Urbanismo/Arquitectura

MACAU—DA FUNDAÇÃO AOS ANOS 70
Evolução sócio-económica, urbana e arquitectónica*

Maria Calado (historiadora) ; Maria Clara Mendes (geógrafa) ; Michel Toussant (arquitecto)

Planta da Cidade de Macau no início do séc. XIX, destacando-se na nova estrutura urbana o triângulo Praia Grande — Alfândega — Bazar / Mercado, pólos das actividades comerciais que sustentaram a primazia regional do porto de Macau e que se expressam nas Casas das Companhias Europeias de Comércio Marítimo. Edição da Direcção dos Serviços de Turismo, Macau,1986.

DA FEITORIA DE AMACAO À CIDADE DO NOME DE DEUS NA CHINA

Depois do encerramento temporário do porto de Cantão aos estrangeiros, em 1522, a China estabeleceu uma alfândega, a sul da península de Heung-Shan, para fiscalizar as trocas comerciais e o acesso à região. Esta medida, que favoreceu a expansão do comércio chinês no Sul, não terminou com a presença dos estrangeiros, particularmente dos portugueses, que, com grande risco, faziam «comércio ilegal» e tinham em Lampacau o mais importante entreposto no caminho ou rota de Cantão. A fixação e o abastecimento nesta região da China era fundamental como suporte dos contactos com o Japão, onde os portugueses acorriam regularmente desde 1543.

Em 1553, o comandante Leonel de Sousa, capitão-mor da viagem do Japão, fez escala em Macau e estabeleceu um acordo com as autoridades chinesas, fixando condições especiais para o comércio português na região, e obteve autorização para efectuar uma feira anual no local, legalizando assim os contactos que se vinham tornando cada vez mais frequentes. Deste modo se estabeleceu a feitoria num ponto fundamental para o acesso a Cantão, cujo porto voltou a abrir-se regularmente aos portugueses, uma vez por ano, a partir de 1555. A população da feitoria de Lampacau transferiu-se para o novo entreposto, que, em 1557, já era o principal centro do comércio sino-português. Em troca, os portugueses controlavam a presença dos estrangeiros e comprometiam-se a manter a segurança e a impedir ataques inimigos.

A formação e desenvolvimento da cidade pelos portugueses ficou a dever-se à dinâmica económica das iniciativas dos comerciantes da viagem do Japão e só bastante mais tarde se verificou o reconhecimento jurídico-administrativo de tipo oficial. Uma das primeiras referências portuguesas ao local é feita por Fernão Mendes Pinto em carta datada de 1555, na qual refere o estabelecimento de Amacao. No entanto, só em 1557 se verificou um reconhecimento oficial com a integração de Macau na Diocese de Goa nos domínios do Padroado da Coroa de Portugal, transitando no ano seguinte para a nova diocese de Malaca em cuja jurisdição permaneceu até à criação de um bispado próprio, em 1575. Assim, ficou a dever-se à estrutura administrativa de carácter religioso a identificação e institucionalização do território, cuja área de influência abrangia também os núcleos cristãos da China e do Japão.

Apenas em 1586 o Governo português, através do vice-rei da Índia, reconheceu os estatutos da cidade e aprovou as estruturas governativas e a própria designação de «Cidade de Santo Nome de Deus de Macau na China». Considera-se neste documento que a cidade e os seus moradores têm os mesmos deveres e privilégios dos de Santa Cruz de Cochim, na Índia, que por sua vez se regulavam pelos estatutos do foral de Évora. Sendo aquela cidade da costa de Malabar a mais importante do Oriente Português na época, a atribuição de um foral semelhante a Macau revela a importância da nova cidade à entrada da China. As estruturas representativas da população, nomeadamente o Senado, protestaram junto do Governo de Lisboa no sentido de lhes serem conferidos direitos mais amplos, com um estatuto semelhante ao da cidade do Porto, mas esta proposta nunca foi considerada e atendida.

ORGANIZAÇÃO DO TERRITÓRIO E DEFINIÇÃO DAS ESTRUTURAS DE PODER

O território ocupado pelos portugueses não teve, à partida, dimensões e fronteiras bem definidas. Desconhece-se se na concessão chinesa era estabelecida uma área, e só as fontes portuguesas do século XVIII, nomeadamente Frei José de Jesus Maria, em Ásia Sínica e Japónica,remetem os limites fixados a «uma légua de extensão, por um tiro de peça em comprimento», medidas, sem dúvida, aproximadas e calculadas a partir da cidade setecentista.

Na prática, os portugueses instalaram-se junto do porto e foram construindo a cidade da Praia Pequena à Praia Grande e do Monte à Penha. Para o interior, no sentido do istmo, ficavam os campos e as aldeias dos chineses, que também ocupavam a faixa litoral na outra extremidade da península. Os primeiros limites da cidade portuguesa e a separação do território chinês foram definidos pela construção de uma cerca de madeira, espécie de tabique que simultaneamente estabelecia a forma do perímetro, controlava os acessos e permitia a colocação de núcleos defensivos. Este processo foi sucessivamente usado pelos portugueses desde as primeiras cidades fortificadas no Norte de África até aos estabelecimentos costeiros do Índico e do Pacífico. Próximo da Igreja de Santo António abria-se a porta do mesmo nome, que dava acesso aos campos chineses e ao mesmo tempo permitia o abastecimento do aglomerado e o controlo de entradas. A defesa terrestre desta zona era assegurada pela Fortaleza de Patane ou Palanchica, inicialmente simples plataforma com algumas peças de artilharia. A linha de costa era vigiada estrategicamente a partir das igrejas implantadas em sítios elevados e algumas delas equipadas militarmente. Os jesuítas instalaram a defesa do respectivo convento numa vigia que, juntamente com o Fortim da Guia, funcionava como núcleo avançado da defesa da cidade contra a pirataria. Não existiam, portanto, muralhas e fortes definitivos, pois os chineses obstaram sempre à sua construção, evitando, consequentemente, que o poderoso equipamento militar dos portugueses pudesse voltar-se para o interior.

Embora teoricamente a feitoria e depois a cidade dependessem do capitão-mor da viagem ao Japão e hierarquicamente do vice-rei da Índia e do rei de Portugal, na prática o sistema mostrou-se desajustado e foi necessário encontrar uma forma de governo local mais eficaz. O capitão-mor só residia na cidade alguns meses por ano, durante o período em que a frota ia abastecer-se ao Japão. Assim, os moradores organizaram a administração local, constituída inicialmente por dois representantes eleitos entre os comerciantes e por um responsável pela defesa, formando o conjunto uma espécie de triunvirato. Era uma forma governativa de tradição mediterrânica, baseada no modelo das estruturas do poder local português...

Página seguinte: Macau antes do estabelecimento dos portugueses (primeira metade do séc. XVI) Templos Chineses 1. Templo da Barra ou de A-Ma (Ma Kok Miu) 2. [Antigo] Templo de Kun Iam (Kun Iam Gu Miu) Áreas ocupadas 1. Barra 2. Patane 3. Mong-Há

Este governo passou a ser, na prática, a entidade representativa nas relações comerciais e políticas com a China. Na feira de Cantão ou mesmo nas questões de abastecimento à cidade e nos pleitos locais entre chineses e portugueses, eram os representantes dos moradores quem dialogava com as autoridades do império. O Governo central português era apenas titular. A própria morosidade dos contactos fazia com que uma ordem ou lei emanada de Lisboa, Cochim ou Goa chegasse a Macau tardiamente e sem qualquer operacionalidade. O hábito acabou por se tomar regra, de tal modo que, quando, a partir de 1580, se pretendeu introduzir a autoridade espanhola e fazer reconhecer pela China a nova soberania, o vice-rei de Cantão não a aceitou, alegando que quando se fundou Macau as autoridades eram portuguesas e na prática todos os assuntos tinham sido sempre resolvidos com os representantes dos moradores. Esta atitude forçou a aprovação de um governo e a definição dos estatutos da Cidade do Nome de Deus (de Macau) na China.

Criou-se a defesa local e instituiu-se o Senado, que na sua fórmula mais elabōrada era composto por dois juízes ordinários, três vereadores e um procurador. A presidência cabia ao bispo ou ao capitão-de-terra, que tinha a seu cargo a segurança do território. Os juízes ordinários ocupavam-se das causas cíveis e também da segurança e relacionamento entre os moradores. Os vereadores eram responsáveis pela administração e organização da legislação de tipo camarário (posturas, escrituras, aforamentos, controlo das receitas, etc.). O procurador era a figura mais importante e dinâmica, pois representava a cidade nas relações com as autoridades chinesas. Constituiu-se também um Conselho de Homens Bons, que o Senado consultava acerca dos assuntos mais importantes de carácter judicial, e regulamentou-se a administração financeira, fixando um imposto calculado sobre as mercadorias e pago pelos comerciantes para cobrir as despesas na cidade.

Vivendo da prosperidade do comércio da carreira do Japão, cujos barcos pagavam um imposto chamado «caldeirão», a população de Macau dependia tàmbém da produção dos campos chineses da vizinhança e da zona para além do istmo. Em 1573, os chineses condicionaram as trocas com Macau, fixaram o imposto ou tributação anual chamado «foro do chão» e instalaram um controlo à entrada do istmo. Remonta a esta época a fundação da Porta do Cerco, que se destinava também, indirectamente, a controlaro comércio com o Japão, em fase de grande expansão desde 1568. Apesar de a cidade depender da soberania portuguesa, na prática as suas estruturas e desenvolvimento local eram controlados e condicionados pela China. Inicialmente, eram os mandarins subalternos da região que supervisionavam, mas, a partir de 1509, o vice-rei de Cantão determinou que dentro da cidade devia viver um mandarim, para contactar com o Senado e administrar a Justiça em relação aos súbditos chineses, que constituíam uma população cada vez mais numerosa. Em 1597, as autoridades chinesas iniciaram diligências para o estabelecimento da alfândega no local da Praia Pequena, e publicaram «chapas» ou leis proibindo a admissão de japoneses na cidade e a construção de novos prédios por parte dos mercadores portugueses. A reconstrução de casas e armazéns só era permitida no mesmo local, tentando deste modo controlar a expansão e os limites portugueses no território.

Página seguinte: Macau no final do século XVI: o estabelecimento da "Cidade do Nome de Deus na China" Templos Cristãos 1. Igreja de São Lourenço. 2. Convento de Nossa Senhora da Graça. 3. Convento de São Domingos. 4. Sé. 5. Convento de São Francisco. 6. Capela de São Lázaro. 7. Igreja de Santo António. Templos Chineses 1. Ma-Kok-Miu. 2. Kun-Yam Ku-Miu. Edificações Militares 1. Fortaleza da Barra. 2. Fortaleza de São Francisco. 3. Fortaleza de São Paulo do Monte. 4. Forte de Patane. Comércio 1. Núcleo comercial. 2. Campo da Feira. Aldeias Chinesas 1. Barra. 2. Patane. 3. Mong-Há.

O relacionamento dos grupos de população foi definido e, ao mesmo tempo que os mandarins proibiam aos seus súbditos a prestação de serviços pesados em casa de ocidentais, o Senado não autorizava a compra de chineses como escravos, quer para serviços domésticos quer para exportação. Progressivamente, Macau ia-se transformando na estrutura mais adequada ao serviço do comércio externo da China, cujo monopólio foi estabelecido pelas autoridades e atribuído a uma companhia comercial que operava exclusivamente no porto de Cantão.

Sem dúvida a estrutura comercial determinou a primeira forma organizativa de tipo civil, mas logo também a Igreja Católica se estabeleceu como sistema de poder e factor aglutinador da sociedade e do espaço urbano, tendo a nível internacional contribuído para a identificação e legalização do território. Desde o período da formação da feitoria que os missionários católicos se radicavam no local e apoiavam as instalações comerciais portuguesas. A China era um espaço redescoberto, com tradições antigas de evangelização e o Japão tornara-se, em 1543, uma zona nova e potencialmente apta à missionação. A região do estuário do rio das Pérolas era zona de passagem para o interior da China e para o Japão. Os jesuítas foram os primeiros a frequentá-la e o próprio S. Francisco Xavier acabou por falecer na ilha de Sanchuan, em 1552, a caminho do Japão.

A partir de 1557, com a inclusão do território de Macau na diocese de Goa, intensificou-se a instalação de missionários e padres na cidade. Em 1558, construiu-se a primeira igreja paroquial da invocação de Santo António, junto do estabelecimento português em Patane, nas proximidades do porto. Aos jesuítas, que se instalaram em Santo António até à construção das casas da Companhia, com capela e sistema defensivo próprio, no Monte, em 1565, seguiram-se outras ordens religiosas, como a dos agostinhos, que construíram a sua igreja em 1560, dos franciscanos, que iniciaram um grande convento na periferia da cidade, em 1580, e a dos dominicanos, em 1587. Algumas destas fundações dependiam inicialmente de jurisdição religiosa de províncias espanholas, transitando depois para os frades portugueses, como o convento dos dominicanos, em 1588, e o de Nossa Senhora da Graça ou dos Agostinhos, em 1589.

Página seguinte: Macau no final do século XVII: cidade de igrejas e fortalezas entre Malaca e o Japão Edificações Militares 1. Fortaleza da Barra. 2. Fortaleza São Francisco. 3. Fortaleza São Paulo do Monte. 4. Forte Patane. 5. Baluarte São João. 6. Fortim São Januário. 7. Fortaleza Nossa Senhora da Guia. 8. Fortim São Pedro. 9. Fortaleza Nossa Senhora do Bom Parto. 10. Forte Nossa Senhora Penha de França. Templos Cristãos 1. São Lourenço. 2. Convento de Nossa Senhora da Graça. 3. Convento São Domingos. 4. Sé. 5. Convento São Francisco. 6. Capela São Lázaro. 7. Santo António. 8. Convento São Paulo. 9. Capela Nossa Senhora da Guia. 10. Convento Santa Clara. 11. Capela Nossa Senhora da Penha de França. Templos Chineses 1. Ma-Kok-Miu. 2. Kun Yam Tong. 3. KunYam Miu. Aldeias Chinesas 1. Barra. 2. Patane. 3. Mong-Há. 4. São Lázaro. 5. Lon-T'in-Tchin. 6. San Kiu. 7. Macau Seac. 8. Tanque Mainato. Comércio 1. Núcleo comercial. 2. Campo da feira. Fábricas 1. Cal. 2. Fundição.

Com a criação do bispado-diocese de Macau, em 1575, a estrutura religiosa adquiriu nova dimensão e abrangeu não só o território mas incluiu também as missões da China e do Japão até à criação de um bispado local, em 1588. A primeira sede diocesana instalou-se na Igreja de Santo António, onde veio a permanecer até à construção da catedral, em 1576. Com o aumento da população e a expansão urbana no sentido do Monte para a Barra, foi levantada, no final do século XVI, a paroquial de S. Lourenço, próximo do Convento de Santo Agostinho. Na periferia da cidade, na zona de transição para os campos chineses, construiu-se, logo no início, uma leprosaria com a respectiva capela de S. Lázaro. Às igrejas e conventos edificados no final da época de Quinhentos veio juntar-se, em 1634, o das freiras clarissas, instalado nas proximidades do de S. Francisco. As ordens religiosas estavam também instaladas nas ilhas e acabaram por se tornar donatárias, nomeadamente da ilha Verde (os jesuítas) e da ilha da Lapa, ou dos Padres (os jesuítas e os agostinhos), onde fundaram capelas e igrejas junto das povoações de pescadores chineses.

O poder episcopal e o das ordens religiosas abrangia não só o domínio espiritual mas também o temporal. A Igreja era, de facto, detentora de grande número de propriedades e bens e sobretudo a condutora das populações. Alguma legislação portuguesa isentava de direitos a importação de haveres e alfaias de culto destinadas à missionação, o que veio a favorecer a acumulação de bens.

Nem sempre, porém, foi pacífica a partilha do poder e a definição do campo de acção entre o bispo (diocese), os diversos conventos (ordens) e as estruturas civis. O poder da Igreja ultrapassava frequentemente o domínio religioso e não raro ingeria-se na própria governação, tendo os estatutos da cidade legalizado a sua interferência na esfera civil ao designar o bispo como possível presidente do Senado. Estabeleceu-se, desde o início, o hábito de o Senado pagar também um tributo ou côngrua ao bispo, o que adquiriu foros de direito consuetudinário até ao século XVII e constituiu sempre polémica e divergência em épocas de crise económica mais aguda. As relações entre as diversas estruturas do poder eram confusas e sem limites definidos. O Senado e a Igreja interferiam no governo local e, muitas vezes, aquele órgão ficou na dependência económica da diocese ou das ordens religiosas, a quem se via obrigado a solicitar empréstimos.

Página seguinte: Macau no final do século XVIII: as "Providências Régias" de 1783 e a cidade das "duas cidades" Edificações Militares 1. Fortaleza da Barra. 2. Fortaleza São Francisco. 3. Fortaleza São Paulo do Monte. 5. Baluarte São João. 6. Fortim São Januário. 7. Fortaleza Nossa Senhora da Guia. 8. Fortim São Pedro. 9. Fortaleza Nossa Senhora do Bom Parto. 10. Forte Nossa Senhora da Penha de França. Templos Cristãos 1. São Lourenço. 2. Convento Nossa Senhora da Graça. 3. Convento São Domingos. 4. Sé. 5. Convento São Francisco. 6. Capela São Lázaro. 7. Santo António. 8. Convento São Paulo. 9. Capela Nossa Senhora da Guia. 10. Convento Santa Clara. 11. Capela Nossa Senhora da Penha de França. 12. Capela Fortaleza da Barra. 13. Capela Bom Jesus. 14. Seminário S. José. Templos Chineses 1. Ma-Kok-Miu. 2. Kun Yam Tong. 3. Kun Yam Miu. 4. Lin Fong Miu. 5. Soit Ut Kun Miu. 6. Lin K'ai Miu. 7. Kuan Tai Miu. Aldeias Chinesas 1. Barra. 2. Patane. 3. Mong-Há. 4. São Lázaro. 5. LongT'in-Tchin. 6. San Kiu. 7. Macau Seac. 8. Tanque Mainato.

A Igreja, embora integrada no Padroado Português, respondia em última instância perante o Papa, entidade poderosa a nível internacional, e o Senado perante a hierarquia portuguesa desde o capitão-mor da viagem ao Japão ao vice-rei e ao Governo central da Coroa. Nem sempre as ordens e determinações de Lisboa e Goa foram bem aceites e executadas pelo Senado, que realisticamente se ajustou à realidade prática do território, ocupado simultaneamento por portugueses e chineses. O procurador negociava com o representante das autoridades da comunidade chinesa—o mandarim, a quem entregava leis portuguesas e em troca recebia as «chapas», ou determinações da legislação chinesa. No âmbito das estruturas chinesas, a hierarquia definia-se verticalmente desde os mandarins ao vice-rei (no caso de Macau, o de Cantão) e ao imperador. Sem dúvida, o Senado foi, ao longo da história, a estrutura fundamental nesta complexidade e confluência de estruturas, adaptando a legislação portuguesa à dinâmica das relações locais com a comunidade chinesa e o império.

Depois da fundação, o aspecto mais significativo na primeira metade do século XVII foi a criação de uma estrutura governativa representativa do poder central, mas independente do capitão-mor da viagem ao Japão, cuja autoridade deixara de ter a anterior projecção e força quando o comércio com aquele país foi dificultado e proibido oficialmente. Os sucessivos ataques dos holandeses nas zonas da Praia Grande e da Praia de Cacilhas só podiam ser repelidos com uma segurança efectiva e organizada na cidade. Por isso, em 1616, o Governo, através do vice-rei da Índia, nomeou, para a cidade de Macau, um governador de guerra, independente do capitão-mor da viagem ao Japão, estrutura a que se juntou, em 1622, a organização de um Conselho Governativo, que deu origem à criação do governo em 1623. D. Francisco Mascarenhas foi o primeiro governador e capitão-geral da cidade e representante do Governo central, cujas atribuições eram essencialmente a defesa militar do território. No entanto, apesar de definitiva, esta estrutura transformou-se num órgão de poder extremamente frágil, devido às sucessivas tensões entre o governador e o Senado e sobretudo aos numerosos titulares que ocuparam o cargo durante períodos muito curtos. O século XVII foi, em Macau, no âmbito português, um período de crise de autoridade, onde a Igreja continuou a ser a estrutura mais estável e o Senado aquela que teve aceitação prática perante as hierarquias chinesas, as quais, inversamente, viram os seus poderes reforçados.

A CIDADE CRISTÃ E OS AGLOMERADOS CHINESES DESENVOLVIMENTO E ORGANIZAÇÃO DA ESTRUTURA URBANA

O comércio com o Japão floresceu e os chineses, por sua vez, incrementaram as relações comerciais com Macau e Cantão. Esta cidade permaneceu como porto principal, mas Macau tornou-se, na segunda metade do século XVI, um entreposto importante, e ocupava a mesma posição, à escala mundial, que Sun Wui, Kuang-Hoi e Shin-Hing. Os navegadores esperavam por ventos mais favoráveis e construíram as suas casas, os padres ergueram as suas igrejas e as suas missões, lado a lado com os armazéns dos mercadores, e os refugiados das terras orientais eram bem-vindos à Igreja Católica.

Montalto Jesus (M. Jesus,1902, p.95) calculava que a população portuguesa, inicialmente de 500, subira para 900 em 1563, excluindo as crianças, os malaios e os negros. Numerosa população chinesa veio a Macau contactar com os portugueses. A maioria era constituída por mercadores, mas existem referências a algumas comunidades camponesas. Junto a Mong-Há, os portugueses plantaram alguns dos produtos trazidos do Ocidente (batata-doce, milho e amendoim) com os quais os chineses de Heugshan se familiarizaram. A batata-doce expande-se rapidamente pela China, sendo Kut-Tai o foco difusor de maior relevância.

