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OS CHINESES, A PÓLVORA E OS PORTUGUESES

António Graça de Abreu *

"À l'extrême sudouest de l'Europe, au bord de l'immense océan qui allait devenir le champ de ses luttes et le théatre de ses victoires, um petit peupie veillait, qui, eclairé soudain d'un rayon de gloire, entretenait le feu sacré qui semblait éteint dans le reste du monde chrétien: des reives de la Lusitanie, devaient bientôt s'élancer à la conquête d'un vaste empire ses vaillants navigateurs, dont un bard immortel, en chantant la sublime épopée, fixait définitivement la langue de son pays.

"J'ai nommé le Portugal et Camões."

São palavras do início do nosso século, escritas pelo grande sinólogo francês Henri Cordier na sua monumental "Histoire Génerale de la Chine et de ses Relations avec les Pays Étrangers."

Constituem uma pequena e justa homenagem a Portugal e aos Portugueses por parte de um dos pioneiros e mestres dos Estudos Orientais e da Sinologia, em França.

Recordo as palavras de Henri Cordier como introdução a um tema que passarei a desenvolver e a que dei o título, talvez pouco conciso, de "Os Chineses, a pólvora e os Portugueses."

Que se sabia na Europa quinhentista sobre a China? Muito, muito pouco. O "Livro de Marco Polo" era a única fonte, suspeita e insegura, sobre o imenso reino de Catai, perdido na distância e na bruma, para além dos desertos da Ásia Central, do outro lado do Mundo.

O "Livro de Marco Polo" foi conhecido em Portugal na primeira metade do século XV, na versão em latim de frei Francisco Pipino, e tudo indica que chegou ao nosso país trazido pelo infante D. Pedro, filho de D. João I. Foi traduzido para português e impresso em Lisboa em 1502. É a raríssima edição de Valentim Fernandes.

Em Portugal crescia o interesse pela China, esse reino estranho e exótico, prenhe de riquezas e de todas as dúvidas.

Depois da Índia, em 1498, abria-se um vasto e quente oceano a sulcar por naus portuguesas. Depois de Malaca, havia o Oceano Pacífico e a China.

Em 13 de Fevereiro de 1508, D. Manuel apresentava a Diogo Lopes de Sequeira, que "ia a descobrir Malaca", o chamado Regimento de Almeirim, de que destaco:

"Perguntareis pelos Chins, de que parte vêm e de quão longe, e de quanto em quanto vêm a Malaca ou aos lugares em que tratam, e as mercadorias que trazem, e quantas naus deles vêm em cada ano, e pelas feições de suas naus, e se tornam no ano em que vêm, e se têm feitores e casas em Malaca ou em outra alguma terra, e se são mercadores ricos, e se são homens fracos se guerreiros, e se têm armas ou artilharia, e que vestidos trazem, e se são grandes homens de corpo, e toda e outra informação deles, e se são cristãos se gentios, e se é grande terra a sua, e se têm mais de um rei entre eles, e se vivem entre eles mouros ou outra alguma gente que não viva na sua lei ou crença, e, se não são cristãos, em que crem ou a quem adoram, e que costumes guardam e para que parte se estende sua terra e com quem confiham."

Três ideias básicas ressaltam das instruções de D. Manuel. Primeira, como eram os chineses quanto ao comércio? Segunda, como eram os chineses quanto à arte da guerra? Terceira, como eram os chineses quanto à religião?

Diogo Lopes de Sequeira chegou a Malaca em 11 de Setembro de 1509 e lá encontrou quatro juncos vindos da China. Diz-nos Fernão Lopes de Castanheda que portugueses e chineses "ficaram tão amigos que ao outro dia (Sequeira) roy comer coeles. "

De Malaca, num junco malaio, partiria em 1513 o feitor Jorge Álvares, o primeiro português a pisar terras da China, concretamente a ilha de Tamão, que se tornaria em breve a "ilha da Veniaga" e que é hoje a ilha de Lin Tin, na foz do Zhujiang (o rio das Pérolas), a meio caminho entre Macau e Hong Kong.

De Malaca partiria, em 1514, Rafael Perestrelo com aquela que se pode considerar a nossa primeira missão comercial ao Império do Meio.

Ainda de Malaca, em Maio de 1517, partiria para a China o primeiro grande grupo de portugueses, em sete navios comandados por Fernão Peres de Andrade, onde se incluía o boticário Tomé Pires, recém-nomeado embaixador do reino de Portugal à corte do Filho do Céu.

Era o início da penetração europeia no Império chinês.

Fernão Peres de Andrade sabia bem ao que vinha, mas ignorava por completo o país que o esperava. Os portugueses procuravam um lugar fixo de comércio, uma feitoria em terras do Extremo Oriente, mas desconheciam a China, seus trinta e cinco séculos ininterruptos de civilização e história, seus modos, sua concepção sinocêntrica do Mundo.

