Noticiário

O TOPOS SAGRADO
ESBOÇO DE MITOGRAFIA MACAENSE

Luís Sá Cunha

Odrama do macaense, do filho da terra, mais sensivelmente denotado nos tempos mais recentes, resume-se fundamentalmente neste dilema: ser estrangeiro amanhã fora da sua terra, ser hoje estrangeiro na sua própria terra. E um drama de despatriamento, que tem a ver com uma anima que foi sendo campo de simbiose ou de disputa de duas entidades pátridas — a portuguesa e a chinesa. Mas que sobretudo radica, remotamente, na pregnância ao topos, no sentimento do lugar, da terra.

Confinadas a um isolamento longínquo e a uma instância aleatória, é natural que desde o "assentamento" (1557), e pelos séculos, as gerações de luso-asiáticos macaenses se tenham concentrado no afeiçoamento da terra à grei e polarizado no sentimento da Mátria. Mas, Macau, o lugar, a terra, foi sempre o que esteve sombreado de ameaça e periclitância. Não se pode, hoje, compreender a alma macaense sem ir iluminar ao seu subconsciente colectivo a dimensão mítica nela inclusa que, desde os primórdios fundacionais, se refere à tentativa e confirmação de sagração do sítio, de constituição do topos. A semelhança do que sucedeu, para trás na História, nos omnipresentes rituais de fundação de recintos sagrados, templos, palácios, cidades, e impérios.

Apresentam-se claramente na tradição macaense os contornos de uma mitografia dispersa, onde se detectam traços dos mitos fundacionais ou de hierofanias antigas de diversas origens, tradições e proveniências, e sob a forma de epifanias adaptadas, reminiscências ou corruptelas do epistema original.

Sem a compreensão disto não se pode lançar um arco de conexão para as mais recentes manifestações do "espírito do lugar" macaense, perceptíveis nas expressões dos três mais autênticos autores macaenses, e no pano de fundo da "angústia da perda" ou da "angústia do fim" disseminada na produção literária dos últimos dez anos: as ambiências e a comédia humana dos romances de Henrique de Senna Fernandes, o ingenuísmo lírico do poeta Adé dos Santos Ferreira, e o visionarismo das projecções mítico-urbanas do desenhador-arquitecto Carlos Marreiros.

UM ESTATUTO PRECÁRIO

Também, e à semelhança de tantas outras, a urbe de Macau aparece assistida nos tempos primordiais de desígnios especiais ou transcendentes, de condições ou intervenções sobrenaturais. Nela se reproduzem os conceitos tradicionais de que a acidentalidade do visível pressupõe a essencialidade do invisível, de que a urbe só é real como projecção de um centro mítico, de que a cidade só é fúturível se tiver os seus fundamentos em entidades numénicas.

Para o "Porto de Macau na China", há especiais factores que confluem à necessidade de sagrações do lugar, de projectar o céu na terra, de convocar forças benéficas e repudiar influências nefastas. De fundar a continuidade na mais remota memória.

Há, em primeiro lugar a consciência do estatuto precário do estabelecimento, que é constante ao longo dos séculos. A terra não é portuguesa. A cartografia refere Macau "nas partes da China". O senhor da terra é o Imperador da China. "Não estamos aqui em nossa terra, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da Índia onde somos senhores (...)senão em terra do Rei da China, onde não temos um palmo de chão (...)" Leal Senado de 1637). O chão tem que ser garantido pelo pagamento de um foro, sempre sujeito à negociação e à volubilidade do arrendatário.

Há, depois, como consequência, que o estatuto político-diplomático caracterizador da História de Macau é o de uma soberania partilhada. É o duelo desigual de um permanente braço-de-ferro, cuja distensão só surge no governo de Ferreira do Amaral. Mas a comprovação do estatuto precário, força de intervenção de tão complexos e imprevisíveis factores aleatórios, reafirma-se posteriormente àquela pax macaense, quando neste século a guerra do Pacífico, a ocupação de Goa e as sequelas da Revolução Cultural vieram provocar o êxodo de oitenta por cento das principais famílias tradicionais macaenses.