Distribuição da População por Freguesias em 1878

Após a chegada dos portugueses, para além da introdução de novos produtos agrícolas foram-se criando actividades ligadas às novas funções económicas. Macau era então o entreposto donde as matérias-primas da China eram exportadas, partiam os juncos para a Malásia, donde voltavam carregados de pimenta, especiarias e sândalo. Ligada a esta actividade surge uma área de armazenagem, junto ao porto, e um espaço para mercadorias limitado pela R. de Tercena, pelo templo de Sam-Kai-Ui, à direita, tendo em frente S. Paulo, e à retaguarda o Porto Interior. Os portugueses acampavam temporariamente na R. dos Mercadores, designada pelos chineses por Ieng-Tei-Kai, que significa <>. Este conjunto formava o núcleo comercial e estava protegido dos criminosos por uma porta de ferro cuja existência só perdura na toponímia chinesa das ruas dos Ervanários e de Nossa Senhora do Amparo. Os topónimos chineses correspondentes são respectivamente Kuan-Tch'in-Tcheng-Kai e Kuan Tch'in-Han-Kai, que podem traduzir-se por a <> e <>.

A prosperidade de Macau e o seu domínio pelos portugueses não agradaram aos chineses, que, em 1573, construíram as Portas do Cerco (Kuan-Chap), verdadeira fronteira na qual os mandarins colectavam impostos sobre os bens que transitavam entre Macau e Heugshan.

De início, a porta funcionava apenas uma vez por semana, mas depois passou a ser aberta diariamente pela manhã e fechada à noite. O abastecimento a Macau fazia-se por uma feira que inicialmente tinha lugar de cinco em cinco dias. Posteriormente, realizou-se quinzenalmente e os espaços para comerciar correspondiam ao actual acesso às Portas do Cerco, definido pelo istmo Ferreira do Amaral e R. do Hipódromo. Após a construção das Portas do Cerco, a soberania portuguesa foi-se limitando e definindo. O mandarim impunha certas normas tendentes ao controlo da população, do comércio e do domínio de construções e edifícios, do número de barcos fundeados no porto e cobrava impostos alfandegários.

Contudo, a comunidade portuguesa guiou o comércio. Era um comércio que os lusitanos tinham aprendido a conduzir—proveitoso mas improvisado. E, ao contrário de Goa, Cochim, Columbo e Malaca, que foram enriquecidas pelos portugueses, Macau foi criação portuguesa, floresceu do nada, tornando-se um rico entreposto entre Malaca e o Japão.

Além de grande centro de mercadores e navegadores, o papel mais relevante foi desempenhado pelos missionários. A Igreja Católica conferiu a Macau um cariz que ainda hoje se reflecte na organização do espaço. Fixaram-se diversas Ordens Religiosas, que marcaram o aglomerado com a construção das suas igrejas e conventos. É em torno delas que a população se fixa, mas são os jesuítas que polarizam a maior concentração. Os portugueses residiam em casas luxuosas e estavam relacionados com as melhores famílias da Índia. Acumulavam grandes fortunas graças ao comércio com o Japão e Manila, favorecidos pelo facto de os espanhóis terem desistido do comércio directo.

Esta prosperidade motivou o interesse de outros povos, que atacaram a cidade em 1604,1607,1622 e 1627. Os sucessivos ataques tornaram premente a organização de um sistema defensivo eficaz. As autoridades chinesas, que sempre obstaram à colocação de fortificações de grande porte, acabaram por ceder e, em 1622, responsabilizaram os portugueses pela defesa da zona.

Para melhorar o rudimentar equipamento quinhentista, renovaram-se as velhas fortalezas, no início do século XVII, após o primeiro ataque holandês.

Apesar da prosperidade do comércio, a cidade conheceu uma evolução incerta porque se empola ou esvazia de acordo com os obstáculos colocados pelos portugueses ou pelos mandarins. Considerada como praça-forte em 1619, contava dois anos mais tarde com cerca de 700 a 800 portugueses e mestiços e 10 000 chineses. Estes fixaram-se no arrabalde, e além de se constatar o incremento das aldeias já existentes registou-se o aparecimento de novos núcleos chineses.

Fora das muralhas já existiam sete aldeias chinesas, duas de pescadores, em pontos extremos da península (Barra e Macau Seac), e cinco entre as muralhas e Mong-Há (Patane, San Kiu, Mong-Há e S. Lázaro e Lon-Tin-Shing). Mantinham a estrutura tradicional, a regularidade do alinhamento de casas modestas de planta rectangular, cobertura de duas águas, numa uniformidade apenas alterada pela adaptação à morfologia do terreno onde se situavam, pela relação com a paisagem envolvente (água-pescadores, terra cultivada-agricultores) ou existência de algum edifício importante.

Distribuição da População por Freguesias em 1910

Junto ao mar localizavam-se duas fábricas. Uma relacionada com a preparação de cal, derivada da casca de ostra queimada. Desta actividade resulta o topónimo da Rua do Chunambeiro, que em chinês significa «forno de cal» e tem a sua origem em chunamo, designação chinesa para «cal de ostra». Ali se localizava também a fábrica de fundição do bronze, organizada por Manuel Tavares Bocarro, e que pela qualidade do material ali preparado tomou Macau num centro de exportação para o Sião e para a China.

Adentro dos muros, construídos em taipa ou chunambo, desenvolvia-se a cidade portuguesa seiscentista, onde as construções se adensavam em núcleos principais já definidos no século XVI: as zonas do Porto, Santo António-Patane, Monte-Sé e um eixo mais aberto e extenso ao longo da Rua Central em direcção à Penha. A iconografia portuguesa da época, certamente a mais fiel, é reduzida, e por vezes falha em rigor, destituída que é de qualquer escala referencial. O desenho da cidade reproduzido no tomo III da Ásia Portuguesa, de Faria e Sousa, é bastante simplificado e valoriza sobretudo a definição de muralha e dos pontos de defesa. A planta de Macau desenhada por Pedro Barreto de Resende para ilustrar o manuscrito de Bocarro intitulado Livro das Plantas de Todas as Fortalezas, Cidades e Povoações do Estado da Índia Ocidental...é mais rigorosa, localizando também os principais edifícios religiosos e assinalando os espaços envolventes e as zonas de maior ocupação, permitindo assim fazer uma leitura do conjunto e das partes que nele se integram. Nesta obra, a cidade é descrita como um pequeno aglomerado de comerciantes com um limitado número de edifícios em alvenaria e madeira, situados no noroeste da península, próximo da Igreja de S. Paulo. Existia uma outra área com habitações e comércio, próximo da Igreja de S. Lourenço, e que se estendia até às proximidades da Praia do Manduco. As áreas residenciais chinesas localizavam-se próximo dos templos e a Praia Grande era ocupada por um grande número de barracas de madeira. A área a noroeste, adjacente ao Porto Interior, foi provavelmente o local de ocupação mais antigo e era servido pelas Ruas de SantoAntónio, S. Domingos e do Hospital, construídas na segunda metade do século XVI. A ocupação do espaço a noroeste é provavelmente posterior a 1590 e processou-se ao longo das ruas Central, de S. Lourenço e Padre António. A zona da Barra desenvolveu-se também neste período graças à fixação de uma próspera comunidade chinesa, que ali erigiu os seus edifícios. As ruas eram tortuosas e a organização dos lotes indica a inexistência de um planeamento prévio. A cidade não se apresentava ainda com uma estrutura consolidada e os edifícios mais relevantes eram as igrejas e os armazéns chineses. Bocarro refere ainda as dificuldades na obtenção de alimentos quando os chineses limitavam as importações. A população era, segundo o cronista, de 850 portugueses e 5100 escravos negros, além dos pilotos e navegadores. Para além destes, existiam chineses cristãos cujo número não aparece referenciado.

A iconografia contida em obras de viajantes estrangeiros como o Atlas de Johannes Vingboons e o Diário de Peter Mundy e as gravuras holandesas e inglesas inseridas nos roteiros e colecções da época é, em geral, bastante genérica e por vezes traduz-se em simples apontamentos fantasiados onde poderemos referenciar algumas construções e a forma aproximada da cidade. Essas imagens constituem muito mais elementos ilustrativos do que fontes iconográficas fidedignas. Contudo, a descrição de Peter Mundy (1637) confirma a organização da cidade em torno das igrejas. As casas ajardinadas, comportando pátios e terraços, eram semelhantes às de Goa e os telhados de duas águas eram reforçados por causa dos tufões. Mundy refere-se ao desenvolvimento da Praia Grande, às fortificações e ainda à ocupação da ilha Verde. Em 1638, Macau possuía seis conventos — Jesuítas, Capuchos, Dominicanos, Agostinhos, Franciscanos e Sta. Clara. Existiam já duas paróquias, a de S. Lourenço e de Santo António, e a Capela de S. Lázaro, edificada fora das muralhas, para ser frequentada pelos leprosos. Além das indústrias localizadas no Chunambeiro, neste século, existiam também pequenas unidades de produção de seda que operavam anexas aos armazéns chineses, localizados a noroeste e a sudoeste do aglomerado. Entre S. Paulo e o mar residia, em boas casas, uma população abastada, constituída por mercadores ocidentais.

A expulsão dos portugueses do Japão em 1639 e a consequente perda do comércio foram um grande desastre financeiro para Macau parcialmente compensado com a abertura de outros mercados em Timor, Solor, Macassar e na China.

Distribuição da População por Freguesias em 1920

Em meados do século XVII, a cidade organizava-se em função da Rua Central (Rua Direita) e do Largo do Senado, onde desembocavam duas ruas principais e sete secundárias. A construção era livre, especialmente na zona portuguesa, onde não era aplicado qualquer regulamento. Os elementos relevantes da estrutura urbana eram os espaços abertos adjacentes às igrejas e edifícios públicos. O traçado viário era irregular e a arquitectura doméstica limitava-se a um estilo similar ao de Goa, mas alterado, ao nível do pormenor, pelos artífices chineses. A população portuguesa expandiu-se em direcção à povoação da Barra, as casas ocupavam vales e colinas e eram geralmente constituídas por dois pisos, cuja ligação se fazia por uma escada de madeira. A cor predominante era o branco, realçado por molduras nas portas e janelas em amarelo, rosa e azul. A comunidade chinesa ocupava o sector ocidental e gradualmente foi-se expandido ao longo do Porto Interior. Residia em áreas de elevada densidade habitacional e com construções compactas, formando combinações de loja/residência ao longo de ruas muito estreitas. Todas eram de tijolos, cobertas de telha, e com as suas varandas formavam um conjunto de grande heterogeneidade. Esta área foi conhecida até ao século XIX como o Grande Bazar.

Nesta época existia ainda em Macau uma outra comunidade estrangeira, constituída por persas, que se localizava na Barra.

Quando, em 1685, os portos da China foram abertos ao comércio estrangeiro, os mandarins pensavam em transformar Macau num porto chinês. Seguiu-se um período de grande incerteza, que terminou com a abertura de uma alfândega chinesa, em 1688. Conhecidas por Hopu, localizava-se a mais antiga na Praia Pequena, junto da R. da Tercena, e a mais recente, menos importante, na Praia Grande, no local onde hoje se encontra o edifício das Finanças. Ali cobravam-se tributos aos navios que partiam para Cantão, o que se reflectiu negativamente na vida económica de Macau. Para agravar a situação financeira, o foro do chão foi também aumentado e imposta uma contribuição de residência.

Nascida, desenvolvida e sempre ligada ao pragmatismo da dinâmica comercial, a feitoria e depois a cidade de Macau não se remetem, na origem, a qualquer modelo erudito ou tradicional de raiz europeia, nem mesmo chinesa. Com a imediata implantação das estruturas religiosas, foram os edifícios—igrejas e conventos — que se transformaram em pólos agregadores e unificadores da população. Simultaneamente, estes pequenos complexos arquitectónicos, bem como os espaços envolventes de carácter cívico-religioso (os adros), impuseram-se como marcos referenciais na estrutura organizativa e na imagem da cidade. O levantamento de muralhas veio contribuir para o ordenamento e clarificação da estrutura, introduzindo um sentido unificador num conjunto irregular e aparentemente desorganizado.

AS ARQUITECTURAS — MODELOS EUROPEUS E CHINESES

Deste período da história da cidade, além dos documentos iconográficos referidos, são escassos os vestígios arqueológicos. As gravuras inseridas nas obras de autores portugueses revelam a configuração geral do conjunto e a organização interna do aglomerado, mas não permitem a leitura rigorosa dos pormenores dos edifícios. Por sua vez, os primeiros registos gráficos da cidade, contidos nos atlas e roteiros de viagens do século XVII, são geralmente fantasiados e pouco minuciosos.

As primeiras construções portuguesas eram rudimentares e precárias, à semelhança das que se costumavam edificar nas feitorias da Ásia. As igrejas eram de madeira, com uma só nave, capela-mor simples e fachada plana. Progressivamente, foram sendo substituídas por construções de taipa, no início do século XVII, e só mais tarde se transformaram em edifícios de pedra, mais amplos e ornamentados, integrando simplificadamente a tradição espacial e a tipologia das fachadas maneiristas da arquitectura portuguesa.

Se os recém-chegados trouxeram consigo modelos arquitectónicos e maneiras de construir do seu país de origem, encontraram grande parte da mão-de-obra e dos materiais de construção no local. Não repugna imaginar que as primeiras casas dos jesuítas e dos comerciantes fossem construções chinesas, ou que nas primeiras igrejas de madeira se encontrassem sistemas construtivos típicos na China. A área comercial, ligada directamente às actividades marítimas e ponto de encontro das duas comunidades, deveria ser, em termos arquitectónicos, predominantemente chinesa. Fora da cidade, os templos e as casas das aldeias chinesas perpetuavam os modelos tradicionais da arquitectura da região, caracterizada por uma grande simplicidade formal e espacial.

Densidade Populacional por Freguesias em 1930 (habitantes/hectare)

Iniciou-se, no século XVI, a divulgação da arquitectura europeia em paralelo com o desenvolvimento das tradições espaciais e construtivas chinesas. Das mútuas influências resultaram as propostas originais que traduzem a síntese da cultura local. No contexto da arquitectura de raiz europeia, os edifícios religiosos sofrem uma dupla influência, portuguesa e espanhola. Quatro dos cinco conventos construídos na época foram fundados por ordens religiosas da província espanhola— S. Francisco, S. Domingos, Sta. Clara e Nossa Senhora da Graça. O modelo espacial que serve de referência às igrejas é a planta maneirista do tipo jesuítico.

A igreja do Convento de S. Paulo, fundado pelos jesuítas no final do século XVI, revela afinidade com outros edifícios, da mesma ordem, como S. Paulo de Diu e Igreja de Jesus de Luanda. A primitiva construção de madeira foi substituída por outra mais ampla e cuidada, inaugurada no Natal de 1603 mas só ficou concluída em 1640. Deste vasto complexo monumental, em grande parte destruído por um incêndio em 1835, resta-nos o pavimento interior e a fachada imponente sobre a escadaria. Esta fachada-cenário de tipo jesuítico não tem torres e é composta por três tramos separados por três colunas, com quatro andares no tramo central, mais elevado, e dois nos laterais. Nele trabalharam artífices locais, portugueses e chineses, e também japoneses cristãos, recentemente radicados na cidade, que deixaram marcas da sua intervenção. A decoração integra elementos barrocos de tipo ocidental juntamente com iconografias de raiz oriental, fazendo confluir num conjunto exótico e original temáticas de carácter erudito internacional com as gramáticas portuguesa, chinesa e japonesa. O complexo conventual era um vasto edifício de dois pisos disposto irregularmente à volta de um grande pátio.

O Convento de S. Domingos, fundado no século XVI por dominicanos de Acapulco, viu a sua velha igreja de madeira substituída pela actual no século XVII. A fachada principal apresenta uma composição-tipo da época, com um corpo central desenvolvido em três andares e rematado por frontão triangular, articulando-se com os laterais, mais baixos, através de uma aleta simplificada. A Igreja de Nossa Senhora da Graça do Convento dos Agostinhos apresenta uma fachada mais simples e classicizante.

As igrejas paroquiais quinhentistas e seiscentistas, apesar das sucessivas alterações e restauros, apresentam ainda a organização espacial e formal da época. Menos elaboradas do que as conventuais, têm planta de uma só nave com capelas laterais, fachadas simples enquadradas por torres— uma em Santo António e duas em S. Lourenço e na Sé-Catedral, que no conjunto dos três edifícios era o maior. Existiam também pequenas capelas junto de instalações militares ou em pontos particulares da cidade, como a de Nossa Senhora da Penha de França, simples edifício coberto com telhado de duas águas, a de Nossa Senhora da Guia, situada dentro da fortaleza do mesmo nome, com fachada classicizante e contrafortes maciços nas ilhargas, e a de S. Lázaro, que mais tarde foi substituída pela actual igreja.

A arquitectura civil reproduz também modelos ocidentais, mas culturalmente menos eruditos e mais ligados a uma tradição portuguesa e sobretudo às experiências da Índia e de Malaca. Entre os edifícios públicos destacavam-se a Misericórdia, o Leal Senado e os núcleos assistenciais do Hospital e do Lazareto. Organizavam-se em torno de um claustro-pátio e tinham um, dois e até três pisos em grossas paredes de alvenaria e pedra com telhado de duas águas e a fachada principal era marcada por grandes aberturas. As habitações lembravam os palácios lisboetas seiscentistas, grandes e pesados com um piso nobre sobre os armazéns e aposentos dos criados, janelas de sacada com grades de ferro simples e frontão de remate sobre o corpo central. O acesso ao interior fazia-se através de um átrio, onde se abria a grande escadaria do acesso ao andar nobre. Esta organização perdurou nas tradições macaenses e é ainda bem visível em casas da época, como na da esquina da Rua de S. José com a Rua da Prata. A decoração interior era inspirada nos hábitos e no gosto oriental.

Densidade Populacional por Freguesias em 1981 (habitantes/hectare)

Delimitando e defendendo a cidade, construiu-se no século XVII um conjunto de fortes, fortins, baluartes e muralhas baseado no sistema abaluartado de tipo moderno. Apesar de sempre terem obstado à construção de um sistema defensivo sólido, as autoridades chinesas encarregaram os portugueses da defesa da cidade e do território, constantemente atacado pelos holandeses.

A partir de 1616, programaram-se novas construções para proteger a linha da costa, e, em 1622, o governo lançou um imposto especial sobre a carreira do Japão—o caldeirão— para subsidiar a construção efectiva dos equipamentos necessários à transformação da cidade numa praça-forte moderna. A muralha que então se levantou era solidamente construída em taipa e integrada por fortalezas, fortes e fortins. Partindo do porto interior, ligava-se à Fortaleza de Palanchica e à do Monte, seguindo depois pelo Forte de S. Jerónimo ou S. Januário até à costa nos terrenos do Convento de S. Francisco, onde se levantava o forte do mesmo nome à entrada da Praia Grande. Protegendo a baía, continuava pela linha da costa até ao Forte de S. Pedro e à Fortaleza do Bom Parto, subindo depois para a zona da Penha, onde se instalou mais um forte, e daqui descia para o porto, ao longo do qual a cidade era protegida também em toda a extensão por um muro ou pano de muralha em que se abriam as do cais.

As ligações entre a cidade portuguesa e as aldeias chinesas faziam-se pela tradicional Porta de Santo António e pela Porta do Campo, aberta no troço de muralha entre a Fortaleza do Monte e o Forte de S. Januário, e ainda através de pequenas portas ou postigos ao longo da costa. Exteriormente, a defesa avançada era assegurada pelo Forte da Guia, no ponto mais elevado, e pelo de Santiago da Barra, instalado na extremidade da península, próximo do templo chinês, de modo a controlar o acesso ao porto.

Algumas zonas da costa oriental da península, frequentadas habitualmente pelas comunidades, chinesas, mas acessíveis à penetração por via marítima, como a Praia de Cacilhas, chegaram a ser protegidas por um muro. A defesa regional completava-se com um conjunto de baterias e ainda com o forte levantado na ilha da Lapa.

Ajustadas às tácticas defensivas modernas, a quase totalidade destas construções traduzia a adaptação do sistema abaluartado à topografia e dimensão dos locais. A Fortaleza do Monte, de traça regular poligonal simples, aproxima-se mais dos modelos eruditos sem contudo recorrer a programas elaborados como a colocação de fossos, esplanadas simples ou revelins. No interior de algumas, como a da Guia e a da Penha de França, para além das pequenas capelas ou ermidas para apoio das guarnições instaladas nas casas dos soldados, abria-se geralmente dentro da praça de armas a cisterna.

Ainda durante o século XVII, a maior parte dos panos da muralha confinantes com o território chinês foram destruídos, mas mantiveram-se alguns fortes.

Paralelamente persistiu e desenvolveu-se uma arquitectura de tradição chinesa, expressa sobretudo em novos edifícios habitacionais pertencentes a numerosa população chinesa, que aumentou significativamente na cidade, e na construção de um novo templo, o Kun Yam Tong, nas proximidades do velho Kun Yam Ku Miu, em plena aldeia de Mong-Há, e ainda na renovação do Ma-Kok-Miu, na Barra. O novo Kun Yam Tong, que viria a ser um dos mais importantes templos chineses de Macau, é típico da região de Cantão, organizado em unidade maiores de planta rectangular e cobertura de duas águas.

MACAU ENTRE O ORIENTE E O OCIDENTE

A CONJUNTURA POLÍTICO-ECONÓMICA DE SETECENTOS E O NOVO RELACIONAMENTO ENTRE A EUROPA E A CHINA ATRAVÉS DE MACAU

Evolução dos Aterros na Península de Macau

O fenómento mais significativo do período setecentista é a abertura do porto de Cantão e o estabelecimento de companhias comerciais estrangeiras em Macau. Com a publicação do decreto imperial que, em 1685, determinou a abertura daquele porto aos estrangeiros, uma vez por ano na época da feira, Macau deixou de ser o único entreposto do comércio externo da China e os portugueses os únicos intermediários. Esta circunstância alterou por completo a dinâmica económica na região. Numa primeira fase as consequências foram negativas para a economia da cidade, e só em 1718, quando os chineses foram proibidos de exercer o comércio (com excepção para os súbditos de Macau), e o número de barcos portugueses e chineses registados na cidade subiu de 4 para 23, passou a ser significativa a abertura da feira e porto de Cantão. As companhias comerciais estrangeiras construíram os armazéns na ilha de Shamian, onde os funcionários permaneciam na época da feira, mas nunca podiam entrar na própria cidade de Cantão. Negociavam directamente com uma companhia mandarínica, criada em 1720, que detinha o monopólio do comércio local. Deste modo, as diversas companhias europeias e a americana estabeleceram as respectivas sedes em Macau, que se transformou em escala intermédia obrigatória no acesso a Cantão.

