Linguística

Amor em Pessoa: o paraíso da ausência

Manuela Vale*

Fernando Pessoa. Grafitti de Miguel Yeco sobre inscrições políticas, numa parede de Braga. Foto do Pintor Nuno Barreto.

Continuamos a assinalar o centenário de Fernando Pessoa com a publicação deste texto, conferência da autora no Complexo Escolar de Macau, em Junho de 88, também no âmbito das Comemorações do Nascimento de Fernando Pessoa.

"Oh! bem aventurados fingimentos que, nesta ausensia, tão doces enganos sabeis fazer aos tristes pensamentos"

CAMÕES

Segundo Barthes "Só a leitura ama a obra, porque estabelece com ela uma relação de desejo. Ler e desejar a obra, é querer ser a obra, é recusar duplicá-la por qualquer outra palavra que não seja a própria palavra da obra". Assim, a nossa leitura de Pessoa vai afastar o mais possível o Autor do sistema "explicativo" do texto, i.é., vamos considerar o texto pessoano como um universo em que o sujeito poético não é anterior ao texto mas construído no e pelo próprio texto.

O amor de que vamos "disfrutar" não será o amor que, porventura, o cidadão Fernando Pessoa (não) tenha vivido. Daí a recusa da análise e interpretação da sua vida afectiva. A realidade que vamos tentar penetrar será a realidade do "discurso"; vamos tentar entrar num mundo de ficção, e o da ficção da linguagem. É este o desejo...

Antes de entrarmos no "reino" será melhor pormos de lado o que tenha a ver com "conformismo cultural, racionalismo intransigente, moralismo poético, crítica do significante, pragmatismo imbecil", (Barthes) - os inimigos do texto - (Não o são da vida?, pergunto) É preciso despirmo-nos de preconceitos para passarmos o limiar e que as portas do Paraíso se (re) abram. Não estávamos nus antes da expulsão?

Depois... não é só colher o fruto - Será que há só um? Onde se esconde? Como é? Onde está? Quem o proíbe? - A aventura do descobrir, do desvendar. A procura circularmente labiríntica do Amor.

A olhar-nos, várias máscaras: Fernando Pessoa, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares - A plurisignificância textual que olhamos - Os espelhos? - A complexidade pessoana.

Fernando Pessoa, ele também um heterónimo, "diz" do Amor, do amor ocidental, isto é, da construção (mítica) provocada pelo entrecruzar de filosofias e mitos: platonismo, orfismo, neoplatonismo, cristianismo, ritos de Ordens de Cavalaria (Templários), Adão e Eva, Eros e Psique, amor cortês...

Neste "panorama" ocidental o Poeta Português vai criar e trabalhar os seus "símbolos" de modo a tentar, ele próprio, encontrar o seu caminho, aqui.

E como, quando se fala de Amor, forçoso é que, pelo menos, de dois se fale - Eu/Tu; Ele/Ela; Eu/Nós; Nós/Nós; Eu/Eu - o Poeta "reflecte" (sobre) a presença/ausência do "ser" que num presente ou num passado teve, desejou ou recusou.

Mesmo na presença há um sabor a ausência, as palavras falam do silêncio, o corpo dela é imagem de uma "Outra", o sorriso conduz a um "qualquer paraíso" onde não se vive já, o Tempo é de "assombro" e "ruínas", o olhar não tem sentido, o sonho não é viagem. O eu, sabe da impossibilidade do Amor (agora), que o Amor é sombra, um sonho que fala de outros sonhos, um caminho (possível) para um "impossível jardim". O encontro entre "o ignorado" e "ninguém" (Cf. "Eros e Psique").

Então, o desejo, melhor os desejos:

1 - de dormir

"(...) se vieres não te sentes a meu lado, nem fales, / só quero dormir, uma morte que seja uma / coisa que me não rale nem com que tu te rales / Que ninguém deseja nem não deseja".

"Quero dormir sossegado, sem nada que desejar / Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu (...)".

2 - de sonhar

"(...) um país / onde ser feliz consiste / Apenas em ser feliz (...) o sentir e o desejar / são banidos dessa terra / O amor não é amor / Nesse país por onde erra / Meu longínquo divagar".

