Crónica Macaense

KVEI-ZHEN AS BENDITAS ALMAS

Joaquim A. de Jesus Guerra, S. J.*

"A crença nos Mortos, que passaram a viver felizes com Deus, e a sua devoção ou culto legítimo, é uma das componentes inseparáveis da Fé e Cultura chinesas: antiga como a China, e presente, a bem dizer, onde houver um lar chinês. Presente, digo, e a entrar pelos olhos de quem lhe passa à porta."

Quem vai por uma rua pacata de Macau ou de Hong Kong, poderá ver, à entrada de moradias sem conto, dois nichos com inscrições em papel de Festa, e sempre as mesmas. Há nichos de linda construção, e alguns com uma lâmpada acesa dia e noite.

Nem é preciso ir à rua, para os ver. Num grande edifício residencial também os há, ao longo dos corredores, à porta dos lares chineses. Foi precisamente nisso que eu reparei, há pouco tempo. Num 6° andar onde trabalho, em Wanchai. Os dísticos são verticais, colocados geralmente ao nível do chão, de um e outro lado da entrada

Diz um deles:

MOEN XHÚ THU DES DSAOJ ZHEN

門口土地財神

Diz o outro:

THEEN KOEN TZHY PHOC

天官賜福

Receio que muito estrangeiro, e até muito chinês, ao ver aquele DSAOJ ZHEN pense logo no "deus da riqueza". Está enganado! Ou será que a maior parte dos chineses são ricos, ou esperam sê-lo?!

Vamos, então, a interpretar esses dizeres, com um bom Dicionário na mão.

1° dístico:

Moen: Casa, moradia, lar.

Xhú. Entrada, porta.

Thu: Ver, vigiar, guardar.

Des: Encargo, função, condição.

Dsaoj: Digno, competente.

Zhen: Alma, espírito.

Portanto: "Uma alma digna vigia a entrada da casa".

2° dístico:

Theen: Deus

Koen: É quem, é que, é mesmo

Tzhy: Dar

Phoc: Felicidade.

Ou seja: "Deus é quem dá a felicidade".

Aí estão duas afirmações da fé ou crença chinesa, perfeitamente aceitáveis para um cristão. Foi decerto uma agradável descoberta para mim. Ora eu, que já vim para a China há 55 anos, como é que só agora descobri o que já estava nas ruas quando cá cheguei? Tomava aquilo como uma superstição qualquer. E também não houve um Missionário veterano que mo explicasse! Pensavam erradamente como eu; e não está bem. Pois nem Cristo nem a Sua Igreja destroem nada que se possa aproveitar, uma vez que todo o bem de Deus nos vem. É da boa Pastoral que o Missionário comece por buscar a fundo o que há de bom num Povo, a fim de o apreciar devidamente e o promover. O próprio Cristo, ao vir ao mundo, começou por Se fazer homem como nós. Tal é a chave que abre todas as portas.

Imaginem que o Missionário, chegando a uma terra, entrava pela primeira rua e, ao deparar com aqueles escritos numa porta, parava ali a conversar com a gente sobre o assunto, apreciando a fé neles professada. Estou que logo o convidavam a entrar e a sentar-se. Ali teria ele almas dispostas a ouvi-lo, essa e outras vezes, abrindo-se cada vez mais ao Reino de Deus.

A crença do povo chinês em um só Deus (o Povo do Norte chama-lhe "o nosso Grande Pai do Céu") e na vida eterna e feliz para onde vão quantos se habilitam, essa crença, digo, está viva ainda hoje no povo simples, e também por baixo de uma camada superficial de agnosticismo de certos intelectuais. É uma fé que vem de lon-ge, professada nos clássicos chineses a cada passo. Isto posso eu afirmar, que andei 15 anos a estudá-los e a traduzi-los todos.