Os mandarins chineses interditaram a passagem de navios de grande tonelagem, instalaram um posto alfandegário na cidade — o Hopu Grande da Praia Pequena—e criaram o lugar de mandarinato da alfândega de Macau, com residência no local, controlando assim eficazmente o acesso ao estuário do rio das Pérolas e cobrando os respectivos impostos alfandegários.

A economia e a vida urbana modificaram-se com a presença dos estrangeiros. Grande parte dos rendimentos da cidade era resultante da cobrança dos direitos e autorizações de residência estrangeira. Como consequência da nova estrutura económica, os rendimentos da cidade decaíram à medida que as estruturas oficiais foram sendo substituídas pela iniciativa particular. Em épocas de crise, o Senado viu-se obrigado a contrair empréstimos à Igreja, a comerciantes chineses e até ao rei do Sião.

Os recursos de Macau no século XVIII eram também provenientes dos tributos alfandegários e direitos de ancoragem no porto. O comércio era feito por particulares portugueses, chineses e europeus. Por Macau passavam os produtos tradicionais chineses, a que se juntou o chá. Aqui eram transferidos dos pequenos barcos que chegavam de Cantão para os grandes navios. Os comerciantes portugueses fizeram entrar na China o tão apreciado rapé ou amostrinha.

Simultaneamente, começou a avolumar-se o comércio clandestino do ópio, ou anfião, feito por navios franceses e ingleses no mar, do qual também resultavam benefícios financeiros para os intermediários macaenses.

A partilha de poderes entre os diversos órgãos de origem portuguesa sofreu algumas alterações. O poder civil tornou-se cada vez mais independente das estruturas religiosas, então em época de crise. Com a expulsão dos frades agostinhos da cidade em 1712, em virtude da polémica <> (que debatia o conceito de divindade Deus e imperador, bem como as hierarquias de poder), e dos jesuítas, em 1759, as ordens religiosas viram a sua esfera de acção restringida. Os bens transitaram para a administração episcopal, cuja diocese se viu então reduzida às províncias chinesas de Kuang-Tung e Kuang-Si.

O governador apoderou-se da Fortaleza do Monte, onde tradicionalmente residia, mas que era considerada propriedade dos jesuítas. E, a partir de 1767, fizeram-se diligências para a aquisição de um palácio condigno na zona da Praia Grande, que acabou por ser adquirido por compra efectuada em 1771, transferindo-se assim definitivamente a sede do governo para esta zona.

O Senado viu as suas atribuições clarificadas e bem definidas por alvará régio de 1712, onde se referem as esferas do governo político, que compreende todos os casos que se relacionam com o bem-estar da cidade, a manutenção da paz e a tranquilidade, e do governo económico, que consiste em cobrar impostos, lançar tributos e gastar as verbas provenientes dos mesmos. O procurador dialogava com o mandarim, e embora uma ordem régia emanada de Lisboa em 1712 proibisse a obediência às autoridades chinesas locais, na prática as acções eram concertadas pela actuação do Senado.

O número de chineses convertidos ao cristianismo aumentara significativamente e a Igreja nomeou um representante —chamado 《pai dos cristãos》 — para superintender nas questões surgidas entre este grupo nas suas relações com portugueses e outros chineses. A polémica envolvia geralmente situações de dependência e servidão. O Senado acabou por intervir, proibindo, em 1703, aos europeus, a compra de criados chineses para exportação, e aos chineses cristãos o uso de vestimentas ocidentais, em 1774.

Organização do Espaço Urbano: final dos anos setenta

Neste contexto, a fisionomia de Macau alterou-se do ponto de vista económico, urbano, populacional e étnico, numa estrutura complexa de coexistência de poderes onde as autoridades chinesas se afirmavam progressivamente, de tal modo que o Código Penal Chinês de 1779 continha normas sobre a administração de Macau e o Senado começou a mandar traduzir e publicar «chapas»chinesas e a servir-se de intérpretes especializados. O abandono das populações da ilha da Lapa a partir de 1722, cujo suporte legal português era estabelecido pelas ordens religiosas, remeteu o território ao espaço da cidade de Macau e à ilha Verde, com utilização das restantes ilhas apenas para ancoragem e abastecimento.

No final do século XVIII, as estruturas da governação sofreram modificações que se traduziram numa repartição de poderes entre o Leal Senado e o Governo, ao mesmo tempo que se verificava o restabelecimento da autoridade da Igreja. A aplicação de uma nova política fiscal, que se concretizou com a criação de uma alfândega portuguesa, constitui também um facto significativo. O progressivo decréscimo dos rendimentos provenientes do comércio exercido pelos portugueses em Macau originou a elaboração de sucessivos relatórios e petições apresentados pelos poderes locais ao governo da Índia e de Lisboa. O arcaísmo e empirismo das estruturas oficiais no território mostrava-se cada vez mais inoperante e desajustado em relação ao contexto político--económico internacional, num período em que as doutrinas do liberalismo proclamavam a livre iniciativa e a concorrência, às quais a tradição monopolista do comércio português decadente não podia responder.

Macau não chegou a ser afectado pelas reformas pombalinas e só no reinado de D. Maria I se publicaram medidas específicas sobre a governação e economia locais. O conjunto de medidas decretadas em 1783 e feitas cumprir no território no ano seguinte tomou a designação de «Providências Régias». Este documento, emanado do Governo de Lisboa, assentou na análise das condições estruturais de Macau, particularmente no que diz respeito à economia, à governação e à inter-relação das estruturas de poder. As soluções apontadas para remédio da crise foram: reestruturação do modelo de governação e nova articulação e partilha de poderes; a reorganização do comércio com base no sistema fiscal; a instalação de um regimento ou milícia local; o restabelecimento do seminário e a reorganização das missões em Macau e na China com a participação de padres, missionários e particularmente jesuítas, a fim de se desenvolver a acção diplomática na corte de Pequim. Neste sentido, as modificações tendem a afirmar a soberania portuguesa. O cargo de governador passa a ser exercido pelo mesmo indivíduo durante um período de três anos consecutivos, podendo ser renovável, caso seja vantajoso e útil. Apontam-se as qualidades de dinamismo como as fundamentais e recomenda-se que se nomeiem, de preferência, militares. O Senado, embora com poderes à escala local e com representatividade nas relações com as autoridades chinesas, viu a sua actividade regulamentada através da obrigatoriedade de consulta ao Governo. Para reforçar a autoridade representante do poder central foi criada e constituída uma força militar formada por 100 sipaios e 50 artilheiros, recrutados em Goa de 6 em 6 anos. O Seminário de S. José foi estabelecido e entregue aos lazaristas, em 1784, e a acção da Igreja retomou a antiga influência, vendo-se, assim, reforçada a autoridade religiosa. Mas o antigo prestígio das ordens religiosas não voltou a repor-se e os poderes concentraram-se sobretudo no bispo e na diocese. A Igreja comprou terrenos e propriedades no território, de modo a aumentar os rendimentos e a conseguir espaços para instalar as missões, e o próprio seminário adquiriu a ilha Verde, em 1882. Em consequência de reestruturação da autoridade religiosa, as principais igrejas foram reconstruídas em materiais duráveis, em substituição das anteriores, em taipa, destacando-se a de S. Lourenço, em 1801, a dos Agostinhos, em 1814, e a de Santa Clara, em 1824.

As Ruínas de São Paulo em dia de procissão católica. (Slide de Joaquim Castro,1998).

O governo, supremo representante da autoridade portuguesa, passou a ser apoiado por uma força militar, mais eficaz na defesa da pirataria e dos ataques e represálias efectuados pelos barcos franceses e ingleses do que em acções contra chineses. A administração do território tornou-se também mais eficaz e a estrutura governativa definiu-se com maior estabilidade, o que lhe permitiu lançar programas de desenvolvimento e melhoramentos da cidade com perspectivas de continuidade, como a construção de estradas e caminhos de ligação entre a cidade portuguesa e os aglomerados chineses. Neste contexto, revelaram-se particularmente importantes as obras de construção da estrada de Mong-Há e os aterros e cortes na montanha da Pena com abertura de arruamentos.

O Senado viu aparentemente diminuídos os respectivos poderes e a autoridade, que, teoricamente, lhe foi retirada pelo governo. Na prática, porém, continuou a ser o órgão de maior representatividade perante as autoridades regionais chinesas, enquanto o governo dialogava com os representantes supremos da diplomacia do império. Em 1788, as autoridades portuguesas reconheceram que o Senado representava o governo nas relações com os mandarins e a prática transformou-se em regra com suporte legal. A actuação do Senado na política local foi de tal modo eficaz e dignificante que, em 1818, foi atribuído o tratamento de 《senhoria》 aos membros que dele faziam parte. O estatuto manteve-se durante os primeiros anos do regime constitucional português e durou até 1834, quando o Senado foi reduzido às funções de câmara municipal.

A alfândega portuguesa, criada em 1784, instalou-se em edifício próprio junto ao porto, entre a Praia Pequena e a Praia do Manduco, numa zona de extensão da cidade portuguesa. Possuía um corpo de funcionários que aplicavam o respectivo estatuto, cobrando os direitos de ancoragem aos navios que aportavam e lançando as taxas alfandegárias sobre as mercadorias importadas.

Esta política fiscal trouxe como consequência imediata o aumento de rendimentos. Em última instância, a alfândega dependia do governador, que controlava e administrava as receitas, parte das quais revertia para o Governo central. Alguns dinheiros foram aplicados em obras de renovação da cidade, particularmente no equipamento da zona portuária, que foi dotada de novos cais e armazéns.

Pagode da Barra (Ma Kok Miu) c.1913, com o templo lateral em l° plano, exemplo típico da arquitectura (religiosa) chinesa. Col. de Fan Mingsan, (vice-director do Museu de Xangai).

Uma parte significativa dos rendimentos provenientes da fiscalização alfandegária destinava-se ao Governo central e devia ser entregue anualmente acompanhado por um relatório de contas. No contexto da nova política colonial que começava a tomar forma no início do século XIX, os territórios ou colónias deviam tornar-se rendíveis e comparticipar nas despesas gerais do Reino. Por isso, as medidas tendentes à reestruturação do comércio oficial em Macau trouxeram consequências positivas, sobretudo no contexto geral da economia portuguesa.

Para além do controlo local, que abrangia o movimento portuário, a alfândega superintendia também ao comércio directo entre Macau e o Brasil. Esta carreira só foi autorizada em 1810, após a abertura geral dos portos do Brasil, e beneficiava de algumas regalias e isenções fiscais. Os produtos orientais levados ao Rio de Janeiro destinavam-se ao abasteci- mento da corte portuguesa, transferida recentemente de Lisboa para aquela colónia em virtude da instabilidade resultante das invasões francesas na Europa e particularmente na Península Ibérica.

Planta da Cidade e Porto de Macau (c.1796) por B. Barker. Arquivo Histórico de Macau, reg. n°273.

Para além do comércio oficial português, estrangeiro e chinês de controlo mandarínico, desenvolveu-se, em escala reduzida, o comércio macaense praticado por locais e naturais do território. Embora as «Providências Régias»tivessem centralizado o comércio mais rendível deixando reduzido espaço de actuação para a iniciativa privada, a criação da Casa de Seguros, ou Casa Forte, em 1817, melhorou as perspectivas, permitindo a inscrição a pequenos comerciantes e cobrindo os riscos resultantes das respectivas acções. Estes comerciantes dedicavam-se sobretudo ao comércio com os chineses nas aldeias da região, mas também escalavam os portos de Manila, Timor e Sião. Pagavam impostos sobre a utilização do porto e sobre os produtos em circulação, mas grande parte das suas acções e movimentos de comércio ficava fora do alcance das autoridades fiscais. O comércio do ópio, efectuado em grande escala por franceses e ingleses, era frequentemente apoiado por comerciantes locais, que facilitavam as transacções. Proibido expressamente pelas autoridades chinesas, em 1828, continuou a processar-se clandestinamente, num circuito em que dominavam as companhias estrangeiras, que traziam o produto da Índia e das costas da Ásia e o introduziam na China através de comerciantes macaenses. O tráfico fazia-se em zonas afastadas da costa, fora do controlo das autoridades portuguesas e chinesas. Iniciado por volta de 1720, foi na primeira fase tolerado pelos mandarins mediante o pagamento de 50 patacas por caixa, mas era oficialmente proibido pela legislação do Império. Corrente já na segunda metade do século XVIII, intensificou-se e aglutinou os principais rendimentos do comércio no primeiro quartel do século XIX, cujos resultados não eram controlados oficialmente nem revertiam directamente para as entidades e organismos responsáveis pela administração da cidade. Os outros produtos em circulação eram os já tradicionais na região, desde o chá às pérolas, à seda, à porcelana, ao arroz e ao sândalo, cujo monopólio findou em 1785.

Ruínas de S. Paulo, cerca de 1913: parte central da fachada (2 dos 5 níveis de leitura representados). Col. de Fan Mingsan, (vice-director do Museu de Xangai).

No contexto analisado, verifica-se ser cada vez mais constante, definida e aceite a permanência paralela de estruturas económicas oficiais e do exercício do comércio ilícito pelos pequenos comerciantes locais, cujos rendimentos são considerados avultados mas impossíveis de controlar e contabilizar a nível das estruturas fiscais. Como consequência, verificar-se-á uma certa prosperidade nas poucas famílias macaenses que se traduziu num progressivo acumular de bens, que as fontes da época referem mas só se expressa publicamente nas novas construções a partir de meados do século XIX.

DINÂMICA E ESTRUTURA DO ESPAÇO URBANO NO SÉCULO XVIII

Macau mantinha no século XVIII uma estrutura espacial idêntica à do período anterior. A área portuguesa desenvolvia-se entre a Igreja de Santo António, Patane, o Forte e a Igreja de S. Paulo e o mar. Aqui concentrava-se a população mais abastada, constituída essencialmente por mercadores e ainda alguns funcionários ligados ao governo, que permaneciam instalados em S. Paulo. Portugueses e outros estrangeiros fixaram-se ainda junto dos núcleos conventuais de S. Agostinho, S. José e S. Lourenço. A Rua Central não tinha a extensão que alcança no fim do século e ligava a Sé à Igreja da Penha. Só mais tarde é que se prolonga até à Barra, mas na primeira metade do século XVIII a ocupação processa-se até S. Lourenço. Aqui podiam observar-se nítidas características de periferia urbana, pois era frequente encontrarem-se, anexas às residências, grandes quintais e pequenas hortas. Entre S. Lourenço e o litoral, desenvolvia-se uma zona comercial, o Bazarinho, de apoio ao espaço residencial acima descrito. Este núcleo articulava-se através da Rua da Casa Forte com a Praia do Manduco, que, muito frequentada, era envolvida pela zona de prostituição, actividade que ainda persiste na toponímia, na designação da Travessa da Maria Lucinda, proprietária de uma das casas mais famosas da época. No fim do século, por volta de 1797, a Praia do Manduco passou a ser utilizada como cais.

Tal como no século anterior, a cidade portuguesa permanecia organizada em torno das igrejas e conventos, envolvidos por amplos espaços abertos e públicos, em contraste com a zona chinesa, situada a norte, entre S. Agostinho, S. Paulo e o mar. Caracterizada por quarteirões de forma alongada, cortados por becos e travessas estreitas, era preenchida por habitações de dois pisos, dos quais o inferior era ocupado por comércio familiar e pequenas unidades industriais de carácter artesanal. Os becos correspondiam, em regra, a espaços de circulação de peões, mas como não tinham saída adquiriam uma certa privacidade. A norte deste conjunto localizava-se a Rua da Praia Pequena, onde estava instalada a mais importante alfândega chinesa (Ho-pu). Era ainda o local de concentração de chineses que trabalhavam nos fatiões (teang-fai), pequenos barcos velozes que cruzavam os mares da China. Todo este espaço constituía o Grande Bazar, que tinha como ponto fulcral a área de S. Domingos, R. dos Mercadores, os topos orientais da R. dos Ervanários e das Estalagens e na Rua da Palha, cujo topónimo se deve à concentração de estabelecimentos de venda daquele produto. Mais a norte, podia identificar-se uma outra mancha urbana, enquadrada pela Igreja de Santo António e pelo mar, que então chegava às Ruas do Tarrafeiro e do Botelho. Junto a esta proliferavam os Tan-Ka (barcos-habitações), cuja população se dedicava à pesca do camarão por meio de tarrafas, instrumento que deu origem à actual designação toponímica. Entre estes e a igreja residiam artesões chineses cujas actividades ainda persistem, por exemplo, no nome das ruas, «dos Adufos» ou «dos Carpinteiros». Para sudoeste de Santo António mantém-se a estrutura ocidental. A malha é organizada por edifícios religiosos S. Paulo, S. Francisco, Santa Clara e Sé, definindo-se grandes quarteirões com amplos espaços livres envolventes. No sistema viário, ainda irregular, distinguiam-se dois eixos fundamentais: um, que passando ao longo do Senado ligava a R. Central a S. Paulo, e outro que articulava esta fortaleza com S. Francisco. No actual Largo da Companhia, na parte setentrional de S. Paulo, fixou-se a Companhia Holandesa das Índias Orientais. Conhecida pelos chineses por Jardim dos Holandeses, constituía um espaço de relação com o campo. Referências e casas de portugueses com hortas, datadas de 1764, confirmam a posição periférica deste conjunto.

Na estrutura de padrão ocidental é ainda de realçar a consolidação da zona da Praia Grande, entre os Fortes de S. Pedro e Bom Parto, como conjunto urbano. Era definido por uma larga avenida que corria paralelamente ao mar, cortada na perpendicular por travessas, que a articulavam com a R. Central. A muralha foi parcialmente destruída, persistindo apenas o ramo oriental, entre S. Francisco e S. Paulo.

Planta da Cidade e Porto de Macau, início séc. XVII pelo Eng. N. B. (in "Le Petit Atlas Maritime", s. l.1767). Col. Padre B. Videira Pires.

O crescimento da população de origem europeia não foi suficiente para implicar uma expansão para além dos limites já definidos no século XVII. Pelo contrário, a população chinesa registou um aumento de 4000 indivíduos, quantitativo que se repartiu mais significativamente pelas povoações viradas para o Porto Interior. S. Lázaro manteve-se como núcleo de fixação dos chineses cristãos: Lon-T'in-Ching e Mong-Há permaneceram como aldeias de agricultores, estendendo-se entre elas uma extensa várzea, que constituía o espaço agrícola fundamental para o abastecimento de Macau. Voltada para o Porto Interior, a Aldeia da Barra, ainda como centro de pescadores organizados em torno do Templo de A Ma, viu a sua população aumentada pela fixação de uma comunidade de persas, proveniente de Cantão, e que se dedicava ao comércio. A norte do Largo de Santo António, Patane, Sá-Kong e San-Kiu eram povoações ribeirinhas ligadas à faina marítima. Importantes pelos estaleiros e pelos depósitos de madeira, eram habitadas por uma população numerosa que vivia em cabanas e barracas de madeira, cobertas de colmo e apoiadas sobre estacas, fazendo lembrar habitações lacustres. Dispunham-se em banda, mas no todo definiam um conjunto desordenado. Estas aldeias eram zonas de grande insalubridade e infecção palustre, aspectos que se prolongavam ao longo do canal de Sankiu, que, atravessando Patane, chegava até às várzeas de Sá-Kong.

Fachada das Ruínas de S. Paulo, escadaria e casario envolvente, (c.1913). Foto de Fan Mingsan, (vice-director do Museu de Xangai).

NOVAS COMPONENTES NA ARQUITECTURA

Durante o século XVIII, introduzem-se novos modelos arquitectónicos de raiz europeia, que se expressam principalmente na arquitectura civil. A construção de uma frente de edifícios sobre a Baía da Praia Grande, formando uma grande rua ou passeio marginal é o aspecto mais significativo. Trata-se de casas das companhias, residências da nobreza e até mesmo um Palácio do Governo. As fachadas abrem-se para o exterior através de sequências de varandas a nível do primeiro andar, e apresentam uma certa monumentalidade e alguns elementos decorativos. Para além das tradições portuguesas, estão presentes as influências inglesas através de marcos de um classicismo tardio.

Devido ao aumento da população chinesa na mesma época, surgem muitas novas habitações tradicionais na zona do Porto Interior, sobretudo no Bazarinho e nas áreas de ligação com a cidade alta, de ocupação portuguesa.

Algumas construções religiosas setecentistas integram a preocupação de uma estética barroca, como a Igreja do Seminário de S. José, implantada do cimo de uma ampla escadaria. A fachada ondulada, enquadrada por duas torres e rematada por frontão, também ondulado, caracteriza-se por uma grande horizontalidade e por certa movimentação de volumes, acusando assim a planta centralizada de tipo barroco. Uma cúpula monumental assenta sobre o cruzeiro. Na mesma época construiu-se também uma nova capela dedicada ao Bom Jesus, situada próximo da da Penha de França. No interior das áreas de ocupação chinesa surgiram novos templos como os de Ling Fong, Lin K'ai, Soi Ut Kum e Kuan Tai Ku.

Página seguinte: Planta da Cidade e Porto de Macau,1834, por W. Branston. Abarca a generalidade das construções públicas, religiosas, militares e políticas que definiram o espaço urbano de Macau desde meados do séc. XVII até ao princípio do séc. XX,estabelecido sobre a organização das relações entre portugueses e chineses. Publicado in "An Historical Sketch of the Portuguese Settlements in China and of the Roman Catholic Church and Mission in China & Description ofthe City of Canton", Anders LJUNGSTEDT, Viking HK Publ., HK,1992 (republished from the Chinese Repository).

Durante a primeira metade do século XIX, a estrutura da cidade vai-se alterando e a arquitectura caracteriza-se por uma curiosa síntese de tradições e inovações. Criam-se novos espaços com os aterros nas zonas da Praia Pequena e do Manduco, definindo a continuidade da linha de costa e permitindo novas construções, e implantam-se cerca de 10 quarteirões regulares e alinhados, que ainda hoje existem entre as actuais Av.5 de Outubro e Rua do Guimarães, que constituem a primeira intervenção programada e definida com base em modelos geométricos regulares.

