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EDITORIAL

O Director da Revista de Cultura Luís Sá Cunha

Éassim: sem o seu Património arquitectónico, Macau não existia. Sem o traçado singular do seu desenho urbanístico, sem os seus edifícios patrimoniais -- Macau seria igual a inúmeras, outras, cidades vizinhas, parecidas como duas gotas de água destilada.

O Património de Macau é um dos seus mais marcantes factores de diferenciação e de identidade, um espólio urbano inigualável, um valor inapreciável, material e espiritualmente.

Por isto, e no virar do Milénio e do fim do ciclo português, RC dedicará inteiramente as duas edições seguintes ao Património urbano e arquitectónico de Macau.

Temos, do Património, a consideração dinâmica, qualitativa e religante que temos da Cultura por excelência. Não caímos na tentação histórico-cadaverista que analisa o património em projecção vertical: os vários ciclos do passado cavalgando-se uns aos outros, em sobreposição devorista.

Temos, do Património, a visão ou projecção horizontal, a única que reflecte o movimento do espírito nos tempos, renovadora, flexível, continuadora.

Já não há outro entendimento e outro caminho, se não o de assumir as sedimentações históricas como cadeias de continuidade. E atribuir ao Património essa tarefa religiosa, operadora de articulações a um futuro coerente.

É esta, hoje, parece-nos, a regra de ouro, não só para as gerações de uma mesma entidade nacional, mas sobretudo, neste Século, para a comunidade das nações.

A proclamação do Património como valor universal é um degrau acima no caminho da fraternização da humanidade, agora já que nos obrigam ao convívio em "aldeia global".

Se é cada vez mais comum o nosso futuro, é-nos então também cada vez mais comum o nosso passado colectivo, de Humanidade vivente, povoadora e fruidora do Planeta.

Caminhou-se, nos últimos decénios, para uma descoberta do Outro, um apossessamento do Outro, que fez esbarrondar todos os etnocentrismos, caminho da universalização, da ecúmena fraternal dos homens.

O respeito e a cúria do Património são aquilo que mais encerra o sonho humano de eternidade. Passa por aqui a escatologia de fraternidade universal.

As grandes destruições de heranças patrimoniais estarão sempre na História associadas à crónica do ódio entre os homens.

Somos românticos: choramos a saudade de nunca vermos os jardins suspensos de Babilónia onde Nabucudonosor fazia de quadrúpede retouçando as alfombras verdes. E a Biblioteca de Alexandria, e o Palácio de Xerxes, e a corte Tang, o templo de Salomão....

Quanto saberíamos dessas gerações, se esse Património tivesse sobrevivido. Mas consideramos o que existe não apenas sobrevivências comoventes, mas realizações absolutas do espírito.

Não as teremos apenas como restos visíveis e esclarecedores de épocas passadas, mas como encarnações de momentos imortais do espírito, manifestações vivas, onde o mais longínquo passado se remata no mais longínquo futuro. A saudade, é do passado e do futuro, porque é do Infinito. O culto do Património é um dos modos de realizar a Saudade.

Por isso nos regozijamos com a obra de recuperação e revitalização patrimonial que em Macau foi feita, nos últimos dez anos.

Crentes de que, gerações inteligentes e sensíveis do futuro, gerações que virão com os seus louros e armas de ouro, olharão à sua volta os velhos muros e, sem livros, e sem mestres, verão o que já sabiam: Macau uma lição universal, símbolo antecipado de uma Humanidade onde todas as diferenças se harmonizam na mesma Unidade.

O Director da Revista de Cultura

Luís Sá Cunha

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