".

Isto reporta-se ao período anterior à unificação política, que acabou por ser realizada pelo vigésimo Imperador do Reino Qin Shi Huang (秦始皇), e que teve como consequência a uniformização dos diversos tipos de caracteres num novo padrão.

Em "Interpretação de Textos e Caracteres" vem registado: "No período da guerra com o reino Qin, os sete reinos tinham caracteres diferentes, mas no primeiro ano posterior à unificação pelo imperador Qin (秦), o primeiro ministro Li Si (李斯) fez uma petição para a uníformização dos caracteres".

Caligrafia Zhen Shu (眞書)

1 - Inscrição no Monumento de Cuan Long Yan (爨龍顏碑); Dinastia de Nan Pei (南北朝) Estado Song (宋), 420-479 DC.. 2 - "Yi He Ming" (瘗鶴銘) inscrição famosa gravada num precipício Dinastia de Nan Pei, Estado Liang (南北朝·梁), 502-557 DC.. 3 - Inscrição em pedra do poema "Lan Guan Shi Ji" (郎官石記), de Zhang Xu(張旭). Dinastia Tang (唐朝), 618-907DC.

Caligrafia Cao Shu (草書)

1 - Estudos de caligrafia (書譜) de Sun Guo Ting (孫過庭). Dinastia Tang (唐朝), 618-907 DC.. 2 - Gravação famosa de uma página de "Hon Chi Bi Fu"(後赤壁賦), de Zhu Yun Ming (祝允明). Dinastia Ming (明朝), 1368-1644 DC..

Caligrafia Xing Shu (行書)

1 - Modelo de caligrafia do famoso calígrafo Wang Xi Zhi (王羲之), do poema "San Luan Tie" (喪亂帖). Dinastia Jin (晋朝), 265-420 DC.. 2 - Poema "Shi Zuo" (詩作), de Mi Fel (米芾), Dinastia Song (宋朝), 910-1279 DC.. 3 - Excerto da antologia poética de Yung Wei Zhen (楊维楨). Dinastia Yuan,1279-1368 DC..

Caligrafia JiaKuWen (甲骨文)

Dinastia Shang (商朝). 1600? - 1066 AC..

Caligrafia Zhuan Shu (篆書)

1 - Caracteres de Yu Ding (盂鼎銘文), do tipo "Zhuan Shu grande" (大篆). Dinastia Xi Zhon (西周), 1066-771 AC. 2 - Caracteres gravados num tambor de pedra (石鼓文), do tipo "Zhuan Shu gran-de" (大篆). Dinastia Dong Zhou (东周), 770-221 AC.. 3 - Inscrições em pedra da Montanha Tai Shan (泰山). Dinastia Qin (秦), 221-206 AC..

É exactamente a partir desta reforma que o novo tipo passou a ser chamado Qin Zhuan (秦篆), ou Xiao Zhuan (小篆) e que significa "Zhuan pequeno" ou "segundo Zhuan". Este acontecimento marca o início da generalização de um tipo unificado de escrita na China, e o estilo Zhuan passou a ser adoptado pelos lavradores de carimbos, porque o seu tipo de traço se mostrava mais propício à gravação e à exploração de maiores potencialidades estéticas.

O que acabamos de referir é um esboço, em linhas gerais, da evolução histórica da escrita chinesa, havendo, para além destes dois tipos essenciais, muitos mais como o Ke Fu (刻符), o Chong (蟲), o Mo Yin (摹印), o Zhu Shu (署書), o Shu Shu (殳書), e o Li Shu (隸書).

Resulta claramente daqui que um gravador de carimbos não pode ser alguém de conhecimentos vulgares da escrita; tem de ser um letrado, um conhecedor dos vários tipos, estilos e escolas, e da sua sucessão e evolução; deve ter estudos aprofundados dos caracteres antigos gravados em metal e placas de pedra, como, por exemplo, os caracteres do período final de Zhou (周), os dos seis reinos antes da unificação Qin (秦), os antigos Zhuan (篆) e Li (隸), os da dinastia Han (漢).

No geral, a medida padrão de um carimbo era um quadrado de um cun (寸) de lado (um cun era uma antiga unidade linear chinesa equivalente a 3,3 cms), havendo carimbos com um máximo de três cuns e um mínimo de alguns fens (分) (o fen é um sub-múltiplo do cun, equivalente a 1/10).

Sendo em princípio uma peça pequena, o carimbo exige perícia de gravação e conhecimentos das variedades e técnicas dos muitos estilos que foram surgindo na China durante milhares de anos, iniciados e cultivados por artistas, comunidades e escolas, sobretudo a partir das Dinastias Ming (明) e Qing (淸).

Caligrafia Li Shu (隸書)

1 - "Shi Men Song", (石門頌), gravação famosa no precipício de Shi Men (石門). Dinastia Dong Han (東漢), 25-220 D. C..

2 - Inscrição no Monumento de Li Qi (禮器碑). Dinastia Dong Han (東漢), 25-220 D. C..

3 - Inscrição no Monumento de Kong Zhon(孔廟碑). Dinastia Dong Han (東漢), 25--220 D. C..

