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O ESTATUTO DE MACAU
(Séculos XVI e XVII)

Luís Filipe Barreto *

Situada numa península (Heung-San), na ponta da Ilha de Guau-Xau, a quase "Ilha Macau", como se diz nos séculos XVI e XVII, encontra-se na Foz do Delta do Rio da Pérola, na boca de Cantão.

Trata-se de uma cidade portuária que nasce e cresce sob o efeito externo de uma comunidade au-tónoma de mercadores portugueses e luso-asiáticos.

Sabemos bem pouco sobre a vida de Macau antes da sua condição de cidade-portuária e de entreposto, por excelência, do Extremo Ocidente com o Extremo-Oriente.

Com uma certa segurança, podemos dizer que Macau, com o nome chinês de Hou-Keng (é essa designação chinesa para Macau que surge no inédito Dicionário Português-Chinês, de cerca de 1580-1588), é já uma zona portuária relevante nos finais do século XV e nos inícios do século XVI.

Na Suma Oriental, escrita entre 1512 e 1515, em Malaca, Tomé Pires informa que "Oquem", a um dia e uma noite, por mar, de Cantão "... é o porto dos léquios e doutras nações..."(1).

Tudo leva, pois, a crer que Hou-Keng-Macau é uma povoação piscatória chinesa e, ao mesmo tempo, uma instalação portuária com certo relevo no comércio marítimo entre chineses, japoneses e outros orientais e entre chineses continentais e insulares, porque a nossa designação de Léquio Pequeno se aplica à Formosa/ Taiwan, celeiro da província de Fujian.

Por outro lado, os léquios (o reino de Ryukyu) são tributários da China no quadro do comércio oficial, praticando, também, comércio oficial tributário com o Japão. São, acima de tudo, desde cerca de 1411, os intermediários por excelência do comércio nipónico na Ásia do Sueste, articulando Malaca ao sul da ilha de Kyushu e à ilha de Tsushima e participando, também, no comércio externo japonês para a China e no florescente comércio com a Coreia, nos séculos XIV e XV (2).

Nos finais do século XIV e inícios do século XV (anos de 1391,1393,1406,1411), existem relações comerciais intensas entre a Ásia do Sueste e o Sul do Japão e da Coreia, através de navios do Sião e Java.

A presença do intermediário léquio neste comércio externo nipónico com a Ásia do Sueste coincide com a crise do comércio malaio (porto de Palembang/Corte. Shrivijaya), com as expedições marítimas oficiais/tributárias da China Ming e com a ascensão de Malaca, a base central da terceira expedição de Cheng Ho (1409-1411).

É esta zona portuária que os portugueses começam a frequentar, o mais tardar na década de trinta do século XVI (1535 é a data afirmadano Ming She, os Anais Ming "... navios estrangeiros... sem lugares fixos de ancoragem... que vieram até Hao-Ching...") e que, a partir de 1557, se toma em entreposto mercantil central e em 1586 é reconhecida como "Cidade do Nome de Deus na China".

A possibilidade de Macau nasce de um complexo conjunto de factores políticos, económicos, estratégicos e culturais. Três desses factores parecem fundamentais: 1) -- A ordem interna e o sistema de relações internacionais da China Ming dos séculos XV e XVI; 2) -- A trilateral sinonipoportuguesa, nos planos marítimo, comercial, financeiro e estratégico, que é uma consequência natural e directa do primeiro factor e que se traduz na rota Cantão-Macau-Nagasaqui; 3) -- A condição portuguesa no Extremo-Oriente que, num processo de aprendizagem, a partir de 1513, nos mares e litorais da China, acaba por assentar numa comunidade mercantil autónoma luso-asiática e, no plano cultural, numa internacional latina (com os missionários, em especial jesuítas, portugueses, espanhóis, italianos e franceses).

Vale a pena observar, com uma certa atenção, cada um destes três factores. Antes de mais o primeiro, porque é o factor determinante da existência de Macau e o possibilitador de todos os outros factores condicionantes, ou seja, são as condições da vida interna da China e o seu sistema de relações externas que possibilitam Macau.

China de um forte poder central (Beijing/ "Capital do Norte"), expressão de uma profunda unidade nacional assente na ética-social do culto da família e da harmonia global com o Cosmos.

China de uma forte unidade que tem que gerir a variedade de um imenso espaço e número de culturas e sociedades e a tensão entre o centro imperial e as periferias.

No caso de Macau, interessa, sobretudo, a tensão entre o centro-continental e as periferias litorais, entre o centro-nacional (Beijing) e o centro-regional (Cantão), entre o centro-burocrático e um centro mercantil-marítimo.

China, que é a grande potência manufactureira do Mundo, nos séculos XV, XVI e XVII, é também um mercado necessitado de prata e disponível a produtos exóticos e de luxo.

A China, com estas forças e necessidades económicas, vive, politicamente, desde 1368, sob a dinastia Ming/ "Brilhante", o que representa uma resposta nacional à dinastia Mongol dos Yuan.

Em termos políticos, com implicação directa ao caso de Macau, o que interessa salientar é que os Imperadores Ming colocam a questão da segurança interna como regulador por excelência das relações internacionais. Esta preocupação maior pela segurança do poder imperial-nacional, leva mesmo a dinastia Ming a intervir mais directamente no domínio económico e na problemática regional, procurando marcar ou, pelo menos, regular, o ritmo das economias privadas (em especial, marítimo-mercantil e de escalas regional e internacional).

Sinais claros desta pressão do poder oficial regulador, são a política do comércio tributário, o renascimento do sistema tributário, no quadro de um reconhecimento externo da dinastia Ming, que surge logo a partir de 1369 com o imperador Hung-Wu. (1368-1398) e as expedições marítimas oficiais (1405-1433).

Em ambos os casos assiste-se a uma iniciativa do poder central oficial que procura ora disciplinar, ora substituir, a actividade marítimo-mercantil privada, local, regional. Uma tentativa de controlar mecanismos e actividades essencialmente económicos, com medidas essencialmente políticas e administrativas.

A política do comércio tributário procura limitar as relações marítimo comerciais regulares apenas aos espaços que, oficialmente, se reconheçam tributários do "Império do Meio"/Sung Kuo. As embaixadas tributárias surgem logo em 1369, da Coreia, do Japão, do Vietname. Em 1371, do Cambodja e do Sião; dos reinos da península malaia e do Coromandel, entre 1370-1390, etc.

Trata-se, uma vez mais, do princípio da segurança política como factor regulador. O poder Ming procura criar, nos litorais e nos mares da China, um quadro oficial de relações marítimas e comerciais, apenas permitidas e reconhecidas a partir de uma posição oficial de subordinação entre Estados. O comércio parece implicar um reconhecimento do poder imperial Ming, na Ásia Oriental, Sueste Asiático, e mesmo em certas zonas do Índico.

As expedições oficiais Ming começam, logo em 1369-1370, para a Costa do Coromandel, mas são as sete expedições organizadas pelo eunuco e muçulmano Cheng Ho, entre 1405 e 1433, no tempo do imperador Yung-lo (1403--1424), que melhor caracterizam a tentativa Ming para estabelecer um poder hegemónico naval no Índico por parte do Estado (o mesmo poder hegemónico que se tinha que reconhecer com o comércio tributário).

As políticas do comércio tributário e das expe-dições marítimas estatais afectaram os interesses privados, locais e regionais de chineses do litoral e de comunidades chinesas ultramarinas e dos seus aliados na Insulíndia e no Pacífico. Mas estas tentativas de monopólio ou de direcção estatal de uma rica e poderosa actividade marítimo-mercantil não resultam, e toda esta economia continua a existir e a progredir sob formas não reconhecidas como legais pelo estado central. A chamada "pirataria" e o "contrabando" aumentaram, portanto, durante o período Ming, em especial na rota mais lucrativa da Ásia-Pacífico, a que liga a China ao Japão.