Fernão Peres de Andrade arriba a Cantão e, para surpresa da população, iça bandeiras em todos os mastros das suas naus e dispara uma formidável salva de todos os seus canhões. Era coisa nunca vista nem ouvida no Império do Meio.

Andrade violava encandalosamente os ancestrais códigos de ética do país onde acabava de chegar. Mas Andrade sabia da inferioridade da artilharia chinesa e a sua estrondosa manifestação de força e poderio militar tinha igualmente um objectivo: manter em respeito a população de uma cidade para a qual se voltavam olhos e interesses portugueses.

Tomé Pires havia escrito, três anos antes na sua "Suma Oriental": "Cantão é a chave do Reino da China."

Vasco Calvo e Cristóvão Vieira, homens da tripulação de Andrade, companheiros de Tomé Pires e testemunhas factuais de todos os acontecimentos posteriores, escrevem em 1524, nas tão mal conhecidas e nunca devidamente analisadas "Cartas dos Cativos de Cantão":

"Esta governança de Cantão é das melhores da China, de que o Rei recebe muitas rendas porque tem arroz e mantimentos sem conto, e todas as mercadorias de toda a terra vêm aqui deferir por razão da escala do mar e das mercadorias que dos outros reinos vêm a Cantão. Toda passa para dentro da terra da China de que o Rei recebe muitos direitos, os mandarins grandes peitas e os mercadores vivem mais limpamente do que noutras governanças que não têm trato. Nenhuma governança da China tem trato com os estrangeiros senão esta de Cantão. (...) A escala de toda a terra da China é Cantão. ""

Vasco Calvo e Cristovão Vieira falariam ainda de muitas outras coisas da China, capitais, províncias, cidades, aldeias muradas, tribunais e justiça, rios, navegação e comércio, pirataria e soldados e ressalto, como elemento importante, um plano para a eventual tomada da cidade de Cantão.

Fernão Peres de Andrade permanece quase um ano nos mares do Sul da China, deixa Tomé Pires e a sua comitiva em Cantão, regressa a Malaca e depois a Lisboa. Em 1519 é seu irmão, Simão de Andrade, quem aporta às terras meridionais do Império. Os desacatos cometidos por este último grupo de portugueses, à mistura corn as denúncias malaias de que Portugal lhes conquistara a sua terra, exaltam os ânimos chineses.

Quando Martim Afonso de Melo partiu de Lisboa, em 5 de Abril de 1521, ignorando o sucedido com os homens de Simão de Andrade, levava, segundo João de Barros, instruções de el-rei D. Manuel para "assentar amizade com o rei da China, parecendo que a tinha a terra connosco em razão da vinda de Tomé Pires, que Fernão Peres de Andrade enviara corn o nome de embaixador; e para trabalhar muito no porto de Tamão ou onde fosse mais proveitoso e seguro para as nossas coisas, e fazer uma fortaleza em que nela ficasse por capitão, com os oficiais e a gente que trazia; e ordenasse tudo como as coisas do comércio ficassem em negócio corrente."

Em fins de Agosto de 1522, as cinco naus de Martim Afonso de Melo - uma delas comandada por Duarte Coelho, que alguns anos mais tarde se distinguiria como um dos grandes capitães do Brasil - chegam à China, e pouco depois envolvem-se num combate naval junto à foz do rio do Oeste, um dos braços do delta do rio das Pérolas. Os portugueses são derrotados, obrigados a sair da China e a adiar a fixação definitiva em território chinês.

Tive o privilégio de viver cinco anos na República Popular da China e de estar hoje ligado a esse país por laços bem mais fortes do que a amizade ou o interesse intelectual. Nas bibliotecas de Pequim, Xangai e Cantão procedi, de 1979 a 1981, a uma longa recolha de antigos textos chineses sobre Macau, Portugal e os Portugueses. Os documentos estão, no essencial, traduzidos, e preparo neste momento uma "Antologia de Textos Chineses sobre Portugal e os Portugueses

Shen huo fei ya - "mágico corvo voador de fogo"; a parte anterior era explosiva, a posterior incendiária, e era lançado sobre as cabeças dos inimigos por cargas propulsoras com rastilhos de duração calculada.