Algumas das mais famosas escolas de gravadores são: Wan (皖), Xi (歙), Zhe (浙), Deng (鄧), Yishau (黟山), e Wu Zhao (吳趙).

No final da Dinastia Qing, Yi Da An 易大厂 entalhou um carimbo com cinco caracteres; Yi Da An é um dos mais famosos gravadores de carimbos, e vamos apreciar este a título exemplificativo: o carimbo pessoal com o seu nome, conhecido como Carimbo do Senhor Da An.

É uma boa composição de traços, equilibrada no conjunto, com arrojo na novidade e na originalidade.

Há equilíbrio na disposição dos caracteres, boa conjugação de simplicidade com complexidade, ajustado espaçamento.

A superfície foi dividida em seis espaços iguais, uma quadrícula de seis rectângulos que enquadrou o traçado de apenas cinco caracteres. Da esquerda para a direita, os quatro primeiros caracteres ocupam, cada um, 1/6, e o último carácter (na esquerda) ocupa 2/6, o equivalente ao espaço de dois dos rectângulos. Assim, cada carácter ocupando virtualmente o seu espaço, vê-se que quatro deles preenchem 2/3 enquanto o quinto ocupa 1/3 da superfície total. Também, no sentido norte/sul, a relação entre as duas linhas de caracteres e o espaço vazio que os suporta em baixo foi posta em idêntica proporção (2/3 para 1/3) o que confere uma geral impressão de equilíbrio e harmonia ao conjunto dos elementos integrantes.

Os dois caracteres do meio, muito regulares e contidos no preenchimento dos seus espaços virtuais, são um fiel de equilíbrio e ponte de ligação entre as duas componentes laterais. Sobretudo no de baixo é isto notável, na extensão medida dos traços horizontais como que afivelando, mas sem conflito ou opressão, a trama de traços verticais que os ladeiam.

O mais complexo, mas mais imaginoso na solução, é o quinto elemento pictográfico que preenche o terço da superfície, do lado esquerdo.

Este carácter, de traçado mais denso e complexo, é um pictograma composto (se assim podemos afirmar para facilidade de explicação) por três corpos . Para o inscrever, o artista começou por fazer subir o elemento do lado esquerdo , encurtando-lhe a perna e unindo-lhe a cabeça ao elemento 雨. Se esta gravação estivesse nas mãos de um simples copista, essa perna esguia e puxada abaixo ficava em simetria inestética com a perna do carácter que se afila do lado direito. Assim, o artista pôde explorar o corpo inferior do carácter 而, mais prestável ao enchimento do maior espaço com o prolongamento dos quatro traços verticais, ficando, ao mesmo tempo, a respirar me-lhor. Esta solução revela outra habilidade do artista: a fuga à pesada monotonia de cinco traços verticais concentrados na mesma zona.

Os elementos 雨 e而, de matrizes muito semelhantes e de volumes idênticos, resultaram desta maneira numa conjugação mais agradável de proporções. O de baixo como que fica ligado ao de cima por um cinto (traço horizontal cimeiro), ao mesmo tem-po que uma subtil inclinação lhe confere maior vivacidade.

Pegando neste pormenor, há que referir mais dois que enriquecem com grande originalidade e interesse esta peça de gravação. É que o autor deu ligeira inclinação às principais linhas verticais do carácter do lado esquerdo, imprimindo assim maior leveza e dinamismo ao conjunto. Por outro lado, na administração dos espaços vazios, ele libertou todo o terço inferior, criando uma mancha de apoio a mancha grafada e "abriu"quatro manchas irregulares nos espaços devolutos.

Estes "buracos" foram gravados de propósito, com originalidade, não para conferirem pátina ou aspecto de "velho" ou "antigo" ao carimbo, mas com espírito de integração na peça de alguns valores que foram sendo absorvidos e enriquecendo o património estético da China ao longo de milhares de anos.

Trata-se, neste caso concreto, da introdução de certas emergências matéricas observáveis em inscrições tumulares, telhas decorados, painéis ou frisos de porcelana vidrada, gravações ou relevos, que os elementos naturais foram "esculpindo" e patinando, elementos de "grottesco" que passaram a ser integradas conceptualmente pelos artistas na obra de arte.

Em resumo: desta peça de gravação resultam perfeitamente as ideias de originalidade, estabilidade, equilíbrio e de vivacidade, temperamento mágico e dinamismo que não perturbam a sua serenidade.

Como grande artista, Yi Da An foi beber à tradição mais lata e antiga da China, debruçou-se sobre as escolas e os contributos dos gravadores e artistas do pas-sado, e só depois avançou numa linha de criatividade própria.

A arte dos carimbos, sendo uma arte das linhas e suas combinações e da organização dos espaços, requer erudição, por-que só um conhecedor profundo da escrita chinesa, dos seus estilos e escolas, da evolução "semântica" dos caracteres, pode alcançar um domínio que lhe permita a liberdade criativa e a carga poética indispensáveis a qualquer boa peça.

(Traduzido do chinês)

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