3 - de ternura

"Poë-me as mãos nos ombros... / Beija-me na fronte... / Minha vida é escombros, / A minha alma insonte / Eu não sei porquê, / Meu desde onde venho / Sou o ser que vê, / E vê tudo estranho. / Poë a tua mão sobre o meu cabelo... / Tudo é ilusão. / Sonhar é sabê-lo".

4 - de adiamento

"Deixa-me ouvir o que não ouço... / Não é a brisa ou o arvoredo; / É outra coisa intercalada... / É coisa que não posso / ouvir senão em segredo, / e que talvez não seja nada... / Deixa-me ouvir... não fales alto! / Um momento!... Depois o amor...".

5 - de solidão

"Minha mulher a solidão, / Consegue que eu não seja triste. / Ah, que bom é ao coração / Ter este bem que não existe!/ (...) Senhor, se há bem que o céu conceda / Submisso à opressão do Fado, / Dá-me eu ser só — Veste de seda — / E fala só — Leque animado".

6 - de unicidade

"Que pena sermos dois! Meu amor, somos dois. / Vejo-te, somos dois..."

7 - de desistência

"Ja não me importo / até com o que amo ou creio amar / Sou um navio que chegou a um porto / E cujo movimento é ali estar".

8 - de abdicação

"Repousei porque abdiquei".

Mas se, como afirma António Quadros, a nota dominante em Fernando Pessoa, ortónimo, é o "essencialismo platónico, visão da ideia pura e o contraste com a sua impossibilidade existencial", não podemos deixar de referir dois poemas in Poesias e Poesias Inéditas, respectivamente: "Dá a surpresa de ser..." e "O amor quando se revela...". No primeiro, o desejo físico pela mulher, embora não realizado, não deixa de o ser. No segundo o início da paixão... uma certa adolescência no amor.

    Dá a surpresa de ser. 
    É alta, de um louro escuro. 
    Faz bem só pensar em ver
     Seu corpo meio maduro. 
    
    Seus seios altos parecem
    (Se ela estivesse deitada)
    Dois montinhos que amanhecem
    Sem ter que haver madrugada. 
    
    E a mão do seu braço branco
    Assenta em palmo espalhado
    Sobre a saliência do flanco
    Do seu relevo tapado. 
    
    Apetece como um barco. 
    Tem qualquer coisa de gomo. 
    Meu Deus, quando é que eu embarco? 
    Ó fome, quando é que eu como? 

Mais surpreendente é que, afinal, Fernando Pessoa é também o poeta do Amor e da Mulher, nas Quadras ao Gosto Popular. Neste texto, e como afirma Jacinto do Prado Coelho,"(...) Ele surge principalmente como poeta do amor; graças ao muito imaginar, exprime o amor em variadas situações e múltiplos matizes psicológicos (...): o amor tímido, enleado, humilde, casto, idealista, com ou sem esperança, (...) o galanteio (...), a intimidade calma ou vagamente inquieta, o amor sensual, malicioso, atrevido (...) o ciúme, o sofrer da ausência (...)".

    Deixa que o momento pense
    Que ainda vives ao meu lado... 
    Triste de quem por si mesmo
    Precisa ser enganado! 
    
    Teus brincos dançam se voltas
    A cabeça a perguntar. 
    São como andorinhas soltas
    Que inda não sabem voar. 
    
    Dei-lhe um beijo ao pé da boca
    Por a boca se esquivar. 
    A ideia talvez foi louca. 
    O mal foi não acertar. 
Ilustração de Carlos Marreiros © copyright 1989

Alberto Caeiro, o poeta da Natureza, vive o Amor incluindo-o nela. Ser amado foi uma escolha por parte de quem o ama. No entanto essa preferência vai alterar a sua "visão" da natureza: "Tu mudaste a Natureza... / Trouxeste-me a Natureza para o pé de mim, / Por tu existires vejo-a, melhor, mas a mesma,/ por tu me amares, amo-a do mesmo modo, mas mais" - quando ama e é amado o poeta ama "mais" a Natureza concluindo que "Os campos, afinal, não são tão verdes para os que são amados / como para os que o não são / Sentir é estar distraído".

