Antropologia

UMA FOLHA INÉDITA DO DIÁRIO DE UM MACAENSE DO SÉCULO XIX

Ana Maria Amaro〈HZ*〉

O AUTOR

Francisco António Pereira da Silveira nasceu em Macau em 3 de Dezembro de 1796, casou na Sé, em 15 de Agosto de 1819, com Francisca Ana Benedita Marques (nascida em 1802 e falecida em 21-6-1827) e faleceu em 16 de Julho de 1873, na sua grande e antiga casa situada na Praia Grande, casa que desapareceu nos princípios do séc. XX aquando da ligação da Av. Almeida Ribeiro com a Praia Grande. Deixou-nos porém, esta casa a notícia da sua localização através do Beco do Gonçalo, nome do pai do autor do diário, beco que dava serventia ao pátio ajardinado do velho casarão setecentista.

O DIÁRIO

Consta de 182 páginas de formato desigual não numeradas, faltando, porém, algumas e encontrando-se, outras, bastantes danificadas, cobrindo incompletamente os anos de 1841 a 1872. Através deste diário é possível tirar conclusões muito curiosas acerca da personalidade e da identidade cultural dos macaenses, considerados estes na sua acepção de descendentes de filhos de Macau com um ascendente europeu quase sempre por via masculina. No caso de Francisco António Pereira da Silveira ele pertence, já, a uma 3a geração de casamentos homógamos e preferenciais, sendo naturais de Lisboa os seus bisavós paternos. Das várias folhas do seu diário, peça raríssima, encontrada nos papéis do espólio de João Feliciano Marques Pereira, oferecidos à Sociedade de Geografia de Lisboa, tiramos uma, ao acaso, a mero título exemplificativo.1

1851

Fevereiro 7

Governador

Hoje a Sé fez a sua Missa cantada de aniversário da Dedicação, que posto foi a 19, contudo estatuíram rezar de Dedicação hoje.2 Assistiu S. Exa. Revma.. O Governador me encarregou ir junto com o Juiz3 e Bordalo4 à Taipa ver aquilo, porque dizia, havia empenhos e por isso talvez haja ali interesses etc., etc.. Fui lá, achei os Livros em ordem, rubricados por Amaral, escriturados em dia, fechando-se as cobranças por quinzenas. Vindo qualquer somma5 de Sal, trazem ao Forte um manifesto. O comandante recebe, numera-o, e dá ao patrão um livrinho em que diz o mesmo do manifesto, isto é, nome da soma, do Comandante (?); da terra em que vem e do Sal que traz. Este Livro numera-se com o N° que o Comandante do Forte tem posto no manifesto; e a somma fica conhecida pelo Livrinho. Quando vende o Sal, vai um homem do Forte, que tem de salário 15 patacas por mês, e fala China, ver o peso, isto é, leva o Dachem (balança romana)6 e pesa-se o Sal a pico ou cem cates.7 Por cada cem patacas de sal vendido, paga à Fazenda 1 _ pataca, este é o Direito de ancoragem, que no fim vem o Comandante (?) trazer ao Forte dinheiro para tal pagamento, e estes pagamentos se escrevem em uma coluna. Na imediata há a coluna de sapecas.8 O comprador de Sal; paga por cada pataca dez sapecas, e em cem patacas mil sapecas. Estas sapecas dividem—se em dez patacas sendo 7 para a Fazenda, duas para os soldados que vão com o homem de pesar, e uma para o sargento que toma conta. Os Direitos de ancoragem vêm também para a Fazenda, feitas as despesas da Tancar9 permanente do homem do Dachem, etc conforme as ordens. Quando a somma não traz Sal, mas fardos é feita encaminhar à Capitania do Porto para pagar a tonelagem. Há ali, também um Livro de sobras. Estas consistem de diversas fazendas miúdas que para ajuntar o peso eles trazem, depois pesando-se por cheio a conta para trazer para a Alfândega sobejam alguns cendorins10 ou mazes11 que durante uma diuturnidade de meses já fazem 26 patacas. A distância do Forte às sommas são mais de milha, e por consequente não pode haver boa fiscalização porque é possível que o homem do Dachem trate com o china do Sal de escrever cem picos passando por alto outros cem, e estes outros dividirem-se entre si, ou receba presentes, ou cometa extorsões, etc. Disto tudo dei conta ao Governador lembrando ser preciso um olheiro12 para ver o peso, ou embarcação que traz fazendas, etc. Lembrei ao Governador para árvores.13