Em 1430 ou 1432, o poder central Ming reduziu as relações marítimo-comerciais com o Japão a uma embaixada de dois navios em cada dez anos. A pressão dos interesses sinonipónicos faz, no entanto, com que esta medida não tenha aplicação prática, pois as próprias fontes oficiais referem dezassete embaixadas comerciais japonesas, em meados do século XV.

No entanto, a partir de 1530, mesmo que sem grandes efeitos práticos, as relações marítimo--comerciais entre chineses e japoneses estão, oficialmente, proibidas e os japoneses deixam de ser autorizados a enviar embaixadas a Ningpo. Note-se que é a partir exactamente de 1530, e com maior intensidade a partir de 1542-1544, que os portugueses começam a surgir em Liampo, nas proximidades de Ningpo.

A China com que os portugueses contactam, a partir de 1513, é um centro civilizacional do Extremo-Oriente, a potência hegemónica desta zona do mundo com os seus cerca de 100 milhões de habitantes.

É, ao mesmo tempo, um grande produtor de manufacturas de luxo, atractivas para qualquer mercado, oriental ou ocidental (sedas, porcelanas, mobiliário, artigos de luxo, etc.), um consumidor de especiarias e outros produtos da Insulíndia e do Índico (em especial, através do serviço mercantil oficial de Cantão) e um "aspirador" da prata do Japão.

A Península de Macau (pormenor da carta de 1646, Março, in "Advertências a el-rei D. João IV por Jorge Pinto de Azevedo morador na China". Biblioteca da Ajuda, Lisboa.

Politicamente é um estado com um poder central muito forte e interventor, mas, também, com poderes regionais fortes. A China é um espaço económico e social dinâmico, que nas zonas litorais precisa de um comércio marítimo eficaz que, no entanto, não ponha em causa o essencial da política de contrôle central e a prioridade da segurança e da hegemonia com base na auto-defesa, frente aos poderes externos.

A China do século XVI, precisa, no plano náutico-mercantil, de um intermediário para o Sueste Asiático e mesmo para o Índico. Um intermediário que seja, ao mesmo tempo, forte comercialmente mas frágil política e militarmente. Que tenha poder militar suficiente para assegurar rotas (a artilharia naval dos portugueses tê-lo-á até ao século XVII), mas que não constitua qualquer ameaça séria à soberania Ming.

Os portugueses vão, ao longo da primeira metade do século XVI, aprender as regras do jogo do poder da China e surgem, a partir de meados da centúria, como o intermediário desejado e desejável.

De tal forma este intermediário se vai tomando parceiro possível, mesmo privilegiado, que o Édito Imperial de 1522, que proíbe os contactos com os Fo-Lang-Chi (primeira e oficial designação para os portugueses, e bem elucidativa, pois Fo-Lang significa canhão-arma de pólvora), já em meados do século tem que ser aplicado de forma bem pragmática.

As fontes chinesas registam o excesso de zelo, nas províncias de Fujian e de Zhejiang, quando as autoridades, em 1547-1549, armam uma frota contra as embarcações dos portugueses. Os protestos, dos grupos marítimo-mercantis chineses, conseguem libertar uns quantos portugueses feitos prisioneiros e criar uma atmosfera mais tolerante na aplicação da proibição imperial,

A frequência de entrepostos comerciais da costa chinesa mais próxima do Japão, por parte dos portugueses, a partir das décadas de 30 e 40 do século XVI, coincide, cronologicamente, com o incremento da exploração mineira da prata no Japão (anos de 1526,1533, que fazem aumentar a exportação para a China e a procura chinesa e, muito em especial, nos anos de 1542-1543, com novas minas).

1542-1543 são também os anos de referência à primeira viagem portuguesa ao Japão, às costas da Ilha de Tanegashima, e, a partir de 1550, da carreira marítima regular para o Japão, sendo que, nesses mesmos anos de 1550-1552, as fontes chinesas informam sobre grupos de comerciantes nipoportugueses nas feiras e ruas de Cantão, com japoneses trajando à portuguesa(3).

É, pois, possível afirmar que a presença dos portugueses nos litorais da China envolve, desde cedo, a componente japonesa (décadas de 30 e 40), e que apenas o aumento da produção japonesa da prata e da procura chinesa da mesma, também nas décadas de 30 e 40 do século XVI, faz nascer a necessidade e a possibilidade já não de mercados ocasionais-periódicos, mas sim de um centro marítimo-mercantil mais permanente e organizado(4).

Um centro que permita a ligação marítimo--mercantil regular entre grupos e interesses chineses e japoneses através de uma solução que não ponha em causa a política oficial de ausência de relações, mas que realize um comércio internacional, altamente lucrativo e do interesse de produtores, comerciantes e mercados chineses e japoneses. Não será por acaso que a emergência de Macau coincide também com a diminuição da pirataria dos japoneses Wokou, que atinge maior intensidade entre 1540 e 1565. O porto de Macau começa a afirmar-se a partir de 1557 e a carreira regular para Nagasaqui data de 1571. A pirataria j aponesa, nas costas da China, sofre uma profunda redução a partir de 1560-1570, graças, sem dúvida, às ofensivas militares navais chinesas, chefiadas por Qi Jigung, mas também graças à nova lógica de interesses sino-nipónicos, criada por este porto internacional dos portugueses.

O incremento da produção da prata japonesa e da sua procura chinesa é o elemento fundamental que torna possível e necessário, nos litorais do mar da China, um entreposto permanente de um intermediário nesta rota da prata, ouro, cobre, sedas, porcelanas, etc. Macau é a solução encontrada para esta trilateral marítimo-mercantil.

Porquê Macau e não um outro lugar na província de Cantão, ou outros lugares nas províncias de Fujian ou Zhejiang?

Várias razões terão, certamente, levado a que Hou-Keng/Macau ganhasse a consistência temporal de entreposto permanente.

Do lado português, as condições naturais do porto, a proximidade de Malaca e da boca de Cantão, (o primeiro local de chegada dos portugueses e o melhor conhecido e com mais parceiros marítimo--mercantis), a própria consciência das forças e possibilidades que não permitem espaços aparentemente mais favoráveis, na própria zona (como as ilhas de Lin-Tin e Tai-Shan ou o porto de Nam Tou).

Do lado japonês, Oquem/Macau é o seu porto, por excelência, em Guangdong, nas portas da cidade de Cantão, "onde o reino todo da China descarrega suas mercadorias" (Tomé Pires), mesmo que os centros mais tradicionais, mas também outrora oficiais, do comércio japonês na China, fiquem mais a norte (Ningpo), em Zhejiang.

Do lado chinês, Macau/Hou-Keng é, em termos estratégicos, uma quase ilha, uma península, facilmente controlável, pela sua posição e tamanho. A província de Guangdong só tem a ganhar frente às outras províncias litorais, Fujian e Zhejiang, com a instalação de um centro intermediário da prata do Japão.

A localização no "Espelho de Ostra" (Hou-Keng em cantonense/Hao-Ching em mandarim) da comunidade marítimo-mercantil portuguesa, no Mar da China, parece resultar também, em larga medida, da condição asiática pré-existente.

As outras zonas de comércio regular ensaiadas, que não geraram instalação portuária permanente, ora ficavam muito junto a cidades-portuárias do comércio oficial proibido com os japoneses e portugueses, casos de Chincheu em Fujian e Liampo na província de Zhejiang, ora em zonas sem rede marítimo-mercantil, como são os casos de Sanchoão e de Lampacau, escalas na ligação da província de Cantão com a Ásia do Sueste.

Em Hao-Ching "Espelho de Ostra" existe, antes da chegada dos portugueses, uma rede marítimo-mercantil informai e semi-oficial que articula, através do reino intermediário de Ryukyu, a Ásia do Sueste com o Japão. É esta rede asiática que os novos intermediários vão potenciar, articulando-a, também, com Manila e Goa.