Há, portanto, uma nova maneira de estar, de sentir, de viver (n)a Natureza. Mais distraído dela (talvez) mas mais atento a si. E, então, uma nova definição do sentimento novo,"O amor é uma companhia", mesmo quando ela está ausente. Aliás, notemos que o objecto do amor está sempre ausente fisicamente. Ele é sobretudo recordado (no futuro), ela é a imagem (o que se toca com os olhos), que provoca novas imagens: "Amanhã virás, andarás comigo a colher flores pelo campo, / E eu andarei contigo pelos campos a ver-te colher flores. / Eu já te vejo amanhã a colher flores comigo pelos campos, (...)".

Momentos há em que a Natureza fica impregnada desta imagem. Pela imaginação tudo se transforma: "Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo. (...) Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio ". O que é realidade? Para o poeta (amador) o sonho é mais real: "E posso estar na realidade onde está o que sonho". Este sentimento tão intenso não é, contudo, feito de desejo no sentido comum - Ela é, como disse, "Uma companhia" ausente - "o melhor é não sentir mas pensar / Quando desejo encontrá-la / Quase que prefiro não a encontrar, / Para não ter que a deixar depois. / Não sei bem o que quero, nem quero saber o que quero. Quero só / pensar nela. Não peço nada a ninguém, nem a ela, senão pensar".

Uma nova maneira de amar? O afastar da dor que um dia sentiu o "Pastor amoroso"? A sensação de que ele é um "engano" (ainda que, por momentos, "ledo e cego")? Ou, sobretudo, o desejo de liberdade? Quando soube que "ninguém o tinha amado afinal./ Quando se ergueu da encosta e da verdade falsa viu tudo. (...) (e de novo o ar), que lhe faltara tanto tempo, lhe entrou fresco nos pulmões / E sentiu que de novo o ar lhe abria, mas com dor uma liberdade no peito".

No entanto, este sentimento é também natural e como tal aceito. Como para Fernando Pessoa a impossibilidade do encontro; o "nós" quando acontece é ilusão. A Natureza, essa, permanece, é real, não tem dentro, dá-se toda aos olhos: "Uma vez amei, julguei que me amariam, / mas não fui amado / não fui amado pela única grande razão - / Porque não tinha que ser. / Consolei-me voltando ao sol e à chuva (...).

Concluindo: o "mestre" sofre das contradições do Amor e é Fernando Pessoa quem observa que Caeiro não foi sempre o "poeta objectivo" que se propunha ser, e que, devido ao Amor "o cérebro do poeta torna-se confuso, a sua filosofia se entaramela" ("Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação").

A filosofia da aceitação é um dos traços dominantes da poesia de Ricardo Reis. O Amor, como a vida, é regido pelo Fado. Para o fruir assume a máscara da "inconsciência", da distracção, construindo uma forma de "estar" misto de estoicismo-epicurismo, gozando a liberdade que o Destino lhe permite gozar, evitando sabiamente o sofrimento, sabendo a ataraxia, condição essencial de felicidade.

    Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio. 
    Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
    Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. 
    (Enlacemos as mãos). 
    
    Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
    Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, 
    Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, 
    Mais longe que os deuses. 
    
    Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. 
    Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. 
    Mais vale saber passar silenciosamente 
    E sem desassossegos grandes. 
    
    Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, 
    Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, 
    Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria, 
    E sempre iria ter ao mar. 
    
    Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, 
    Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, 
    Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
    Ouvindo correr o rio e vendo-o. 
    
    Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
    Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, 
    Pagãos inocentes da decadência. 
    
    Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
    Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, 
    Porque nunca enlaçámos as mãos, nem nos beijámos
    Nem fomos mais do que crianças. 
    
    E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, 
    Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. 
    Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio, 
    Pagã triste e com flores no regaço. 

Assim, o Amor é "recusado", quando tudo parece favorecer a sua realização. "Ela" é a companheira de viagem - Vida - que tem como único fim, o fim do Amor - a Morte.

As três ou quatro mulheres - Lídia, Neera, Cloe e Marcenda - e um "mancebo", referidos nos seus poemas, são apenas sombras e o Amor que vivem é sombra também: "Deixem-me apenas / A consciência lúcida e solene / Das coisas e dos seres / Pouco me importa / Amor ou glória (...) O Amor é uma sombra".

