Artes

BUSCA DA UNIVOCIDADEPARA ALÉM DO SÍMBOLO
A POESIA DE ALBERTO ESTIMA DE OLIVEIRA

Rui Cascais*

1. UM ESBOÇO DE CRÍTICA

nasce a flor

vibração

corpo

das raízes

(Esqueleto do Tempo, 1995)

Comecemos assim:

com Estima de Oliveira podemos dizer que estamos perante uma poesia do pouco, não perante um qualquer minimalismo - essa não é a sua meta -mas face a face num encontro com o suficiente, com aquilo que basta.

O pouco, a escassez, dá-se não por pudor mas por reconhecimento dos limites do testemunho, trata-se portanto de um simples digitar da alma que constatapor nós o surgimento de um evento particular nalinguagem, ou nos limites da percepção (como diriaCapra, noutros terrenos, um "gentle event"), recriadonum registo menos fugaz, mais manuseável:

travados voos

sextos

todos os sentidos

expostos

(Estrutura I - o Sentir, 1996)

No entanto, há um movimento em direcção auma secura de sentido, por recurso a uma certa aridezvocabular, que evita, na passagem, aquilo queprecisamente poderia significar (e para outrossignificou e significa) a sua impossibilidadecomunicativa, ou seja, aquilo que Foucault chamavaa "morte da interpretação" contida no "unívoco dosímbolo".

Vejamos, a solidão em que estas palavrasbrilham, o seu abandono e peso são suportados, nãosó pela rede de sentidos e pela historicidadeinescapável do léxico mas por uma espécie deconhecimento de uma sintaxe e gramática interior aelas próprias - por isso mais do que designarem coisasnum mundo têm aqui as palavras uma experiência, uma vivência como personagens, autónomos e agentespor onde se insinua a tentativa de ensaiar um máximodenominador comum de certas emoções, como, porexemplo, a da transitoriedade:

intangível

como o silêncio

o desdobrar

do tempo

(Esqueleto do Tempo, 1995)

O quê de mais comum? Que evidência maisclara? Que moeda mais exacta no comércio como leitor?

o evidente

consolida-se

ímpar

na construção

do diálogo.

(Infraestruturas, 1987)

Mas regressemos um pouco acima. O símbolo é por excelência a linguagem do oráculo e como só o oráculo o fala, estão os dois numa simbiose em que o valor do texto produzido depende mais de uma política do que de uma poética. Ou seja, é uma comunidade, ou no limite um indivíduo imbuído das suas tábuas dalei, que o justifica e desvenda na perspectiva de umautilização/função concreta na qual o especificamentepoético, compreendido enquanto voz cheia decontingência e imperfeição, não tem lugar.

Em verdade, a ausência destes dois últimosaspectos, e os respectivos caminhos que nos condenama tentar nos densos e férteis campos da interpretação, éuma das faces do unívoco do símbolo, que a poesia deAlberto Estima de Oliveira aflora mas da qual se afasta.

E, no entanto, como justificar a simplicidadedesta produção poética? E que univocidade restará então para alémdo símbolo?

Pensemos, para a primeira questão, no termo esqueleto - parte do título de um dos seus livros epresente noutros lugares - que, para além de poderser entendido com resíduo, resto, serve nesta poesiacomo entidade operante. Operante no interior dacarne, sobre o qual flutuam as vestes sempremutantes do sentido.

Esqueleto, na sua dimensão mais radical, propõealgo de duplo - simultaneamente uma invisibilidade euma presença. Um jogo semelhante àquele em que nosdescobrimos na linguagem quando deixamos guiar aatenção por um poema. Levados até ao

... primário impulso

que chega e ordena

a escrita deste nada

A estrutura óssea. A última instância orgânica, funcionando através de um absoluto e necessário conjunto de articulações, é uma imagem de como o simples acontece nesta poesia, é isso que o determina, para além do ofício e do labor (vulgata deuma certa crítica), que o transforma numa pré-condição da escrita, parte de uma espécie de razão prática do poeta, de uma ética, especialmente detectável no livro de 1993, Corpo (Con) Sentido, que seabre, do início, à comoção um pouco amarga, epartilhável, do outro:

emigro

no teu corpo

sem retorno

do tempo

em que os meus olhos

te envolveram

viajo na tua mão aberta

no derradeiro gesto

que ela encerra

(Corpo (Con) Sentido, 1993)

Para a segunda questão tentaríamos: éprecisamente no lado ético, dialogante, desta poesiaque se encontra o que resta de univocidade paraalém do símbolo.

A univocidade do inelutável, daquilo--que-não-pode-não-ser, perante o qual, como dizBataille, a experiência interior destrona do mesmopasso a experiência religiosa e a experiência filosófica.

Arriscaria que esta espécie de místicaanti-romântica fornece a possibilidade de enquadrara poesia de Alberto Estima de Oliveira:

é um longe

diferente

esse de ver

dentro do

horizonte

que pressinto

e não é perto

(Estrutura I - o Sentir, 1996)

... claro, acrescentaríamos, pois se trata de um mergulho na escuridão onde é possível visitar uma euforia inicial da aporia do universo (que impõe do mesmo passo aceitação e exaltação), o inconnu que Batailledescobre, sem centro, para lá da questão do ser:

[...]

a certeza da dúvida

envolve

e desconhece

os limites cósmicos

do cerco

2. A INFRALEVEZA

passam os corpos

no exíguo espaço

fundo de agulha

água correndo

do aço

(O corpo (con) sentido, Spiritus Promptus Est, 1993)

Lembro que Marcel Duchamp classificou todo um nível de "entes" com a denominação de inframince (os ultraleves). Aí se incluiriam coisas como as cinzas de um charuto, o véu de um hálito, a textura do papel, uma gota de suor em evaporação, os desenhos do pó...

a palavra

desfaz-se

num murmúrio

de humidade

numa agonia

lenta

de lábios secos.