Eis alguns desses textos, a História feita por Chineses:

"Na 5a Lua do 12° Ano do reinado de Zheng De (1517) chegaram os barcos tributários acompanhados por frotas mercantis. Como de costume, cobrava-se um imposto de 20% do valor total das mercadorias, imposto este que se destinava a cobrir os gastos militares locais. Os tributos eram levados para a capital. Ocorreu que os comerciantes desonestos e malfeitores chineses começaram a unir-se com os comerciantes estrangeiros na introdução de mercadorias de contrabando. Os portugueses que conseguiram infiltrar-se nas tripulações dos barcos dos países do Sueste Asiático começaram a pilhar. Eles compravam aventureiros chineses para usá-los na prática de más acções, tais como raptar mulheres e bébés para vendê-los em seguida. Faziam como bem lhes apetecia, causando grandes danos aos habitantes locais. Então o conselheiro imperial Cheng Boxian (陳伯獻) apresentou uma sugestão ao Imperador para que ele decretasse várias leis proibitivas marítimas. Tais leis estabeleciam expressamente que seria proibida a entrada de qualquer barco tributário em portos chineses que não chegasse no prazo marcado. Ultimamente, porque Wu Tingju (吳廷擧), tesoureiro provincial de Guangdong, dissesse que havia grande falta de incenso para oferendas e era da opinião de que se deviam levantar tais proibições, o governador da Província e as Alfândegas Gerais Marítimas Imperiais, enganados, aceitaram a sua sugestão. Como resultado começaram as provocações feitas pelos portugueses. Wang Hong (汪鋐), sub-prefeito da Defesa Central, chefiou uma expedição e conseguiu vencer os portugueses. Para reforçar a defesa marítima, gastava-se uma quantia significativa na construção de navios de guerra e na fabricação de peças de artilharia. Com a ausência das embarcações estrangeiras, motivada pela restauração das leis probitivas marítimas, cortou-se uma boa fonte de riqueza para as autoridades locais, as quais atiraram todas as responsabilidades das graves consequências para cima do tesoureiro provincial".

( "Colectânea de Documentos Autênticos do Reinado de Zheng De", 1506-1522 da Dinastia Ming, Vol. 149 ).

"Pouco antes da sua chegada à China, os portugueses conquistaram Malaca. Os recém-chegados ofereceram tributos à corte e pediram o reconhecimento oficial do seu país. Por ordem imperial, só o embaixador, mais alguns poucos homens seus criados, foram levados à capital, e o resto do séquito ficou em Huai Yuanyi (懷遠驛). Os hóspedes compravam os bons cidadãos chineses, construíram casas e edificaram redutos para se estabeleceram definitivamente. O sultão de Malaca no exílio pediu auxílio à corte, e esta não o atendeu. Então, Qiu Daolong (丘道隆), cronista imperial, apresentou um memorial ao imperador, com os seguintes pontos essenciais: Malaca, além de ser protegida pela China, encontra-se no número dos países tributários tradicionais; a sua anexação pelos portugueses desonrava mais a protectora do que a protegida. E pedia que se devolvessem os tributos portugueses. Na sua opinião, não se podiam aceitar os presentes portugueses até eles retirarem de Malaca. Caso persistissem na ocupação de Malaca, caberia à China organizar uma expedição militar em cumprimento do seu dever de protectora. He Ao (何鰲), também cronista imperial, observou: dos estrangeiros, os portugueses eram excessivamente cruéis e astuciosos. Os seus armamentos, comparados com os de outros estrangeiros, eram mais perfeitos. Agora, dizia-se que eles estavam vindo e indo, entregando-se ao trato comercial e, fatalmente, provocariam rixas, causando desordens, matando e ferindo".

("Crónica da Dinastia Ming", Ming Sm, Vol. 158, texto de 1548).

"No 13° ano do reinado de Zheng De, o sultão de Malaca foi expulso pelos portugueses, e a sua terra caíu sob as patas destes últimos. Os ocupantes enviaram uma embaixada de 30 componentes a Guangdong para entregar os tributos. A missão foi recebida de braços abertos por Wu Tingju, tesoureiro provincial e sub- -prefeito da Defesa Marítima. Outros mandarins devolveram os presentes aos estrangeiros, por não haverem encontrado o nome de Portugal na lista dos tributários tradicionais e mandaram-nos ir embora. Estes retiraram, porém, inesperadamente para Nantó, no distrito de Dongwan, onde levantaram fortificações, assaltando viajantes e raptando crianças de tenra idade para comer. Os habitantes locais queixavam-se muito destas violências. Ao receber as queixas, apresentadas pelo sultão de Malaca no exílio, contra os portugueses, Qiu Daolong e He Ao, ambos cronistas imperiais, informaram o imperador de que os portugueses tinham tomado a liberdade de conquistar Malaca, um dos protegidos da China. (...)