A resposta à razão do sucesso de Macau frente ao falhanço de outros ensaios de estabelecimento permanente nos litorais da China passa, sem dúvida, por esta herança asiática de uma informai rede inter-regional de contactos no mar da China, já existente, que os portugueses vão potenciar e transformar em cidade portuária internacional.

Macau acaba por alcançar a condição de instalação portuária permanente por conter mais vantagens que desvantagens para o todo do consórcio sinonipoportuguês. A sua vantagem comparativa vai-se mostrando na prática marítima e mercantil dos finais do século XVI, e a sua passagem de entreposto ocasional a permanente é uma conquista que se tem que fazer no dia a dia.

Olhemos, agora, o terceiro factor decisivo. Antes do aparecimento de Macau como cidade-portuária do encontro entre o Extremo-Ocidente e o Extremo-Oriente houve um processo de meio século de mútua aprendizagem luso-chinesa.

À partida é, naturalmente, a quase total mútua ignorância. Os portugueses começam em Malaca/1509 a reunir uma conjunto de informação objectiva, mas, Tomé Pires, o então melhor informado dos ocidentais, ainda julga, em 1512-1515, que Afonso de Albuquerque facilmente conquistará com dez naus "toda a China nas beiras do mar...".

Do lado chinês, a informação é ainda mais limitada, julgando-se, na década de vinte, que os portugueses são mais um povo conquistador proveniente da zona de Malaca-Insulíndia.

A partir o mais tardar de 1513, os contactos marítimo-mercantis regulares entre Malaca e a zona de Cantão passam a contar com a presença de portugueses (Jorge Álvares chega a bordo de um navio javanês, em 1513, à ilha de Tunmen, a Tamão ou "Ilha da Veniaga" dos mapas e textos portugueses).

Em 1517, os portugueses procuram estabelecer relações diplomáticas oficiais de modo a integrar e potenciar as redes mercantis existentes (Tomé Pires é o primeiro embaixador ocidental à China) e, ao mesmo tempo, passam a conhecer também os litorais da província de Fujian.

Em 1519-1520, Simão de Andrade, ao comando de três juncos, constrói uma fortificação e coloca artilharia na ilha de Tamão. Faz justiça em solo chinês, enforcando um dos seus marinheiros, autoriza a compra de crianças (escravas?) chinesas, recusa pagar impostos sobre as suas mercadorias às autoridades chinesas e impede outros comerciantes de fazerem o seu comércio enquanto ele não alcançar os seus objectivos mercantis.

Em 1522, uma armada de seis navios comandada por Martim Afonso de Melo chega às águas de Cantão mas é obrigada a retirar,14 dias depois, com perda de dois navios e dezenas de homens.

Estes anos de 1519-1522, assistem a uma tentativa do aparelho oficial português do Estado da Índia no sentido de criar na zona de Cantão uma feitoria fortaleza, um entreposto marítimo-mercantil, alcançado ora por tratado ora pela força das armas, ao estilo dos existentes no Índico Ocidental.

Em 1522, a resposta do poder central chinês é negativa e um Édito Imperial proíbe os contactos com os Fo-Lang-Chi.

As tentativas do aparelho de estado português, quer pela via diplomático-pacífica (1517), quer militar (1519-1522), de criação de um quadro de relações oficiais, não resultam.

As relações comerciais-marítimas privadas e semi-oficiais continuaram, no entanto, a existir e mesmo a sofrer um incremento a partir da década de trinta do século XVI. As fontes portuguesas e chinesas revelam, a partir de 1530-1535, a existência de entrepostos regulares e periódicos dos portugueses, nos litorais das províncias de Guangdong (Macau/1535, Sanchoão/1550, Lampacau/1542-1549); Fujian (Chicheu/1539 e 1544 a 1549); Zhejianq (Liampo/1530 e com maior regularidade, a partir de 1542-1544).

Centros que ao emergir de Macau ainda continuam a viver: Lampacau, em 1560, conta ainda 500 a 600 portugueses, e o comércio português, na zona de Liampo, surge, pelo menos, ainda em 1588. Mas todos estes entrepostos periódicos irão desaparecendo à medida que se concentra a actividade mercantil e marítima em Macau e que este entreposto vai ganhando uma consistência e uma segurança próprias.

Macau vai atrair não apenas os interesses marítimos, mercantis e financeiros de comunidades do sul da China e do sul do Japão, como concentrar os esforços e os meios dos portugueses e dos luso-orientais nos mares da China.

Em meados do século XVI, nas décadas de quarenta e cinquenta, os portugueses estão espalhados pelas três províncias marítimo-mercantis mais fortes da China (de sul para norte, Guangdong, Fujian e Zhejiang).

Do lado português, dois factos, para além dos factores já anteriormente abordados, parecem ter influído na aposta que vai permitir Macau.

De 1547 a 1549, existe uma perseguição às embarcações portuguesas, organizada de modo sistemático, pelas autoridades provinciais de Fujian e Zhejiang. Embora, como já antes afirmámos, tenha havido a seguir uma certa moderação, o efeito já estava produzido.

Não sabemos até que ponto é que estas perseguições se ligam com o incremento do factor japonês, mas poucos anos depois (1554) e bem ao contrário do acontecido nestas províncias, os portugueses conseguem celebrar certas regras de entendimento marítimo-mercantil com os poderes de Cantão.

A figura portuguesa que consegue este entendimento é o capitão de Chaul, Leonel de Sousa. Chaul é um porto do Índico que mantém, desde o século XI, uma linha activa de comércio com a China e com navegadores e comerciantes chineses.

Sem dúvida que os contactos permitidos por e a partir de Chaul tiveram um peso significativo neste entendimento mercantil alcançado por Leonel de Sousa, o que implica uma certa metamorfose na condição dos portugueses, bem como na imagem que os chineses tinham dos mesmos: "... para fazerem esta paz nos mudaram os nomes de frangues que nos dantes chamavam a portugueses de Portugal e de Malaca..." (5)

Em 1554, a tendencial concentração das actividades marítimo-mercantis dos portugueses na zona de Cantão é já irreversível. A partir de 1557 começa a aventura de ir dando consistência temporal a uma instalação periódica, de modo a transformá-la em permanente cidade portuária internacional.

Como vemos, estes três factores são interdependentes e, ao mesmo tempo, gerados pelo primeiro, ou seja, pela condição hegemónica da Civilização Chinesa no Extremo-Oriente, pelas suas tensões internas (em especial entre o centro continentel imperial e as periferias marítimo-mercantis) e pelas suas relações externas, sobretudo com o segundo poder da área, o Japão (que conta já 16 milhões de habitantes no século XVI).

O aparecimento dos portugueses como intermediário privilegiado dá-se numa época de expansão da Europa no Mundo.

No século XV, os grandes poderes globais tecnológicos, militares e económicos, estão na mão das Civilizações Islâmica e Chinesa. Os séculos XV, mas, em especial, XVI e XVII, são de desafio da Europa ao Mundo e a essas forças hegemónicas. Desafio entre poderes civilizacionais ainda relativamente equilibrados e não distantes na organização e tecnologia.

Poderes equilibrados, em especial, na relação Ocidente-Oriente, onde a expansão europeia toca os litorais marítimos mas pouco influi nos centros essenciais.

No século XVI, quando os portugueses chegam ao sul da China e do Japão, possuem algumas vantagens tecnológico-militares (os canhões e as velas), mas esta diferença não é suficientemente grande para impor as regras do jogo político e económico.

Trata-se de uma vantagem decisiva para alcançar uma posição e um lugar num espaço outro, mas não de um poder de alterar as circunstâncias, de modo a impor no Extremo-Oriente qualquer tipo de situação colonial ou troca desigual.