Fevereiro 9

Morte de I. L. Cruz

Ontem à noite morreu Inácio Loyola da Cruz,14 Porteiro da Alfândega deixando 6 filhas, e 3 filhos; morreu pobre e foi enterrado hoje; fazendo-lhe as honras de tenente do Provisório, uma a guarda do Provisório.15

Dia 12

Morre Ana Rita moça velha de casa.

Embarca para Goa Bernardo filho do

Major Rosa, na Íris

Ontem faleceu a Moça de casa 16 de nação cafra17 muito velha, por nome de Ana Rita, que foi enterrada hoje. Também morreu Madame Barreto, viúva de António Lourenço Barreto.18 Embarca para Goa esta noite Bernardo Maria das Neves de Araújo Rosa filho do meu cunhado, o Major Rosa,19 às 9 horas, na Corveta "Íris",20 comandante Andrade21 da amizade do Major, e dele. Também foi António Tavares de Almeida, e senhora, e Vitalino Luis de Ornelas. Deus lhes dê boa viagem.

Dia 13

Males iminentes

Sendo dois grandes males os Tributos, e o Provisório, me diz o J. (?)22 que o Governador tem em vista arrematar o peixe (cousa que o mesmo Amaral23 não faz por causa da pobreza) e por conseguinte tributo até sobre os pobres; e dar um quartel para o Provisório,24 para eles não desertarem do País, porque tributos (e) armas na mão são vexações. Sendo o porto franco causa de tudo, não olham para o remediar, sendo a falta de meios a pobreza, não olha para lhes dar liberdade de buscar a vida25 mas amaram aos que têm braços à ociosidade do Provisório e quartel.

Março 3

Ontem foi Domingo das 40 horas.26 Pregou Sua Exa. Reverendíssima na Sé de tarde. Assistiram o Governador, Ministro de Espanha Más, Comandante da Corveta, etc. O Governador acompanhou (a)o Pregador ao púlpito. Hoje esteve o Governador no Monte, e fez um tiro de bala com a peça de águia; a bala passou entre a Guia, e o Forte de S. Jerónimo, e caiu no mar. Amanhã, Pachom Grande,27 festas dos chinas. Deus queira, que estes brincos,28 e bobos29 reinóis na rua desde a tarde, não tragam desgostos. Amanhã tenho comissão para arranjo de cadeia, la. Portaria do Governador (no. 1)30 e já eu nos trabalhos. Tenho servido, a todos os Governadores, em comissões e nada tenho. Vamos a ver o que este faz. Diz ele que escreveu pela mala,31 para as 200 patacas poupadas ao Inácio Loyola,32 se dessem a mim e a Miguel,33 veremos o que vem.

Dia 9

Hoje 1° Domingo da Quaresma, Procissão do Senhor dos Passos,34 la Vez saindo da Sé Nova. Bom tempo, e sol forte desde 1° de Março; e hoje até sem vento. Nunca vi tão bom tempo seguido em Março. Assistiram Suas Excelências e o Juiz (sem beca) e houve tudo com muito sossego e o mesmo no Entrudo apesar de haver muitíssimos bobos na rua, e concorrer o Entrudo com a festa do Pachom Grande dos chinas, auto no Patane35 etc.

Dia 10

S. Exa. O Governador

Hoje veio-me pagar a visita o Governador, e o Secretário Bordalo.36 Recebi-o com toda a decência, bem como meu júnior,37 e meu filho Chico38 que, tinha vindo de Hong Kong visitar-me.