Os portugueses aproveitaram a oportunidade para entrar na China. Convinha agora expulsar todos os estrangeiros de uma vez por todas. O embaixador português, grande conhecedor de chinês, por influência de Jiang Bin (江彬), o eunuco favorito do imperador, conseguiu ser servidor do monarca, que teve assim oportunidade de aprender, por brincadeira, a língua portuguesa. Um dia o português tinha um assunto a tratar na Repartição dos Assuntos Estrangeiros. Falou, sentado, com o titular do Ministério dos Ritos, Liang Zhuo (梁焯), o qual, muito ofendido, o mandou açoitar. Ao ouvir isto, o eunuco comentou-o nos seguintes termos: "O português tem o privilégio de divertir-se com Sua Magestade; porque é que deve ajoelhar-se perante um súbdito do nosso imperador?"("Compilação de Documentos Inéditos, Memorial de WangHen" (王享) Terceiro Capítulo, referente aos Bárbaros do Sueste, Malaca, texto de 1550).

A propósito de os portugueses comerem crianças, e porque a referência surge amiúde nos textos chineses desta época, intercalo aqui uma pequena citação da Década III da "Ásia", de João de Barros:

"Finalmente diziam que comprávamos moços e moças furtadas, filhos de pessoas honradas, e que os comíamos assados, as quais coisas eles acreditavam ser assim, porque éramos gente de que nunca tiveram notícia e éramos o terror e medo de todo aquele Oriente. Não era muito crer-se que fazíamos estas coisas, porque outro tanto acreditávamos nós deles; e de outras nações tão remotas e de que temos pouca notícia ".

Voltemos aos documentos chineses:

"Nos meados do reinado de Zheng De, os portugueses entraram inesperadamente na China, para apresentar tributos. Como o seu procedimento para com as autoridades não fosse cortês, não lhes foi consentida a entrega.

Retiraram-se então para Nantó, onde construíram paliçadas com árvores e estabeleceram-se com firmeza, raptando criancinhas de leite para comerem. Os cronistas imperiais, Qin Daolong e He Ao, redigiram um memorial narrando os seus crimes. O comissário adjunto da defesa central, Wang Hong, assumiu o comando das tropas para os expulsar. Como os estrangeiros usassem armas de fogo para resistir, Wang Hong alistou exímios nadadores a fim de arrombarem e afundarem os seus navios, para impedir a fuga. Foram todos capturados e degolados, deixando as suas armas de cobre. Wang Hong pediu que as bombardas tomadas aos bárbaros fossem distribuídas pelas cidades fronteiriças. Daí por diante chamaram a estas peças Fo Lang Ji (Portugal)".

("Monografia de Macau". l Parte. Ying Guang Ren, 1751).

"(...) Desta vez os piratas foram derrotados, deixando vários canhões. Os nossos soldados chamavam a estas peças "Portugal". Wang Hong ofereceu vários à corte, como espólio. Então nossas tropas começaram a possuir essas armas de fogo mas, como os nossos não sabiam manejá-las, não podiam usá-las para combater os piratas".

("Crónica da Dinastia Ming", Ming Shi, vol. 325, Sobre os Países Estrangeiros, 1548).

"Gu Yingxiang, titular do Ministério da Justiça, disse que Portugal era um topónimo, o nome de um país determinado e não uma arma de fogo. No 12° ano do reinado de Zheng De (1517), eu tinha a meu cargo os assuntos da Defesa Central de Guangdong. Subitamente apareceram dois grandes navios de navegação oceânica e ficaram no ancoradouro de Haul Yuanyi. Os recém-chegados diziam ser enviados portugueses para apresentar os tributos. Os recém-chegados, de narizes aquilinos e olhos muito fundos, cobriam a cabeça com toalhas brancas, lembrando os muçulmanos. Prestaram contas ao Governador da província, Cheng Xixuan (陳西軒) que compareceu no porto pessoalmente. Vendo que os portugueses ignoravam as etiquetas chinesas, mandou ensinar-lhas no Templo de Guang Xiao (光孝寺, Templo da Luz e Piedade Filial) e logo lhes deu uma audiência. Dirigiu um memorial às autoridades centrais pedindo instruções para agir, por não hayer encontrado o tal Portugal nas listas dos países tributários tradicionais. Com a encordância da Corte, foram, alguns da embaixada, levados à capital. Como o imperador se encontrava em viagem de inspecção pelo Sul da China, os estrangeiros demoraram um ano à espera da entrega dos tributos. Ao tomar posse do trono, o novo imperador Shi Zhong (世宗, 1522) mandou enforcar o embaixador, e o resto da comitiva foi levada sob custódia para Cantão, donde seria expulsa. Os que ficaram em Cantão ocuparam todo o tempo na leitura de escritos budistas. Os canhões portugueses eram de ferro, com um cano muito comprido de 5 ou 6 côvados. Quase no extremo inferior da peça abria-se um buraco, por onde se carregava a pólvora, através de cinco cartuchos, alternadamente. O canhão, que tinha uma grande barriga e um pescoço delgado, era revestido de madeira de pau-ferro para evitar uma eventual explosão. Cada barco tinha instaladas umas 4 ou 5 peças em cada bordo e outras tantas escondidas nos porões, reservadas para ataques de surpresa e emergências imprevistas. Os canhões perfuravam as tábuas das embarcações adversárias, de modo que estas afundavam-se de um momento para o outro. Os portugueses pavoneavam-se, invencíveis, pelos mares fora, com estas terríveis armas de fogo".