É preciso ter consciência das realidades e, acima de tudo, dos pesos demográficos e económicos em jogo. No século XVI, Portugal tem cerca de um milhão e meio de habitantes e terá, no século XVII, à volta de dois milhões, quando a China conta cerca de 150 milhões, e o Japão 20 milhões de habitantes.

Os portugueses em processo de expansão pelos mares e os litorais da África, Ásia e América, mais os luso-descendentes, são, no século XVI, cerca de 200 000, e no século XVII, perto de 400 000. Ou seja, no Extremo-Oriente, uns poucos milhares, talvez 5 000 a 10 000, num universo já de centenas e dezenas de milhões.

"Título do Regimento do Ouvidor de Macau nas partes da China" (1587). Doc. ANTT, Lisboa.

A diferença tecnológica mínima, os navios e a artilharia naval, que beneficia os portugueses não é, nem de perto nem de longe, suficiente para ultrapassar ou mesmo, tão só, tornear os pesos demográfico e civilizacional, dos poderes chinês e japonês.

Os portugueses são então, nos mares da China e no Índico, a vanguarda da Europa em expansão. Vanguarda em termos de tecnologia náutica e náutico-militar, em termos de poder de conhecimento e de acção económico-geográfica dos mundos litoral e marítimo. Os portugueses são a força dinâmica que cria a ligação marítima regular e contínua (a rota do cabo 1497-1499) entre o Ocidente e o Oriente.

Mas esta diferença entre os portugueses e os outros europeus e asiáticos é mínima (sobretudo nos mares da China), porque se trata de uma diferença de graus de desenvolvimento e de aptidão e não uma diferença de sistemas tecnológicos, económicos, políticos.

Não havendo pois, nos séculos XVI e XVII, entre os portugueses, os chineses e os japoneses, uma diferença essencial, mas tão só estádios próximos de maior ou de menor desenvolvimento da mesma ou semelhante estrutura civilizacional (e mesmo assim, na maioria dos casos, favorável às sociedades e culturas do Extremo-Oriente), os portugueses não possuem condições para impor as regras do jogo.

E tal como os portugueses, também os outros europeus em posterior expansão na zona (espanhóis, ingleses e holandeses), não possuem poder para impor à China e ao Japão condições e regras. A prova de tal facto encontra-se no insucesso de todas as tentativas ou esboços europeus de projectos de conquista de entrepostos em ilhas ou províncias dos mares da China.

No quadro das forças da época, no essencial equilibradas, entre o Ocidente e o Extremo-Oriente, os portugueses vêem-se obrigados a acomodar-se à situação existente, a incorporarem-se nas suas possibilidades e potencialidades num jogo cujas regras não dominam, mas que, a pouco e pouco, vão com-preendendo e respeitando, sabendo ganhar proveitos.

Num quadro de forças equilibradas, mas com uma situação de poder favorável aos asiáticos, os portugueses vão-se aculturando ao Sueste Asiático e à Ásia Oriental, ao longo do século XVI. Vão criando interesses e formas de ser e de estar que possibilitam uma certa acomodação por parte da Civilização Chinesa.

Aos olhos dos poderes e dos interesses chineses e japoneses, os portugueses vão surgindo como um menos estranho, como bárbaros (é essa a categoria civilizacional que nos é atribuída) que podem também trazer vantagens e lucros, vantagens talvez não inferiores ao risco da sua permanência nos mares da China.

O estatuto da cidade-portuária de Macau, nos séculos XVI e XVII, atesta, exemplarmente, a condição dos portugueses na Ásia Oriental.

Macau é a expressão mais perfeita de um poder marítimo-mercantil suficientemente forte para despertar vantagens e conveniências de parceria, por parte dos interesses orientais, mas, ao mesmo tempo, suficientemente fraco, ou insuficientemente forte, em especial no plano político-militar, de modo a ser contido no interior de limites e de condições imprecisas mas reguláveis pelas forças chinesas.

Pode-se dizer que também os outros europeus, • nos finais do século XVI, estavam nas mesmas condições e não foram eleitos como parceiros privilegiados pelo mundo chinês. É bom, no entanto, não esquecer duas "vantagens" decisivas dos portugueses frente a espanhóis, ingleses e holandeses, no Extremo-Oriente da época.

A primeira é a existência de contactos, conhecimentos, interesses comuns desde o início do século (1509-1513). Os portugueses foram os primeiros, e durante algumas décadas os únicos ocidentais, nos mares e no comércio da Ásia Oriental. A prioridade das navegações portuguesas criou alianças e alicerces, na situação local, que se revelaram uma vantagem decisiva quando chegou a idade competitiva entre europeus, no Extremo-Oriente.

Um outro factor, não menos decisivo e, no caso de Macau, absolutamente fundamental, é o de os portugueses na Ásia Oriental dos séculos XVI e XVII serem em número e função essenciais, luso-orientais.

Homens e mulheres luso-indianos, luso-malaios, luso-japoneses e luso-chineses, constituem uma vantagem competitiva frente aos outros europeus, devido à sua proximidade cultural, linguística, física, ao mundo do Extremo-Oriente.

A condição de Macau exprime o paradoxo de um ocidental suficientemente forte para ser parceiro, desejado e desejável, mas insuficientemente forte para controlar a parceria e também, por isso, na lógica chinesa, parceiro desejado e desejável.

Não tendo, pois, resultado da pressão colonial ou da força político-militar (que os portugueses desde, pelo menos,1522 sabiam ser uma via impossível de trilhar), Macau/Hou-Keng, como cidade portuária do encontro do Extremo-Ocidente com o Extremo-Oriente, nasce de um processo de mútuo interesse mercantil lusosinonipónico (processo que acompanhámos na trilogia de factores fundamentais).

A cidade-portuária de Macau formou-se como autonómico porto franco, praça de serviços autónoma, mas não independente dos poderes e dos interesses, centrais e oficiais, da China e de Portugal.

Ao longo dos séculos XVI e XVII, sob formas e ciclos temporais diversos, Macau é centro de múltiplas rotas marítimo-comerciais. As rotas principais (que envolvem os metais preciosos, prata e ouro, e manufacturas várias, a começar pelas sedas e porcelanas) são: Macau/Nagasaqui, Macau/Manila (como complemento do galeão da prata americana), Macau/Malaca (implicando também as especiarias) e Macau/Goa (envolvendo Malaca e a Insulíndia).

As rotas secundárias que implicam Malaca, enquanto foi possível, são: Macau/Sião, Macau/ Solor e Timor, Macau/Vietname.

Esta rede marítima apenas se torna operacional graças a uma rede fluvial Cantão/Macau e a redes marítimas complementares de curta distância, nos litorais da China, que ligam Macau à Formosa/Taiwan e à província de Fujian.

Toda esta rede mercantil, fluvial e oceânica, assenta numa comunhão de interesses e de lucros que não podia passar despercebida ao centro oficial do poder político chinês (Beijing).

Com a abertura do comércio marítimo, através de Macau e do intermediário português, o poder central do Império Chinês satisfaz, em parte, algumas das necessidades manufactureiras, comerciais e de metais preciosos, de importação e de exportação, de variados sectores chineses, ao mesmo tempo que tem esta aparente excepção controlada, no seu volume e importância e sempre numa posição de alta indefinição quanto ao futuro.

Falo de aparente excepção, porque julgo que Macau foi, ao longo dos séculos XVI e XVII, o mecanismo que melhor serviu a política de abertura, controlada e controlável, do poder imperial.

Macau é o instrumento que permite à "Capital do Norte"/ Beijing uma forma de contrôle apertado da economia mercantil e das relações externas da China.

A política de contrôle oficial do comércio marítimo internacional realiza-se na regra do "fecho" através desta abertura parcial e contida, insuficiente sem dúvida para satisfazer a maioria das necessidades, mas suficiente para satisfazer interesses de grupos poderosos dos centros regional e imperial (Cantão e Beijing) fazendo baixar a pressão dos blocos do comércio ilegal organizado (pirataria e contrabando, em especial, sinonipónico).