Outro aspecto importante da organização da cidade consiste na instalação dos cemitérios — o católico em 1837, nas ruínas de S. Paulo, o protestante em 1821 e o dos parses em 1829. Ao mesmo tempo, fora dos limites tradicionais da cidade, na Penha, Barra e Guia foram surgindo as chácaras, vastas propriedades com residência de veraneio.

No conjunto das novas tendências destaca-se também a criação do Jardim Botânico (actual Jardim de Camões), que significa o prenúncio de uma larga implantação de jardins e zonas verdes na cidade na segunda metade do século XIX.

A última fase do período das companhias estrangeiras em Macau corresponde à divulgação dos modelos do neoclassicismo com uma carga erudita que acaba por marcar a arquitectura. José Tomás de Aquino é um dos arquitectos com maior intervenção. Projectou diversas residências, teatros, igrejas, destacando-se a reedificação da casa Joseph Jardim, na Rua do Bom Parto, em 1834, uma nova Ermida da Penha, em 1837, o Teatro Luso-Britânico, em 1839, a sua própria casa na chácara de Santa Sancha (actual residência do governador), em 1846, e o Palacete da Flora, em 1848. No conjunto, são edifícios que se inspiram nos modelos do neoclassicismo académico e que progressivamente vão integrando a linguagem do eclectismo oitocentista.

ASPECTOS DA HISTÓRIA LOCAL E DA VIDA URBANA

As referências à vida quotidiana de Macau no final do século XVIII e primeira metade do século XIX são abundantes e diversas e surgem em documentos oficiais do Governo e do Senado, em descrições de estrangeiros que visitam a cidade ou nela residem e até mesmo em obras de conteúdo científico e erudito. Citaremos como fundamentais: Voyage de l'Ambassade de la Compagnie des Indes Orientales Hollandaises vers l'Empereur de la Chine dans les années 1794 et 1795, Filadélfia,1798; Voyage en Chine ou Journal de la Dernière Ambassade Anglaise à la Cour du Pekin,Paris,1819; e sobretudo o Diário,de Harriet Low, escrito durante os anos 20 e 30 e publicado em 1900 por Catherine Hillard sob o título My Mother's Journal.A documentação visual deste período, traduzida em aguarelas, gravuras, desenhos e pinturas, é também numerosa e regista apontamentos significativos relativos a cenas da vida quotidiana e a certas ambiências da cidade. As aguarelas de Robert Elliot e Marciano Batista, os desenhos e litografias de Auguste Borget, George Chinnery, W. Heine, I. Clarck e diversas obras que integram colecções de museus retratam aspectos da vida e da paisagem urbana com grande verdade e expressão. Alguns levantamentos topográficos de que resultaram as plantas de 1808,1820 e 1838, constituem um suporte rigoroso para o conhecimento da expansão urbana e o reordenamento das áreas tradicionais.

Na sua memória sobre Macau, de 1828, José Guimarães e Freitas refere-se ao aspecto da cidade: 《as suas ruas são estreitas, porém calcadas, e os canos que abrigam rapidamente engolem a água das chuvas. A cidade é murada a norte e a sul. Daqui partem duas portas que comunicam com o campo. Entre as portas eleva-se o Forte de S. Paulo do Monte, a norte; a sul, existem dois fortes, entre eles o da Penha; três fortes defendem a baía, em cuja entrada aparece o de S. Tiago; num alcantilado aparece o da Nossa Senhora da Guia. Um extenso cais chamado Praia Grande oferece uma murada deliciosa; a parte ocidental goza a vista do porto e a de uma ilha dada outrora aos jesuítas... 》(Freitas,1828, pp.11-13).

A população cristã repartia-se então pela Sé, S. Lourenço e Santo António, que contavam com 2130,1720 e 456 habitantes, respectivamente. O número de chineses elevava-se a 8000, mas extramuros o número ascendia a 22 500 chineses não cristãos.

A cidade portuguesa era também povoada por estrangeiros que trouxeram novos hábitos. Os portugueses — militares, comerciantes e administrativos — eram católicos e as igrejas continuavam a ser pólos de atracção de vida colectiva. Os estrangeiros — comerciantes e seus familiares — eram fundamentalmente protestantes e construíram os seus locais de culto e os cemitérios.

Planta da Península de Macau.1889, por António Heitor (Soc. de Geografia de Lisboa)in Macau, Cidade Memória..., op. cit., p.89.

Os macaenses viviam dentro da cidade portuguesa e tinham assimilado muitos hábitos ocidentais, sobretudo no comportamento, vestuário e modos de vida. Esta cidade era, na opinião dos estrangeiros, elegante, com grandes casas junto das quais se abriam os quintais.

Sobre as condições de vida dos habitantes de Macau pode ter-se uma ideia pela transcrição de um extracto da carta do procurador da cidade de Macau, Pedro Feliciano de Oliveira, escrita, em 15-05-1829, ao mandarim da Casa Branca, que lhe perguntava acerca do viver e do comércio em Macau: 《A cidade tem menos população e as casas em menor número. Tendo permitido os imperadores habitarem nela os portugueses, desde as Portas do Cerco até à Barra, os portugueses apenas habitam uma pequena parte, tendo livre as praias para desembarcarem e concentrarem os seus navios e alguns baldios para as suas hortas, mas de há vinte anos para cá a população chinesa, que era de 800 almas, cresceu para 40000; das hortas e nos campos alugados aos chineses fizeram as suas várzeas, os baldios tomaram-nos os chinas para as suas boticas e até muitas casas de portugueses tomaram os chinas de aluguer e ficarem com elas sem pagarem os aluguéis (tais são as de S. Agostinho, R. de S. Paulo, Gregório Abreu e Praia Pequena), que os chineses tomaram todas, edificando muitas barracas até no lugar em que era rua. Assim vão continuando pela Barra e pelo Patane, onde antigamente havia casas de portugueses, e estes reduzidos à Praia Grande e às casas do centro da cidade, reedificando-se quando estão velhas, não tomam terrenos, nem as suas igrejas. O bazar, que era fora da cidade, acha-se agora dentro dela e também a multidão de casas chinesas, não se podendo distinguir as dos homens bons das dos maus... 》

Nos períodos de monção, a cidade foi constantemente flagelada por cataclismos que destruíram os cais e os principais edifícios. Em 1824, um incêndio destruiu parte do Convento de Santa Clara e, em 1825, outro arruinou o de S. Paulo e a respectiva igreja. Este núcleo, pertencente aos jesuítas, fora já em parte desmembrado, em 1788, quando se demoliram a biblioteca e as oficinas. Novo incêndio atingiu, em 1835, a igreja, que se viu reduzida à fachada e muros. Posteriormente, tudo foi demolido por já não ser viável a sua recuperação, mantendo-se apenas a fachada principal da igreja com a escadaria de acesso. O interior do templo foi utilizado como cemitério, cristão, a partir de 1838, e até à construção do novo cemitério de S. Miguel. O tufão que atingiu a zona, em 1831, provocou danos na zona da Praia Grande e houve que proceder à ampliação do passeio e melhoria dos muros de protecção. Alguns edifícios foram reconstruídos com base em novos programas e modelos neoclássicos.

Mercado Vermelho, inaugurado em 1936, projecto do 3° Conde de Senna Fernandes. Postal editado pelo ICM, s. d..

A área urbana chinesa aumentou em superfície, pois agregou novos quarteirões que correspondiam genericamente ao espaço compreendido entre as actuais ruas dos Mercadores, Camilo Pessanha, Travessas da Cordoaria, do Pagode e do Armazém Velho. A oeste, este conjunto era limitado pela actual Av.5 de Outubro; a sul, pela Almeida Ribeiro e a norte/nordeste pela R. da Praia Pequena, actualmente designada R. das Tercenas. Aqui encontrava-se a casa do mandarim e o Ho-Pu (alfândega chinesa) da Praia Pequena. Em frente deste conjunto localizava-se o bazar do peixe.

Os quarteirões longos e retalhados por becos, compreendidos entre as ruas das Estalagens, Camilo Pessanha, R. dos Mercadores e Av. Almeida Ribeiro, eram ocupados por habitações chinesas, limitadas a sudeste pelo Grande Bazar (área do actual mercado de S. Domingos) por estabelecimentos de carpintaria mais ligados à actividade marítima. Esta originou também a instalação de um número significativo de armadores na Praia do Manduco, próximo da qual se instalara, em 1783, a alfândega portuguesa, localizada então na rua do mesmo nome.

As aldeias chinesas contin- uavam a manter uma vida própria e os campos que as rodeavam abasteciam a cidade portuguesa. Hortaliças e frutos eram os produtos mais numerosos, escasseando sobretudo a carne, fundamental nos hábitos europeus. Os templos eram os principais edifícios ordenadores destes aglomerados. Nos campos, sobretudo nas encostas, erguiam-se os cemitérios chineses, espaço religioso simbólico de grande importância para esta comunidade. Para além dos túmulos das famílias mais abastadas, que eram edifícios compostos por várias salas, estes lugares foram povoados por inúmeras sepulturas simples, abertas em forma de cova, mas igualmente espaço sagrado e vital para a população, considerado de utilidade pública.

Facto significativo no primeiro quartel do século, foi o aparecimento de um periódico local. Trata-se do jornal A Abelha da China,que começou a publicar-se em 12-9-1822, sob orientação de um frade dominicano. Em 1824, passou a usar a designação Gazeta de Macau,que em 1834 se transformou na Crónica de Macau,acentuando cada vez mais o seu carácter regionalista. Em 9-7-1836 iniciou-se a publicação do Macaísta Imperial,que durou cerca de dois anos. Também neste período surgiu o Boletim Oficial do Governo de Macau,em 1838, veiculando a informação oficial e os programas do governo.

Dotada de uma vida própria peculiar, exótica e atractiva para a maior parte dos europeus, a cidade de Macau vive a última fase do período colonial de raiz quinhentista e começa a indicar novos rumos que irão conduzir à expansão da área urbana e à fusão dos dois núcleos iniciais, com as consequentes transformações na cultura e na paisagem urbana.

Padrão português e edifício-sede do Banco Luso Internacional (Avenida Dr. Mário Soares/Praia Grande). A Praia Grande, tradicional "rosto" da cidade, prepara-se para a nova fisionomia urbana de Macau no final de milénio. (Slidede Joaquim Castro,1998).

MACAU FACE À FUNDAÇÃO DE HONG KONG E ÀS TRANSFORMAÇÕES POLÍTICO-ECONÓMICAS NA REGIÃO E NO MUNDO

O FIM DE MACAU COMO PÓLO FUNDAMENTAL DAS TROCAS COMERCIAIS ENTRE O OCIDENTE E A CHINA

A abertura dos portos da China ao Ocidente e o estabelecimento dos ingleses em Hong Kong foram acontecimentos decisivos para a evolução de Macau a partir do século XIX.

A Convenção de Chuenpi, que pôs termo à «Guerra do Ópio» entre a Inglaterra e a China, veio a ser ratificada pelo Tratado de Nanquim, em 1842. A questão do ópio levantara-se desde o século XVIII e os rendimentos da comercialização do produto pesavam significativamente na economia dos países europeus, em particular da Inglaterra, e até mesmo na economia macaense. A legislação oficial chinesa sempre proibira a sua importação e consumo e, em 1838, uma ordem imperial expulsou todos os ingleses do país e o porto de Cantão fechou-se às companhias britânicas. A evolução do conflito até 1842 resultou favorável à Inglaterra que, além de impor o pagamento de guerra por parte da China, conseguiu a abertura imediata dos portos de Cantão, Amoi, Fuchau, Xangai e Niampó ao comércio europeu, bem como a cedência de terreno para instalação de um estabelecimento comercial. Em 1843, foi cedido o território de Hong Kong, onde os ingleses fundaram a cidade de Vitória.

Terminava para Macau o longo período, de três séculos, que fez do território o único entreposto de comércio entre o Ocidente e a China. Substituído por Hong Kong, Macau sofreu as consequências da conjuntura internacional, acentuada pelo rápido crescimento do núcleo inglês. As companhias estrangeiras estabelecidas na cidade portuguesa foram atraídas pela dinâmica do novo entreposto, dotado com um grande porto. Em 1845 foi encerrado o Consulado inglês em Macau, seguindo-se o mesmo procedimento por parte das representações comerciais e diplomáticas europeias e americanas. Algumas mantiveram-se ainda durante anos, utilizando Macau mais como centro diplomático do que comercial, e o próprio tratado sino-americano foi assinado na cidade, em 1844, no templo de Kun Yam.

As companhias estrangeiras levaram nos seus quadros muitos macaenses, elementos que se tornaram fundamentais na formação das estruturas comerciais e culturais de Hong Kong. Estes funcionários serviam de intérpretes nos contactos com os chineses. Também muitos comerciantes de Macau, que tradicionalmente operavam na região e conheciam toda a dinâmica do complexo processo de relacionamento, se transferiram com as respectivas famílias para a cidade inglesa. Outros ligaram-se à banca e às companhias seguradoras estabelecidas naquele porto e alguns apoiaram as incipientes estruturas culturais. Era significativo o número de macaenses na cidade de Vitória no século XIX.

O entreposto inglês superou Macau não só nas funções de importação de produtos e manufacturas chineses como na colocação de produtos ocidentais na região. A cidade portuguesa passou, assim, de uma situação privilegiada a uma posição de dependência. Inaugurou-se uma carreira de barcos, e depois de vapores entre Hong Kong e Macau, para transporte de passageiros e produtos. O processo de comunicações aperfeiçoou-se em novos campos, suportado por modernas tecnologias, e, em 1920, foi inaugurado o serviço telegráfico entre as duas cidades. Para Macau, a ligação a Hong Kong significava uma aproximação a padrões e modelos de vida europeus.

Hotel Riviera (1928-1971). Sucessor do New Macao Hotel. Os seus chás dançantes e jantares à americana permanecem um marco na memória da vida social de Macau. Postal editado pelo ICM, Macau.

O regulamento da cidade e porto de Macau, aprovado em 1842, reordenava o funcionamento antigo, ajustando-se mais às condições estabelecidas pela abertura de outros portos nas costas da China, para além de Cantão, e alheava-se às previsíveis consequências da abertura de Hong Kong. Só em 1845 foi definido porto franco, medida tardia, numa altura em que o porto inglês se encontrava já apetrechado e em funcionamento, atraindo os capitais estrangeiros e os navios de grandes companhias europeias e americanas.

Embora as consequências imediatas da fundação de Hong Kong tivessem sido catastróficas, a economia macaense procurou ajustar-se ao novo equilíbrio na região, onde sempre, até aos nossos dias, a supremacia tem sido marcada pelo novo centro. O comércio dos cules e do ópio e a exploração do jogo constituíram a base da economia do território no século XIX, a que se juntaram as primeiras estruturas industriais de tipo moderno.

AS RELAÇÕES ENTRE AS SOBERANIAS CHINESA E PORTUGUESA EM MACAU

A implantação definitiva do constituciona- lismo liberal em Portugal, a partir de 1834, originou transformações estruturais do regime político, administrativo, jurídico e comercial com reflexos nos territórios coloniais. As medidas mais significativas nesta área foram: revisão da administração colonial, conduzindo à centralização do poder e à afirmação efectiva da soberania portuguesa; organização das províncias e extensão do regime municipal a todos os territórios e a abolição das ordens religiosas e secularização dos respectivos bens, que foram transferidos para o Estado e instituições ou vendidos a particulares.

Em 1844, Macau foi desmembrado de Goa, passando a constituir uma província na qual se integravam Timor e Solor. O território permaneceu nesta situação administrativa até 1850, data em que se constituíram duas províncias independentes. A partir de 1870, as províncias de Macau e Timor passaram a ter capacidade de eleger dois deputados com representação nas Cortes. A história destes dois territórios interliga-se no período oitocentista por razões administrativas e até económicas. A dotação de verbas pelo orçamento geral do Reino chegou a ser comum.

Mapa da Península de Macau e Ilhas Adjacentes,1780, incluindo a Ilha da Lapa ou dos Padres (abandonada em 1722) e as Ilhas da Taipa e Coloane (ocupadas pelos portugueses desde o Governo de Ferreira do Amaral,1846—1849). Edição da Direcção dos Serviços de Turismo, Macau,1986.

A política colonial portuguesa regulava-se pelos modelos europeus da época. Assim, a questão de afirmação da soberania através da ocupação militar efectiva tornou-se prioritária. Os governadores das 《Províncias Ultramarinas》ou 《Colónias》passaram a ser sistematicamente militares, e para melhor efectivarem a ocupação foram dotados de novos quadros defensivos com forças terrestres e marítimas. João Maria Ferreira do Amaral foi o primeiro governador a concretizar em Macau a nova política. Governou no período de 1846-49, determinando um conjunto de medidas tendentes a estender a soberania portuguesa a todo o território, desde a cidade portuguesa às aldeias e campos chineses. Expulsou a alfândega chinesa da cidade, aboliu o pagamento do foro do chão por direitos de ancoragem no porto, ocupou as ilhas de Taipa e Coloane, fortificando a primeira com um sistema defensivo ajustado, e estabeleceu um plano de melhoramentos na cidade e nos campos entre os antigos limites da muralha portuguesa e as Portas do Cerco.

Enquanto o poder do governo aumentava significativamente, apoiado em estruturas militares e força jurídica, o Senado via diminuída a sua projecção e funções, vendo-se remetido ao estatuto de Câmara Municipal, sem qualquer capacidade de representação diplomática à escala local. Por isso, as reacções às medidas frontais levadas a cabo por Ferreira do Amaral foram imediatas por parte das autoridades chinesas e do Senado. Como resultado das tensões locais, o governador foi assassinado, e uma guarnição portuguesa avançou para além das Portas do Cerco até Pak-Sha-Leng, numa demonstração de força perante as autoridades e tropas chinesas, episódio que na versão portuguesa ficou conhecido como a 《Vitória de Passaleão》. Destas acções resultou a extensão do domínio português até à passagem designada por Portas do Cerco, onde em 1871 se levantou um arco monumental em substituição da velha portagem alfandegária. Os núcleos chineses interiores e limítrofes da cidade portuguesa, como o Bazar Novo, Patane, Chunambeiro, Barra e Praia do Manduco, bem como o arrabalde macaense de S. Lázaro, foram oficialmente integrados como extensão da área urbana. Outros governadores aplicaram medidas eficazes para a extensão e desenvolvimento do território segundo os padrões e modelos da época, como Coelho do Amarai (1863-1866), o visconde de S. Januário (1872-1874), Horta e Costa (1894-1897 e 1900-1904), Carlos da Maia (1914-1916) e Tamagnini Barbosa (1918-1919,1926-1931 e 1937-40).

Por sua vez, a Igreja, que desempenhara até então papel importante na partilha de poderes, viu a sua acção diminuída com a extinção das ordens religiosas em 1834. Os monges e freiras foram expulsos e identificados como pessoas seculares e os respectivos bens confiscados e as igrejas e mosteiros expropriados e ocupados. O Convento de S. Francisco foi em grande parte demolido e transformado em quartel, em 1851, e os jardins e hortas tornaram-se espaços públicos. O de Santa Clara, situado nas proximidades, foi também destruído e adaptado a novas funções, e no de S. Domingos, no interior da cidade, instalou-se o corpo de Polícia, em 1867. As restantes estruturas religiosas mantiveram-se e, em 1856, o antigo Colégio de S. José foi transformado em seminário diocesano. A diocese, representada pelo bispo, passou a ser a única entidade religiosa representativa, cuja Sé-Catedral beneficiou de obras de completa renovação no ano de 1850.

As estruturas governativas, definidas pelo modelo colonial oitocentista, constituíram a base da governação até aos nossos dias, e, do mesmo modo, os limites territoriais e o âmbito da soberania portuguesa ficaram então estabelecidos. A organização concelhia estendeu-se às ilhas, que passaram, posteriormente, a constituir concelhos com características e administração próprias. As restantes instituições e organismos, como os tribunais judiciais, comerciais e alfandegários, as repartições de finanças e a capitania do porto foram também instituídas de modo a suportar a acção governativa centralizada.

As transformações originadas pelo estabelecimento de Hong Kong e pelas medidas que conduziram à afirmação da soberania portuguesa modificaram a actuação chinesa em Macau. O império saíra derrotado na questão da guerra do ópio e, portanto, enfraquecido do ponto de vista militar e diplomático. Além disso, Macau deixara de ser importante ao nível do controlo das acções económicas, progressivamente transferidas para a esfera do território inglês. A história da China no século XIX é caracterizada por sucessivos períodos de instabilidade interna, que conduziram ao fim do império e à instauração da República, em 1911. As crises externas manifestaram-se pelos conflitos que deflagraram na guerra sino-japónica em 1894, e na guerra dos Boxers em 1900.

Página seguinte: Planta da Península de Macau e Ilhas,1927, por João Carlos Alves e João Barbosa Pires, incluindo os projectos de melhoramento portuário da Rada e do Porto Interior. Foi criada em 1918 uma comissão dos Portos de Macau que tinha como principal objectivo a planificação e reconstrução dos portos da Península. In Macau, Cidade Memória..., op. cit., p.87.

A afirmação da supremacia militar portuguesa e a extensão da soberania a todo o território e ilhas, em 1849, provocou tensões entre os dois países e desentendimentos locais, na medida em que cada um reivindicava direitos sobre aqueles espaços. A administração mandarínica pretendia continuar a actuar nas aldeias e campos chineses e na própria cidade portuguesa e o Governo português ocupava e marcava os terrenos até às Portas do Cerco.