Como Caeiro, Ricardo Reis sente que o Amor impede a liberdade; daí, e ainda por esta razão, a recusa: "Não quero, Cloe, teu Amor que oprime / porque me exige o amor. / Quero ser livre (...)".

E sempre... a problemática do "eu", o relacionamento deste com um "tu" e a conclusão que, o Amor ainda que profundo é sempre "distante, corruptível, ilusório ou intelectual" (A. Quadros) e amar um verbo vazio de sentido.

"Ninguém a outro ama, senão que ama / O que de si há nele, ou é suposto. / Nada te pese que não te amem. Sentem-te / Quem és, e és estrangeiro. / Cura de ser quem és, amam-te ou nunca. / Firme contigo, sofrerás avaro / De penas".

Amar ou não amar, ser amado ou não, é o mesmo. Não é por esta via (antes pelo contrário) que se chegará com o mínimo de sofrimento "à hora do barqueiro". Não é aqui e agora que se vive o Paraíso, ainda que as paisagens sejam paradisíacas e vivamos nelas como deuses (ou deusas) pagãos, com "grinaldas na cabeça" ou "flores no regaço ".

Neste momento da nossa leitura é já possível sentir a pluralidade não só do poeta (como unidade) mas a pluralidade da própria pluralidade. Nem mesmo cada um dos heterónimos sente e diz de (a) forma idêntica. Mas o paroxismo atinge-o (com) Álvaro de Campos — o poeta das sensações — "Sentir tudo de todas as maneiras / Ter todas as opiniões / Ser sincero contradizendo-se a cada minuto — Desagradar a si próprio pela liberdade de espírito / E amar as coisas como Deus".

É a liberdade que para si (e para o outro) reclama que o leva à expressão das várias formas de viver o Amor. Nos seus poemas vibra o desejo que ora se expande (descontroladamente?), ora se controla, assumindo todos os encontros, todas as formas e todos os que o viveram e vivem. Num excesso de sentir, e sempre pela "imaginação", ele ama de modo outro, novo, inesperado e mais vivo, reagindo, virilmente (?) à civilização, à cultura ocidental, à norma, à moral que o quer fazer "comer" o Amor como todos o fazem:

    Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo, 
    Serviram-me o amor como dobrada fria. 
    Disse delicadamente ao missionário da cozinha
    Que a preferia quente, 
    Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria. 
    
    Impacientaram-se comigo. 
    Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. 
    Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, 
    E vim passear para toda a rua. 
    Quem sabe o que isto quer dizer? 
    Eu não sei, e foi comigo... 
    
    (Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim. 
    Particular ou público, ou do vizinho. 
    Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. 
    E que a tristeza é de hoje). 
    
    Sei isso muitas vezes, 
    Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
    Dobrada à moda do Porto fria? 
    Não é prato que se possa comer frio, 
    Mas trouxeram-mo frio. 
    Não me queixei, mas estava frio, 
    Nunca se pode comer frio, mas veio frio. 

E porque se sabe diferente, sente umas vezes o desejo de solidão e até de anulação: "Falta-me um sentido, um facto / Para a vida, para o amor, para a glória (...) / Estou só, só como ninguém ainda esteve, oco dentro de mim, (...)"; outras, o de ser igual: "Gostava de gostar de gostar (...)"; outras, a saudade: "quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou. / Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma / Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim (...)"; e um cansaço metafísico que advém da consciência da pluralidade do "eu" que o não deixa "saber" amar como os "reais e felizes".

Ao ter consciência dos vários "eus", o poeta nega a identidade única, isto é, afirma a sua ausência. E se a ausência é a negação do "ser", ao afirmar essa negação está dizendo "não ser" - "Sou em mim, a charada sincopada / Que ninguém da roda decifra" (...) - Surge então o apelo: "Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter (...) / Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria - Tu que me conheces - quem eu sou..." Haverá, então, alguém que seja capaz de o decifrar? Mas... ela é também sombra, ainda que tenha um corpo real, são "todas" sombra... e, assim, a união é impossível porque tudo (todos) é (são) exterioridade, e o que o poeta quer não é união com a realidade visível; pretende sim, atingir o interior de tudo, a essência do "Ser", que se manifesta num jogo caleidoscópico de espelhos. Assim, diz Eduardo Lourenço: "Campos é só um canto ou uma contínua modelação de visceral angústia determinada pela ausência misteriosa e inaceitável da Unidade e do Poeta. Toda a sua poesia é doloroso labirinto desta ambiguidade procurando todas as portas para sair dele sem outro efeito do que o encerrar-se nele cada vez mais profundamente". Ausência da unidade do "Eu" e de unidade com outro "eu". "Passagem das horas" e "Ode Marítima" são dois poemas paradigmáticos no que diz respeito a esta temática:

    (...) Multipliquei-me, para me sentir, 
    Para me sentir, precisei sentir tudo, 
    Transbordei, não fiz senão extravasar-me, 
    Despi-me, entreguei-me, 
    E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente. 
    
    (...)
    
    Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino. 
    E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos. 
    
    Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros, 
    Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas, 
    Todos os chamamentos obscenos de gestos e olhares batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais. 
    Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos, 
    E todos os pederastas — absolutamente todos (não faltou nenhum). 
    Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma! 
    
    (Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te, 
    Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim)
    Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver, 
    Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes, 
    Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingindo e a minha consciência incerta, 
    A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim, os seus half-holidays inesperados... 
    Mary, eu sou infeliz... 
    Freddie, eu sou infeliz... 
    Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados. 
    
    (...)
    
    Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim sem que o fizésseis, 
    Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco -
    Sim, e o que tenho eu sido, ó meu subjectivo universo. 
    Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento, 
    Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus! 
    Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro, 
    E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim... 

Um dos termos da multiplicação, nesse Universo que é "outro" nascido da capacidade de "ser elástico, mole, agulha, trepidação...", assume um carácter vincadamente feminino. Outro é masculino. Para conhecer o Amor na sua essência, o viver de todas as experiências? O mito do Andrógino? Pelo excesso de presença, a afirmação da ausência — "Eu sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis, / Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou" - Paraíso onde, porque tudo sente, nada "é" - a Noite. Afastamento suave, "Aroma de morte".

No poema "Ode Marítima", Álvaro de Campos, como em "Passagem das Horas", vai, numa tentativa de fuga do real e no desejo excessivo de "se" viajar, procurar um outro tempo, um outro espaço, uma outra forma de encontrar o "eu" e o "nós" verdadeiros. Mais uma vez se investe (e investe o Amor) de passividade feminina para encontrar o "outro" lado, a outra metade de si próprio. Penso não ser o desejo de viver o Amor numa outra perspectiva que o leva a sonhar-se "feminino" — Não é o outro, neste caso, "o masculino" que procura — mas, pela exploração de todas as facetas do Ser, o desejo de encontrar a unidade pelo caminho da pluralidade. A sensação que tem (temos) é a de insucesso. Não é esta a via. Então, onde a felicidade? No cansaço, provocado pelas emoções demasiadas, a recordação da infância, a viagem para o passado, a tentativa de transpor a distância. Mundo real? É ela o paraíso perdido? Também ela está "longe" assim como o "boneco [que] partiram"... Então, de novo a realidade acessível: "E abro de repente os olhos, que não tinha fechado / Ah, que alegria a de sair dos sonhos de vez! Eis outra vez o mundo real, tão bondoso para os nervos!"

    (...)
    
    Toma-me pouco a pouco o delírio das coisas marítimas, 
    Penetram-me fisicamente o cais e a sua atmosfera, 
    O marulho do Tejo galga-me por cima dos sentidos, 
    E começo a sonhar, começo a envolver-me do sonho das águas, 
    Começam a pegar bem as correias-de-transmissão na minh'alma. 
    E a aceleração do volante sacode-me nitidamente. 
    
    (...)
    
    Chamam por mim as águas. 
    Chamam por mim os mares. 
    Chamam por mim, levantando uma voz corpórea, os longes. 
    As épocas marítimas todas sentidas no passado, a chamar. 
    
    (...)
    
    Ah, piratas, piratas, piratas! 
    Piratas, amai-me e odiai-me! 
    Misturai-me convosco, piratas! 
    Ah, ser tudo nos crimes! ser todos os elementos componentes
    Dos assaltos aos barcos e das chacinas e das vio lações! 
    Ser quanto foi no lugar dos saques! 
    Ser quanto viveu ou jazeu no local das tragédias de sangue! 
    Ser o pirata-resumo de toda a pirataria no seu auge, 
    E a vítima-síntese, mas de carne e osso, de todos os piratas do mundo! 
    