Macau é, pois, nos séculos XVI e XVII, um instrumento relevante da política externa e interna de Beijing. Mas é, também e ao mesmo tempo, uma mais valia fundamental para Cantão e para a província de Guangdong, que concentram agora no Delta do Rio da Pérola, não apenas as rotas marítimas para sul (situação já habitual desde o século XIII e existente, regularmente, pelo menos, desde o século XI), mas também as rotas marítimas para norte, até aí quase monopolizadas apenas pelas províncias de Fujian e de Zhejiang, então ainda zonas económicas chave mais desenvolvidas que Guangdong.

Esta concorrência marítimo-mercantil entre as três grandes províncias litorais e zonas económicas chave da China é um dos padrões estruturais da vida chinesa. E é bom não esquecer que os intermediários portugueses são atraídos por este padrão, passando a concentrar, nas décadas de 30 e 40, as suas actividades marítimas nas províncias mais a norte, mas acabando por se fixar, na década de cinquenta, na província de Guangdong.

Macau é um ponto de encontro de interesses, concorrências e tensões da sociedade e economia chinesas. Uma moeda de troca fundamental para o regular da também estrutural tensão entre o centro continental político-administrativo (Beijing) e a periferia marítima (Cantão). Um instrumento de peso de Cantão para a luta pela riqueza e desenvolvimento entre as regiões marítimas de Guangdong, Fujian e Zhejiang.

Do lado português, Macau tem uma importância marítimo-mercantil máxima, à medida que se avança nos finais do século XVI e pelo século XVII dentro.

Para o aparelho oficial do Estado da índia, a seguir à rota do cabo, que liga Lisboa a Goa como eixo marítimo central, é a viagem que liga Macau a Goa a mais proveitosa. Em especial pelo cobre, mas também pelas sedas, porcelanas, objectos de luxo, etc., que chegam ao Índico.

Do lado português, as relações Goa/Lisboa com Macau irão também ser de tensão e harmonização dessas tensões entre o poder político-administrativo e a periferia mercantil. Por detrás de mil e um conflitos quotidianos entre "reinões" e "macaenses" encontra-se a tensão essencial entre o centro (Lisboa/Goa) e a periferia autónoma à procura do seu próprio espaço e lógica de sobrevivência (Macau), entre o poder oficial e os poderes privados e semi-oficiais.

O estatuto da soberania de Macau, ao longo dos séculos XVI e XVII, testemunha a complexidade contraditória de interesses e de poderes que se movem em torno da rede marítimo-mercantil regulada pela cidade-portuária internacional.

Testemunha o equilíbrio de poderes e de saberes entre o centro e a periferia chinesas (Beijing-Cantão). Testemunha a capacidade de acomodação dos portugueses à fórmula chinesa, a capacidade de servir como intermediário (ocidente-oriente, sinonipónico) e de, ao mesmo tempo, saber lucrar e desenvolver-se graças a essa rede de serviços. Testemunha também a lógica chinesa de acomodar e integrar a mudança e a presença ocidentais através de uma fórmula de reforço ou, pelo menos, manutenção da hegemonia chinesa na geoestratégia da Ásia Oriental.

A condição de Macau e o seu estatuto de soberania só pode ser o denominador comum de toda esta multiplicidade contraditória. Um estatuto fluido que permita sustentar e desenvolver a teia múltipla de interesses e poderes privados, locais, regionais e semi-oficiais.

Os testemunhos portugueses dos séculos XVI e XVII enunciam a fluidez ou flexibilidade do estatuto deste ponto autónomo ao serviço da comunicação e da troca internacionais, na Ásia-Pacífico e entre o Extremo-Ocidente e o Extremo-Oriente.

Cerca de 1582, o anónimo Livro das Cidades e Fortalezas afirma: "... posto que a terra seja do Rei da China que nela tem seus oficiais que recebem direitos que ali se pagam, são governados pelas leis deste reino de Portugal..."(6)

Quatro anos antes de ser, pelo poder central de Lisboa, nomeada "Cidade do Nome de Deus na China", Macau surge caracterizada como território chinês sob administração portuguesa. Administração, na prática, partilhada com o poder chinês (a cobrança fiscal chinesa apontada).

É bom lembrar que a afirmação deste estatuto de Macau como território chinês sob administração partilhada luso-chinesa, surge num livro cujo destinatário é o novo Rei de Portugal, Filipe II. Livro manuscrito, ou seja, de circulação controlada, devido ao valor de relatório de estado que contém. Livro que, por isso mesmo, transmite uma informação verdadeira e actualizada da expansão portuguesa no mundo, para o aparelho de Estado português, nos finais do século XVI.

Podemos observar agora documentos do século XVII, produzidos em Macau. São também palavras manuscritas, neste caso do poder local periférico que, em 1621, dizem: "... o rei, da China, em particular é senhor da terra de Macau em que estamos..." HZ(7)>. Ideia que uma carta, uma vez mais manuscrita, do Senado de Macau, de 1637, precisa: "... não estamos aqui em terra nossa, conquistada por nós, como são as mais fortalezas da índia onde somos senhores.., senão na terra do Rei da China onde não temos um palmo de chão, mais que o sítio desta cidade, a qual posto que é de nosso Rei, o dito sítio do Rei dos chineses..." HZ(8)>.

As palavras do poder central (Lisboa), e muito em especial do poder autonómico, através da Carta do Leal Senado, caracterizam, de uma forma bastante objectiva e pragmática, a condição e o estatuto de soberania de Macau. Macau, ao contrário das outras cidades-portuárias dos litorais asiáticos, não é uma colónia portuguesa. Não resultou de uma conquista militar ou de um tratado político realizado a partir dos poderes e interesses portugueses. O Leal Senado, instituição chave do poder mercantil-autónomo de Macau, caracteriza a sua cidade-portuária como uma cidade portuguesa em território chinês. Como uma realidade autónoma dos portugueses construída num espaço que "... é do Rei dos chineses...".

Macau em finais do Séc. XVII. Planta do Arquivo N° 1 da China.

(Rep. da carteira de mapas da edição especial do projecto"Cem anos que mudaram Macau"(1995).

Nos finais do século XVI e no século XVII, os centros portugueses do poder central e local sabem muito bem qual o verdadeiro estatuto de Macau e os documentos apresentados são prova disso mesmo.

São as palavras manuscritas, aquelas que possuem uma circulação restrita e controlável, as que melhor exprimem as realidades. Em especial, quando as realidades são difíceis, problemáticas e estratégicas, porque economicamente lucrativas, como é o caso de Macau.

Uma coisa são os enunciados manuscritos e outra bem diferente, e por vezes oposta, são os livros impressos na época, e que em certos casos se destinam, objectivamente, à propaganda ou à construção teórica de uma falsa explicação, à legalização, pela opinião, de uma realidade bem diversa.

No caso de Macau, muita da confusão em torno das suas origens, estatuto de soberania ou condição, durante os séculos XVI e XVII, nasce da não compreensão da diferença essencial entre documentos manuscritos e impressos, da diferença abissal entre os relatórios dos poderes (central/ local), necessariamente objectivos e pragmáticos, e as obras literárias e ideológicas com fins de propaganda e de unidade de valores.

As fontes referidas permitem ver o estatuto da soberania de Macau e a sua condição como uma invenção pragmática de soberania sino-portuguesa para uma pequena península de uma ilha nas costas de Cantão.

Creio que o afirmado anteriormente mostra que esta era a lógica do possível. Não podia ser outra coisa mais porque os portugueses, ou qualquer outro povo ocidental, não possuíam poder para tal e a China, de livre vontade, não o aceitaria. Mas, também, não podia ser algo de menos, porque os interesses e os lucros por todos partilhados não o permitiram.