Em quatro séculos, talvez só durante os cem anos que decorreram de 1840 a 1940 a comunidade luso-asiática ou luso-descendente de Macau tenha fruído a vivência real de um ideal que polarizou gerações: a realização do topos greco-latino do locus amenus.

Paraztrás, houve ainda, e pendularmente, a ameaçadora expectativa das depressões económico-comerciais, que condenaram as gentes de Macau à mais mísera míngua, e as oscilações políticas de Pequim e dos mandarins de Cantão.

Mas, antes de tudo isto, do estabelecimento, havia o trauma de uma experiência de nomadismo compelido e de conflitos, os portugueses obrigados à mudança sucessiva de pontos de comércio, Liampó (1530), Macau (1535), Chinchéu (1539), Lampacau (1542), Sanchuão (1550), e novamente em Macau em 1553/4.

Pode imaginar-se o que seria a ânsia de fixação e estabilidade desses esparsos núcleos de privados comerciantes, quando se reuniram para o estabelecimento em Macau, a partir de 1554, depois do assentamento com o "Ai Tau" Wang Pé, feito pelo inimigo/rival de Camões, capitão-mor da viagem Goa-Japão, Leonel de Sousa.

E o que haviam de evocar para sagrar o novo espaço dado.

^^UMA ILHA No discurso que seguimos, não nos interessa a perspectiva historicista mas a senda mitográfica. E, para não nos alargarmos, vamos apenas con-centrar-nos em três elementos de uma simbólica do espaço, que os primórdios de Macau vão herdar dos mais antigos arcanos da topologia mítica. Assiste à origem do topos macaense a regra de que o que sacraliza um lugar é o seu isolamento (de isola, ilha). "Ce qui sacralise avant tout un lieu c'est sa fermeture", Gilbert Durand. A tentação do isolamento é a tentação da pura razão. Delinear um círculo é concluir o receptáculo próprio à manifestação divina. Na expressão de Heidegger, a finalidade primordial da arquitectura é tomar um mundo visível. O Homem tem o espaço à volta-- e o apelo do centro é irreversível. O centro pressupõe a infinidade da equidistância, a circun-ferência. Assim, está substante a todo o paradigma do topos sacralizado, do pairidaeza, paradesha, paradisus ou paraíso, a geometria sagrada do quadrado inscrito no círculo, com o seu centro. Como na tradição bíblica e islâmica, sempre o Paraíso há-de ser circular e isolado da periferia profana -- uma ilha. Assim, no desígnio de cidades, reinos, recintos sagrados ou templos, em que sempre se buscou projectar o paradigma cosmogónico, o ritual inicial é o risco de um círculo (mundus) ou a eleição ou definição de um lugar estabelecido por uma linha que delimita o que está dentro por oposição ao que está fora, fronteira de tensão irredutível entre sagrado e profano, reino do logos e reino do caos, de luz e trevas exteriores. Toda a ilha é redonda, e idealmente se presta ao símbolo, à viagem da imagem para o conceito, por oposição contranstante ao elemento caótico que a circunda, da indiferenciação e do que não tem forma, das "águas inferiores" que não foram ainda penetradas do superno espírito movente. Na ilha se dá a representação ou actualização do arquétipo, e as urbes, como outros microcosmos, são a projecção de geometrias celestes e expandem-se na declinação de círculos infinitos, sempre pressupondo a referência ao centro original. Depois de tanta deambulação por sedes efémeras, por certo que a escolha de Macau para o lugar do "assentamento", com expectativas de continuidade, obedeceu a razões de carácter e condições práticas. Oferecer o recorte adequado ao abrigo portuário, o acesso a abastecimentos, e a aguadas -- foram com certeza as primeiras vantagens pragmáticas vistas na terra. Fisicamente, a geografia não é a de uma ilha, mas de uma península, cujo pequeno istmo lhe dá configuração de minúsculo pseudópode estirado à entrada do estuário do Rio das Pérolas. Mas figura na cartografia primeva, vulgarmente, como "ilha de Macau" ou "quase-ilha" (presqu 'île) de Macau. A nosso ver, com a clara intenção política de inculcar tranquilidade ao centro político do Império chinês; substante à cedência dos mandarins de Cantão residia o receio de intrusão dos fulangi em terra do continente, pelo que a autorização de fixação num lugar de comércio era dado para as ilhas do estuário. Pesados os factores, a península oferecia mais necessárias condições e era quase uma ilha...