D. 15

Morre Vicente Caetano

Hoje enterrou-se o velho Vicente Caetano da Rocha Sénior39 que morreu ontem de 85 anos de idade. Morre Quitéria Maria Dias e deixa no testamento por universal herdeiro ao Padre Francisco Caetano de Sta. Ana e Costa, natural de Goa.

Abril morre Joaquim Vieira

Joaquim Vieira Ribeiro,40 mais velho que Vicente Caetano, ambos amigos e companheiros na Alfândega, morre pobre e cego, tendo servido à Nação mais de 60 anos.

CONCLUSÃO

Da leitura destas duas páginas, onde quase todos os factos são resumidos, podemos tirar várias conclusões acerca do quotidiano de Macau no século passado. Entre estas ressalta a suspeita de corrupção da parte dos encarregados da escrituração dos direitos pagos à Fazenda pelas somas do sal. De todo o sempre houve em Macau suspeitas deste tipo, mais ou menos infundadas, mais ou menos possíveis de comprovar. Uma das fontes de riqueza de alguns dos portugueses que têm demandado Macau e também de alguns filhos da terra tem sido esta forma mais ou menos velada de negociar e de peitar, de lucro fácil e quase sempre vantajoso para ambas as partes.

Outro aspecto que ressalta da leitura destas duas páginas manuscritas é a impopularidade dos impostos e do serviço obrigatório no Batalhão Provisório, mal aceites pelos naturais da terra.

Além disto evidencia-se o fundo religioso do pensamento do macaense do século passado, católico e praticante convicto, bem como a sua caridade natural, quase ternura pelo próximo desvalido, pelo amigo que parte, ou pelo conterrâneo que desaparece. Nota-se, também, o leve desprimor em que eram tidos, pelos macaenses, os naturais de Goa, mesmo no caso de um destes ser eclesiástico.

Finalmente, pode notar-se, ainda, a leve ponta de orgulho com que é descrita a visita do Governador e a maneira polida como este foi recebido em casa de um macaense de elevada posição social e de educação primorosa.

Francisco António Pereira da Silveira era um homem bom, inteligente e probo, católico, fiel aos seus superiores hierárquicos e cumpridor da Ordem instituída. Se bem que, pronto a criticar as autoridades locais e o próprio Reino, era um bom português, que se orgulhava de o ser, apesar dos ressentimentos bem expressos na confidencialidade do seu diário.

Compreendia os chineses; admirava os letrados honestos e cultos e desprezava aqueles que, empregados em mistérios vis eram falsos e gatunos, como, várias vezes, o afirmou. As suas boas relações com os chineses foram muitas vezes de grande préstimo às autoridades portuguesas. Sem ser racista sobrestimava os naturais de Macau seus conterrâneos. O seu diário é um desfilar de nomes e de acontecimentos, a que dá o colorido de abreviaturas, o diário, é, por vezes, um desafio à nossa capacidade de interpretação. Mas o que é inegável é que através destas folhas amarelecidas pelo tempo e queimadas pelo quimismo da tinta que o bico da pena de pato afiado ajudou a rasgar aqui ou além, é possível tirar algumas conclusões acerca da personalidade e da identidade cultural dos macaenses, alguns deles, neste momento, em busca dessa mesma identidade em vias de perder-se, como resposta ao desafio de 99.

NOTAS

1 Na transcrição actualizámos a ortografia e desenvolvemos as abreviaturas.

2 Missa cantada do aniversário da Dedicação da nova Sé à Padroeira (Nossa Senhora da Natividade). A Sé foi reconstruída de 1845 a 1850e sagrada a 19 de Fevereiro desse ano pelo Bispo D. Jerónimo José da Mata.

3 O Juiz de Direito de Macau era, nesta altura, João Maria de Sequeira Pinto.

4 Bordalo era o segundo tenente da armada Francisco Maria Bordalo, secretário particular do governador Francisco António Gonsalves Cardozo e que o acompanhou na sua viagem até Macau. Este oficial era irmão do segundo tenente Luis Bordalo, falecido quando da explosão da Fragata D. Maria I na ilha da Taipa em 29-X-1850.