Tuhuoqiang - "cospe-fogo", tubo de bambu onde se introduzia a pólvora e estilhaços que eram projectados com as chamas; (Ilustração da Dinastia Song).

("llustracões Sobre Coisas Referentes ao Mar", Vol. 13, Epítome 3, Armas de Fogo, "Sobre Portugal" - Por Hu Zhongxian (胡宗憲); s/data, mas da primeira metade do século XVI).

"Qiu Daolong e He Ao, cronistas imperiais, acusaram os portugueses de serem excessivamente cruéis e astuciosos, molestando os habitantes locais. Pediram a expulsão dos portugueses, com o que concordou o imperador, o qual mandou enforcar o embaixador português e deu ordens às autoridades de Guangdong para expulsarem os que ficaram na capital da província. Wang Hong, comissário-adjunto da Defesa Central assumiu o comando das tropas. Os portugueses, apoiando-se em lugares de difícil acesso, usaram armas de fogo para resistir. A nossa primeira tentativa falhou. Então, o comandante alistou bons mergulhadores a fim de arrombarem e afundarem os navios, para impedir a sua fuga. Os barcos estrangeiros excediam 10 zhang (36 metros) de comprimento e outros três zhang (10,8 metros) de largura. Os barcos, movidos por quarenta remos e munidos de 34 canhões, navegavam normalmente, mesmo quando havia tempestade. Pontiagudos nas duas extremidades e com proas e popas planas, podiam navegar a grande velocidade ainda que não houvesse vento a favor, pois cada barco era movido por cerca de duzentos homens. Os lugares expostos ao fogo estavam abrigados corn tábuas de madeira, para protegerem os tripulantes dos disparos inimigos. Quando os canhões abriam fogo ao mesmo tempo, o seu troar assemelhava-se a uma chuva torrencial. (...) Dos seus canhões de bronze, os maiores chegavam a pesar mil jin (500 quilos), os menores 150 jin (75 quilos) e os intermédios tinham um peso de 500 jin (250 quilos). Os projécteis eram de ferro por dentro e revestidos de chumbo. Os maiores pesavam 8 jin (4 quilos). A receita da sua pólvora era diferente da chinesa. O melhor canhão, que tinha um alcance de 100 zhang (360 metros), podia desfazer qualquer coisa, quer de pedra, quer de madeira.

Hei Ru (黑孺) inspector-fiscal do distrito de Dong Wang, que frequentava os barcos estrangeiros para cobrar os impostos, identificou alguns chineses seus conhecidos chamados Yang Shan, Dai Ming, etc.. Estes homens vivam há muito tempo entre os portugueses, por isso conheciam a receita e a técnica do fabrico da pólvora. Então Wang Hong mandou o inspector escolher vários homens que, disfarçados de vendedores ambulantes de vinho e arroz, conseguiram entrar em contacto com os chineses aportuguesados. Os chineses, bem comprados, combinaram com os agentes das autoridades locais que na mesma noite o inspector-fiscal Hei Ru conduziria uma sampana para transportar os subordinados com alguma quantidade de pólvora e uma peça, a fim de descobrir a receita e a técnica do fabrico. Conseguido este intento, mandaram reproduzir a pólvora e a peça, com as quais Wang Hong conseguiu vencer os portugueses, tomando-lhes mais de vinte canhões de diferentes calibres".

("Compilação de Referência sobre as Zonas Exóticas do Ocidente", Vol. 9, Yang Congjian, 1930).

Esta breve recolha de textos lança alguma luz, e penumbra, chinesa sobre o período inicial da penetração portuguesa em terras do Império do Meio. Não é agora meu intuito analisá-los, corrigi-los onde se enganam ou comentá-los, mas apenas destacar que o poderio militar português, a pólvora e os nossos canhões foram elementos preponderantes quando da chegada das nossas naus à China. E também quando da posterior fixação em Ningbó, na província de Zhejiang (a Liampó das crónicas portuguesas e de Fernão Mendes Pinto), em Quanzhou, na província de Fujian, (a Chinchéo das nossas crónicas) e finalmente em Macau, em 1557.

A pólvora, os canhões e os soldados portugueses seriam ainda importantes quando, a partir de 1615, o império Ming, acossado a norte pelas tropas Qing, (os manchus), caminha para a inevitável derrocada.