"Amacao in Chyna", gravura alemã, c. de 1626 (De Bry?). Colecção de Carlos Estorninho. Assim nos é apresentada e identificada esta gravura de Macau, em "Um olhar sobre Macau", catálogo da Exposição realizada pelo Instituto de Investigação Científica Tropical no Museu Nacional de Etnologia, em 1991. Sem dispormos de mais largos e rigorosos-elementos, neste momento, não arriscamos análise mais funda e definitiva deste documento tão curioso e interessante. De seguro, esta carta de Macau, de um descritivismo do quotidiano ao estilo de Brügel, baseia-se evidentemente numa outra anterior, atribuída sem contestação a Theodore de Bry (1527-1598), executada presumivelmente em 1598, ano da morte do seu autor, para o livro "Petits Voyages", publicado depois da sua morte pela família em Frankfurt-am-Main (edição latina,1607). Expurgada e abreviada nos pormenores narrativos de fundo, a esta segunda (?) gravura foi sobreposta a legenda latina "Non ex quovis ligno fit Mercurius" e, em baixo à esquerda, o desenho do grupo do domador a compelir um burro a passar por um arco. Para arriscarmos mais cabal interpretação, necessitaríamos saber se esta gravura se compagina com outras lâminas, de que obra impressa ou colecção, em que ordem, com que legendas, etc... Limitamo-nos, assim, e por agora, a antecipar alguns dados de leitura. A sentença em latim, desbordou do estrito universo dos cultivadores da Grande Arte, a Alquimia, para uso idiomático genérico, com sentido análogo: "Não foi desta matéria vil que se extraíu o Mercúrio". É conhecido que o Mercúrio, com o Enxofre e o Sal, eram para a Arte Régia as três componentes da matéria prima, sendo um dos fundamentos da Filosofia Hermética a afirmação da unidade da matéria. Aqueles elementos não designavam especificamente as respectivas substâncias químicas, mas referiam-se a certas qualidades da matéria. O Enxôfre designava as qualidades activas (o princípio activo, masculino, a forma), o Mercúrio as propriedades passivas (a matéria, o princípio passivo, feminino) e o Sal era o terceiro elemento de união, como o espírito vital que une a alma ao corpo, o movimento graças ao qual o elemento activo imprime no passivo todas as espécies de formas. Com algumas excepções, o burro sempre surgiu em quase todas as tradições como símbolo da obscuridade, das tendências inferiores ou satânicas. Os alquimistas, viam no burro o demónio de três cabeças (representando o Sal, o Mercúrio e o Enxôfre), ou seja, os três princípios materiais da Natureza, a corporização do ser obstinado. Na gravura alegórica, domador da matéria, o mestre iniciado (com a vara e as penas de iluminado a ornarem-lhe a fronte), fazendo o burro passar o círculo como em exibição circense, opera a transmutação simbólica da matéria, dando início às operações da Grande Obra. Com laivos de utopia na visão da distante Macau, única implantação católica no corpo da grande China, ver-se-ia o Porto do Nome de Deus como o instrumento, o Sal, de conversão do grande império gentio ao Cristianismo? Talvez seja uma das interpretações possíveis do discurso simbólico desta carta. Curioso é que Thedore de Bry era um conhecido editor quinhentista, e rosicruciano, para quem a cruz, no seu superior simbolismo dos quatro braços e a roda ou rosa no centro, era projecção pura do anterior simbolismo do paraíso, jardim rectangular dividido em quatro e com uma fonte ou árvore no centro. Para ele, a conquista dos "pequenos mistérios", ou chegada à posse do "paraíso", era já uma "antevisão do Céu".