Estamos, pois, frente a um modelo de soberania partilhada sino-portuguesa. Uma prática de reduzida e controlada soberania partilhada, por parte dos poderes local e central (Cantão e Beijing) chineses com os portugueses, devida aos ganhos que a situação trazia e que, largamente, superavam os custos e os riscos.

Aos portugueses, em especial aos luso-asiáticos, cabe o mérito, fruto de um processo pragmático de aprendizagem, de terem também sabido, pelo seu lado, encontrar os pontos de convergência e superar ou silenciar os focos de tensão e de possível conflitualidade.

Graças ao pragmatismo náutico-mercantil e à existência de uma fronteira suave ou menos dura, constituída pela comunidade luso-asiática, Macau soube e pôde crescer numa situação limite. Soube inventar-se como ponto de encontro dos extremos oriental e ocidental do Mundo, através de uma lógica de interesses e de lucros comuns e partilhados que fez coexistir, e em certos casos sincretizar, e cruzar as diferenças.

Macau começou por ser, na década de 30 do século XVI, mais um estabelecimento ocasional e temporário do comércio dos portugueses, um entre muitos outros. Mas Macau conseguiu tornar-se no centro de uma sociedade informal sinolusonipónica (marítima, mercantil e financeira). A sua existência foi perdurando e a sua condição criando uma consistência e autonomia próprias e particulares, que foi, sempre, renovando os parceiros da sociedade informal.

Assim, nasceu a prática e a invenção de uma soberania partilhada que torna Macau, desde os séculos XVI e XVII, uma região autónoma especial da China. Região autónoma e especial chinesa só possível graças ao contributo da cidade-portuária internacional de matriz portuguesa, latina, ocidental.

Macau é, pois, uma realidade marítima-mercantil de estatuto difuso, assente num equilíbro de interesses e de lucros, sempre em construção e renovação. É um lugar de parcerias múltiplas e abertas, coordenadas por uma associação de conveniência sino-portuguesa, consciente de que "... é o mundo todo um Anel e a China a pedra preciosa dele... "(9),como diz o Franciscano macaense, Frei Paulo da Trindade, por volta de 1630.

A dimensão cultural de Macau não pode ser pensada fora deste quadro de enraizamento sociológico e civilizacional. A função cultural de Macau não é compreensível senão a partir da cidade--portuária, dos fundamentos marítimo-mercantis, da comunidade autónoma dos "filhos da terra".

A função cultural de Macau nos séculos XVI e XVII é, antes de mais, a de um ponto de encontro de diferenças, entre os extremos do mundo. Um ponto de passagem e de aprendizagem porque exposição viva e permanente dos Extremos Ocidental e Oriental. Local de introdução e de formação rápida dos ocidentais ao mundo da Ásia Oriental e dos orientais à Europa latina e cristã, como vemos, no caso dos primeiros embaixadores do Japão a Portugal e ao Ocidente que, em Macau, aprendem rudimentos de latim, música e costumes ocidentais (1582-1583).

Este ponto de trocas faz com que Macau tenha uma função cultural catalizadora de novidades e diferenças para a China.

Algumas dessas novidades, no plano da cultura comportamental e de massas, serão fácil e rapidamente integradas na civilização chinesa, como são, por exemplo, os casos do amendoim (levado para Cantão logo em 1516), da batata-doce, do milho, do tabaco, da batata e do tomate.

Ao nível do quotidiano, o contacto entre os homens começa a tornar Macau numa sociedade pluri-linguística, onde são possíveis a aprendizagem e o ensino, oral e escrito, de línguas bem distantes e diferentes.

O Dicionário Português-Chinês, organizado, provavelmente, em 1580-1588, é a face mais visível desta função plurilinguística.

Trata-se de um vocabulário essencialmente prático, com termos do dia a dia alimentar, comercial, vivencial. Termos específicos surgem, também, em especial, nas áreas da medicina e astronomia, bem como um conjunto de palavras que constituem uma introdução às formas de ser e de pensar chinesas.

As entradas em português, palavras ou frases, vão desde "aba da vestidura" até "zunir", sendo seguidas por duas colunas correspondentes com, respectivamente, a fonetização e o termo chinês. São mais de dois mil vocábulos traduzidos de forma, ao mesmo tempo, prática e objectiva, pois permitem um vocabulário básico para a vida dum ocidental na China, mas também, os primeiros termos de uma aproximação compreensiva à Civilização Chinesa.

Estamos frente a uma obra colectiva de portugueses, chineses (o irmão luso-chinês, Tchong--Jen Nien-Kiang/Sebastião Fernandes,1561-1621, natural de Macau) e jesuítas italianos (Ricci e Ruggiero). Obra colectiva de mercadores e homens da terra, anónimos, que recolhem os termos no dia a dia, e de missionários jesuítas, ajudados por letrados chineses que coordenam a forma e o sentido destas recolhas.

Obra colectiva e anónima, sistematizada por jesuítas célebres, escrita a várias mãos, e que agrupa latinos e chineses na mesma criação cultural.

Mas este Vocabulário Luso-Chinês, através da fonetização dos caracteres chineses revela uma outra função cultural de Macau.

Macau, torna-se, potenciando sem dúvida heranças já existentes, um ponto de encontro de chineses de diferentes comunidades e regiões. Por isso, a fonedzação do vocabulário ora se faz em mandarim, ora em cantonense e noutros dialectos, com especial destaque para o de Fujian (o dialecto Hokkien).

Macau, nos séculos XVI e XVII, é um centro único de intercâmbio linguístico. Um espaço privilegiado de tradução-interpretação que permite aos macaenses a aprendizagem do cantonense, a língua oral do dia a dia, criando condições de acesso à língua escrita chinesa às élites letradas ocidentais, os missionários jesuítas. Possibilita a chineses, japoneses, coreanos, uma aprendizagem do latim (a língua internacional e intelectual da época) e do português na forma de crioulo-língua franca do comércio e da diplomacia marítimas.

É necessário, a este nível de aprendizagem--ensino, disdnguir um plano prádco e maioritário de um outro minoritário e erudito. Infelizmente temos poucas provas escritas do primeiro, que se exdngue, quase sempre, na função oral do intérprete, mas que sabemos ter tido uma importância real, como o atestam os intérpretes coreanos e chineses ao serviço dos holandeses que sabem português e espanhol.

No plano erudito, o trabalho do ensino e da aprendizagem linguísticas em Macau concentra-se nos missionários jesuítas e nas equipes do seu colégio (primeira escola em 1571).

Macau, cidade autónoma de mercadores, celebra na prática um acordo de monopólio da cultura erudita e teórica, com os missionários, em especial, da Companhia de Jesus. Assim, uma cidade portuária vocacionada para funções culturais prádcas, toma-se também um relevante centro intercultural, no plano erudito-doutrinário.

Sem dúvida que estamos frente a um domínio da cultura clerical religiosa que desempenha funções intelectuais que noutras cidades estão há muito também, mesmo já completamente, laicizadas (casos, por exemplo, da medicina e da impressão).

O que, no entanto, interessa compreender é que a única élite intelectual organizada que, na época, tinha condições para responder ao desafio que Macau também representava, era, sem dúvida, a missão católica e muito em especial a Companhia de Jesus. Em termos de cultura erudita, Macau é, em quase todos os aspectos, uma criação dos Jesuítas e outros missionários católicos.

Olhemos tão só, alguns exemplos maiores. A ciência, a tecnologia e a filosofia ocidentais são introduzidas pelos jesuítas, na China, directa ou indirectamente, através de Macau.

É a cidade-portuária que produz, ou recebe e envia, a tipografia de tipo ocidental, os canhões de fundição moderna (que tiveram uma importância nem sempre bem avaliada na história da China do século XVII, servindo, por exemplo, para aumentar o poder militar Ming nas suas fronteiras, quer terrestres, frente aos manchus, quer marítimas, frente aos ingleses), a cartografia global, os primeiros relógios mecânicos ocidentais, a medicina ocidental e os seus instrumentos, etc.