Em 1862, a diplomacia portuguesa estabeleceu um primeiro acordo sobre a coexistência da comunidade chinesa sob uma soberania portuguesa e obteve autorização para a abertura de um Consulado oficial português em Fuchau. As negociações culminaram no tratado assinado entre as duas partes, em 1887, estabelecendo-se o estatuto de Macau, que foi definido como uma possessão portuguesa e como qualquer território colonial, mas com uma particularidade que previa e recomendava a consulta à China em relação a toda e qualquer situação de alienação territorial ou outras modificações que afectassem directa ou indirectamente a região. Algumas questões, como a soberania sobre as ilhas da Lapa, D. João e Montanha, que tinham sido ocupadas por portugueses e abandonadas no século XVIII, nunca ficaram esclarecidas. Na prática, Macau ficou com as ilhas da Taipa e Coloane e a China com as restantes, situação «de facto»que só foi reconhecida jurídica e diplomaticamente em posteriores acordos já no século XX.Na península, o arco das Portas do Cerco, inaugurado em 1871, passou a constituir o limite físico e alfandegário.

Macau não interferiu na política interna e externa da China e manteve sempre uma posição de neutralidade durante os conflitos. Em 1904, foi expressa e publicamente declarada a neutralidade na guerra com o Japão, que só veio a terminar pelo tratado de paz assinado em 1928 pelos dois países envolvidos. Nos primeiros anos das repúblicas portuguesa (1910) e chinesa (1911), as tensões foram-se atenuando e, em 1928, inaugurou-se a estrada de Macau a Seak-ki, ligando o território português com as aldeias do estuário do rio das Pérolas.

O problema da emigração chinesa através de Macau chegou a ser motivo de tensões, mas acabou por se resolver sob pressão das autoridades chinesas. Embora a abolição da escravatura em Portugal recuasse ao século XVIII, só as medidas liberais oitocentistas e o novo código penal estenderam a legislação às colónias, onde ainda sobrevivia sob diversas formas. No entanto, o processo foi substituído rapidamente pela contratação de homens através de assalariamento, que, na prática, se traduzia numa espécie de compra. Através de Macau fornecia-se mão-de-obra por períodos de contratação, a preços baixos e em condições deploráveis, para as colónias portuguesas de África, para o Brasil, para a América Central e para as Antilhas. Em 1856, a emigração de chineses através do território foi regulamentada. A proclamação chinesa sobre a emigração, feita em 1859, obrigou à revisão do problema e teve como resultado a criação da Casa da Superintendência dos Cules, em 1868, que vigorou até à proibição de emigração dos habitantes locais, especificamente dos cules, e à total abolição da emigração de estrangeiros através de Macau, decretada em 1874. A contratação de macaenses para as colónias portuguesas das costas de África continuou a verificar-se durante vários anos.

As comunidades locais ficaram remetidas essencialmente à população portuguesa e chinesa e a um número significativo de macaenses resultantes da miscigenação ao longo dos tempos. As etnias chinesas eram, no seu conjunto, as mais significativas, continuando a manter sistemas culturais próprios, bem expressos na língua, na religião e nas habitações. Em 1863, surgiu um semanário em língua chinesa — TA SSi YANG KUO —,que se publicou até 1866. A população portuguesa resumia-se aos grupos de apoio à administração e defesa e seus familiares.

A comunicação verbal era uma barreira no processo de interligação das duas comunidades. Deste modo, em 1868, o Governo português autorizou a criação de uma escola de português para chineses, do mesmo modo que, em 1865, criara um grupo de intérpretes de língua sínica para apoio da administração. No entanto, não existiram medidas que conduzissem a processos de aculturação imposta por qualquer das duas partes. A par duma coexistência paralela de grupos étnicos e rácicos diferenciados, verificaram-se sempre trocas culturais lentas e profundas de que resultaram manifestações culturais, comportamentos, formas de expressão e actuações sobre a cidade ao nível da arquitectura e do espaço.

Página seguinte: Carta Hidrográfica: Macau e Ilhas em 1954, que demonstra o pequeno desenvolvimento urbano relativamente a 1927 (Mapa 19).

In "Dez Cartas e Plantas de Macau" (ed. integrada no projecto Cem Anos que Mudaram Macau,A. A. Governo de Macau, Macau,1995.

s. n.: "Mapa Turístico de Macau", Direcção dos Serviços de Turismo/Associação dos Hotéis de Macau, publicado por Lui Yao Yip Ltd., s. d..

O NOVO DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO E A EXPANSÃO DA CIDADE

FACTORES DE DESENVOLVIMENTO ECONÓMICO

Após a fundação de Hong Kong, este porto passou a competir com o de Macau, que, localizado nas baixas regiões do Se-Kiang, tinha dificuldade em receber navios de grande porte. Mas, embora perdendo no plano portuário, o território teve ainda uma época de prosperidade ligada ao comércio dos cules e ao contrabando do ópio, que se processava em grande parte no hopu da Praia Grande.

De facto, Macau tornou-se um grande centro de emigração de população que, vinda da China, transitava por Macau com destino à América. A primeira vaga de emigrantes data de 1848 e tem como destino a Nova Califórnia, onde se haviam descoberto as minas de ouro. Como lugares de destino, seguiam-se em importância Cuba e Peru. Em 1855, e dadas as proporções que a actividade do engajamento de trabalhadores e as pressões que o exterior e os jesuítas vinham fazendo contra esta forma de escravatura, o governo define, em 1856, um regulamento para contratação de cules, tendo esta sido coarctada em 1873, atitude que beneficiou os ingleses de Hong Kong, local donde este tipo de comércio era originário. Não obstante o governo de Macau controlar os armazéns dos cules, o comércio era dominado por estrangeiros. Montalto de Jesus (Jesus,1902, p.382), referindo a nacionalidade dos navios que aportavam a Macau para carregamento desta mão-de-obra chinesa, enumera, em 1857,15 ingleses,6 franceses,5 italianos,3 peruanos,2 americanos,1 alemão,1 salvadorenho e 13 pertencendo a armadores macaenses. Cuba foi o centro de maior fixação dos cules, seguindo-se o Peru (Lima) e Demerara. Traduzindo-se num enriquecimento da população local, o comércio dos cules processava-se em Macau em estabelecimentos localizados nas Ruas do Tarrafeiro, Gamboa, S. Lourenço, Praia Grande, Travessa de Palanchica, Largo de Santo António e Rua do Hospital.

Ao comércio dos cules e ao contrabando do ópio, juntava-se a importância do chá como produto de exportação para Hong Kong, Cantão, B atávia, Goa e Portugal.

O monopólio do jogo (1886) traduziu-se também num aumento de rendimento, mas, fechados os mercados importadores do chá e proibida a exportação de cules, Macau entra num período de decadência económica. A sua sobrevivência só foi possível graças à manutenção do comércio do ópio, que ocorreu em larga escala por todo o Oriente, não obstante a aplicação de um regulamento que proibia a cultura e o tráfico deste produto.

Edifício do Quartel dos Bombeiros (ex-Corpo de Salvação Pública), c.1930.

Foto da colecção do Dr. João Loureiro.

Macau e Ilhas,1865-6, por W. A. Read [in F. C. DANVERS,The Portuguese in India],parcialmente reproduzido in Macau, Cidade Memória...,op. cit., p.84.

POPULAÇÃO: CRESCIMENTO E ESTRUTURA

Em 1841, Macau contava com cerca de 25 000 habitantes, dos quais 20 000 eram chineses. O recenseamento de Junho de 1867 indicava um total de 56 252 habitantes, o que significava a duplicação da população residente. As áreas de maior concen- tração eram a cidade cristã (20 177) e o Bazar (14 573). Seguiam-se Patane (8481) e Mong-Há (8182), nos quais — tal como nos bairros de S. Lázaro (2590), Tanque-Mainato (533) e Barra (1716) — residiam apenas chineses. O incremento desta população ficou a dever-se mais à emigração que ao crescimento natural e cerca de 96% eram provenientes da província de Kuong-Tung,3% de Fukien,0,12% de Kuongsi e os restantes de Hong Kong e Xangai.

As informações constantes do censo de 1878, mais precisas, não são comparáveis com a anterior, dado que as variáveis e as áreas a que se referem são diferentes. No entanto, é possível constatar que em onze anos a população total cresceu de 6,2%.Espacialmente, as variações positivas mais relevantes registaram-se nas freguesias de S. Lourenço (2189) e de S. Lázaro (866), enquanto os maiores decréscimos ocorreram no Bazar (— 5534), em Mong-Há (— 3248) e na freguesia da Sé (— 2767). No que concerne à distribuição da população no interior da cidade, os europeus residiam em maior número na Sé (2270) e em S. Lourenço (1343). Esta última freguesia, o Bazar e Patane eram áreas de grande concentração de chineses e no conjunto detinham 72,7% do total populacional deste grupo vivendo na cidade, em 1878. Aspecto a realçar é a elevada percentagem de população residindo em habitações flutuantes (10 060), ou seja, quase um quinto do total.

Representados nas três principais freguesias — Sé, S. Lázaro e S. Lourenço —,os portugueses desempenhavam funções mais ligadas aos serviços, enquanto os chineses s°e dedicavam ao comércio e trabalhavam em pequenas unidades industriais de tipo artesanal.

Embora o número de profissões não declaradas pese significativamente no total, não permitindo grande rigor na interpretação dos resultados, é possível ainda evidenciar a presença de funcionários públicos e militares na freguesia da Sé. Estes estavam ainda bem representados em S. Lourenço, onde dominavam os proprietários e os criados, denotando o carácter residencial desta zona. Profissões muito diversificadas eram exercidas pelos portugueses residentes em Santo António e S. Lázaro, enquanto no que concerne à população chinesa, ainda que o sector terciário fosse dominante, o sector secundário estava também representado. A ele encontravam-se ligados 17,2% dos chineses activos residentes em Santo António; 8,9% em S. Lourenço, contrastando com valores de 2,4% e 6,0% na Sé e em S. Lázaro.

No princípio do século XX(1910), a população total de Macau era de 65 733, tendo os portugueses diminuído de 905 habitantes e os chineses passado de 55 540, em 1878, para 62 732. Santo António foi a freguesia que registou o maior aumento populacional (2748) e, tal como em Mong-Há, o incremento ocorreu tanto a nível de portugueses como de chineses. S. Lourenço e a Sé viram os seus quantitativos populacionais baixarem, entre 1878 e 1910, de 1658 e 1459, respectivamente. O número de habitantes por fogo também diminuiu nestas freguesias, tendo passado de 5,0 e 6,0 para 4,04 e 4,35, respectivamente. Pelo contrário, em Patane, em Mong-Há e nas habitações flutuantes do Porto Interior, os valores desta variável subiram devido ao incremento da população chinesa.

Parada do Quartel de S. Francisco, c.1930. O ex-convento de S. Francisco começou por ser ocupado pelo batalhão do Regimento do Ultramar estacionado em Macau.

Foto da colecção do Dr. João Loureiro.

No que concerne às profissões da população portuguesa, a freguesia da Sé registou um aumento de activos no comércio, enquanto os funcionários públicos e militares estavam mais bem representados em S. Lázaro. Embora bastante diversificada, a estrutura profissional das freguesias de S. Lourenço e de Santo António era dominada pelo sector terciário, bem representado também ao nível da população chinesa. Esta última freguesia viu reduzida a sua importância relativamente ao período anterior no que concerne à percentagem de activos na indústria (3,1%), ultrapassada por Patane, que, individualizada neste censo como bairro, apresentava um valor de 4,8% de activos no secundário.

Mantendo idêntica estrutura espacial e económica, a população total cresceu de 13% entre 1910 e 1920, sendo os bairros da Sé, S. Lourenço e S. António os que maior incremento registaram. É provavelmente a este que se deve a variação da densidade de população urbana, que, naquele período, passou de 138,6 habitantes/ hectare para 155,5.

DESENVOLVIMENTO E OCUPAÇÃO DA CIDADE

Às flutuações político-económicas ocorridas nesta época corresponderam movimentos de expansão ou recessão no tecido urbano.

Durante o governo de Ferreira do Amaral definiu-se um sistema viário moderno ligando o aglomerado aos aldeamentos e ao território chinês para além do istmo.

Algumas destas estradas assentaram em antigos caminhos. Abriram-se assim as ligações entre a zona da Porta de Santo António com a Porta do Cerco e entre estas e Mong-Há, seguindo até ao pagode e às Portas do Cerco. A abertura das vias provocou reacções por parte da população chinesa, que ocupava tradicionalmente grandes áreas para cemitério, transformadas, assim, num espaço sagrado intocável. As obras prosseguiram e, em 1849, foi estabelecida uma área para cemitério chinês entre o bosque de Mong-Há e o Pagode Novo. A fim de se efectivar a ocupação dos campos e aldeias chineses, construíram-se fortificações novas, algumas destinadas à defesa por terra, outras por mar. O Forte de Mong-Há, a Fortaleza de D. Maria II e a bateria Primeiro de Dezembro são as estruturas defensivas mais importantes. Nesta época, e ao mesmo tempo, renovaram-se e modernizaram-se as mais antigas.

Para conter a progressiva interligação da zona urbana portuguesa com os núcleos chineses e definir a separação junto do porto, construiu-se uma porta de controlo em Patane. No interior da cidade, melhoraram-se alguns edifícios civis e religiosos e estabeleceu-se a numeração de prédios e casas. Para apoiar legalmente e apressar a transferência de bens da comunidade chinesa para a portuguesa, foi publicada legislação que isentava de tributos e impostos os terrenos particulares e edifícios comprados aos «chinas».

Esfera armilar no jardim interior do Leal Senado. (Slide de Joaquim Castro,1998).

Em 1850, a área entre a Rua do Seminário e a Praia do Manduco foi aterrada. Até então, a frente de mar, que correspondia ao traçado da actual R. Praia do Manduco, era ocupada por edifícios distribuídos de forma dispersa e habitada por artesãos chineses e comerciantes ligados às actividades marítimas. Concluído o aterro neste espaço, que passou a fazer parte integrante da cidade, as ruas paralelas correndo perpendicularmente ao mar passaram a constituir um pólo agregador de funções comerciais e artesanais desenvolvidas por população chinesa. Esta concentrava as suas actividades na zona do Bazar e ao longo do Porto Interior, e dentre a função comercial destaque-se o elevado número de hãos, localizados no Porto Interior. Num total de 40 estabelecimentos,34 tinham sede em Macau e ramos na China, Cochinchina, Sião, Singapura e Pirany. Os restantes eram filiais de hãos instalados em alguns dos locais citados e constituíam as unidades mais importantes do comércio chinês. Este era, em regra, representado no Bazar por associações que nas suas mais variadas formas definiam o ponto fulcral da vida urbana.

Fortalecida a soberania portuguesa, Macau usufruiu de grande estabilidade durante o governo de Coelho do Amaral, o que permitiu registar melhorias no plano urbanístico. Foi aberta uma estrada ligando Macau às Portas do Cerco e destruídas as muralhas que a prolongavam como fronteira; definiram-se regras de gestão municipal, melhoraram-se os pavimentos, infra-estruturaram-se os quarteirões chineses e as áreas rurais envolventes foram adaptadas à expansão urbana. Melhoramento significativo deste período foi ainda o aterro entre a Praia Grande até ao Forte do Bom Parto. As intervenções no território prosseguiram com o sucessor de Coelho do Amaral, o visconde de S. Januário, que ordenou a execução da primeira fase do aterro marginal do Porto Interior e a regularização da corrente do rio desde a Fortaleza da Barra até à doca de Mong-Tchoi; procedeu à canalização das ruas próximas do Bazar e à execução de um aterro marginal desde a Fortaleza do Bom Parto até à chácara de Maximiano António Remédios, localizada para o lado da Barra. Esta última acção deveria contudo manter o pano de muralha ainda hoje existente. Destaque-se também, neste período, a acção do engenheiro Adolfo Ferreira Loureiro, cujo estudo sobre o Porto Interior teve como resultado a regularização das correntes, obras de terraplenagens, e construção de novas docas e ainda a conquista de espaço entre a ilha Verde e a península de Macau. Tal como acontecera em intervenções feitas em áreas portuárias europeias, o plano de Adolfo Loureiro previa a instalação de um bairro, que não chegou a concretizar-se, localizado na zona do istmo e destinado à fixação de trabalhadores do porto. O plano deste bairro previa o traçado de quarteirões com 40 metros de fundo, separados por ruas com 20 metros de largo, tendo a norte uma avenida arborizada. As obras do Porto Interior foram concluídas em 1821, mas os melhoramentos em Macau, no fim do século, não se confinaram aos portos.

Palácio das Repartições na Praia Grande, c.1930. Construído em 1872-74 por acrescento de um corpo central saliente ao Palácio do Governo, integrava o conjunto dos edifícios públicos que dominavam a Praia Grande no início do século (onde se incluia ainda o edifício dos Correios e o Hotel Riviera). Demolido em 1946 foi substituído, no mesmo local, pelo Novo Palácio das Repartições inaugurado em 30/6/52 com o objectivo de albergar os diversos serviços público-administrativos. Foto da colecção do Dr. João Loureiro.

Desde 1848, data em que foi restabelecida pelo governador Ferreira do Amaral a soberania portuguesa nos terrenos que se estendiam da Cidade Cristã às Portas do Cerco, que surgiu o problema de saneamento desta área da cidade. A opinião pública clamava pelo saneamento das hortas da Mitra e de Volong, pelo canal de Sankiu e das várzeas de Mong-Há. O primeiro, que abrigava cerca de 60 000 habitantes e se localizava junto do hospital civil, foi substituído pelo bairro Tomás Rosa, de malha ortogonal, onde foram impostas regras de expropriação e saneamento. Os terrenos da horta de Volong, cobrindo cerca de 200 ha, foram expropriados por utilidade pública em 1894 e entregues ao Leal Senado, que, através das Obras Públicas, abriu as ruas e instalou as canalizações de águas e esgotos. Igual tratamento foi dado ao bairro de S. Lázaro, cujas obras de saneamento datam de 1900.

Os governos de Horta e Costa (1894-1897; 1900-1904) dedicaram-se ao saneamento de Tap-Siac, Sá-Kong e Mong-Há. Declarados de utilidade pública em Julho de 1901 e expropriados os prédios e barracas de Mong-Há, as Obras Públicas elaboraram o plano a que deveria ser submetida a área saneada. Segundo esse plano, deveria ser traçada uma avenida, a actual Horta e Costa, que, partindo dos terrenos limítrofes à Estrada da Flora, ligasse a um largo, a Rotunda Carlos da Maia, da qual deveriam partir outras avenidas que atravessariam os terrenos que então constituíam a várzea de Mong-Há. É também durante a vigência de Horta e Costa que se abrem as Avenidas Vasco da Gama e da República e se aterra parte da R. do Visconde de Paço de Arcos.

Vista Península de Macau c.1815, numa perspectiva original, atribuída ao Mestre do Fogo de 1822 (escola chinesa). Óleo sobre folha,0.11 m x 0.15m.

Os primeiros anos do século XX, bafejados ainda por uma certa prosperidade financeira, são marcados pela elaboração de um plano de saneamento geral da cidade determinado por portaria de Janeiro de 1905. Para a concretização deste plano, expropriaram-se em 1913 casas e barracas, em Patane, Estrada Coelho do Amaral e nos prolongamentos das Estradas Adolfo Loureiro e do Repouso. Em 1915, têm início as obras de abertura da Av. Almeida Ribeiro, os aterros dos bairros de S. Miguel, Mong-Há e Long-T'in-Tchin. Concluído o processo de expropriação das várias casas do Largo do Senado e da Travessa do Roquete, é estabelecida em 1918a ligação da Av. Almeida Ribeiro com a Praia Grande. Um ano mais tarde são alargadas as ruas de Entre Campos, a Marginal da Barra e a do Tarrafeiro. Em 1924 têm lugar as obras de alargamento da R. Marginal do Porto Interior, entre o Pagode e o Largo da Barra. A área da cidade quase duplica, e este movimento de expansão é acompanhado pela publicação do primeiro «regulamento dos serviços das obras particulares e de salubridade das edificações urbanas da cidade de Macau».

Concomitantemente, assiste-se à instalação de diversos equipamentos que beneficiam a vida dos macaenses. Mencione-se a título de exemplo a inauguração, em 1894, do Liceu Nacional de Macau, que então funcionava no Convento de Santo Agostinho, a abertura de uma companhia de navegação aérea, Macau Aerial Transport Company, Ltd, em 1920, o início de funcionamento (1924) da Central Rádio de Macau, propriedade da Radio Communication Company, que provisoriamente se encontrava instalada na Fortaleza de D. Maria II. Entre 1925 e 1928, foi aberto ao público o hipódromo, passou a ser utilizada a doca seca de Patane e as estradas de Macau a Seak-Si.

Registou-se ainda a inauguração do edifício da Caixa Escolar, sito na rua do mesmo nome, a feira e exposição comercial para propaganda do novo Porto Exterior e o President Hotel, actualmente Hotel Central, na época o mais alto edifício de Macau. Nas novas áreas foram aparecendo residências dispersas e no fim do século XIX, princípios do século XX, registou-se um movimento de ocupação da zona da Praia de Cacilhas e a compreendida entre a Av. Marginal e a Igreja da Penha. A primeira foi ocupada por casas de veraneio entre as quais a do governo; a segunda foi preenchida por chácaras, pertença da burguesia enriquecida pelo comércio e pelo jogo.

No que concerne à organização funcional da cidade, o recurso ao Anuário de Macau de 1924 permitiu, através das unidades funcionais então existentes em Macau, definir 4 núcleos de comércio e serviços. Um, com predomínio de actividades comerciais, propriedade de chineses, estendia-se desde a Praça Ponte e Horta até à Calçada do Botelho e da R. das Lorchas/Av. Visconde Paço de Arcos até ao Largo do Senado/Rua da Palha. A norte, os limites eram R. dos Fatiões/R. da Tercena; para sul, correspondiam às ruas e Travessa do Gamboa. Genericamente corresponde ao Bazar chinês. Aqui predominavam as lojas de produtos alimentares (75), as de vestuário e malha (38) e os restaurantes e casas de pasto (29). As primeiras tinham maior concentração entre a Av.5 de Outubro e a Av. Visconde de Paço de Arcos; o vestuário e tecidos eram mais frequentes nas Ruas das Estalagens, dos Mercadores, Camilo Pessanha e ainda na R. da Palha. Embora bem representados em todo o núcleo, os restaurantes localizavam-se em maior número nas ruas do Aterro Novo, da Felicidade do Pagode e nos topos sul da Av.5 de Outubro e da Rua do Guimarães.