É, no mínimo, passível de controvérsia a pura função e eficácia militar das muralhas antepostas ao istmo. O "estabelecimento" era comprovadamente "consentido", e algumas vezes fora Macau ameaçada com "cercos" mais mortíferos: o corte de água e de abastecimentos.

Independentemente da história das retomadas pressões e ordens chinesas para a demolição de panos dessa muralha--o que foi sendo feito sem consequências para o perímetro e o corpo urbano --interessa-nos assinalar um tempo de coincidência em que as cercas significavam o "corpo continente" da civis cristã. Reter a sua função de fronteira mágico--sacral. Citamos Mircea Eliade, quando se refere a outros rituais de sacralização do espaço: "O mesmo se passa com as muralhas da cidade: antes de serem defesa militar, são defesa mágica, visto que reservam, no meio de um espaço caótico, povoado de demónios e de larvas, um espaço organizado, "cosmicizado", quer dizer, provido de um "centro". "Assim se explica que em período crítico -- cerco, epidemia -- toda a população se reúna em procissão em volta dos muros da cidade, reforçando deste modo a sua qualidade de limites, de protecção mágico-religiosa."

Aqui nestas situações críticas, se desnuda a profundidade simbólica: como na simbologia do templo cristão, e também a muralha reserva um microcosmos, é a comunidade viva das almas, ordenada a um centro, que corporiza o círculo da muralha.

Sempre sujeita a diversos delineamentos, é esta fronteira ou muralha virtual, sempre presente em Macau, que nos interessa reter.

No século XVII, a muralha tinha duas portas principais, a de Santo António e a do Campo. Por elas se faziam os necessários contactos com o "outro lado", o espaço exclusus dos pequenos núcleos fuquinenses, dos trabalhadores das hortas, dos intermediários de abastecimentos, dos prestadores de serviços.

Panorâmica de Macau Xilogravura do "Guandong Tong Zhi", In Crónica da Província de Guandong, de Ruan Yuan, Defesa Marítima II,1822.

Na grande esplanada campal, para lá da porta do Campo, (hoje o Tap Seac)," fora de portas", foram proscritos os leprosos. Erigiu-se a Igreja de S. Lázaro, para assistência espiritual dos gafos e de alguns conversos chinas. Podemos imaginar que cenário de "pátio dos milagres" se não desenrolaria por ali, nos baldios onde o burgo civilizado ostracizava as suas excrescências.

Sempre crescente, quase em progressão geométrica em relação à comunidade luso-asiática, a comunidade chinesa cedo se estabelece intra-muros, multiplicando-se e fervilhando num activismo que lhe é próprio. As portas e fronteiras deslocam-se, agora mais virtuais do que físicas, mais rígidas talvez, agora. Denunciam-se, hoje ainda, ao olhar atento de quem permaneça algum tempo em Macau.

O grande recriador de ambientes do passado macaense, o escritor Henrique Senna Fernandes, desvela-nos nos seus romances a rigidez implacável da "muralha" que extremava a "cidade cristã" do bazar chinês, nos começos deste século.

Em "Amor e Dedinhos de Pé", Francisco Frontaria, por excessivo atentado aos códigos sociais da comunidadee da "cidade cristã" é "condenado" ao mais degradante degredo nos bairros da cidade china. O "Bazar", é o caos infernal. Em "A Trança Feiticeira", Adozindo, também por quebra dos códigos de identidade da sociedade "cristã", tem que penar o purgatório da condição exilada. Ambos representantes da fina-flor das novas gerações macaenses; ambos, acabam por conquistar a reintegração. Mas tiveram que trespassar as fronteiras de ferro.

Recentemente, conhecemos a indignação velada da comunidade portuguesa ante a retirada da estátua do Governador Ferreira do Amarai. Passou, porém, praticamente despercebida, a clandestinização das Portas do Cerco, entaipadas entre os corredores das novas instalações da fronteira.