Um aspecto interessante e positivo desta crença chinesa é que os próprios textos clássicos supõem e afirmam uma comunhão estreita dos "mortos" com os vivos, na medida em que os parentes finados se consideram encarregados por Deus de velarem pelos seus descendentes neste mundo. Hoje, porém, neste século XX em que vivemos, já muitos ares varreram o mundo, bons e maus. E quando não poucos cristãos deixaram morrer a sua fé, não admira que também na China se não veja em muitos a velha fé dos seus antepassados.

Lá diz a Canção 262 1: "Não há como ser um homem / Que em toda a parte se impõe" (Estr.2). "Não tenhas tu de corar / Perante as fendas do quarto, (...) A chegada dos Espíritos / Não se pode pressentir, / Muito menos desprezar" (Estr.7). Disse Confúcio: "Um cavalheiro, mesmo a sós, porta-se dignamente; pois se as Benditas Almas ali não estão, podem chegar sem ele as sentir". Lê-se também no "Cerimonial" (30,20): "No cerimonial de uma refeição, se o patrão oferece ele mesmo às Almas, o hóspede come; se não oferece, também o hóspede se não serve. Onde se não guardam as cerimónias, por boa que seja a comida, o cavalheiro não se serve".

Passemos já a estudar a expres-são clássica, e ainda corrente, para designar as BENDITAS ALMAS: KVEI-ZHEN 鬼(). A grafia entre parênteses é a escrita antiga, anterior à reforma de Li-Se, no final do 2°. Século antes da Era cristã.

Há caracteres chineses que dizem muito pela sua própria constru-ção. Tais são os dois presentes. O primeiro (Kvei) é o esboço de um homem morto. Sobre o segundo carácter (Zhen), cito aqui o que vem no meu "Quadrivolume de Confúcio" (pg.761 s): "A grafia de Zhen mostra, à esquerda, as influências que vêm do Alto (...) e, à direita, o jogo das forças contrárias" (aliás conjugadas) "neste mundo, (...) Zhen são as Almas dos Antepassados" ou "Espíritos, mas no sentido das Almas humanas dos finados ou regressados, na linda expressão clássica chinesa".

Mas é a análise semântica destas palavras que nos vai esclarecer melhor sobre o seu verdadeiro significado. Semântica é a mensagem das palavras, expressa na sua própria estrutura. Até a palavra Semântica fala por si: Sábias (ti) normas (ca) de explicar (sem) as palavras (an). O meu "Dicionário Chinês-Português de Análise Semântica Universal" destina-se precisamente a este estudo ou interpretação das palavras. Com a vantagem de fornecer uma "chave" comum para todas as línguas. Por ela se vê a razão de bastantes palavras terem sentidos diferentes. A análise semântica mostra a derivação diferente para cada caso.

Tal é a palavra KVEI, que pode ter 4 significados:

1) (Gy. Ook + Vei. Oog) ou seja (荽)= Já + Finados.

2) (Gy. lgh + Vei. lgi)(惎愇)= Declarar, proclamar + Santo, bom.

3)(Gy.9ad + Vei.8de) (伎委) = Acompanhar, guardar + Encargo.

4) (Gy.8dg + Vei.9oh) (Invejoso e maligno).

O último significado, está-se a ver, dá para o Kvei de Mao Kvei, os Demónios 2. Os outros três ligam bem no binómio KVEI-ZHEN.

Analisemos agora a palavra ZHEN (Zh + En).

O Dicionário dá-lhe os significados de: Almas dos Finados; Deus ou Divino, Poderoso, Sobrenatural, Sumamente.

Os conjuntos semânticos podem ser:

1) (Zhe.8df +Yn.6dk)(姼夤)= Parentes defuntos + Culto, honras.

2) (Zhy.9af + Yn.8eh) (侍寅)= Ao lado + de companhia, guarda.

3) (Zhe.3li + Jn.9a) (禔人)= Felicidade, paz + Homens, pessoas.

4) (Zhy.2he + Yn.6dk)(是夤)= Verdadeiramente + Venerando, imenso.

O 4° conjunto dá bem para Deus. E os outros três ficam bem no KVEI-ZHEN, variamente ajustados com os conjuntos semânticos de KVEI.