5 Somma ou soma (em malaio som) é uma "antiga embarcação de comércio e de guerra na China e na Malásia, semelhante ao junco" (Dalgado, vol. II, p. 313, cit. pelo Professor J. Wicki, S. J. - "Lista de moedas pesos e embarçações do Oriente, composta por Nicolau Pereira S. J. por 1582", publicado in "Stvdia", Revista semestral, no. 33, Dezembro de 1971, Lisboa, pp. 137 a 148). Esta palavra já usada no séc. XVI, era corrente em Macau ainda no séc. XIX para designar barcos semelhantes a juncos que transportavam cargas para comércio, segundo Marques Pereira.

Cerca de 1630 "as somas ou juncos de grandes travessias marítimas podiam atingir cerca de 600 toneladas cada (in The Great Ship from Amacon - C. R. Boxer, Lisboa, C. E. H. U., 1959, p. 4, chamada (8) e p. 117 citando a Relação de Princípio que teve a cidade de Macau e como se sustenta até ao presente. Manuscrito datado de 1629 e publicado por Jordão de Freitas (Archivo Historico Portuguez, vol. VIII). Segundo João Feliciano Marques Pereira (Ta-Ssi-Yang-Kuo, Série 1a. · volume 1o., Lisboa MDCCCXCIX, p. 39) soma é "barco ou junco chinez próprio para navegações mais distantes, a que os chins se aventuraram, apesar da sua predilecção pela navegação costeira". Segundo o mesmo autor (ob. cit. p. 700) usava-se, também, no séc. XIX, em Macau, a palavra sominha para somas de menores dimensões.

6 Dachém o mesmo que dachim - pequena balança usada em Macau pelos ourives, semelhante à balança romana. A palavra que se admite ser originária do chinês cheng ( 秤) deve ter entrado em Macau via malaia.

Daching - ch tá-ching, segundo Graciete N. Batalha - Glossário do Dialecto Macaense, Ed. do I. C. M., 1988, pp. 423/24.

7 Cate ou cati - medida de massa chinesa (kan - 斤-)equivalente a cerca de 600 g. Um pico (ou pikul) equivale a 100 cates.

Peter Mundy dá notícia de dois tipos diferentes de cates usados no séc. XVII em Macau (1637): um, de 16 taéis ou 20 _ onças, para transacção de mercadorias finas com excepção da seda, e outro equivalente a 18 taéis para fazendas grossas e seda (cit. por C. R. Boxer The Great Ship from Amacon, Lisboa, 1959, p. 340). Segundo João Feliciano Marques Pereira (o. cit. p. 310) o pico equivalia a 60,400 kg.

8 Sapecas são moedas de liga de cobre, estanho e/ou chumbo de pequeno valor, perfuradas a meio e usadas em lingotes (ou colunas) por empilhamento, ligadas por um cordel) geralmente em número de 100 ou 1000. Mil sapecas (ou chin) equivalem a um tael de prata.

A palavra é malaia, composta de sa (um) e paku (enfiada de cem moedas, pichis') - Dalgado, II volume, p. 291.

Gaspar Correia em Lendas da Índia diz que, no Industão, já em 1510 se usava o termo sepaygua para as pequenas moedas de cobre perfuradas.

9 Tancar ou tancá - nome local de pequeno barco chinês destinado a estabelecer a ligação entre terra e os grandes barcos de pesca ou de transporte que fundeavam ao largo devido ao assoreamento do porto.

10 Candorim - medida de massa equivalente à centésima parte do tael (ap. 37,5 g.) isto é, equivalente à 16a. Parte do cate. O tael de prata era uma medida de massa e moeda chinesa usada nas transacções comerciais. Era conhecida, também, por onça de prata ou liang (兩 ). Valiam 1000 caixas (ou sapecas), 100 candorins ou 10mazes. António Nunes (1554) estabelece a equivalência do tael a 7 1/2 tanga larins de prata e Frei Gaspar da Cruz (1556) a 6 tangas. O Padre João Rodrigues, S. J. (1604) considera o tael correspondente ao cruzado português, isto é 400reis (CF. R. Boxer - The Great Ship from Amacon, Lisboa, 1959, p. 338). Segundo João Feliciano Marques Pereira (ob. cit. p. 39) "o tael não tem existência real. Representa um certo peso de prata pura, que varia conforme as localidades".