A sensibilidade "política", avantajou-se à simbólica da consagração do topos macaense. Mas é com a desvitalização simbólica das Portas do Cerco que se inscreve o epitáfio derradeiro na qualidade sacral do topos conclusus macaense. Como quase sempre, a queda do símbolo foi antecedida do progresso da realidade adversa. Desde há anos que essa curta tira do istmo, passadeira de contiguidade ao continente, se transformou num dos pontos de maior concentração urbana, flagrante no formigueiro humano que a cruza permanentemente.

ULISSES, "FUNDADOR"DE MACAU

Macau é das raras cidades de fundação lusíada a que foi outorgado o "Nome de Deus".

Entre as inúmeras designações com que o burgo é referido na cartografia e historiografia dos inícios, deve reter-se como especialmente significativo o sentido axiológico contido nos designativos de "Porta da China" e "Porto do Nome de Deus" (1564).

Sendo Vice-Rei da Índia D. Duarte Menezes, Macau é reconfirmada, em 1586, como "Cidade do Nome de Deus na China".É a confiança já no "estabelecimento" cristão, que logo em 1557 tinha sido destinado a sede da expansão religiosa, por Bula de Paulo IV (Pro Excellenti praeminentia).

Crismava-se Macau como sede preciosa de irradiação missionária na estratégia do cristianização do imenso Império do Meio e do Japão.

Sonho visionário de Francisco Xavier, que parte de Goa para a China, em 1552, onde morre em Sanchuão. Estratégia já intuída pelo jesuíta Ruggieri, largamente planeada pelo Visitador Alexandre Valignano e de início protagonizada por Mateus Ricci.

Macau, não é "Cidade de Deus", mas do "Nome de Deus", diferença que não nos tolhe a tentação de captar o perfume utópico que pode ressumar do paralelismo com o eschaton de Santo Agostinho.

Se as graças daí descendentes para o burgo eram, sem dúvida, profundamente sentidas na expectação da comunidade cristã, o que é facto é que outra confirmação, de indetectável origem (como é regra), surge dos tempos nebulosos a filiar a sagração do lugar numa remotíssima tradição hierofânica. Tradição que busca religar algumas reactualizações "históricas" a um tempo e um espaço onde era mais vivo e presente o Espírito Criador ou Divino.

Referimo-nos à lenda de que a cidade de Macau foi fundada em volumetria física de sete colinas.

Se no testemunho tradicional da comunidade não há dúvidas sobre a exactidão numérica, o que nos interessa (e mesmo que assim não fosse), é concentrarmo-nos na simbologia numénica, no numen locis.

À semelhança de Lisboa, Rio de Janeiro, Luanda, Nagasáqui, também Macau teria sido erigida num cenário de sete colinas. A tradição vem da fundação de Lisboa, pelo seu herói epónimo Ulisses, também à semelhança da mítica fundação de Roma.

É interessante citar de novo Mircea Eliade: "(...) o homem, por muito diferentes que sejam qualitativamente o espaço sagrado e o espaço profano, não pode viver senão num espaço sagrado deste género. E sempre que este não se lhe revele através de uma hierofania, ele constrói-o aplicando os cânones cosmológicos e geomânticos (...)". De facto, o lugar nunca é escolhido pelo homem; ele é, simplesmente, descoberto por ele, (...) o espaço sagrado revela-se-lhe sob uma outra forma".

Coincide a simbologia em ver na colina a primeira manifestação do que emerge do caos, das águas primordiais. É o primordial lugar de fundação. Ela é a primeira emergência de um novo ciclo, de "uma nova terra", e ''uns novos céus". É o topos único, onde irá tomar fundamento o novo "ovo do Mundo" -- concentração das potencialidades integrais do novo ciclo -- simbolizado, por exemplo, na Arca de Noé, que pousa, terminado o período caótico, sobre o Monte Ararat.

A colina determina o princípio de uma emergência, que é o da diferenciação. Concentrando a inteira sacralidade, ela tem que ser o eixo de ligação do Céu à nova Terra. Não nos alongamos sobre a etimologia de colina = outeiro/altarium, e do comum radical a colina/coluna. Interessa-nos dizer que coluna concentra o mesmo símbolo de colina, o de eixo que religa os diversos níveis ou mundos, o baixo ao alto, o humano ao divino.