Hospital de S. Januário, c.1920. Projectado pelo Barão do Cercal e pelo Capitão Dias Coelho foi inaugurado em 1874 contribuindo o estilo do seu traçado para a sua posição entre os diversos edifícios que marcaram, com a sua originalidade, diversidade e pujança, a arquitectura local entre as duas últimas décadas de oitocentos e as primeiras de novecentos.

Foto da colecção do Dr. João Loureiro.

Em posição periférica, entre as ruas do Tarrafeiro e a do Teatro localizavam-se os ferro-velhos, misturados com algumas lojas de ferragens e pequenas unidades industriais. Este tipo de estabelecimentos estendia-se ainda pela R. de Patane. O topo sudeste da Av. Almeida Ribeiro, entre a Av. da Praia Grande e o Largo do Senado, registava grande concentração de serviços, podendo ser designado pelo centro económico da época. Era o local de maior concentração dos cambistas (36) e dos hãos grandes (4), existindo já a agência do B. N. U. Este conjunto ligava-se à Rua Central, definindo-se assim uma outra área de comércio e serviços. Outrora funcionando como a R. Direita, nesta concentravam-se até ao Largo de S. Lourenço actividades comerciais servindo essencialmente população europeia (alfaiates, louças, tecidos, produtos alimentares, barbeiros, ourivesaria e relojoaria). Este tipo de estabelecimentos estendia-se pela R. do Campo até à R. Nova da Guia. Pelo reduzido número de unidades funcionais (25), constituíriam um pequeno pólo separado da R. Central por quarteirões, de grandes dimensões, definidos pela R. Nolasco da Silva, Travessa dos Anjos e R. Formosa. No primeiro destes eixos, a concentração de unidades funcionais ali instaladas deixavam antever que no futuro constituiria um eixo de expansão do Bazar chinês.

O terceiro núcleo de comércio e serviços estendia-se entre a R. da Praia do Manduco e a R. Almirante Sérgio. Com significativa ocorrência de estabelecimentos de produtos alimentares, barbeiros, ferragens, tecidos e casas de pasto, o interesse desta área residia na presença de estabelecimentos industriais, que embora de cariz artesanal tinham importância no conjunto da cidade. Note-se ainda que esta área funcional identificava-se facilmente na estrutura urbana por um conjunto de ruas estreitas e paralelas, traçadas sobre um novo aterro, que correndo perpendicularmente ao mar são limitadas a oriente pela antiga Praia do Manduco. Por fim, entre as ruas Coelho do Amaral, da Pedra e da Alegria podia identificar-se uma outra concentração de actividades com significativa ocorrência de drogarias e lojas de louça. Mas, de maior realce era a concentração de unidades industriais, que correspondiam a 44,4% do total de unidades instaladas na cidade.

Vista da Praia Grande c.1835. Escola de Cantão [col. China Trade], guache sobre papel,0.54m x 1.20m

AS OBRAS DOS PORTOS E OS PLANOS DE MELHORAMENTOS

A transformação das velhas estruturas coloniais a nível da cidade portuguesa tornou-se prioritária de modo a impor a ideia do progresso oitocentista. A política de regeneração, definida a partir dos anos 50, estendeu-se também às colónias. As comunicações, o sistema viário, as medidas de saneamento e as grandes obras públicas foram os campos privilegiados de actuação. A organização dos Serviços de Obras Públicas nas colónias, em 1869, com o estabeleci- mento de delegações locais, favoreceu este tipo de intervenções e criou um suporte técnico eficaz. A transformação do sistema viário rural em estradas modernas foi a primeira acção ainda empreendida durante o governo de Ferreira do Amaral. Colocou-se em seguida a questão das estruturas portuárias antigas e a abertura de novos portos no litoral da península e nas ilhas. Em 1864, iniciaram-se os estudos para os melhoramentos dos portos, cuja responsabilidade foi entregue ao Serviço de Obras Públicas no Ultramar, no âmbito do Ministério da Marinha, e nele trabalharam os respectivos quadros técnicos. Para apoio à navegação, instalou-se um farol na Fortaleza da Guia, inaugurado em 1865. As obras de regularização das margens do Porto Interior concluiram-se em 1881, rematando a progressiva ocupação das baías da Praia do Manduco e da Praia Pequena e tomando possível a abertura de uma marginal que, mais tarde, se ligou com o passeio da Praia Grande, através do contorno total da península pela barra, após a ocupação das baías do Chunambeiro e do Bispo.

Vista da zona S-SE da Guia. Panorâmica da zona S-SE da Península de Macau, a partir da Guia, c.1940.

Destaca-se o conjunto arquitectónico formado pelo Convento do Precioso Sangue (Casa-Branca) —projecto do Arq° inglês John Lemn,1916/17— e a Vila Alegre (desde 1936 Escola Ling Nam) projectada em 1917-18 pelo Arq° José Tomás Silva, exemplos da mistura de estilos típica das fachadas dos edifícios nos finais do séc. passado a que se juntou a moda dos palacetes residenciais do início do século.

Foto da época (circa 1950) do arquivo da RC.

O primeiro projecto das obras dos portos, com grande escala e consequências a nível urbanístico, é da autoria de Adolfo Ferreira Loureiro, engenheiro das Obras Públicas, proveniente de Lourenço Marques, em cujo porto trabalhara, que se interessa pela questão da deposição de sedimentos e desenvolve um anteprojecto com base numa carta hidrográfica da Rada e do Porto Interior. Segundo aquele, o canal norte da Rada constituíra o principal acesso ao Porto Interior, enquanto o canal sul era inutilizado. Sendo o Rio Oeste aquele que carregava maior quantidade de depósitos, o anteprojecto continha o esboço de um dique que, desviando as suas águas, se ligava à Ilha da Taipa. A necessidade de equacionar conjuntamente o problema de um porto exterior e a interligação entre os dois através de um canal, só aberto em 1911, constava também da proposta. Embora sem consequências imediatas e totais, a ideia da remodelação do Porto Interior, articulada com a construção do Porto Exterior no litoral oriental da Rada, e outros de menor escala nas ilhas, assim como a ocupação dos futuros aterros com implantação de bairros, deixaram escola. Outras propostas foram elaboradas e parcialmente concretizadas como projecto do engenheiro Abreu Nunes (1903), incluindo os trabalhos de conclusão do muro-cais desde o Forte da Barra à ilha Verde e os estudos posteriores dos engenheiros Vasconcelos Porto (1908), Santana Castel-Branco e Hugo de Lacerda.

Abandonados por inviabilidade económica, estes planos foram seguidos de outros, todos eles referidos ao Porto Interior e ilha Verde.

Em 1918 foi criada a Missão de Melhoramentos dos Portos de Macau, com o objectivo de se iniciarem de imediato as obras do Porto Interior. Este plano, que alterava o projecto de Castel-Branco, de 1912, por razões de ordem política não considerava o aterro a norte da ilha Verde e o da Praia Grande e os molhes da doca de Patane. O porto seria estabelecido junto ao canal sul da Rada. Igualmente irrealizável política e economicamente, em 1919 e 1920 foram desenvolvidos outros projectos, já que a rapidez com que ocorria o esvazamento aconselhava a avançar com o porto de mar. Adjudicada à Netherlands Harbour Works, as obras do Porto Interior foram iniciadas em 1923.

Praça de S. Domingos c.1836-39.

George Chinnery, lápis e tinta sobre papel,12.7cm x 16.9cm, col. Sociedade de Geografia de Lisboa Reproduzida in "Imagens de Macau Oitocentista": catálogo da Exposição com este título organizada pela Comissão Territorial para os Descobrimentos Portugueses, Macau, C. A. T., l° andar,11-10 a 18-11 de 1997.

Até àquela data, as obras do Porto Exterior limitaram-se ao estabelecimento de molhes de abrigo desde as Portas do Cerco até à Barra, tendo sido estabelecido o porto principal para navios de carreira. Para norte foi implantado o porto da Areia Preta e para ocidente pensava-se em futuros desenvolvimentos de aterro e docas. Durante o ano de 1923 foram elaborados os projectos de alargamento do cais marginal a sul da Praça Ponte e Horta e do pontão entre a bacia norte de Patane e a ilha Verde. Com o projecto do porto da Areia Preta deixou de se considerar o porto da Praia Grande, enquanto as obras complementares da enseada da Areia Preta foram completadas em 1925. O grande volume das obras da Netherlands Harbour Works foi executado entre a Praia Grande e Macau-Siac.

Estas obras do porto de Macau foram planeadas tendo em mente um desenvolvimento económico concomitante e a implementação de ligações com o interior. Todavia, tanto umas como outras não passaram de um sonho. De facto, não obstante o baixo custo da mão-de-obra, Macau nunca atraiu grandes investimentos e dificilmente pôde competir com a gestão empresarial e a dinâmica de Hong Kong, que beneficiava de um estatuto de porto franco. Por razões de ordem política, também não foram concretizadas as ligações rodo e ferroviárias com as cidades do interior da China.

A PENÚLTIMA RECONSTRUÇÃO DE MACAU: A CIDADE E AS NOVAS ARQUITECTURAS

A implantação definitiva dos ingleses na China, simbolizada pela fundação de Hong Kong, vai trazer a Macau um modelo de referência ocidental muito mais concreto do que em épocas anteriores. Apesar de Macau ter sido inicialmente um ponto de partida para a primeira organização urbana de Hong Kong — a divisão étnica, a fixação ao longo da praia, as fachadas em arcadas —,em breve a nova cidade, com as suas arquitecturas, se transforma em modelo.

Largo do Senado na década de 50 com o novo edifício dos CTT (em frente), o Edifício Ritz (à esquerda de costas) e a remodelada fachada da Misericórdia ao estilo e gosto das primeiras décadas do séc. XX. Avista-se ao fundo a estátua de Ferreira do Amaral construída em 1940.

Foto da época do arquivo da RC.

O século XIX corresponde ao maior período de divulgação mundial da linguagem clássica na arquitectura. Ultrapassando as fronteiras europeias, o neoclassicismo define-se como um estilo internacional, mais ou menos adaptado às condições locais, mas evidenciando sempre uma forte unidade. A Inglaterra, como cabeça do maior império colonial, ensaiou os seus modelos mais completos na Índia, para depois os transportar para todas as outras colónias asiáticas. Deste modo, surgem edifícios com grandes afinidades em Bombaim, Calcutá, Hanói, Saigão, Hong Kong, Macau e nas cidades portuárias da China mais ligadas ao contacto com o estrangeiro.

A partir de meados de Oitocentos, tudo o que se passa em Hong Kong tem profundos reflexos em Macau, bem evidentes na reconstrução da cidade e na sua expansão através de novos aterros e no equipamento portuário e urbano. O novo alinhamento do Porto Interior com a marginal rectilínea, desde o templo de Ling Fong até ao Templo da Barra, determina a criação de malhas regulares ortogonais sobre os aterros, com uma frente de edifícios em arcadas rectas no rés-do-chão e curvas no primeiro andar, bem presentes na zona da Praça Ponte e Horta, demonstrando claramente uma atitude racionalista na aplicação da linguagem clássica. Este modo de organizar a cidade não se esgota no lançamento de novas malhas urbanas regulares, como é ainda o caso do bairro da Mitra, mas aplica-se também na abertura de espaços de lazer (Jardim de Camões e da Vitória, Alameda da Praia Grande), nos novos cemitérios (o português e o chinês), na construção de edifícios como o matadouro da Barra (1873), os quartéis da polícia e militares e as fortificações de Mong-Há e D. Maria, na reconstrução ou ampliação de igrejas e na implantação de monumentos comemorativos nos espaços públicos mais importantes. Ao mesmo tempo, e como consequência da política governamental de obras públicas, determinou-se a iluminação da cidade com 2032 lanternas de azeite em 1871, o saneamento do Bazar em 1873 e levou-se a cabo a drenagem de toda a área entre o Monte e Mong-Há, acções que no início do século XX culminam com obras que vieram a alterar profundamente a fisionomia da cidade, como a abertura da Av. Almeida Ribeiro e a malha urbana envolvente da Av. Horta e Costa.

É também nesta época que surgem os primeiros palacetes à moda oitocentista, envolvidos por jardins mas inseridos no contexto urbano, de que os palacetes de Santa Sancha (1846) e da Flora (1848), da autoria do arquitecto José Tomás de Aquino, constituíriam os primeiros exemplos. Inicia-se assim uma moda que se prolonga pelo início do século XX (Casa Branca e Vila Alegre) e persiste até quase aos nossos dias (Casas da Colina da Barra). Muitos destes palacetes eram propriedade de famílias abastadas de Hong Kong, numa altura em que Macau se tomou local de vilegiatura da colónia inglesa. São edifícios com presença urbana e estrutura espacial chinesa, com varandas em arcos, ornamentos, frisos, frontões, colunas, pilastras e entablamentos de raiz ocidental clássica. Estas casas eurochinesas, semelhantes a muitas outras da região, nomeadamente de Cantão, Xangai e Hong Kong, são inicialmente construídas apenas em materiais tradicionais, com paredes e colunas em alvenaria de tijolo e coberturas em telha chinesa, rebocos pintados a cal, janelas com gelosias, bandeiras em madrepérola, passando, mais tarde, a incluir varandas de ferro e estruturas em betão armado.

Vista da Baía da Praia Grande a partir da colina de Penha,1853.

Litografia colorida de William Heine, col. Derwent, Nova Iorque,1856.

Reproduzida in W. C. Hunter,An American in Canton (1825-44), HK, Derwent Communications Ltd.,1994, cap. III, s. n..

No conjunto de edifícios públicos e de serviços destacam-se o Teatro D. Pedro V, o Hospital de S. Januário, o Grémio Militar, o Quartel da Polícia Marítima, o Hotel da Bela Vista, a sede dos Serviços de Saúde e Assistência, a Esquadra da Polícia e o Hospital Kiang Wu. As opções formais baseavam-se em diversos estilos que vão do eclectismo de raiz clássica aos revivalismos decorativos de tipo ocidental, passando pelo neochinês, pela art-deco e por vários exotismos. O hospital português de S. Januário, construído a partir de 1872, filia-se nos modelos do neogótico inglês e é da autoria do barão do Cercal, que também projectou o Cemitério de S. Miguel, com capela neogótica (1875). O Grémio Militar, do mesmo autor, foi construído em 1872, apresentando a fachada avarandada, organizada classicamente com uma colunata toscano-gótica e janelas laterais de ogiva. Ainda do barão do Cercal é a fachada do Teatro D. Pedro V (1863-79), com colunas góticas e frontão triangular acrescentado ao edifício inicial, do risco de Pedro Germano Marques, inaugurado em 1959. O Quartel da Polícia Marítima na Barra, terminado em 1879 segundo projecto do arquitecto italiano Cassuto, inspira-se no «neoindiano»de tipo inglês e é uma das propostas de maior exotismo na cidade.

Leal Senado (fachada e largo) Edifício do Leal Senado de Macau, c.1950.

A fachada representada, e que se mantém actualmente, é obra do restauro do edifício realizado em 1939 pelo Eng° Valente Carvalho e que pouco alterou a existente a partir de 1876, que reconstruíu o anterior edifício destruído pelo tufão de 1872.

Vê-se, à direita, a estátua de Vicente Nicolau Mesquita construída em 1940. Foto do arquivo da RC.

As mesmas linguagens são utilizadas nas fachadas acrescentadas a edifícios existentes, numa intenção de introduzir o gosto da época e modernizar a imagem urbana. É exemplo desta opção a transformação da velha fachada lisa do edifício da Misericórdia, à qual foi acrescentada uma arcada em dois andares, adaptando o edifício às novas correntes. A moda das arcadas, acrescentadas ou integradas já no projecto inicial, vulgarizou-se em Macau nos edifícios das ruas comerciais como os do Largo do Leal Senado e da Av. Almeida Ribeiro, produzindo no piso térreo um espaço público que se traduz num percurso contínuo de peões. Estas arquitecturas de fachada em arcada e varanda caracterizavam a imagem urbana da cidade nas zonas comerciais do centro, na Praia Grande, no Porto Interior, na zona de Horta e Costa e pontualmente em outras áreas. Praticamente todos os tipos de edifícios adoptaram tais fachadas, desde as grandes casas chinesas (Rua da Praia Grande, n° 83, e Rua do Campo, n. ° 29), aos palacetes e moradias (Casa Branca e Vila Flor) passando pelas habitações unifamiliares (ruas Pedro Nolasco, n. °s 83/35 e 24/28, D. Belchior Carneiro, n. ° 15, Estrada Coelho do Amaral, n. ° 44, Travessa dos Bombeiros, n. ° 8), pelas habitações colectivas (Rua do Volong, n. ° 36) e pelos edifícios públicos e hotéis. As arcadas adquirem diversas expressões consoante o tratamento formal e os materiais, apresentando espessas colunas, pilares e pilastras em alvenaria, juntamente com as ligeiras estruturas em ferro nos apoios e guardas.

Houve nesta altura em Macau uma capacidade integradora local, aceitando o que vinha de fora e integrando as sucessivas modas formais neste sistema de acordos e varanda que, por tão permanente, se tornou macaísta.

Já no princípio de Novecentos verificam-se transformações no espaço interior da arquitectura doméstica, devido a uma maior influência dos modelos importados e dos conteúdos eruditos. Na conhecida Casa Branca, actual Convento do Precioso Sangue (1916), e na Vila Alegre, actual Escola Leng Nam (1917/18), cujos projectos são respectivamente dos arquitectos John Lemn e José Francisco da Silva, pode detectar-se uma grande actualidade na especialização dos espaços, havendo já instalações sanitárias, bem como uma certa complexidade espacial introduzida pela importância dos vestíbulos e das escadas. O primeiro projecto da Vila Alegre tinha uma linguagem muito mais depurada, que no segundo foi abandonada, de acordo com o gosto do proprietário, que estabelecia como referência a memória das mansões de Xangai. O palacete de Lu Cau representa, tal como as casas da Rua do Campo, n. ° 29, e da Av. da Praia Grande, n. os 83/85, a crescente importância das famílias chinesas. Todas estas habitações apresentam já uma completa separação da zona de serviços do resto da casa e o palacete, que apresenta a particularidade de assumir formulários de arquitectura ocidental de tradição clássica, e insere-se no meio de um jardim chinês murado, iniciado em 1908, onde as águas de um lago contornam a casa e pavilhões, num conjunto de gosto oriental onde a natureza e a construção se confundem.

Vista de Macau a partir da Fortaleza do Monte, assinalando-se alguns dos pontos mais representativos nesta perspectiva (Ermida de Penha, Colégio de S. José, Porto Interior.

Gravura de Medeley. Publicada por Ackermann & Co., Londres,1840, col. Museu Luís de Camões.

A arquitectura tradicional chinesa continua presente na cidade e nos núcleos derivados das velhas aldeias chinesas. Construíram-se, restauraram-se e ampliaram-se templos como os de N'a Ch'a, Ku e Pau Kong, em Patane, o de N' a a Ch' a, na encosta do Monte, e o de T'in Han, junto a Macau Siac. As torres prestamistas, que se concentram sobretudo na zona do Bazar, implantaram-se na paisagem urbana na segunda metade do século XIX, como uma nova tipologia da arquitectura chinesa. Assemelham-se a outras construções do mesmo tipo nas planícies aluviais do rio das Pérolas, com o aspecto de torres militares com pequenas frestas e coroamento em empena ondulada. Destinando-se a guardar bens valiosos, muitas vezes sob forma de penhores, marcam uma presença na cidade na zona virada para o Porto Interior.

Os alvores do século XX foram testemunho de grandes opções, como o plano da zona das Avenidas Ferreira do Amaral e Horta e Costa (1900), o início da instalação eléctrica e a continuação das obras dos portos num processo que se prolonga até 1929. Em 1905, já existiam as novas docas de Patane e em 1912 as malhas urbanas de S. Lázaro e de Horta e Costa estavam razoavelmente preenchidas, vindo a completar-se em 1925. Mas nesta cidade construída e renovada, as arquitecturas perpetuam e adaptam modelos oitocentistas. O bairro social Tamagnini Barbosa e o Hipódromo são inaugurados em 1927 e o edifício dos Correios em 1931.

No final do primeiro quartel do século surgem os sinais das transformações que se vão dando na arquitectura europeia e americana. Alguns exemplos de decoração Arte Nova, bastante geometrizada, como as fachadas do edifício n.os 73/77 da Av. Almeida Ribeiro e as portas laterais da Caixa Escolar, ou o caso de expressão mais vienense da já demolida casa do 3. ° conde de Sena Fernandes, bem como o aparecimento de formas Art Deco e o uso cada vez mais frequente das coberturas em terraço, são passos que preparam o advento do modernismo e divulgação da linguagem moderna.

Farol da Guia (1865) e Capela do Fortim de Nḁ Srḁ da Guia, cerca de 1950, perspectivados a partir do Hotel Matzukaia. A estratégica posição defensiva do Forte da Guia assegurou-lhe um lugar prioritário nos esquemas de defesa da cidade, desde o início. Foto do arquivo da RC.

Os mais puros exemplos de modernismo, em Macau, situam-se já na década de 30, com prolongamento nos anos 40. A Escola Primária Pedro Nolasco da Silva e a Escola Luso-Chinesa Sir Robert Ho Tung são exemplos modelares, de geometria simples, horizontalidade de volumes, ausência de ornamento complexo e superfícies lisas pintadas. Revelando uma grande influência das vanguardas europeias, projectadas através de Hong Kong (antiga sede do Banco de Hong Kong e Xangai e Banco da China), estas obras mantêm, apesar de tudo, uma composição clássica que denuncia a influência de uma formação do tipo Beaux-Arts por parte dos arquitectos e engenheiros com intervenção na cidade. Muitos são engenheiros, como Canavarro Nolasco, que, das vanguardas do modernismo europeu e das primeiras propostas do movimento moderno, retiveram essencialmente os valores imagéticos e não quaisquer princípios teóricos, produzindo, contudo, obras de grande qualidade, como o Grande Hotel, o Mercado Vermelho e numerosas habitações colectivas, equipamento urbano, edifícios portuários, etc.