11 Maz - medida de massa equivalente à décima parte do tael, por sua vez equivalente a 10 condorins. O maz era, dantes, um pequeno pedaço de prata que se usava como moeda no Oriente. Daí o uso do dachim para avaliar os pagamentos. Havia também mazes em ouro equivalentes à 16a. Parte do tael. Na Índia insular e no Extremo Oriente. "Do malaio-jav mas, sanscr, mâsa, peso de 1,166 g."(Dalgado II vol., p. 45). No século passado ainda corria em Macau, como moeda a prata pura fragmentada, conhecida por prata saissi ou saici.

12 Olheiro — o mesmo que fiscal, observador oficial.

13 Nesta altura, em Macau o governo principiava a ocupar-se com a arborização das colinas e dos arruamentos da Cidade, processo de faseamento lento, devido a numerosas dificuldades económicas e ambientais, que veio a concretizar-se, com maior sucesso, apenas a partir de 1883 com os trabalhos do Engenheiro agrónomo Tancredo Caldeira do Casal Ribeiro ("Bol. Of. da Prov. de Macau e Timor" nos. 24 e 25 de 1885). Foi, depois, sob a égide do Governador Francisco António Gonçalves Cardoso (Fev-Nov. de 1851) que teve início a campanha de arborização de Macau. Conf. B. Of. do Governo de Macau e Timor de 1851).

14 Inácio de Loyola da Cruz era alferes da 3a. Companhia do Batalhão Provisório, tendo sido promovido a tenente em 17 de Dezembro de 1850. Depois da sua morte foi substituído no posto por Faustino Joaquim Ferreira.

15 Batalhão Provisório - Batalhão criado, em Macau, pelo Governador João Maria Ferreira de Amaral em 1846 constituído por naturais da terra, na sequência da "Revolta dos faitiões" em 8 de Outubro do mesmo ano e aprovado por Decreto Régio de 10 de Dezembro de 1847 (Pe. Manuel Teixeira - Os Militares em Macau, Macau 1975, p. 405). Uma das preocupações do dito governador foi, além de auxiliar a Força Militar de Primeira Linha na defesa das vidas e fazendas dos habitantes de Macau, ocupar todos os homens válidos da terra, vadios ou sem profissão, que muitos havia durante o seu governo, vivendo de mais ou menos pequenos rendimentos ou de expedientes mais ou menos honestos. Esta medida causou grande descontentamento entre as melhores famílias da terra que viram, de um dia para o outro, os seus filhos transformados em soldados de pré, o que era considerado uma condição vil e portanto humilhante. Nem todos poderiam ser oficiais, como é óbvio e os que não foram escolhidos para desempenhar tais funções, sentiram-se profundamente feridos no seu orgulho, uma vez que ser oficial do Exército ou da Armada, comandante de barcos, comerciante abastado ou possuir uma profissão liberal eram as únicas situações sociais tidas por dignificantes. O macaense foi sempre cioso dos seus pergaminhos herdados dos antepassados europeus, embora por vezes fossem estes, apenas aventureiros ou comerciantes enriquecidos, que substituíram, uma nova nobreza urbana. Vários são os viajantes que acusam o macaense de preferir esmolar do que dedicar-se a profissões vis, procurando manter a todo o custo as aparências perante os chineses, aos quais não desejariam humilhar-se mostrando-se empobrecidos. Esta mentalidade, que muitos críticos apressados censuram, vinha já da Alta Idade Média na Europa e é provável que os portugueses a tenham levado para Macau.