Encimada de capitel, a coluna estiliza a árvore, e simboliza em certas tradições a Árvore da Vida.

A tradição simbólica das sete colinas ou colunas, temos que ir buscá-la aos remotíssimos tempos míticos da Idade da Prata, sucedânea da primordial Idade do Ouro, nos termos das manvantaras hindús ou do sonho que Daniel explica a Nabucudonosor.

Na era Atlântica ou Atlântida, dissemina-se por várias tradições a nostalgia de "paraíso perdido", "terra dos viventes", "onde está o Deus" que está "no fim da terra", e sempre a Ocidente. É a antiga Tule, ou Avalão ou Ilha de S. Brandão. Citamos Julius Évola: "É para um lugar ocidental que se dirige o próprio Enoch, "até ao fim da terra ", em que ele encontra montes simbólicos, árvores divinas guardadas pelo Arcanjo Miguel, árvores que dão vida e salvação aos eleitos mas que nenhum mortal tocará até ao juízo final" (Cit. livro de Enoch, XXIV,1-6; XXV,4-6). E anota o autor: "Como Enoch descobriu sete montes nesta terra, pode-se ver um equivalente do Aztlan nórdico-atlântico no Chicomoztoc, que quer dizer "as sete colunas".

Colhe-se em Avicena que os sete Arcanjos, príncipes dos Sete Céus, são os Sete Veladores de Henoch.

O número sete é um dos de maior concentração simbólica, interessando-nos aqui reter que é o primeiro número perfeito, contendo a tríada e a tétrada. Se "os números ímpares agradam a Deus", a omnipresença do sete no Génesis e no Apocalipse, livros de começo e fecho do Livro, indiciam-nos da sua prevalência no ponto inicial e final de cada ciclo completo da criação.

Simbolizando a totalidade do espaço e do tempo, o sete aparece sempre a indicar uma mudança, na incidência da passagem de um ciclo a outro.

É um indicador de Renovação. Assim, o Apocalipse é ordenado segundo o número sete, sob a ordem dos Sete Espíritos de Deus.

Iluminam-se assim melhor as razões simbólicas da fundação de cidades "em sete colinas" porque, como diz Eliade, quando não há revelação hierofânica, o homem necessitante passa a construí-la por outros modos.

Não há acaso que possa explicar o modo da fundação macaense relatado na lenda, quando o projecto comum para a urbe primordial era uma fundação, que representava uma mudança, o começo de um ciclo novo.

NILAU -- A FONTE DA MEMÓRIA

Quer a ilha, quer o topos de sete colinas referem-se simbolicamente a uma mesma, e única, realidade: o centro espiritual primordial, que se faz presente no início de cada ciclo de manifestação, no paradaiesa ou paraíso.

Círculo ordenado a um centro, todo o paraíso é descrito como um vergel, tendo no meio ou uma árvore, ou uma montanha, ou uma fonte que são em sentido cósmico a mesma realidade

Também a "ilha" de Macau, com sete colinas, teve, no "centro", uma fonte. É a fonte do Nilau, cujo relato mítico é transmitido, a quem chega pela primeira vez, como comunicação oral de iniciação.

Em notável capítulo descritivo da fundação e primórdios do burgo macaense (in "Os extremos conciliam-se", ICM,1988) o historiador Pe. Benjamim Videira Pires dá-nos o embrião da urbe polarizado em redor da Fonte do Nilau e da Colina da Penha.

É obrigatório transcrevê-lo:

"(...) Os Chineses chamam-lhe o "Poço da Avó" ou antepassada.

"Nilau (de si em cantonense, Nei-lau), significa corrente (de água) do monte.

"O monte e a água associam-se, para representar duas dimensões essenciais do homem e da sua vida no mundo: a horizontalidade ou imanência com a matéria (a mater, que gera sempre, até e sobretudo quando enterra), e a verticalidade, que basta, por si só, para evocar a transcendência. do espírito. Ao mesmo tempo a água escorre das alturas (nuvens e montes) simbolizando, assim, o laço de união entre o céu e a terra.