Diz-nos o padre Gabriel de Matos em carta de Macau, datada de 1622, que "os canhões chineses têm uma dolorosa tendência para estoirar e muitas vezes matam mais das suas próprias tropas do que inimigos ".

A fundição de canhões de Manuel Tavares Bocarro, em Macau, laborou em pleno entre 1620 e 1650 para defesa da própria cidade face à ameaça holandesa e para, com artilheiros e soldados portugueses, se auxiliarem os Ming.

Para concluir, vou fazer algumas breves referências à pólvora e ao fabrico de armas de fogo na China.

Os chineses dão normalmente como sua a invenção da pólvora e fazem recuar a descoberta ao período Chunjiu (da Primavera e Outono, anos 770 a 476, antes da nossa era). Tratava-se, no entanto, das chamadas pólvoras físicas também conhecidas de gregos e romanos. A pólvora negra, constituída por enxofre, carvão e um nitrato, normalmente de amónio, faz a sua aparição na China da dinastia Tang (618-960) e é utilizada, com fins militares, nas lutas que conduzem à queda dos Tang. No período seguinte, a dinastia Song (960-1280), surgem as primeiras catapultas lança-chamas e as flechas incendiárias que utilizavam uma bola de pólvora na ponta. Também na dinastia Song, aparece o huojili, que pode ser considerado como a primeira granada de fragmentação com pedaços metálicos que, ao explodir, se espalhavam em todas as direcções.

O huoqiang e o tuhuoqiang, utilizados no período imediatamente anterior à dinastia Yuan (mongol) eram grossos tubos de bambu onde se introduzia a pólvora e pequenos projécteis. Os mongóis e os Ming (a dinastia Ming vai de 1368 a 1644) empregam também os tiehuopao e os huotong que são já, de facto, pequenos canhões e que se distinguem pela natureza do tubo: os primeiros são de ferro fundido e os segundos de bronze. De qualquer modo, eram armas rudimentares e pouco eficazes. Na China dos séculos XV e XVI o fabrico das armas de fogo não conheceu nenhum desenvolvimento significativo, ao contrário do que acontecia então na Europa.

No essencial, são estas últimas quatro as armas de fogo que os portugueses encontram ao chegarem ao império chinês, em 1513. O

(Comunicação apresentada no Congresso Internacional "Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento", em Lisboa, 23.6.83)

NOTA DA REDACÇÃO

Em complemento deste tão interessante texto do Dr. António Graça de Abreu (e de valia realçada pela escassez de documentação histórica chinesa sobre Portugal, em linguagem acessíve) resolvemos inserir duas notas, verdadeiramente dois aditamentos.

Trata-se de dois pequenos excertos de um livro tido até há pouco como condensador da versão histórica oficial da República Popular da China sobre a relação com os portugueses durante a Dinastia Ming - "História de Ming, Capítulo sobre os Portugueses, Notas e Comentários", de Dai Yixuan.

É o primeiro esclarecedor da expressão Fu-Lang-Ji, denominativa de portugueses nos primórdios do contacto histórico, e muito frequente.

É o segundo complementar e documental da perspectiva chinesa perante a novidade dos canhões portugueses, mais interessante e curioso dada a penúria de documentação traduzida em Línguas menos inacessíveis do que a chinesa.

Sendo a publicação da nossa responsabilidade, chamamos a atenção do leitor e prevenimos o investigador para o facto de os textos assim publicados serem o resultado de esforçada tentativa de verter o "borrão" original de uma tradução, em português correcto e perceptível.

ADITAMENTOS

Texto (da "História de Ming")

"Durante o reinado de Zhengde, Fu-Lang-Ji, povo vizinho de Malaca, ocupou Malaca e expulsou o seu rei".

Notas e Comentários

"Fu-Lang-Ji foi o nome utilizado por turcos, árabes e outros povos orientais (em indostano Farangi, em persa Firangi, em árabe Frangi ou Afrargi) para se referirem aos europeus, corruptela de "Frank", uma tribo germânica que conquistou a França no Séc. VI, e com quem, desde muito cedo, os muçulmanos tinham contactos. Influenciados pelos muçulmanos do Sueste da Ásia, os chineses denominaram os portugueses de Fu-Lang-Ji. Tudo indica que a designação veio para a expressão chinesa pela boca dos malaios. Utilizavam Fu-Lang-Ji, não só para se referirem aos portugueses, como também aos seus canhões, nessa época" (...).

Texto (da "História de Ming")

"Os oficiais chineses capturaram alguns canhões portugueses (chamam-lhes Fu-Lang-Ji). O vice-minitro de Marinha ofereceu-os à corte.