A tipografia de tipo ocidental, introduzida pelos jesuítas, imprime em Macau em latim e português. A impressão do tipo ocidental será introduzida no Japão, em 1590, a partir de Macau.

A trilateral de interesses e lucros sinolusoni-pónica que sustenta a existência de Macau traduz-se também no plano cultural. Dois dos mais importantes livros então ai impressos são disso testemunho. O De Missione Legatorum Iaponensium ad Romanam Curiam do padre Duarte de Sande é impresso em 1590, e a Arte Breve da Lingoa Japoa do padre João Rodrigues, surge em 1620. Trata-se da primeira gramática ocidental, elementar, da língua japonesa e tal como acontece para o primeiro dicionário ocidental da língua chinesa, Macau é o centro de recolha e de transmissão do conhecimento.

A função cultural de Macau nos séculos XVI e XVII é, pois, essencialmente, a de um centro intercultural-centro de tradução.

Embora dominante, a cultura religiosa não esgota a produção cultural de Macau que, logo a partir das décadas de setenta-oitenta do século XVI começa a tornar-se visível.

Macau em finais do Séc. X¥II. Planta do Arquivo N° 1 da China.

(Rep. da carteira de mapas da edição especial do projecto "Cem anos que mudaram Macau" (1995).

Desta época datam os numerosos "Roteiros de Macau para o Japão", dando instruções sobre o caminho a seguir e a época da viagem: "... quem partir de Macau nesta monção de Junho... ". Da mesma altura e também fruto do trabalho colectivo e anónimo da comunidade de mercadores-navegantes, são os "Diários de Navegação" ou "Roteiros Instrução", do tipo Descrição da viagem de um piloto português indo de Macau para o Japão.

De cerca de 1583, ou um pouco mais tarde, é a anónima "Breve Informação sobre algumas coisas da ilha da China" que, ainda mais explicitamente afirma: "... quando daqui de Macau... ". Este texto de marinharia, centrado no litoral de Macau-Cantão, é acompanhado por uma carta náutica da zona, também feita em Macau, na mesma altura.

Cartografia náutica, uma vez mais anónima e manuscrita, como o chamado "portulano", de cerca de 1580-1590, a Carta de Macau, de cerca de 1590-1600, a Carta de Macau e do Delta do Rio da Pérola, de cerca de 1643, etc. Roteiros, Diários de Navegação, Informações Marítimas, Cartografia. Levantamentos vários, como as Alturas de Alguns Portos da China (1600-1610), atestam o dinamismo cultural da comunidade laica. Cultura prática e objectiva, centrada na náutica e na implicação directa com o comércio, onde, uma vez mais, a presença da trilateral lusosinonipónica é constante.

A partir da década de oitenta, Macau vai recolhendo e organizando informação precisa e especializada sobre, por exemplo, a geografia, a cartografia, a náutica, a língua da China.

Trabalho essencialmente anónimo e colectivo, feito das mil e uma informações vivenciais, orais, escritas, que se vão acumulando. "... Não sabemos mais que de informação... ", ou seja, por testemunho oral doutros, diz, a dado passo, a anónima Breve Informação. Acumulação e aperfeiçoamento graduais de dados com base na "... experiência de quem andou este caminho e outros na China... ".

Ao mesmo tempo, vai-se traduzindo e sistematizando todo este banco de dados. Tradução para português, visível na terminologia cartográfica e geográfica ("... chamão-se estes temporais tufões por os chineses chamarem o vento grande tufun... " /Tai Fun=grande vento) e que atinje a primeira forma sistemática com o Dicionário Português-Chinês.

Sistematização, tradução para latim e impressão que exprimem já objectivos mais vastos. Um livro como o De Missione.... Macau,1590, também uma obra colectiva coordenada e latinizada pelo P. Duarte de Sande S. J. e A. Valignano, é o primeiro que visa também a comunidade intelectual internacional do ocidente, fazendo passar ao mundo alguma da informação sobre a Civilização Chinesa, recolhida e tratada em Macau.

Estes primeiros produtos culturais da cidade-portuária atestam, exemplarmente, a natureza cultural de Macau.

Cultura de uma entidade mercantil de importação-exportação. De um intermediário litoral-marítimo que é uma micro-sociedade autónoma lusoasiática que encontra o essencial do lucro e da existência na rede de serviços locais dos mares da China e do Sueste Asiático.

Por tudo isto, antes de mais, uma Cultura da Tradução. Uma cultura que assenta em intérpretes e tradutores que recolhem, organizam e difundem conhecimento, através da passagem das línguas chinesa ou japonesa, para as línguas latina e, nalguns casos, portuguesa. Difusão de conhecimento e também propaganda doutrinária, em especial disseminação de ideias e ideais religiosos, não apenas do Cristianismo na China, mas também e, ao mesmo tempo, do Confucionismo e do Budismo Chineses, no ocidente.

É em Macau, a partir de 1579, que M. Ruggiero (1543-1607), ao mesmo tempo que aprende a "língua e as letras chinesas" (M. Ricci), Começa o projecto de traduzir o Xhuq-Tsi Syz-Shue, os chamados Quatro Livros de Confúcio.

Até 1583, Ruggiero vai fazendo essa tradução, sem dúvida com a ajuda de letrados chineses. Possivelmente, do mesmo letrado de que desconhecemos o nome e que participou na elaboração do T'ien-chu, o catecismo cristão em chinês, impresso em Macau em 1581 ou nos inícios de 1582. Devem, aliás, datar igualmente destes anos os primeiros exercícios de tradução de M. Ruggiero, então já com alguma confiança e conhecimento para se abalançar a tal empresa.

Em seguida, na China, entre 1583 e 1588, M. Ruggiero continua os ensaios de tradução do "Quadrivolume de Confúcio".

No regresso a Roma, M. Ruggiero vai publicar, em latim, a primeira parte do Ta-hsueh/ "O Grande Estudo" que é o primeiro dos chamados "quatro livros" de Confúcio. São apenas dezasseis linhas em latim, de um livro chinês, "Liber Sinensium", apresentado como "... um certo livro de moralidade... ".

Esta tradução latina dos inícios do Ta-hsueh surge na obra de Antonio Possevino Bibliotheca Selecta qua agitur de ratione studiorum.... Roma,1593, reimpressa em 1603 e 1607.

O que interessa destacar é que em Roma,1593, é impressa, pela primeira vez, uma tradução de clássicos chineses. Uma reduzida tradução dos inícios- do Ta-hsueh /"O Grande Estudo" de Confúcio. Tradução começada em. Macau, nos inícios da década de oitenta e resultante do diálogo entre M. Ruggiero e letrados chineses.

A primeira tradução ocidental de Confúcio nasce em Macau. O primeiro texto confuciano impresso na Europa é fruto de Macau. Fruto do multilinguismo da cidade-portuária. Tradução começada em Macau, provavelmente em 1581-1582, e impressa em Roma em 1593.

Esta tradução de Confúcio, feita em Macau, é contemporânea da elaboração do Dicionário Português-Chinês. Ambas revelam Macau, na década de oitenta do século XVI, como o grande centro de tradução-interpretação Ocidente-Oriente. Por outro lado, esta impressão feita em Roma, em 1593, é um dos primeiros textos impressos europeus resultantes da produção cultural de Macau.

No século XVI, citando os casos mais notáveis, teremos ainda a edição de Amesterdão,1595, Jan Huygen van Linschoten-Reysgheschrift de Roteiros de Macau da Carreira do Japão e da Navegação das Costas da China, obras escritas nos anos de 1560-1570, e a edição, em Londres,1599, da parte relativa à China, do De Missione, de Duarte de Sande, escrito e impresso em Macau em 1590.