Ofício do Mandarim de Xianshan (Senhor Ma) ao procurador de Macau sobre o pagamento do foro de chão (ano 19 de Jiaqing,1814), ANTT, Lisboa.

"Nilau (hoje impropriamente Lilau) é o nome chinês primitivo, até 1622, da Colina da Penha. Ora, a Fonte do Nilau era, em 14 de Abril de 1784, " a principal desta Cidade". O recanto aprazível, a proximidade da enseada e templo de Má-Chou (Avó, com o sentido, também português, de primeira antepassada) e de casas solarengas de portugueses, o fông-sói (vento-água) ou geomância, e a posição estratégica, a importância dos valores vitais, no horizonte do homem económico, e outros factores imponderáveis conferiram à Fonte do Nilau foros de mito, encontro e permanência luso-chineses.

"Quem bebe água do Nilau

não esquece mais Macau:

Ou casa aqui em Macau

ou então volta a Macau."

No paraíso, ou em algumas das suas representações, a Fonte simboliza, em última análise, a

Fonte da Vida, que o alimenta como terra vivem, terra dos viventes: é o espírito ou a Palavra de Deus.

É analogamente universal a sacralização das fontes, como boca donde jorra a água da vida. Das fontes, dá-se, no tempo e no espaço, a primeira manifestação da arché, materializada simbolica-mente na água. São, assim, intemporalmente, símbolos da matemidade, isto é, de origem da vida, de toda a origem. Da boca (os, oris) sai também a palavra.

Por esta razão, também a fonte adquiriu superior simbólica como fonte de conhecimento, mãe de conhecimento, que conduz ao saber, via sófica que vai radicar na Memória, lugar sagrado da Sofia.

Não há continuidade, nem perenidade ou imortalidade, fora do religador fio da Memória. Assim na tradição clássica a alternativa mortal ou letal era a queda nas águas do Lethes: com o esquecimento apagava-se o conhecimento ou memória da vida anterior.

Naquele simbolismo de fonte arquetípica via Jung a imagem da própria alma.

Uma das primeiras representações cartográficas da "ilha de Macau", entre as inúmeras ilhas da foz do Rio da Pérola.

De autoria de Miguel Ruggieri (entre 1580 e 1588). Curiosa a grafia do topónimo, exactamente como a de hoje, Macau.

In "Atlante della Cina", Archivio de Stato di Roma, Roma, 1993.

Praya Grande, Macao,1847. Coloured Lithograph by G. R. West.

In "Chatter Collection", publicado por MacLure, MacDonald and MacGegor, Lit. Londres.

Visão socio-urbana"de Macau, imediatamente posterior à intervenção de Ferreira do Amaral.

A moldura da arquitectura e da baía amável, cenarizam um "passeio público" de harmonia, felicidade e paz confiante no futuro.

Projecção optimista ou ufanista de urbe como espaço paradisíaco. Quase um "poster" publicitário de turismo.

Toma-se para nós claro que o que a tradição nos herda associado à mitografia da Fonte do Nilau (da Avó ou Antepassada) tem directamente a ver com os vários sentidos antiletais da simbólica tradicional.

Beber da fonte, é beber das origens. Quem bebe, "volta a Macau": telurismo inelutável, regresso às origens. "Ou casa em Macau": religação, reactualização do munus da mater. Ou "não esquece mais Macau": sentimento saudoso das origens, polarização na memória -- fundamento de identidade e de continuidade.

Tanto quanto a nossa imaginação pode reconstituir os tempos passados, estribada em múltiplas evocações e relatos, não iam beber do Nilau apenas os que chegavam pela primeira vez à terra. Para lá peregrinavam também os que, emigrados, voltaram de regresso ou em visita, ou os residentes na repetição de ritual esperançoso.

Se todo o espaço sagrado é repetição da hierofania primordial, também toda a manifestação, "materializando-se" e entrando no curso do devir, sofre dos factores da corrupção e degeneração da substância. Os rituais de santificação do espaço repetem-se, assim, na reprodução simbólica do dilúvio e reconstituição imediata do acto puro cosmogónico. Nas águas, nas fontes, ingestões ou imersões, são purificações ou lustrações rituais cujo sentido em geral é o da reposição das origens, reactualização no tempo e no espaço do arquétipo da criação re-fundação das coisas no estado puro primordial.