16 Moça de casa - escrava, rapariga comprada (oferecida ou herdada), que era integrada na Família como serviçal. Em 1856 foi concedida a liberdade a todos os escravos que desembarcassem no Continente, Ilhas Adjacentes, Índia e Macau. Finalmente, em 23 de Fevereiro 1869, foi decretada a abolição da escravatura em todos os domínios portugueses (Dicionário de História de Portugal, dir. por Joel Serrão, vol. II, p. 424). Esta proibição suscitou queixas da parte dos moradores de Macau, o que retardou a abolição da escravatura de facto no território.

17 Cafre - o mesmo que negro; de raça negra. Cafre era o nome genérico dado em Macau, aos africanos, embora a Cafraria se situasse na Costa Oriental de África. Aliás os negros, nome dado aos escravos da Costa Ocidental, não suportavam bem a estação fria de Macau, pelo que os cafres ou negros da Costa Oriental passaram a ser os preferidos.

Com o tempo, o termo generalizou-se a qualquer indivíduo de qualquer etnia africana.

18 Mulher de António Lourenço Barreto, cidadão condecorado em 1825 com o hábito de Na. Sa. Da Conceição de Vila Viçosa por serviços prestados durante o agitado período que Macau viveu nas primeiras décadas do Séc. XIX.

19 Major Rosa (do Batalhão Provisório) - Manuel Bernardo de Araújo Rosa casado com Ana Joaquina, irmã do autor do diário (nascida em Macau em 1810).

20 A Corveta "Íris" levou para Macau o Governador, Cap. De mar e guerra Francisco António Gonsalves Cardoso, onde chegou em 24/1/51.

"Em 14 de Fevereiro de 1851 esta Corveta fez-se de vela para Goa, onde vai fabricar (reparar); conduz vários passageiros e 25 praças de frete enfermos ou inválidos comandados por um oficial que vai encarregado de regressar para Macau com 150 a 200 praças escolhidas" ("Bol. do Gov. da Prov. de Macau e Timor", no. 13, vol. VI de 15/2/51).

21 O Comandante Andrade supomos ser quem comandava a Charrua São João Magnânimo, a primeira que entrou no Porto de Macau, em 19 de Julho de 1840.

22 J. - José Vicente Jorge um dos vereadores do Leal Senado, eleito em 1838 (26/IX/1838) nas primeiras eleições democráticas depois de aprovada a nova forma de eleições camarárias em Macau, quando por Ofício do Governador da Índia sobre instruções emanadas do Reino foi posto termo às divergências de autoridade que reinavam em Macau desde 1834.

23 Referência ao Governador João Maria Ferreira do Amaral autor de medidas muito impopulares para os macaenses, essencialmente conservadores e para o Leal Senado, habituado a total autonomia política.

24 O Batalhão Provisório foi aquartelado no Convento de São Domingos em 1851.

25 Refere-se ao surto migratório de muito macaenses nesta altura, muito deles, fugindo, assim, ao alistamento como soldados no "detestado" Batalhão Provisório criado pelo Governador J. M. Ferreira do Amaral.

26 Domingo das 40 horas - Domingo de Entrudo ou de Carnaval.

A população macaense, muito devota, seguiu as recomendações da Igreja e entregava-se aos Ofícios Divinos, contrariamente aos reinóis, que mascarados, percorriam as ruas fazendo pantomimas, de onde o nome local de bobos.

27 Panchão - Grande - o mesmo que grande panchonada isto é muitos panchões (estalos da Índia) rebentando estrondosamente, o que é característico dos 3 dias em que se comemora o Ano Novo Chinês (Ano Novo Lunar ou Festa da Primavera). É de notar que a festividade pagã do Entrudo por vários autores relacionado, no Ocidente, com as Saturnais romanas, coincide, muitas vezes, com a Festa da Primavera dos chineses, (realizando-se, pelo menos, em datas muito próximas). É opinião nossa, por isso mesmo, que a origem do Entrudo ou Carnaval do Ocidente se deve procurar mais longe, nos velhos ritos do Oriente.

28 Brincos - nome antigo dado, em Macau, ainda no séc. XX, a "brincadeiras ou representações jocosas".

29 Indivíduo mascarado pelo Carnaval - Comédia de bobo — representações teatrais humorísticas, criadas e representadas por amadores no Carnaval (Graciete N. Batalha, Glossário luso-macaense, Ed. do I. C. M. de 1988, p. 78).