Para mais confirmação, cito aqui o que diz o "Dicionário de Khanghi" (Xhão-xe): "O homem, depois de morto, torna-se Alma (Zhen)"."Os que presidem (㼿) aos elementos e forças da natureza, chamam-se Almas ou Espíritos (Zhen)".

KVEI-ZHEN são, pois, as Benditas Almas, não precisamente as do Purgatório, como se costumam entender, mas as do Céu ou sejam os Santos.

E já agora, vejamos que a palavra portuguesa Alma também oferece semânticas relacionadas com estas:

AL (Aow.7dj) (奥) = Interior, Espírito; Função, ofício.

MA

a) Mao. 8bq = Aviventar. Animar.

b) Mar. 9dg (孖) = Unir, à uma, camarada.

c) Mhãw. 4hg (望) = Velar, vigiar, guardar.

A ALMA é, pois, o Móvel Interior; com a função de dar vida, e de manter a União da pessoa humana, feita de alma e corpo.

Mais uma achega final.

As visitas que os chineses fazem às sepulturas dos seus parentes, quer no cemitério quer nas encostas dos cabeços e dos montes, chamam-se 拜山 PAEY ZEAN. Aqui temos mais uma palavra com dois sentidos diferentes:

1) Zhe. 5hj (榯) = Alto, altear-se + Xáen. Inb (臤) = o mais. Tais são os montes e as serras. E note-se que Naem-zean não significa precisamente Montes ao Sul, mas sim uma Serra qualquer imponente (naem).

2) Zhe. 8df (姼) = Parentes defuntos + Xáen. Inb (臤) = Túmulos.

NOTA DA REDACÇÃO

Este texto, e eventualmente outros assinados pelo Pe. Joaquim Guerra, S. J., em que o autor faz permanente remissa para o seu "Dicionário Chinês-Português de Análise Semântica Universal", requere por isto mesmo uma nota de apresentação e de esclarecimento, que facilite ao leitor melhor compreensão e consulta.

A referida obra, mais do que um simples Dicionário Chinês-Português, pretende ser também um código de Análise Semântica Universal, isto é, uma chave nova e revolucionária constituída pelos radicais e étimos substantes aos vocábulos de todas as línguas do Mundo.

Partindo do princípio de que as Línguas revelam, a quem as estuda e lhes penetra os segredos, uma "técnica superior a todo o artifício humano, apontando para um autor divino"; partindo da existência, como realidade histórica, de uma língua primordial pré-babélica, adâmica, matriz da posterior ou sequente explosão diver-gente das línguas; aceitando a tese de que os chineses são os directos descendentes de Noé e, como tal, os possuidores e guardiões da Língua-Mãe primitiva comum - "assim se pode entender que o Vocabulário e a Fonética do Chinês se tenha prestado a fornecer um Chave Semântica para todas as línguas do Mundo ".

Assim, fica o leitor prevenido de que as notas codificadas com que de-pare devem reportar-se ao "Dicionário Chinês-Português de Análise Semântica Universal" (Joaquim A. de Jesus Guerra, S. J., Jesuítas Portugueses, Macau,1981), organizado segundo a Chave-Quase de Semântica Estrutural: " (...) uma lista de 535 palavras elementares, de uma, duas ou três letras, a que se reduzem, uma vez convertidos, os milhares de sons da fonética chinesa devidamente alfabetizada. Neste Dicionário, encontrar-se-á uma Tabela prévia, com as listas dos fonemas chineses que desembocam em cada um dos fonemas primários ou derivados fonéticos de valor semântico. O dicionário com cerca de dezoito mil entradas, apresentará os autênticos fonemas chineses, identificados pelos respectivos caracteres, com todos os significados que foi possível encontrar-lhes nos melhores dicionários, em vista de uma análise linguística realmente universal".

Dicionário de Chinês-Português e de Chinês alfabético, etimológico e tonal, é também um instrumento de análise dos monossílabos chineses ("que são quase todos binómios semânticos") e uma proposta de análise semântica universal com base nos radicais do Chinês.