A água do Nilau foi, em certo passado macaense, a epifania local de uma corporização hierofânica, reveladora de um subconsciente colectivo cujas pulsões são as da continuidade e da perenidade, na terra, e da terra, consagrada.

O LOCUS AMENUS

Em fecho, podemos dizer que na mitografia macaense encontramos a confluência de três elementos oriundos das tradicionais hierofonias de sacralização do espaço -- a ilha, a fundação em sete colinas, a fonte mítica -- que revelam uma clara intenção de sagração do topos.

Mais do que confluência, a coincidência ou sobreposição da substância simbólica dos modos epifânicos conotados à terra, induzem uma intenção de concentração sacral que é, quanto a nós, explicável pela funda expectação de estabilidade e perenidade de uma comunidade cristã luso-asiática consciente do estatuto precário da sua estância.

As evocações hierofânicas (seguimos Eliade) não têm o singular objectivo de criar uma diferenciação sacral no espaço profano homogéneo. Buscando a religação a um princípio espiritual, elas são um ritual ou um sacramento que preserva essa sacralidade pelos tempos. "Aí, em esta área, a hierofania repete-se. O lugar transforma-se deste modo, numa fonte inesgotável de força e de sacralidade que permite ao homem, na condição de que ele ali penetre, tomar parte nessa força e comungar nessa sacralidade (...). A continuidade das hierofanias, tal é a explicação da perenidade destes espaços consagrados."

Na memória e na expressão das gerações da comunidade residente, sempre Macau aparece adjectivada de "terra sagrada", "consagrada" ou "abençoada".

Entre os factores da identidade macaense releva a exaltação da religiosidade e sempre, no devir dos tempos, o sentimento ideal de edificação e preservação do topos greco-latino do locus amenus.

Uma cultura-cidade foi vivendo de parelhas com uma cultura-jardim, na transposição do paradigma edénico, da harmonia do homem com a Natureza amável. Não é aqui lugar para introduzir o riquíssimo universo da geomancia chinesa (o fong-soi, vento-água), que nas volumetrias da terra e das águas reconhecem Macau como receptáculo dos mais benéficos elementos e influências. Mas é importante referir que o ocidental topos do Vergel ideal foi em Macau reforçado com a real vivência chinesa da harmonia do Homem com a Natureza e com a sua mundividência geomântica, também transmitida ao universo da comunidade cristã. Com isto se deu uma aproximação ao paradigma apocalíptico da Jerusalém, jardim de viventes, onde são vivos os panos de flores e das muralhas, paredes e geometrias diamantinas. Vendo a cidade com os óculos densos do fong-soi, tudo é vivo, e fachadas, volumetrias urbanas, geometrias arquitectónicas, risco de ruas e esquinas, portas e janelas, tudo é animado, num constante reflexo de influências, onde tudo se espelha em tudo.

Só à luz do que atrás dissemos podem ser lidas as projecções urbanas da cidade saídas do desenho visionário de Carlos Matreiros, urbes aéreas como utopias no espaço, onde as formas, as árvores, a natureza cubista, se referem a uma geometria arquetípica, configuram o topos mítico.

E o lirismo ingénuo e puro de Adé dos Santos Ferreira, em "Macau, Jardim Abençoado", que citamos em patoá:

"Nôsso Macau, nómi sánto;

qui ramendá unga jardim;

alumiado pa luz divino;

Macau quirido, abençoado,

Ne-bom, ne-bom disparecê!;

cidade di nómi sagrado

Vôs nora-pôde disparecê!".

BIBLIOGRAFIA

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Desenho de Carlos Marreiros

O"Topos Sagrado"L. S. C.

Mitografia de Macau, (Série"A Cidade e o Poeta")

Macau,131×15.5,1997

Colecção de Luís Sá Cunha

desde a p. 5
até a p.