    Ser o meu corpo passivo a mulher-todas-as-mulheres
    Que foram violadas, mortas feridas, rasgadas pelos piratas! 
    Ser no meu ser subjugado a fêmea que tem de ser deles
    E sentir tudo isso - todas estas coisas duma só vez - pela espinha! 
    
    (...)
    
    Ah, o orvalho sobre a minha excitação! 
    O frescor nocturno no meu oceano interior! Eis tudo em mim de repente ante uma noite no mar
    Cheia de enorme mistério humaníssimo das ondas nocturnas. A lua sobe no horizonte
    E a minha infância feliz acorda, como uma lágrima, em mim. 
    O meu passado ressurge, como se esse grito marítimo
    Fosse um aroma, uma voz, o eco duma canção. 
    Que fosse chamar ao meu passado Por aquela felicidade que nunca mais tornarei a ter. 
    
    Era na velha casa sossegada ao pé do rio... 
    (As janelas do meu quarto, e as da casa-de-jantar também, 
    Davam, por sobre umas casas baixas, para o rio próximo, 
    Para o Tejo, este mesmo Tejo, mas noutro ponto, mais abaixo... 
    Se eu agora chegasse às mesmas janelas não chegava às mesmas janelas. 
    Aquele tempo passou como o fumo dum vapor no mar alto...)

Nesta espécie de "interseccionismo" onde se "cruzam a paisagem presente e ausente, o actual e o pretérito, o real e o onírico" (J.P.C.), o visível e o invisível, qual o lugar do Amor? Penso que nunca é mais do que uma miragem. Todas as visões, todas as vivências conduzem à mesma ausência. O "eu" nunca viaja no sentido de um encontro definitivo com o "outro", ou porque o "eu" não é verdadeiro, ainda que imaginado de todas as formas, ou porque o "outro" não está lá, muito embora (talvez) lá tenha estado. Não há oásis neste deserto de viver.

Finalmente (ou desde sempre) o cansaço... o desassossego...

Em prosa (outra forma de fazer poesia) O livro do desassossego, de Bernardo Soares. Foi "apresentado" por Fernando Pessoa a Casais Monteiro em carta de 13 de Janeiro de 1935 - "O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade". - É um conjunto de fragmentos que o autor define "como de impressões sem nexo", "divagações", "diário ao acaso", onde o amor é também "reflectido".

Podemos afirmar que nesta obra se faz a síntese das vivências das "personae" pessoanas? Se não pudermos ir tão longe podemos, pelo menos concluir (como faz J.P.C.) a intertextualidade: "Dentro do universo pessoano — há, na realidade muito de comum, nomeadamente quanto às visões do amor entre este "autor inexistente" e as máscaras do autor real".

A nossa leitura adoptará como texto base um, cujo título é "Na floresta do alheamento".

Temos uma narrativa na primeira pessoa em que o "eu" ao despertar se sente estrangeiro no seu próprio quarto - "Eu não estou onde nem o que sonho". A situação em que se encontra é no entanto real, isto é, há uma "alcova mórbida e morna " e "a antemanhã de lá fora é apenas um hálito de penumbra" mas, nitidamente, vai surgir uma "outra espécie de realidade" que vai coexistir, por momentos, com a primeira: "Coexistem na minha atenção algemada as duas realidades, como dois fumos que se misturam".

Uma alcova e uma "floresta estranha" e então, uma mulher! Mas logo a pergunta: "E quem é esta mulher que comigo veste de observada essa floresta alheia?". E sucedem-se os paradoxos - "Há muito que com essa mulher que desconheço erro (...) Sinto em mim séculos de conhecer aquelas árvores". Ao realizar o seu percurso textual a visão da alcova vai persistir embora fazendo parte da nova realidade. Gradualmente, porém, a realidade concreta vai-se afastando: "lá fora a antemanhã tão longínqua". O sonho vai ocupando todo o Espaço-Tempo: "A floresta tão aqui ante outros olhos meus!"