Bobo, usa-se, ainda, no sentido geral de mascarado. No século passado, ao que parece, eram os reinóis os bobos que percorriam as ruas de Macau no Carnaval praticando bobices (no sentido de tolices, desacatos, facécias). Os macaenses muito devotos e praticantes convictos seguiam o ritual litúrgico das "40 horas", como se disse na chamada 27.

30 No Boletim do Governo da Província de Macau e Timor, Nova Série, vol. VI, Macau, Sábado, 8 de Março de 1851, no. 16, p. 37, foi publicada a seguinte Portaria: "O Governador da Província de Macau Timor e Solor determina o seguinte:

Tomando em consideração o que me representa o Juiz de Direito desta Comarca, com respeito ao mau estado da Cadeia da Cidade de que resulta sofreram os presos mais do que a pena imposta pela Ley: Hei por conveniente nomear uma Comissão de que será Presidente o Delegado do Procurador da Coroa e Fazenda e Vogaes Lourenço Marques, José Thomaz de Aquino, Carlos José Caldeira e Francisco António Pereira da Silveira a qual proporá imediatamente as medidas que julgar conveniente adoptar para o melhoramento da Cadeia da Cidade, e aliviar quanto possível a sorte dos presos esperando que os nomeados darão mais uma prova do seu zello pelo bem público no desempenho da comissão que lhes é encarregada: Quartel do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, 28 de Fevereiro, de 1851. Francisco Antonio Gonsalvez Cardozo (Governador).

31 Navio de mala inglesa, que estabelecia, nesta data, ligações periódicas entre a Europa e o Oriente, levando as malas do Correio.

32 Cf. nota 14.

33 Miguel Maria Maher (?) escrivão da "Orfanologia" (Cofre dos Órfãos). Miguel Maria Maher nasceu em Macau em 20-9-1805, casou com Antónia Desidéria Cortela e faleceu em 27-12-1886.

34 Uma das mais importantes, concorridas e vistosas Procissões de Macau ainda nos nossos dias. ÀConfraria dos Passos (O Senhor Bom Jesus dos Passos), pertenciam, como noutros pontos de Portugal, os homens das famílias gradas da terra, o que dava à cerimónia grande luzimento. Em Macau, realizava-se nesta altura, no Io. Domingo da Quaresma.

35 No Patane (onde se realizava, num amplo largo, fora do muro o bazar de frescos) e noutros terrenos amplos era costume, por ocasião das grandes festividades e mediante quotização, representar-se o auto (auto - china) ou seja representação teatral conhecida por ópera chinesa ou ópera cantonense - no caso da Província de Cantão, onde se situa Macau.

36 Cf. Nota 4.

37 Refere-se ao irmão mais novo, Gonçalo Pereira da Silveira, solteiro, nascido em 1800, que fazia parte da Junta de Justiça de Macau e vivia, também, na casa paterna, na Praia Grande.

38 Francisco Cândido Pereira da Silveira, o filho mais velho, nascido em 31/XII/1829 e que se encontrava a trabalhar em Hong Kong, depois de um diferendo com o Governador João M. Ferreira do Amaral, com quem colaborou, durante algum tempo.

39 Vicente Caetano da Rocha Senior, pai de Vicente Caetano da Rocha, (casado com Rita Maria da Conceição da Rocha) e que, com Cândido António Osório dirigiu os trabalhos de colocação do relógio da Nova Sé Catedral, relógio importado de Inglaterra e que comemora a elevação ao trono do Rei D. Pedro V.

40 João Vieira Ribeiro - era escrivão de "abertura e pezo" da Alfândega. Nasceu em Macau em 1758.

Doutorada pela F. C. S. H. da Universidade Nova de Lisboa; professora do Instituto de Ciências Sociais e Políticas. Membro de várias instituições internacionais, v. g. a "International Association of Anthropology".

desde a p. 255
até a p.