No Outono do ano 9, o vice-ministro Way Hong apresentou o relatório ao soberano: "A nossa fortaleza na fronteira tem sido danificada pelos bandidos portugueses de cada vez que eles surgem. Porque se limita às funções de vigia. Não dispomos de artilharia com alcance suficiente, pelo que nos encontramos frequentemente numa situação difícil. Os canhões portugueses, que este vosso vassalo servidor ofereceu à corte, têm as seguintes características: os pequenos, que pesam menos de 10 quilos e atingem 600 pés, utilizáveis em fortalezas pequenas; coloca-se um em cada pequena fortaleza, manejado por três pessoas; os maiores pesam mais de 35 quilos e alcançam 5 ou 6 li, que podem ser utilizados nas fortalezas maiores; colocam-se três canhões em cada fortaleza, manejados por 10 pessoas. Distanciadas as fortalezas pequenas de cinco lie as grandes de dez li, e os bandidos portugueses nem poderão aproximar-se. Facilmente manteremos a superioridade, sem necessariamente combater". O Imperador ficou impressionado e agradado. Concordou.

Data daqui o aparecimento dos canhões Fu-Lang-Ji. Entretanto, nem soldados nem oficiais sabiam utilizá-los, pelo que não se conseguia o controle dos bandidos".

Notas e comentários

"Os canhões dos Fu-Lang-Ji foram também de-signados Fu-Lang-Ji, por antonomásia. Foram capturados após duas batalhas, e denominados Fu-Lang-Ji. O designativo sem dúvida que provém dessa altura. Mas uma dúvida ainda não esclarecida é desde quando a China passou a dispôr deste tipo de peças. Na "História do Reinado de Wan Li", de Sheng De-fu, vem referido: "Após o reinado de Hong Zhi (1445-1505) a China começou a ter canhões dos Fu-Lang-Ji, cujo país na antiguidade, se designava Sam Fu Qi, centro das férias dos países estrangeiros. Como Cantão apanhou uns navios e confiscou as mercadorias juntamente com os canhões, que eram fantásticos e atingiam muito mais longe de que os velhos, então passaram a ser utilizados nas fronteiras por muito tempo". Mas Sheng De-fu acrescenta no mesmo livro (rol. 30), ("Os estrangeiros de cabelos ruivos"): "Após o Reinado de Zhengtong (1436-1449)a China começou a ter os canhões Fu-Lang-Ji, instrumento mágico número um dos estrangeiros". Aqui o autor antecipou 60 ou 70 anos em relação à primeira referência. No fim do século XV chegaram os primeiros portugueses à Índia, e no início do século XVI chegaram à Ásia do Sueste. Antes da chegada dos portugueses, é claro que não era possível à China ter os canhões deles.

Parece evidente que Sheng De-fu confundiu as datas, porque ora disse que a China tinha tido acesso aos canhões depois do Reinado de Hongzhi, ora disse que isso aconteceu depois do Reinado de Zheng-tong.

Merece mais crédito o testemunho de Yingxiang: "Fu-Lang-Ji é o nome do país, não dos canhões. No ano 12 do Reinado da Zhengde (1517), assumi o cargo de Jia Shi, responsável dos transportes marítimos (...) Os seus canhões são feitos de ferro, de quase dois metros de comprimento, barriga grande e pescoço comprido. Têm um buraco comprido na barriga, onde se mete pólvora. Os canhões embrulham-se em madeira e ferro. Colocam-se quatro ou cinco canhões em cada navio. Quando os outros se aproximam, basta um tiro para partir o barco e fazer-lhe entrar água dentro. Por isso os navios portugueses andam no mar como se fosse deles, e não têm rivais. Um intérprete ofereceu um canhão e a receita de fabricação da pólvora. Experimentou-se o canhão no campo, e atingiu centenas do pés. Era um instrumento terrível no mar, e na defesa da cidade, mas não nos campos de batalha. Mais tarde o ministro da defesa Wang Chengzhai apresentou uma proposta ao Imperador e foram fabricados mais de mil canhões, distribuídos por três fronteiras, e o canhão tinha paus e podia mover-se para cima e para baixo e para a direita e para a esquerda, oriundo da China e não de Portugal".

Baseados nesta citação podemos pensar que a vinda dos canhões portugueses para a China começou no início da chegada dos portugueses à costa. Gu Yingxiang era natural de Chang Xin da Província de Zhejiang. No Reinado de Hongzhi, era letrado mandarim. Durante o serviço como Jia Shi em Guangdong esmagou "os piratas" e venceu três batalhas, durante meio ano. Não sabemos se foi ou não auxiliado por canhões. O que é inegável foi a oferta de um canhão por um intérprete na altura do combate com os "piratas", que foi o início da obten-ção dos canhões portugueses. O Gu Yingxiang, posteriormente, ascendeu a ministro da justiça e morreu no ano de 44 do Reinado de Jiajing (1565). Há uma Biografia dele no "Arquivo do Reinado de Jiajing".