Assim, é por volta dos anos 30 que se podem observar as primeiras alterações radicais à tipologia urbana até então habitual em Macau. É a partir desta altura que se enraízam os modelos modernos que trinta anos mais tarde são aplicados extensivamente à renovação urbana da cidade. Os primeiros hotéis e edifícios de habitação em altura, a aplicação do shanghai plaster (marmorite cinzenta) em muitos edifícios e as primeiras composições assimétricas quase cubistas são disso testemunho.

MACAU NO SÉCULO XX

A HISTÓRIA LOCAL NO CONTEXTO INTERNACIONAL

Ao período de vitalidade e relativa expansão com que Macau, no século XIX, respondera à implantação de Hong Kong, sucede-se uma fase de paralisação e até de decadência caracterizada pela falta de dinamismo e apoio da política do Estado Novo português. As ligações inevitáveis ao contexto regional, particularmente à história da China, reflectem-se também no território. Com a assinatura do tratado de paz entre a China e o Japão, em 1928, pôs-se termo a uma longa guerra entre as duas potências. No entanto, a recente e instável paz terminou em 1937, após a declaração de guerra e a invasão da China pelo Japão. A migração de numerosos chineses para Macau foi a consequência mais significativa do conflito sino-japonês. Durante o conflito mundial dos anos 30 e 40, vulgarmente conhecido por Segunda Guerra Mundial, o território foi atingido militarmente, em virtude da extensão dos acontecimentos às zonas potenciais do extremo asiático e do Pacífico. Neste período de cerca de 30 anos, a cidade apenas se modificou em função dos projectos aprovados já no período anterior e em curso. Remodelaram-se igrejas, renovaram-se hospitais, construíram-se mercados nos bairros saneados e nos novos núcleos já urbanizados — Mercado de S. Domingos (1950) e Mercado Vermelho (1936). As obras dos aterros da Praia Grande, a partir de 1931, e do Porto Exterior, entre 1938-1946, foram significativas no que diz respeito ao aumento do espaço territorial, mas decorreram, logicamente, de processos iniciados no princípio do século. Alguns espaços novos e antigos foram reordenados com a colocação de estatuária urbana de temática política e histórica evocativa.

Hotel Boa Vista por altura da sua inauguração (Julho de 1890) e o forte do Bomparto.

Postal editado por WAITIS FINE ART, HK, s. d..

Características fundamentais deste período são a continuidade de estruturas de raiz portuguesa (governação, economia, igreja) e um constante e prudente ajustamento à evolução interna da China.

Com as modificações económicas e políticas à escala mundial e regional com reflexo local, o território sofreu transformações acentuadas sobretudo a partir da década de 60. A paz mundial assinada em 1945, a dimensão interna e externa da revolução chinesa e o desenvolvimento de Hong Kong como pólo económico e financeiro mundial são alguns dos fenómenos que enquadram o recente desenvolvimento de Macau. Às indústrias tradicionais vieram juntar-se novos tipos. Mas foi a exploração do jogo, actividade em grande expansão, que constituiu a nova fonte de volumosas receitas, a que nos nossos dias veio juntar-se o turismo.

O aumento populacional verificado já a partir de meados do século, consubstanciado na chegada de camponeses e pescadores chineses, constituiu outra componente decisiva para a alteração da imagem de Macau. Como consequência, e em paralelo com o novo desenvolvimento económico e o incremento demográfico, dá-se a expansão urbana, ocupando os espaços livres e substituindo, indiscriminadamente e sem qualquer programa global, os edifícios antigos por novos blocos com predominância do crescimento em altura. Aos poucos hotéis locais da Avenida Almeida Ribeiro, vieram juntar-se os internacionais da Praia Grande e da Marginal, da Guia e da Taipa. A inauguração do Hotel-Casino Lisboa, em 1970, significa o início da expansão acelerada do fenómeno, que se completa com a construção de grandes edifícios ocupados por serviços e por vezes até habitação, definindo uma nova silhueta da cidade, que se estende de forma quase compacta da Barra-Penha à Guia e à Areia Preta. Neste ambiente de transformação, onde o ritmo acelerado e imprevisível tem sido a tónica, Macau vive articulado entre Portugal e a China num contexto onde as alterações regionais pesam de forma decisiva.

Panorâmica de Macau, a partir da Guia (antes da intervenção na zona portuária). À esquerda situa-se o Fai Chi Kei e à direita o Iao Hon.

Foto do arquivo da RC.

As transformações históricas na China continuaram a ter reflexos imediatos e determinantes, dado que a população permaneceu progressiva e maioritariamente chinesa. Apesar das diferenças políticas, da fragilidade e mesmo inexistência de relações diplomáticas entre Portugal e China, até 1974, o governo do território continuou a retratar a soberania portuguesa, mas a população chinesa manteve estruturas culturais, educativas e associativas próprias. A Revolução Cultural Chinesa teve os seus reflexos na cidade com um levantamento popular em 1966. Com o restabelecimento de relações diplomáticas decorrentes das transformações da política externa portuguesa depois da revolução de 1974, a questão da soberania do território foi abordada e negociada em 1979, com a definição de um novo estatuto de «território chinês sob administração portuguesa». Como forma de ajustamento ao novo perfil, têm-se registado modificações que se traduzem no aumento do dinamismo da administração, no apetrechamento técnico, no reordenamento das estruturas antigas e na criação de novos organismos. A estrutura governativa é definida por um governador apoiado em secretarias territoriais e em gabinetes técnicos e serviços especiais. A alteração da Legislação do Trabalho e a realização de eleições directas para o Leal Senado são duas inovações verificadas durante o ano de 1984. As recentes alterações do processo interno e da política económica chinesa e a modificação do estatuto de Hong Kong com a assinatura do acordo entre a Inglaterra e a China, em 1984, bem como a abertura das negociações com Portugal sobre a transferência da administração de Macau, irão, necessariamente, reflectir-se na evolução interna do território e na região.

A DINÂMICA ECONÓMICA: SEU REFLEXO NA ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO

A DINÂMICA E ORGANIZAÇÃO DO ESPAÇO URBANO ENTRE 1930 E 1960

No final dos anos 20 (1927), a população de Macau era de 157 157 habitantes, dos quais 94,4% eram chineses.

As convulsões políticas da China reflectiram-se no crescimento populacional do território, pois as sucessivas vagas de emigrantes provenientes daquele país encontravam aqui lugar de refúgio. Esta corrente migratória teve como consequência que, em 1939, Macau contasse com 245 194 residentes, valor que decresceu na década de 40 de tal modo que o total era, em 1950, de 187 772. Este decréscimo foi originado pela emigração dos refugiados, principalmente para Hong Kong e para os Estados Unidos.

Campa da família de Camilo Pessanha no cemitério de S. Miguel, onde as lápides portuguesa e chinesa celebram em pedra o contraste convivencional que sempre caracterizou a cidade que o Poeta adoptou e que viveu até ao fim.(Slide de José Simões Morais).

A repartição espacial da população foi alterada pelo crescimento rápido das freguesias da Sé e Santo António e a densidade média oscilou de 10 140 hab./km2 para 15 818 em 1940, e para 12 114 hab./km2 em 1950. Este crescimento traduziu-se numa carência habitacional, dado que o ritmo de construção não acompanhou a do incremento populacional. Os edifícios então construídos tinham em geral dois pisos, sendo o inferior utilizado para comércio. Espacialmente, estes novos prédios reforçaram a estrutura existente e preencheram o espaço entre o actual Casino Lisboa e as Av. Almeida Ribeiro/Av. da Praia Grande.

Os anos 30 definem um período marcado por um conjunto de melhoramentos a nível dos equipamentos e de infra-estruturas. De facto, é nesta década que se inicia o abastecimento de água à cidade (1936) e que se procede ao aterro da Praia Grande, inaugurado juntamente com a estátua de Ferreira do Amaral, em 1940. No que concerne ao equipamento, entram em funcionamento o Hospital Infantil de Santa Sancha, em 1934, o de S. Rafael na Misericórdia, em 1939, então localizado na Av. Ouvidor Arriaga. É ainda em 1937 que se inaugura o terminal da linha aérea Pan American Airways.

A malha urbana fora já definida no período anterior e era então constituída pelo espaço da antiga cidade portuguesa intramuros, marcado pela estrutura religiosa, pelo traçado irregular e apertado do Bazar e das aldeias chinesas localizadas extramuros, às quais se sobrepôs um confuso traçado ortogonal, que, mercê das pressões dos proprietários, reflecte a estrutura fundiária.

Do ponto de vista funcional, a localização das actividades, expressas no Anuário de Macau de 1933, deixa antever um incremento do número de unidades funcionais nas áreas já identificadas em 1924.

Templo da Barra [Ma Kok Miu] em 1903-4. Construído nos sécs. XV-XVI, anterior ao estabelecimento dos portugueses em Macau é dedicado à deusa A-Má (particularmente verenada pelos pescadores e naturais de Fukien), acompanha toda a história urbana de Macau desempenhando papel de foco aglutinador das populações chinesas ribeirinhas e das povoações agrícolas que o ladeiam.

In F. E. de Paiva Um Marinheiro em Macau — 1903. (Álbum de Viagem), Museu Marítimo de Macau, Macau,1997, p.101.

Assiste-se ainda à instalação de estabeleci- mentos nas novas áreas urbanas, mas a sua distribuição apresenta-se de forma dispersa, não sendo possível identificar estrutura alguma que possa corresponder a uma área/centro de comércio e serviços. No que concerne ao comércio, constata-se que o Grande Bazar e a R. Central constituíam o centro de maior concentração de unidades funcionais. Esta última, que no período anterior aparecia como espaço privilegiado para a instalação de actividades ligadas à população europeia, perde esta característica devido à fixação do comércio chinês. Os quarteirões definidos pela Av. Almeida Ribeiro, Praia Grande, Largo do Senado, R. Central e Av. Conselheiro Ferreira de Almeida constituíam o centro de serviços. Aqui estavam instalados os onze advogados que residiam em Macau, os médicos (50), os dentistas (20) e os hãos grandes. As agências comerciais e de navegação portuguesas (5) estavam também contidas neste núcleo. Os hãos pequenos e os cambistas concentravam-se no Bazar, especialmente nas Av.5 de Outubro e na R. dos Mercadores, onde se encontravam 6 e 10 unidades, correspondendo a 76,1% do total.

Nesta área funcional estavam também instaladas todas as agências comerciais e marítimas estrangeiras (83). A R. Camilo Pessanha permanecia com a maior densidade de alfaiatarias (15), seguida da Central (12), S. Domingos (2) e dos Ervanários (8). As restantes 47 distribuíam-se pelas outras ruas do Bazar, e ainda nas ruas da Barca e do Repouso.

O Bazar era também a área comercial por excelência das lojas ou tecidos, sendo a R. das Estalagens a mais importante, pois concentrava 37,8% do total de estabelecimentos de venda de fazendas e tecidos de Macau. Seguiam-se a Av.5 de Outubro, com 15,5%,a Av. Almeida Ribeiro e Rua dos Mercadores, com 9,0%.Era ainda neste núcleo comercial que se encontrava o total de ourivesarias e relojoarias existentes então na cidade (33), das quais 22 estavam instaladas na R. das Estalagens.

O padrão locativo das lojas de produtos alimentares apresenta, como é regra, uma maior dispersão. Não obstante o Bazar ser a área da cidade com maior número de estabelecimentos de venda, eles estavam bem representados na periferia deste núcleo, especialmente nas ruas Visconde Paço de Arcos (22), Almirante Sérgio (16) e Tarrafeiro (13). De concentração significativa era ainda o espaço que se estendia da R. Central ao Bazarinho e Praia do Manduco, com um total de 15 unidades.

As ruas da Erva, da Barca, do Repouso e Coelho do Amaral constituíam uma outra área de concentração de lojas de produtos alimentares, num total de 14, mas o importante a destacar nesta análise é a presença de estabelecimentos desta natureza na Areia Preta (3), na Horta e Costa (12) e na Av. Coronel Mesquita (1), pois indicam já uma ocupação do espaço correlativa duma expansão da cidade, em superfície, para as novas áreas urbanas conquistadas aos pantânos e às várzeas.

No que concerne à estrutura industrial, predominavam as fábricas de pivetes, em número de 25, e as de tabaco e de panchões, com 13 e 7 unidades, respectivamente.

As primeiras formavam um conjunto bem representado nas ruas da Erva, Entre Campos, Alegria e Barca, onde estavam instalados catorze dos vinte e cinco estabelecimentos então existentes.

Pedra com as quinas portuguesas no Jardim da Casa Garden.

(Slide de José Simões Morais).

Nos anos 50, a estrutura da década anterior ainda persiste. As casas apalaçadas, organizadas em tomo de pátios interiores, que caracterizam o espaço entre a Av. Almeida Ribeiro e a Praia do Manduco, mantêm-se enquanto elementos arquitectónicos, mas apenas na R. Santo António são habitadas por população enriquecida. As restantes, que foram abandonadas, estão agora ocupadas por estratos de baixos recursos económicos.

O espaço compreendido entre a colina da Penha, Largo de Santo António e S. Januário, e que outrora correspondia genericamente à cidade portuguesa muralhada, é nesta época o de maior densidade populacional.

A Penha foi invadida neste período por casario de gente abastada, que, graças aos jardins e espaços abertos tratados, a mantiveram como zona verde do conjunto urbano. Estas vivendas estenderam-se também entre esta colina, a Barra e a Praia Grande, sobrepondo-se às antigas chácaras, que progressivamente foram desaparecendo.

O Porto Interior manteve-se como centro de comércio especializado em artigos de pesca e com algumas unidades industriais. Ampliado pelo prolongamento da Av. Visconde de Paço de Arcos, passou a ligar a cidade à ilha Verde. Aqui instalou-se um conjunto de docas envolvidas por habitações muito pobres.

Nas novas avenidas, entre a Av. Horta e Costa e Coronel Mesquita não se registava ainda a presença de qualquer construção. Contudo, o novo traçado provocou o desaparecimento da aldeia de Mong-Há, que até então se tinha mantido como espaço agrícola.

A norte, a área em torno do Hipódromo foi preenchida e próximo deste foi edificado um bairro para refugiados.

A oriente, construiu-se o reservatório de água e a sudeste procedeu-se a um grande aterro designado por 《Aterro do Porto Exterior》, sobre o qual foi definido o traçado da Av. da Amizade.

Vista da Praia Grande em 1903-4.

In F. E. de Paiva,Um Marinheiro em Macau. — 1903 (Álbum de Viagem),Museu Marítimo de Macau, Macau,1997, p.25.

Nesta nova área, nos aterros do istmo Ferreira do Amaral, da Areia Preta e na área do Hipódromo, localizavam-se as hortas. A elas ligavam-se 829 agricultores, na sua maior parte refugiados que habitavam em casas térreas de madeira, estruturas que ainda hoje persistem nos retalhos hortícolas da Areia Preta.

No final da década de 50, a economia de Macau assentava essencialmente no turismo, no trânsito para Hong Kong e na exportação de peixe seco, fogo-de-artifício e cimento. A maior parte dos rendimentos provinha do jogo e era esta actividade que alimentava o fluxo de turistas, que, entre 1950 e 1960, passou de 5336 para 26 534 passageiros entrados, justificando a existência de vinte e um hotéis, dos quais cinco de primeira classe. Com excepção do Hotel Bela Vista, todos eles estavam localizados na cidade chinesa.

Antes da Segunda Guerra Mundial, a pesca ocupava o primeiro lugar nas exportações de Macau, mas após o conflito o porto não mais conseguiu restabelecer a sua posição devido às perturbações políticas da China, traduzidas na proibição de utilizar centros pesqueiros chineses e de venda do pescado para Cantão. Controlada pelos lans, esta actividade, que em 1950 contava com 2814 embarcações, viria a melhorar na década de 60, sem contudo ter recuperado a posição que ocupava antes do conflito mundial.

DESENVOLVIMENTO E CARACTERIZAÇÃO DAS FUNÇÕES ECONÓMICAS ENTRE 1960 E 1984

Durante a década de 70, começa a esboçar-se um surto económico a que não foi estranho o estabelecimento dos jogos de fortuna e azar. Definidas as normas de funcionamento destes e as condições de concessão, foi constituída, em 1966, a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau à qual foram cedidos todos os direitos e obrigações da concessão. A presença desta actividade lúdica, associada à melhoria das ligações entre Macau e Hong Kong, passou a ser o motor do fluxo turístico registado sobretudo a partir de 1975. Neste ano, o número total de entradas no território foi de 2517649, das quais 498489 de estrangeiros. Destes,45,2% era provenientes do Japão,17,1% de Inglaterra e 7% dos Estados Unidos. Oito anos mais tarde (1983), o número de entradas registadas foi de 5 505 649, das quais 673 235 eram de estrangeiros. Estes valores corresponderam a aumentos de 54,3% e 26,0%,respectivamente. O Japão mantinha a primeira posição quanto à nacionalidade dos turistas (24,1%), mas o segundo lugar foi ocupado pela República Popular da China, que no mesmo ano contribuiu com 20,3% do total de entradas. Seguiram-se o Reino Unido (19,0%), os Estados Unidos (6,9%) e a Austrália (5,3%). Estimando em 400 patacas o consumo per capita durante a estada em Macau, a receita proveniente do turismo rondava 140 000 000 patacas.

Casa Neo-Árabe na Calçada do Gaio, n°6, em frente ao Jardim Vasco da Gama. Construída em 1929 surpreende ainda hoje pela originalidade dos seus elementos arquitectónicos.

(Slide de José Simões Morais).

Motivada também pela procura externa, principalmente de Hong Kong, e pela aplicação de capitais de chineses fugidos à instabilidade política do Sudeste da Ásia, a construção civil atravessou um período de euforia. Numa primeira fase, que decorreu até meados dos anos 60, este sector apoiou-se essencialmente no turismo de Hong Kong, enquanto no final da década Macau começou a ser procurado por industriais daquele território para fixação de indústrias têxteis, pois só usufruindo de mão-de-obra muito barata poderiam competir com os mercados da Europa Ocidental. Esta procura traduziu-se em necessidade de espaços para habitação e áreas para escritórios e indústrias. Assente na dinâmica industrial de Hong Kong e na próspera evolução do comércio externo entre 1977 e 1978, o surto da construção civil foi traduzido na construção de 342 prédios, localizados principalmente na Praia Grande e no Porto Exterior.

Estabelecidas as relações diplomáticas sino-portuguesas e abertas as zonas económicas chinesas, uma das quais vizinha de Macau (Zuhai), passa a definir-se uma nova força económica assente nas relações comerciais. Com esta base, o ritmo de construção mantém-se e, entre 1978 e 1981, foram edificados 814 imóveis, cobrindo 179 338 m2. A elevada procura canalizou muitos investimentos para o sector, o que teve como consequência uma valorização do solo e um aumento do custo da construção, segregando-se a população local, para quem a habitação era cada vez mais inacessível. Limitada a procura e aumentadas as taxas de juro, que passaram de 10-12%,no final da década de 70, para 20%,em 1981, as transacções prediais reduziram-se, reflectindo-se negativamente na dinâmica do sector.

As perspectivas para a construção civil são pouco animadoras, pois, dada a insolvência da população local, a retracção dos investimentos originada pelo futuro político de Hong Kong e de Macau e a fuga de capitais para outros pontos do Globo com maior estabilidade, não é de crer que, a curto prazo, o sector retome a dinâmica vivida desde os finais de 70.

Servindo de suporte a Hong Kong, onde estão instaladas as sedes das indústrias cuja actividade se desenvolve em Macau, o sector secundário, assente num trabalho intensivo de mão-de-obra barata, constitui um elemento preponderante da actividade económica.

O número de unidades em funcionamento passou de 206, em 1960, para 790, em 1970, e 1320, em 1981. O incremento foi maior ao nível das indústrias têxteis e de vestuário, que no mesmo período registaram um aumento de 83% devido à abertura dos mercados da CEE e dos Estados Unidos. Beneficiando do sistema generalizado de preferência, estes produtos industriais são consumidos em cerca de 80% pelos países da OCDE.

Com um total de 123 unidades, segundo o Anuário de Macau de 1981, as fábricas de têxteis empregam 77% do total de operários. São em regra unidades industriais de pequena dimensão, conforme se constata pelo número de estabelecimentos existentes em função da população que empregam. De facto, apenas três estabelecimentos têm mais de 500 empregados,95 entre 100 e 499 e 167 empregam entre 20 e 99 activos. Desagregando este tipo de indústria nos seus dois ramos, o tradicional (cardação, fiação, tecelagem e tingimento) e a produção de malhas, verifica-se que o primeiro, além de trabalho domiciliário, totalizava, em 1982,61 unidades localizadas ao longo do istmo Ferreira do Amaral, do bairro Iao Hon e na Areia Preta, além das pequenas concentrações, já registadas em períodos anteriores, na Praia do Manduco e na Av. Almirante Lacerda. Mais concentradas a norte e a noroeste (Areia Preta, Av. Almirante Lacerda, Coronel Mesquita e ainda na Praia do Manduco), as fábricas de malhas eram, em 1982, em número de 51.

Com localização idêntica, encontravam-se 330 estabelecimentos de vestuário. Em 1960, estes eram em número de 259, repartidos de forma dispersa, embora fosse possível determinar algumas nucleações na Praia do Manduco (11), Praça Ponte e Horta (13), Areia Preta (7), Hipódromo (6) e R. João Araújo (6). As restantes estavam bem representadas no espaço compreendido entre a Av. Xavier Pereira e a Av. Almirante Lacerda e na Rua do Tap-Seac. Em 1982, a indústria do vestuário, totalizando 371 unidades, concentrava-se na Praia do Manduco, onde estavam instaladas 40 unidades, no bairro Iao Hon, Areia Preta, R. da Ribeira de Patane, Almirante Lacerda e Coronel Mesquita. Este ramo industrial, que em conjunto com os têxteis contribuiu com 86,5% do total das exportações de Macau, empregava essencialmente mão-de-obra feminina (65,4%) trabalhando uma média semanal de 56,2 horas/operário. As remunerações praticadas neste sector estavam abaixo da média dos níveis salariais correntes no território. De facto, enquanto o vencimento médio é de 4,21patacas/hora/operário, nos têxteis os valores praticados rondam 3,57 patacas/hora. Recorrendo ao trabalho intensivo e ao baixo custo da mão-de-obra, a indústria do vestuário é o sector que apresenta maior ritmo de expansão, tendo passado de 7563 empregados, em 1971, para 25 104, em 1981, o que corresponde a um acréscimo de 69,8%.