E o "nós" ganha corpo nesse passeio pela floresta. E o Amor? Não é, de todo, o amor sensual: "passeávamos às vezes, braço dado, sob os cedros e as olaias e nenhum de nós pensava a viver. A nossa carne era-nos um perfume vago e a nossa vida um eco de som de fonte. Dávamo-nos as mãos e os nossos olhares perguntavam-se o que seria o ser sensual e o querer realizar em carne a ilusão do amor..."

Ainda que a floresta seja um jardim (Éden? de sonho) não há possibilidade de ser realmente feliz mas o sentimento de que nada vale a pena: "Na Clepsidra da nossa imperfeição gotas regulares de sonho marcavam horas irreais. Nada vale a pena, ó meu amor longínquo, senão o saber como é suave saber que nada vale a pena..."

No entanto, um sentimento "superior" nasce: "contentes de não ser nada, de não ter desejos nem esperanças, de nos termos esquecido da cor dos amores e dos sabores dos ódios. Julgávamo-nos immortaes...". Reencontro com o (no) Paraíso? Por momentos apenas... "E doía-nos posar aquillo, doía-nos... Porque, apesar do exílio calmo, toda essa paysagem nos sabia a sermos deste mundo (...)". A realidade volta a fazer sentir o seu "peso" e embora a mulher o acompanhe também no regresso à alcova, a conclusão: "Nenhum de nós tem nome ou existência plausível" — Então, a fuga (de novo) para a Floresta mas... "Surge ante nós outra vez, a floresta muita, mas agora mais perturbada da nossa perturbação e mais triste da nossa tristeza" (...) e "éramos obscuramente dois, nenhum de nós sabendo bem se outro não elle proprio, se o incerto outro viveria..." - A tentação de conhecimento, o pecado? O fruto proibido: "éramos um só, (...) cada um de nos era uma ilusão do outro, e cada um, dentro de si, o mero echo do seu proprio ser..." - Não se existe neste Paraíso Impossível, porque a Floresta é de Alheamento, e por isso "somos" abstractos, estranhos, apartados, deslocados, distraídos, ignorantes.

"Zumbe uma mosca, incerta e mínima..." A realidade (tão boa para os nervos!) volta para alienar de um outro modo, mais enganador, talvez: "a manhã rompeu, como uma queda, do cimo pálido da Hora". - O sonho terminou - "Acabaram de arder, meu amor, na lareira da nossa vida, as achas dos nossos sonhos..." E finalmente o aceitar da pena - Não choremos, não odiemos, não desejemos... - O Paraíso da Ausência.

Este tema da Floresta é retomado por Bernardo Soares, retomando os tópicos que a ele lhe estão vinculados: a Unidade / Pluralidade do "eu"; a identificação do "tu" com o "eu"; a impossibilidade do "nós" no presente; a intuição de que "ela" é parte d'Ele (o mito bíblico da origem da mulher?); o "horror às mulheres reais"; o sonho (presença da ausência); um desejo que não é nunca erótico; a recusa de possuir; o fingimento sincero do amor; o prazer de olhar ("O Amante visual"); a solidão - O conhecimento da impossibilidade do amor - "O amor é um misticismo que quer praticar-se, uma impossibilidade que só é sonhada como devendo ser realizada".

Ao terminar esta leitura, forçosamente limitada e breve, penso não devermos tirar conclusões acerca do tema que aqui nos reuniu: "O Amor em Pessoa". Se como diz Camões "(...) Tão contrário a si é o mesmo amor" e se, como sabemos, Fernando Pessoa é o poeta da diversidade ("Deus não tem unidade, como a terei eu?") penso que, como síntese deste trabalho poderemos, apenas, fixar dois tópicos essenciais:

- O texto literário pessoano, sendo "ausência", fala-nos de "existência", "abrindo-nos de chofre as cem portas do "instante", nossa pátria limitada e natural" (Eduardo Lourenço).

- "Produtos românticos, nós todos...

E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos nada.

Assim se faz a literatura.

Santos Deuses, assim até se faz a vida!" (Álvaro de Campos).

* Licenciada em Filologia Românica (Univ. Porto), actualmente Profa de Língua e Literatura Portuguesa; investigadora da Literatura de Macau, com vários artigos publicados em jornais e revistas.

desde a p. 72
até a p.