Produção cultural laica de uma comunidade autónoma mercantil e, por isso mesmo, vocacionada para um saber pragmático de utilidade imediata. Geografia náutica e cartografia marítimas com directas implicações no comércio e no dia a dia. Um saber para fazer, um saber para poder que se manifesta também no primeiro Dicionário Português-Chinês.

O vocabulário quotidiano presente na obra e a participação organizadora dos jesuítas mostra o encontro das culturas laica e clerical. Um encontro regulado pelo ideal de conhecimento verdadeiro, de um saber objectivo. Uma vez mais, do saber para o poder e o fazer, neste caso, tanto comercial como de missionação.

Produção cultural clerical da élite intelectual da Companhia de Jesus, que através de textos impressos como o De Missione.... sistematiza e trata a informação, difundindo-a no Ocidente, e também no Japão e na América, através da língua internacional da intelectualidade, o latim.

Estes primeiros produtos culturais dos finais do século XVI revelam uma cultura laica e prática, fundamentalmente manuscrita, que produz materiais de alto interesse estratégico, que interessam tão só a uns poucos voltados para a navegação e o comércio nos mares da China e na zona de Cantão.

Uma cultura de cruzamento laico e clerical, sistemática e prática, que organiza a informação tornando-a acessível a vários grupos ocidentais e orientais. Ao mesmo tempo, uma cultura clerical, sistemática e teórica, também objectiva e sem esquecer o valor da utilidade que recolhe, organizando e tratando os conhecimentos, e colocando-os em parte ao dispor das comunidades intelectuais ocidentais através de textos impressos em latim e textos orientais, através de textos impressos em chinês (como é, por exemplo, o caso dos catecismos de impressão xilográfica, em Cantão ou Macau). Ao mesmo tempo, a élite intelectual da cidade-portuária concebe um projecto escolar e pedagógico complementar da tradução e da impressão, que envolve o ensino desde o nível mais elementar ao universitário e uma grande biblioteca ocidental no Oriente.

Cultura laica ou de contacto com a élite cultural clerical que é sempre, de uma forma mais ou menos directa, uma cultura de tradutores, de intermediários, que aproximam as diferenças linguísticas e civilizacionais.

Este Centro Intercultural é, antes de mais, um centro interlinguístico, um laboratório de línguas e de tradução. Uma ponte intermediária que recolhe, amplifica e transmite informações sobre os extremos ocidental e oriental do mundo.

Centro vivo de tradução responsável directo por alguma da construção das línguas portuguesa, chinesa, japonesa e não só, graças ao alargamento ao léxico de novidades naturais e humanas.

Centro intercultural coordenado por mercadores e missionários, ou seja, laicos e clérigos, pragmáticos e doutrinários. Centro de encontro de gentes bem diferentes. Antes de mais, portugueses, luso-asiáticos e chineses, "... os moradores da qual são quase todos portugueses e outros cristãos mestiços e naturais da terra... "(10) Mas, também, indianos, malaios, japoneses, coreanos, africanos. E à medida que o tempo passa, cada vez maior variedade de ocidentais, sobretudo latinos (espanhóis, italianos, franceses) mas, também, pelos acasos da concorrência mercantil, ingleses, holandeses, mesmo dinamarqueses...

Uma tal diversidade de povoamento, ditada pela cidade-portuária, cria um palco de privilegiada observação e de troca de diferentes ideias, valores, costumes, línguas, etc.

Este centro intercultural é, logo desde o século XVI, um autêntico noticiário da China para o Ocidente. Macau é, então, para a Europa e para o Mundo, em termos culturais, o "notícias da China" ( e daí, a frequência e a importância da produção epistolar em Macau).

Sobre esta função de porta-voz da realidade e do conhecimento ocidentais da China, apenas mais dois casos. Um exemplar do De Missione... ,que é também uma sintética geografia civilizacional da China e do Japão, impresso em Macau/l 590, é aprisionado pelos ingleses na " Madre de Deus", em 1592, ao largo dos Açores. Em 1599 surge a tradução do latim para inglês da parte do livro sobre a China, na segunda edição de R. Hakluyt, Principal Navigations, com o título de Excellent Treatise of the Kingdom of China.

No México, em 1587, Alonso Sanchez, com base na sua breve estadia em Macau (1582 e 1584), fornece ao jesuíta José de Acosta elementos sobre a estrutura da língua chinesa. Em Sevilha, em 1590, é impressa a História Natural y Moral de Ias Indias... de José de Acosta que, nos capítulos 5 e 6 do livro sexto, trata da escrita e da cultura chinesas.

Macau está presente nestes livros impressos na Europa, em inglês e espanhol. Presença da identidade plural, da função intercultural de ponto de encontro dos extremos ocidental e oriental do mundo e da função de recolha e amplificação das mensagens sobre a China.

Em termos culturais, e graças à sua identidade plural, Macau é, nos séculos XVI e XVII, o lugar, por excelência, onde as civilizações do Extremo-Ocidente e do Extremo-Oriente, através do encontro e mesmo da unidade na diferença, aprendem a ser e a fazer Civilização (Planetária).

NOTAS

(1) "... além do porto e quamntom esta outra porto que se chama oquem he amdadura p terra de tres dias e por mar huu dia & huna noite este he o porto dos lequjos he doutras nacoees... " Tomé Pires — Suma Oriental, ed. A Cortesão, Coimbra, I. Universidade,1978, p.368 e 369.

(2) Sobre a rede marítimo-mercantil nipónica e o papel intermediário do reino de Ryukyu, veja-se C. von Verschuer — Le Commerce Extérieur du Japon: Des Origines au XVI Siècle, Paris, Maisonneuve, 1988, em especial a partir da página 101.

(3) Veja-se a transcrição de Jih-pen i-chien (Um Espelho do Japão), de cerca de 1564, em W. Robert Usellis—As Origens de Macau, Macau, M. Marítimo, 1995, p.24-25.

(4) Componente nipónica ainda insegura na década de trinta, como se vê nas flutuações do seu intermediário, o reino de Ryukyu, deslocando-se de Malaca para Patane, no quadro das especiarias da Ásia do Sueste, como informa Vasco Calvo, em 1536, na carta escrita de Cantão, Enformação das Cousas da China, ed. R. D' Intino, Lisboa, I. Nacional, 1989, p.55.

(5) Carta de Leonel de Sousa, Cochim, 15 de Janeiro de 1556, para D. Luís, Ed. Jordão de Freitas, Archivo Historico Portuguez, Vol. VIII, Lisboa, 1910, p.210.

(6) Livro das Cidades, e Fortalezas, que a Coroa de Portugal tem nas Partes da Índia, ed. F. Mendes da Luz, Lisboa, C. E. H. U.,1960, Fol. 75 (modernizámos o português).

Arrezoado sobre a resposta da Cidade...,3-2-1621, Biblioteca da Ajuda,49-V-5, Fol.350.

Carta do Senado de Macau aos 24-12-1637, A. N. T. T., Documentos Remetidos da Índia, 41, Fol. 221.

(9) Frei Paulo da Trindade-Conquista Espiritual do Oriente, Ed. Felix Lopes, Lisboa, C. E. H. U.,1962, vol. I, p.51.

(10) Livro das Cidades, e Fortalezas, que a Coroa de Portugal tem nas Partes da Índia, ed. F. Mendes da Luz, Lisboa, C. E. H. U.,1960, Fol.75.

* Licenciado em História (F. L. U. L.,1978). Membro da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1988-1989). Doutorado em Cultura Portuguesa (F. L. U. L.,1992). Professor Auxiliar da Faculdade de Letras de U. L. desde 1992.

Com dezenas de títulos publicados, é um dos mais relevantes autores em temas de Cultura dos Descobrimentos, tendo também publicado alguns trabalhos históricos sobre Macau, dentro do período da sua especialidade -- o Século XVI.

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