Vista da Av. Almeida Ribeiro, a partir do edifício dos CTT (coluna), com o edifício-sede do Banco da China ao fundo. A modernização urbana acelerada das últimas décadas permitiu este momento de raro lirismo, onde o século se resume e anuncia o futuro. (Slide de José Simões Morais).

Os 36 estabelecimentos de couro e calçado apresentam-se dispersos no tecido urbano, padrão locativo já expresso pelas 15 unidades existentes na década de 60. Contudo, em 1982, constata-se que as fábricas de curtumes adquiriram uma localização comum a outras cidades ocidentais, pois instalaram-se na periferia, enquanto as de calçado se encontravam na área central, próximas dos estabelecimentos de venda de sapatos.

Às indústrias de vestuário seguiram-se em importância, traduzida no número de estabelecimentos existentes, as da madeira, que totalizavam 103 unidades em funcionamento em 1982. Empregando 488 operários, esta actividade registou um acréscimo de 14,9% empregados no período de 1960-81, e as fábricas distribuíam-se em pequenas nucleações na Praia do Manduco, na Av. Almirante Lacerda/Porto Interior, espaço que desde a chegada dos portugueses já era ocupada por estâncias de madeira. Contudo, a comparação dos padrões de localização, entre 1960-70-81, mostram uma tendência para a dispersão.

Empregando essencialmente mão-de-obra masculina (71%), a indústria do papel, artes gráficas e edição de publicações, estava representada por 76 unidades, das quais 27 de indústria do papel e 49 ligadas às artes gráficas. Estas, tal como acontece em todos os centros urbanos, encontravam-se dispersas na área central, já que requerem elevado grau de acessibilidade ao mercado, enquanto as primeiras estavam representadas em Patane, Areia Preta e bairro Tamagnini Barbosa. Com um crescimento significativo entre 1960 e 1982 (7 e 26 unidades, respectivamente), este sector apresentava-se estacionário nas décadas de 70 e 80, sendo o número de indústrias em funcionamento de 29, desde 1975.

Panorâmica da extremidade sul da Península de Macau e águas circundantes, a partir da Colina da Penha, cerca de 1913. À esquerda o Palacete de Santa Sancha na sua estrutura original, demolido e reconstruído entre 1923-25 para residência oficial de Verão do Governador.

Foto de Fan Mingsan, (vice-director do Museu de Xangai).

Dentre os sectores de indústria em regressão, destaquem-se os das bebidas, químicas e da borracha. As primeiras, num total de 20 unidades, localizavam-se na zona setentrional da área central, próxima dos estabelecimentos de produtos alimentares. Nas segundas predominavam as fábricas de panchões. Instaladas na Areia Preta, Av. Coronel Mesquita e Canal das Hortas, apresentavam, juntamente com a indústria do vidro, o mais baixo salário/hora/operário (3,07 patacas). Os restantes ramos industriais praticamente não tinham expressão no conjunto da produção, mas acrescentavam a vocação industrial da zona norte e da Av. Coronel Mesquita.

Tendo, no início da década de 70, como principal mercado Portugal e as ex-colónias, a indústria macaense serviu prioritariamente, nos anos 80, os países da CEE, os Estados Unidos e Hong Kong. Contudo, as medidas restritivas ao comércio internacional definidas em 1980, como consequência da crise económica mundial, afectaram o crescimento industrial de Macau, especialmente nos sectores têxtil e do vestuário. A diminuição relativa destas indústrias foi compensada por uma ligeira expansão das fábricas de brinquedos, flores e electrónica. Esta compensação parece insuficiente para compensar a desaceleração das exportações, pelo que se torna necessário diversificar os mercados e reduzir a importância da CEE.

Elemento fundamental da vida económica e intimamente ligada ao sector industrial, as exportações, às quais se afigura oportuno fazer uma breve referência, eram, até aos anos 70, preenchidas apenas pelos fósforos e pelos panchões. O mercado das indústrias do tabaco e barcos era essencialmente local.

De 1960 a 1974, os potenciais mercados dos produtos têxteis, de porcelanas e mobílias eram Angola e Moçambique. Após a independência destes países, Macau viu-se obrigado a procurar outros para colocação dos seus produtos. Beneficiando das restrições que a Europa impunha à importação dos têxteis de Hong Kong, os Estados Unidos e os países da CEE, especialmente a República Federal da Alemanha e a França, aplicavam menores direitos aduaneiros aos produtos macaenses, incrementando assim as exportações, especialmente de têxteis e vestuário. Em 1970, os países da CEE absorvem 37,5% das exportações de Macau, seguidos das ex-colónias portuguesas (17,6%), de Hong Kong (17,9%) e de Portugal (10,8%). Em 1981, esta ordem tinha-se alterado significativamente. Hong Kong passou a ocupar o primeiro lugar, absorvendo 22%,seguindo-se os Estados Unidos (20,9%), a Alemanha Ocidental (13,0%), a França (11,4%), o Reino Unido (7,2%), a Itália (4,9%) e Portugal (2,5%). Os restantes valores percentuais distribuiam-se pelo Japão e outros países europeus.

Jardim de Lou Lim Ioc: parte de painel decorativo.(Slide: Arquivo Histórico de Macau).

No contexto económico, o sistema bancário alterou-se substancialmente nos últimos anos, não obstante Macau se encontrar muito aquém de territórios com condições sociopolíticas similares. Como se referiu, no início do século foi estabelecida em Macau uma agência do Banco Nacional Ultramarino, a quem foi cometida função emissora. Mas a actividade era controlada pelos cambistas, que apoiavam o crédito às importações e exportações. O desenvolvimento económico e a posição de Macau em relação à China e à Ásia do Sudeste despoletaram o interesse de organizações financeiras e, na década de 70, doze bancos iniciaram a sua actividade, quantitativo aumentado pela abertura das representações do Banco Português do Atlântico, do Banco Nacional de Paris e do Banco do Brasil, em 1980 e 1981. Se bem que a dinâmica da actividade bancária seja relevante no contexto do território, não é, contudo, comparável com a de Hong Kong e Singapura. De facto, este último contava em 1980 com 32 bancos autorizados,39 offshore e 33 comerciais, que competiam com Hong Kong, onde estavam registados 122 bancos, dos quais 34 domiciliados,36 japoneses,26 americanos e outros tantos ingleses e de outros países europeus.

Nos anos 60, o comércio distribuía-se principalmente pelo Bazar, Av. Almeida Ribeiro, Pedro Nolasco da Silva, Rua do Campo, Av. do Porto Interior e ainda no cruzamento da Estrada do Repouso com a Rua da Barca. Como elementos novos, apareciam estabelecimentos comerciais na Av. Horta e Costa, entre a Av. Almirante Lacerda e a R. Francisco Xavier Pereira e ainda ao longo da Sidónio Pais.

Mantendo um elevado número de unidades activas, o Bazar era ainda o fulcro da vida urbana. Contudo, no conjunto era possível detectar uma especialização funcional. De facto, na Av. Almeida Ribeiro, entre a Av.5 de Outubro e o Porto Interior, predominavam as roupas, os electrodomésticos e as ourivesarias. Para sudoeste, sobretudo ao longo da Rua da Felicidade, os restaurantes e casas de pasto mantinham a velha estrutura articulada com a área portuária; nas ruas dos Mercadores e das Estalagens permaneciam os estabelecimentos de tecidos, louças e produtos alimentares, enquanto os adelos, carpintarias e latoarias se localizavam ainda nas ruas Nossa Senhora do Amparo e de S. Paulo. No Porto Interior, achavam-se os estabelecimentos ligados à navegação e à pesca. Na Av. do Almirante Sérgio, os de óleos e peixes, e os de mecânica de barcos predominavam na R. das Lorchas, enquanto na Ribeira de Patane se localizavam os pivetes, as serralharias, as tecelagens e os armazéns. Estes encontravam-se ainda na R. do Guimarães e Visconde Paço de Arcos, estando ao serviço do comércio directamente proveniente da China. No topo sudoeste da Av. Almeida Ribeiro, predominavam actividades comerciais de maior qualidade e prestígio. Era aqui que se encontravam instalados os consultórios dos 15 médicos e dos 9 advogados que exerciam actividade em Macau. Nas ruas Nolasco da Silva e do Campo predominavam os alfaiates, as sapatarias, as mercearias e carpintarias. Os restantes espaços comerciais, localizados nas novas áreas urbanas, reduziam-se a unidades de apoio local e dispersavam-se ao longo dos eixos viários, não sendo possível identificarem-se nucleações mais ou menos especializadas. Os quarteirões que se estendem ao longo da Praia Grande constituíam um local de concentração de escritórios e algumas repartições públicas. Estas estavam também representadas na Rua do Campo e Estrada do Repouso, formando ainda uma pequena nucleação no Largo do Senado.

Disperso no tecido urbano, encontrava-se também o equipamento escolar. Totalizando 32 estabelecimentos, os cinco oficiais estavam instalados nos terrenos desportivos e escolares, ao longo da Av. Conselheiro Ferreira de Almeida, e já referidos no plano da Horta e Costa. Exceptuavam-se o Liceu Nacional Infante D. Henrique e a Escola Secundária Pedro Nolasco da Silva, que, instalados junto ao casino, transgridem todas as regras orientadoras da localização do equipamento escolar.

Figuras em terracota no Templo de Kun Iam.(Slide: Arquivo Histórico de Macau).

Elemento predominante da vida económica, o jogo, explorado por entidades particulares, decorria nos casinos instalados na Av. da Amizade, Rua do Aterro Novo, Casino do Hotel Estoril, Casino da Pelota Branca, Casino Flutuante e ainda no Canídromo. À sua actividade deve Macau grande parte da sua dinâmica espacial e crescimento, não obstante o seu papel na organização do tecido urbano ser diminuto.

De facto, a estrutura urbana tinha como centro único o Bazar, com as suas ramificações pelo Porto Inferior e a Av. Almeida Ribeiro. O espaço lúdico reduzia-se à zona dos novos aterros da Praia Grande e à Colina da Guia, podendo ainda notar-se a presença das hortas na Areia Preta e nos aterros do Porto Exterior.

A consolidação espacial e funcional do tecido urbano permite que na actualidade o comércio e serviços se hierarquizem em três centros. No principal, definido pelo Bazar, Praia Grande, Av. Ferreira de Almeida e caracterizado por uma elevada concentração de unidades funcionais, é possível diferenciar o espaço em duas grandes áreas: uma predominantemente chinesa, onde domina o comércio: outra, a da Praia Grande/Almeida Ribeiro, Av. Ferreira do Amaral, definido por unidades ligadas à população europeia e aos estratos chineses com elevados rendimentos, apresenta estabelecimentos comerciais de grande qualidade e prestígio e é o local de concentração dos serviços.

Os centros secundários, definidos pela Av. Horta e Costa e pelo Porto Interior, têm um menor número de unidades funcionais e a hierarquia pode ser caracterizada pelo tipo de serviços, principalmente pelos bancos, escritórios e pela qualidade dos estabelecimentos comerciais. A Areia Preta, onde as funções residencial, comercial e industrial se repartem de forma equilibrada, poderá no futuro constituir um outro centro secundário. A Praia Grande e o Porto Exterior serão os espaços mais valorizados.

Igreja do Carmelo, Taipa.(Slide de Joaquim Castro,1998).

POPULAÇÃO E TERRITÓRIO

Apesar de os recenseamentos registarem quantitativos populacionais considerados muito aquém da realidade, é possível afirmar que o período compreendido entre 1960 e 1981 é, do ponto de vista demográfico, de intenso crescimento. Se se considerarem como base os dados oficiais, a população total passou de 169 299, em 1960, para 280 000 habitantes, em 1981. Contudo, indicadores provenientes de outras fontes apontam para este último ano um valor próximo dos 350 000, o que significa um acréscimo de 51,6% nos dois últimos decénios. Segundo o recenseamento de 1981, a população chinesa corresponde a 95% e os portugueses não ultrapassavam os 3%.Tal como nos períodos anteriores, este crescimento ficou a dever-se mais à emigração do que ao saldo fisiológico, que variou de 17,2% para 4,6%,entre 1960-70, e deste último valor para 6,3%,em 1981.

Não é possível analisar a variação espacial da população entre 1960 e 1981 dado que as alterações dos limites das freguesias não possibilitam a comparação. Constata-se, contudo, que entre 1970 e 1981, o maior aumento de densidade ocorreu na freguesia de Nossa Senhora de Fátima, que, em 1970, apresentava 206,1 hab./ km2 e 357,3, em 1981. Segue-se S. Lourenço, com uma variação positiva de + 55,3, enquanto Santo António, que registava um ligeiro decréscimo (de 964,5 para 923,7), se mantinha como a mais densamente ocupada e a mais degradada do ponto de vista habitacional. Os valores de densidade mais baixos ocorriam na Sé e em S. Lázaro, que aliás registaram decréscimo entre 1970 e 1981. Estes resultaram da instalação das actividades terciárias, que originou a expulsão da população residente. Na área marítima, verificou-se um ligeiro decréscimo (0,36%). Os baixos valores apresentados pela freguesia de S. Lázaro e o incremento (+ 60) insignificante encontrado ficam a dever-se aos espaços livres públicos que os seus limites englobam.

Com uma taxa de população activa da ordem dos 22,4%,em 1960, Macau contrastava, em 1981, com os valores encontrados para os restantes países asiáticos, onde estes eram, por exemplo, em Hong Kong de 68,2%,de 63,6% na Formosa, de 69% em Singapura e 62,8% na Coreia do Sul. A maior parte dos activos macaenses dedicava-se ao comércio (53,1%), enquanto 39,2% trabalhava no sector secundário. A pesca é a actividade responsável pelo valor apresentado pelo sector primário (7,7%).

A EXPANSÃO TERRITORIAL E O REFLEXO DOS PLANOS DE URBANIZAÇÃO NA ESTRUTURA ESPACIAL

Devido à sua estrutura territorial, uma pequena ilha com 4,5 km2, o desenvolvimento de Macau caracterizou-se por um crescimento em altura e pela especialização do solo. Contudo, isto não significa que a expansão em superfície não tenha sido considerada. De facto, não estavam ainda ocupadas as novas áreas urbanas já os relatórios sobre as obras dos portos interior e exterior consideravam esta possibilidade.

Como foi referido, ao longo do Porto Interior os novos aterros determinaram o alinhamento da linha da costa e só a norte, entre a ilha Verde e o istmo, e a zona da Areia Preta, o espaço foi ampliado em superfície. Os aterros das zonas da Praia Grande e do Porto Exterior, ainda que várias vezes referidos naqueles planos, são só concretizados nos anos 60 e 70.

Os objectivos subjacentes às obras de ampliação executadas variam no tempo. Tal como foi referido, no período 1890-1930, com os aterros pretendia-se uma melhoria das condições portuárias de forma a colocar Macau numa situação que lhe permitisse competir com Hong Kong e possível de transformar a cidade num porto de ligação com o interior da China. A débil dinâmica económica dos anos 40 e 50 reduzem as intervenções relevantes no âmbito do ordenamento do território e só devido ao impacto causado pelo jogo, elemento dominante da economia macaense, e às pressões especulativas então geradas, se sentiu a necessidade de medidas reguladoras do uso do solo. Surge então o primeiro plano director, da autoria de Garizo do Carmo, elaborado para o Ministério do Ultramar. Partindo de uma síntese de elementos já expressos por Raquel Soeiro de Brito em 1962, eram identificadas as tendências funcionais, a vocação do solo urbano e enunciado um conjunto de recomendações. Dentre elas destaquem-se as obras de beneficiação da cidade antiga, englobando a zona de Patane, Santo António, Bazar e o núcleo inicial português, onde a tradição e a história são consideradas património e riqueza turística. Propõe-se a manutenção de espaços verdes já existentes (Mong-Há, D. Maria, Guia, S. Januário) e admite-se a hipótese de permitir o preenchimento daqueles espaços por habitação qualificada de baixa densidade com predominância de verdes.

Nas velhas hortas da Areia Preta e Porto Exterior delineava-se já uma tendência para a ocupação industrial, pelo que se recomenda uma boa articulação viária com os pontos de saída para o exterior.

Sá-Kong, Sankiu, Tap-Seac, ocupados por bairros populares, contendo baixas densidades habitacionais, apresentavam uma tendência para a densificação, pelo que eram estabelecidas regras de reordenamento. Sem modificações sensíveis, referiam-se as áreas tradicionais da actividade portuária, de comércio e armazenamento, e a área residencial da Penha. Com certa complexidade na sua ocupação, mas com maior dinâmica, destacava-se o novo aterro da Praia Grande e do Porto Exterior, para onde era proposta a localização do comércio e serviços de maior qualidade e dos hotéis que apoiariam o desenvolvimento turístico.

Apresentando uma metodologia pouco elaborada e não especificando os instrumentos a usar para obtenção das soluções propostas, este plano revela contudo uma compreensão da realidade raramente conseguida para as outras cidades coloniais portuguesas.

Pormenor decorativo chinês.(Slide: Arquivo Histórico de Macau).

Seguiram-se outros dois planos para intervenções no espaço urbano. Um, de 1976, de Tomás Taveira; outro, posterior, de José Catita e datado de 1979, já desenvolvidos para o Governo de Macau. Embora apontando para uma estrutura espacial semelhante à proposta por Garizo do Carmo, o plano de 1976 apresenta uma forte componente económica, inferindo-se do seu conteúdo a preocupação de estabelecer um modelo de desenvolvimento assente basicamente numa proposta de renovação na Cidade do Santo Nome de Deus e na definição de novas áreas de ordenamento, mais centradas nas ilhas de Taipa e Coloane, com o objectivo de se descongestionar o núcleo antigo. Definiam-se ainda novos pólos de emprego industrial e a criação de novos bairros para alojamento das populações que viviam em regime de sublocação.

No plano de 1979, expresso apenas de forma gráfica, as prioridades de intervenção eram dadas ao sistema viário e à aplicação duma tabela de índices de ocupação.

Com conteúdos e metodologias diferentes, estes planos apontam contudo aspectos comuns: a cidade apresenta uma tendência de crescimento para norte, onde se instalam zonas residenciais e industriais; definem zonas vocacionadas para espaços de turismo e equipamento terciário de elevado standard; e os dois primeiros identificam um núcleo antigo para o qual a solução correcta é a renovação urbana.

Contudo, as futuras intervenções em Macau deverão enquadrar o território num novo espaço macroeconómico, em que se integram zonas económicas especiais chinesas e de cuja dinâmica Macau depende. Por isso, a médio prazo, no domínio do planeamento urbano, as acções a desenvolver deverão ser constituídas essencialmente pela definição e implementação de instrumentos que permitam uma gestão correcta do território ao nível das carências e das pressões socioeconómicas que se vêm fazendo sentir.

AS INTERVENÇÕES

ARQUITECTÓNICAS

Em Macau, como em outros territórios sob administração portuguesa, a imagem do Poder — Estado Novo — reflectiu-se nas arquitecturas e na organização da cidade. Às primeiras propostas de um modernismo puro, como o projecto inicial do Skyline, valorizado por uma composição de volumes e formas de rigoroso geometrismo, seguem-se outras em que intervêm os modelos e as iconografias características da arquitectura do Estado Novo. O Campo Desportivo de 1940 chega a revelar fortes afinidades com alguns aspectos do complexo da Exposição do Mundo Português, aberta no mesmo ano, e o Edifício das Repartições, construído em 1951 no local do antigo Palácio do Governo, na Praia Grande, é um grande imóvel com uma fachada monumental enquadrada por elementos clássicos bem ao gosto da arquitectura oficial portuguesa na época.

O bairro dos CTT, inaugurado em 1950, é um conjunto de habitações modestas para funcionários públicos e nele se notam algumas das características típicas da habitação social do Estado Novo, como a reduzida escala de dois pisos de altura, janelas e portas com gelosias de madeira e telhados em telhas cerâmicas com beirados bem vincados. Este surto de «português suave»circunscreve-se aos anos 50 e dele ficaram exemplos de diversas moradias nas Avenidas Coronel Mesquita, Horta e Costa e Conselheiro Ferreira de Almeida.

O desenvolvimento urbano dos anos 60 foi acompanhado pela intervenção de uma geração de arquitectos portugueses formados no contexto do movimento moderno e que são responsáveis por um conjunto de obras públicas como a Escola Comercial Nolasco da Silva e o Liceu Infante D. Henrique. O surto económico teve como consequência o rápido crescimento da cidade, que se traduziu na ocupação dos aterros e na substituição dos tecidos urbanos antigos, onde os pequenos edifícios deram lugar às novas tipologias de vários pisos. Construíram-se hotéis, prédios de rendimento para a habitação e serviços, com base em modelos internacionais anónimos.

A partir do final da década de 70, têm-se verificado novas preocupações que reflectem a intenção de integrar, qualitativamente, o processo de desenvolvimento numa dimensão cultural própria. A recuperação do património arquitectónico tem constituído um sinal positivo de conservação dos valores da cultura local, ao mesmo tempo que algumas intervenções introduzem as vanguardas arquitectónicas recentes.

* Nota do Editor:

O texto aqui publicado, é parte (a Parte I) do livro editado em 1995, pelo Governo de Macau, com o título "Macau — Cidade Memória no Estuário do Rio das Pérolas". A sua reedição deve-se ao mérito do trabalho e à raridade de leitura da especialidade sobre este tema alargado. Para a sua maior divulgação em Macau e em meios internacionais (será reeditado nas edições em Chinês e Inglês da RC), republicamo-lo agora com diferente título — "Macau, da fundação aos anos 70, evolução socio-económica, urbana e arquitectónica", e com diversos recursos iconográficos.

O trabalho original integral foi produzido pelo "Consortium «Partex (CPS), Tomás Taveira»" a solicitação do Governo de Macau, e teve como coordenadores técnicos de área e investigadores os docentes universitários Doutora Maria Calado (historiadora), Doutora Maria Clara Mendes (geógrafa), e Doutor Michel Toussant (arquitecto).

desde a p. 74
até a p.