Resumindo e concluindo: na altura em que o intérprete ofereceu o canhão, ainda se lhe não chamava Fu-Lang-Ji. Quer dizer, Gu Yingxiang foi quem obteve mais cedo a peça de fogo. Contudo, na falta de provas concludentes, só podemos presumir que assim tenha sido.

Temos que o afirmar, a fabricação oficial dos canhões só se verifica depois da morte do Imperador Ming Wu Zong, e de uma batalha ocorrida entre 1521 e 1522. Foi o inspector He Ru, de Bai Sha do Distrito de Dong Wan, quem mandou secretamente uma missão ao navio dos portugueses para buscar Yang Sa e Dai Ming, e a partir daí iniciou o fabrico oficial das peças de fogo. Muito provavelmente, os primeiros canhões, iguais aos de Portugal e de Java, foram fundidos em Dong Wan. Foi com estes canhões que Wang Hong conseguiu a vitória e a expulsão dos portugueses.

No ano 3 de Reinado de Jiajing (1524), foram também copiados canhões Fu-Lang-Ji em Nanquem. No ano 8 do seu reinado, sob proposta de Wang Hong, foram fabricados 300 canhões de tipo Fu-Lang-Ji, cujo modelo foi denominado "Grande General", e que foram distribuídos por todas as fronteiras (Ver no "Arquivo do Reinado de Jiajing"). É neste período que se inicia na China o fabrico de canhões em grande escala. Foi devido aos conhecimentos sobre a fabricação de barcos e canhões que o inspector He Ru foi promovido a Magistrado do Distrito de Shang Yuan.

O Distrito de Shang Yuan pertencia a Namquem. He Ru era natural de Ming Du da Província de Hiang Xi. Sem dúvida, ele desempenhou um papel importante no plano da defesa das fronteiras.

Wang Hong era o mais activo divulgador da importância da artilharia na consolidação das fronteiras. No ano 9 do Reinado Jiajing (1530), apresentou uma petição ao Imperador para que fossem instalados canhões grandes e pequenos nas fortificações das fronteiras de Noroeste. O texto, que provém, do "Arquivo do Reinado de Zhengde", é parte dessa petição, e contém algumas alterações de palavras. Wang Hong deu muita importância à eficácia das canhões dos portugueses e disse: "Os pequenos pesam menos de 10 quilos e atingem 600 pés, podendo ser utilizados nas fortificações pequenas. Instala-se um em cada fortaleza. Os grandes pesam mais de 35 quilos e atingem uma distância de 5 ou 6 Li, podendo ser montados 3 em cada uma das fortalezas maiores, manobrados por 10 pessoas. Havendo cinco Li entre as fortalezas pequenas e 10 Li entre as grandes, a rede será tão densa que os bandidos já não lograrão pôr os pés na China. Vencê-los-emos, sem precisarmos de ir combatê-los". Na altura, o Imperador Ming Shizong ordenou ao Ministério da Defesa que apreciasse o assunto. O ministro relatou as conclusões: "Os canhões Fu-Lang-Ji são realmente poderosos. Convém mandar, como propôs Wang Hong, a reconstrução das fortificações, e seleccionar os oficiais para a instrução do manejo das peças, que constituirão as armas da defesa, espacejadas de 5 ou 6 Li, podendo ser instalados, às três, nas fortalezas maiores, manipulados por 10 pessoas. Havendo cinco Li entre as fortalezas pequenas e 10 Li entre as grandes, a rede será tão densa que os bandidos já não lograrão pôr os pés na China. Vencê-los-emos, sem precisarmos de ir combatê-los". Na altura o Imperador Ming Shizong ordenou ao ministério de Defesa que apreciasse o assunto. O ministro apresentou o parecer: "Os canhões Fu-Lang-Ji são realmente poderosos. Convém mandar, como Wang Hong propôs, a reconstrução das fortalezas, e seleccionar os oficiais para a instrução do manejo das peças que constituitão as armas da defesa. Entretanto as fortalezas podem prevenir a entrada dos inimigos, mas não podem impedi-la. As armas são poderosas, mas alcançam só até onde podem alcançar. Assim a tarefa dos generais e oficiais deverá consistir na construção das fortalezas nas fronteiras, em treinar os soldados, consolar e ajudar os pobres e levantar o ânimo dos soldados. Assim conseguiremos a solidariedade das populações e ganharemos a guerra com facilidade".

Wang Hong (outro nome de Xuan Zi) natural de Mao Yuan de Província de An Hui, assumiu o cargo de Director do Departamento de Inspecção no ano 6 do Reinado de Zhengde".

*Assistente da Univ. Nova de Lisboa, orientalista; foi durante 4 anos leitor de Português no Departamento de Línguas Estrangeiras da Univ. de Pequim.

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