(Infraestruturas, 1987)

Reconheceremos porventura estes lábios? Penso que sim. Apesar da sua existência à beira do nada, conhecemos que são o índice de uma palavra que se apagou. A vibração da morte de uma palavra no que resplende de infraleveza - e o seu resíduo sólido de agonia lenta que sobreviverá, constituindo uma espécie de reserva de universalidade, uma infraestrutura.

[...]

repousar os olhos

num recanto

num livro

na poesia da poeira

ou nas mãos

molhadas

pela chuva

ou suor

[...]

(O Diálogo do Silêncio, 1988)

O projecto poético de Estima parece assentar numa busca de fundações (como corolário da univocidade), desenvolvendo-se como uma espécie de folha de cálculo de probabilidades, em que se testa o momentum do que pode ser dito e, mais que isso, de como dizê-lo.

Quando falo da infraleveza esta tem um duplo sentido, por um lado prende-se com a própria atitude de onde nasce esta poesia - um vitalismo de "gaia ciência" que perpassa toda a obra - por outro tem que ver com um mecanismo de redução do sentido que se dá pela oferta do mais simples, do mais duro, do mais apto a ser escora. A analogia com Duchamp parece paradoxal pois os exemplos dados relativamente à sua curiosa visão apontam para coisas e situações evanescentes, enquanto que as pequenas equações de Alberto Estima de Oliveira seriam índices de uma ansiedade de permanência e estabilidade.

Sem querermos afastar esta hipótese, parece-nos mais interessante propor que o infraestrutural nesta poesia se deseja mostrar, acima de tudo, como fluxo e mutabilidade. Ou seja, se desta poesia nascesse uma civilização esta não construiria monumentos. Limitar-se-ia a constatar fluxos, de dor, alegria, conhecimento, ignorância, morte, sobrevivência. E essa seria a sua lição.

3. OS ENVELOPES DE FERMENTAÇÃO

No início do filme Macao (realizado em 1952 por J. Sternberg) um breve plano mostra o higrómetro a bordo do ferry de Hong Kong, cuja agulha aponta uma zona da escala onde se lê unhealthy for humans. Pessanha teria dito: "Sim, certamente, mas muito saudável para o lado vegetal da poesia."

Algures nesta cidade, no interior de uma casa, sujeitos a temperatura e humidade, luz e alguma penumbra, repousam os envelopes de fermentação de Estima de Oliveira, o que contêm, a sua poesia, aguarda nas pipas da decisão o seu momento de experimentar a elasticidade do paladar. De oxidar entre dedos, sobre páginas.

Não a lemos ainda mas faz já parte da nossa cidade, do convívio, que podemos manter um pouco extremo e íntimo, com ela.

Se o minimalismo não é uma meta desta poesia, tão pouco o é qualquer intenção críptica. É uma poesia oferecida. Sei que Estima de Oliveira acredita na poesia como dádiva, eu não. Talvez ele esteja certo. Talvez sejamos mediadores, de ideias, de fragmentos que circulam ao lume do mundo. Não creio. Talvez esteja certo. Ele.

Penso que Estima de Oliveira, no seu percurso de exílio africano e no seu transbordo para Oriente foi, ao longo do tempo, pela prática da escrita, através da poesia enquanto razão apaixonada (como Manuel Gusmão propõe de forma tão pertinente), tornando a biografia numa biologia.

Ao que escreve poderá ser atribuído um contexto, quer em relação à poesia portuguesa, quer numa visão mais larga. Mas experimentemos decidir que, por enquanto, isso não importa.

Julgo que a sua genealogia, a ser traçada, está na própria linguagem mais do que numa hipotética história da poesia ou num cânone (o haiku, Ungaretti, Andrade, Celan?)

Mas o que resta da sua leitura não deixa de surpreender pelo gosto do isolamento (que acredito ferozmente voluntário) a partir do qual se oferece. Daí ir a sua escrita vivificando um logos, tornando-se um discurso com e não sobre a vida. Uma vida de linguagem enquanto instrumento de percepção e de cronologia, estritamente pessoal mas aberta, dizente, positiva. Que conhece onde calar-se e o leva aos limites:

humilde

como a poeira

simples

como a água

(O corpo (con) sentido, Spiritus Promptus Est, 1993)

kosovo (sábado à noite)

vejo-te voando

como pétala

solta ao vento

é tempo de juntar

as páginas dispersas

do livro de memórias

recordar fábulas e lendas

conjuntos de estórias

unir o povo

ao redor da fogueira

em secreto diálogo

com sabor a serão

falar do amor

de cheiro a pão.

Kosovo (sabato a note)

Kosovo (sabota nave~er)

Te gledam vo let

kako cveten list

spre~en od veterot

Vreme e da gi zdru'ime

rasfrienite stranici

od knigata na spomenite

Da bide toa potset na mitovite

vgradeni vo istorijata

Da se bide eden narod

okolu plamenot

vo taen dijalog

so vkus na prikve~erina

Da se zboruva za qubov

so miris na lebot.

Traduzido para Macedónio por Kemal Komina

*Autor / tradutor.

desde a p. 281
até a p.