A título exemplificativo e de curiosidade, para o leitor que tem isto como inédito, deixamos um exemplo de aplicação da Chave-Quase à palavra OLHO:

1) ÓCULO (latim)/ = O + CU + LO: Hw.9ah (Olhar) + Koes.lal (Curiosear) + Lue.Onf (o que está à vista).

2) OLHO = O + LH + O: Ngú. Odi (Olhar, ver) + Le.2rk (Luz, mostrar) + YO.2ka (órgão).

3) OJO (espanhol) = O + JO: Yo.2ka (órgão, meio) + Tshuy, 9kk (Observação).

4) OEIL (francês) = O + E + I + L: Yo. 2ka (órgão) + Yh. 9ab (para) + ls.7ok (ver) Le.2rk (a luz).

5) EYE (inglês) = E + Y + E: Gne. 9am (Instrumento) + Yr. 2hi (luz) + Yr.9ke (ver).

6) OCCHIO (italiano) = Oc + Chi + O: Yug.6hg (Servir para) + Tzyh.1l (ver) + Yo.6gc (sítio, ao longe).

7) OFTHALMÓS (grego) = OF + Thal + Mós: Hoeb. Olc (apto)+ Tsaou.5hh (para) + Mog.9k (ver, mostrar).

8) AUGE (Alemão) = Au + Ge: Hab.5if (apto, para) + Ge.4hh (ver).

9) NGAIN (Chinês) = Ngah.2rd (Adaptado, bom para) + Xien.9ag (ver).

10) BEGI (Vasco) = Be + G + I): Be.5oh (meio para) + Ge.4hh (mirar, ver) + Xhy.4if (Aparências, o que se oferece).

11) (Holandês) o: OOG. Xue.9kc (Olhar); O + Og: Yug.6hg (Órgão de).

12) Sueco. ÖGA=O+ E +G + A: Yo.2ka (Órgão) + Yh.9ab (de) + Ge.4hh (mirar, ver) + Hãw.1sc (as coisas, o ambiente).

13) Dinamarquês. OJE = O + E + JE: Yo.2ka (Órgão) + Yh.9ab (de) + Ge.4hh (ver).

14) ESA(Tupi, Brasil) = E + SA: Yh.9ab (para) + Shauq.9ig (alumiar, ver).

15) Nawi (Quechua, Adnes) = Ne.4eb (Serve para) = Has.9ki (ver) = Ue. Ohd (o ambiente, sítio).

16) MÉ (Japonês) = M + E: Mih.5mc (Mirar, admirar) + Yai.6qd (coisas).

17) MATA (Timor, Filipinas, Indonésia) = MA + TA: Mhãw.4hg (Ver) + Tão.2kh (em volta).

18) Línguas Bantu: DISO (Zambézia) = DI + SO: Thyx.9ol (observar) + Shue.4go (o que está diante).

LISO (Quimbundu, Luanda) = LI + SO: Le.4lf (Luz) + Shu.5s (sentido da).

1 "Livro dos Cantares" - SHE-KEQ, Série "Clássicos chineses", Trad. Joaquim J. Guerra, S. J., Macau,1979.

2 Kvei, no sentido maligno, e introdução por via bu-dista, estranha portanto à pura tradição chinesa clássica.

* Ingressou nos Jesuítas em 1925, tendo terminado o curso de Filosofia. Em 1933 partiu para a China, com destino à Missão de Shiu-Hing, fundada por Mateus Ricci em Setembro de 1583. Ordenou-se em Xangai, onde concluiu o curso de Teologia, na Faculdade Belarmino. Com dezenas de anos de residência na China, é considerado o maior sinólogo português vivo e internacionalmente um dos maiores, tendo traduzido e comentado os principais Clássicos Chineses; publicou o "Dicionário Chinês-Português de Análise Semântica Universal", e em inglês, "Structural Semantics".

desde a p. 92
até a p.