... Os livros também interessam às crianças, enquanto blocos de papel almaço, onde se fazem riscos e manchas do estilo dá-gozo-desenhar-sobre-letrinhas-arrumadas-em-colunas, ou, depois de soltar as páginas, se esculpiam aviões e gansos de papel, dobragens aerodinâmicas que aterrorizavam, com os seus voos rasantes, as pacatas populções vegetais e mini-animais do quintal ou jardim.
Carlos Marreiros
O Monte ambíguo, o Monte-monte-verde, o Monte-emblema-fortaleza, era o Monte onde ficava a casa do meu avô. A casa já não existe. Mas o seu espaço-memória ainda solfeja notas soltas da minha infância. Foi naquela casa e naquele Monte que, enquanto criança, ouvi muitas vezes o nome de "Inho Gomes". Porque o meu avô gostava das coisas que ele escrevia, ou das conversas tidas com ele, no Jardim de Camões, provavelmente nas manhãs de domingo. Porque uma tia minha foi professora numa escola, que tinha Luiz Gonzaga Gomes como director. Por um pouco de tudo isso, e porque também ele era do Monte, morava lá, na Calçada do mesmo nome e fruía aquela zona, eu ouvia falar de um senhor chamado Inho Gomes. Devia ser alguém, com alguma saliência, algures num espaço específico, que a imaginação de uma criança não descortinava. Àcriança interessava-lhe mais, se calhar, o edifício do Museu Luís de Camões, enquanto casa para brincar às escondidas, do que casa cheia de preciosidades antigas, coisas importantíssimas, com luzinhas apontadas, constelação de memórias a transpirar cultura. Àcriança interessam-lhe mais as árvores que estavam no quintal da casa de Luiz Gonzaga Gomes, como andaimes para se chegar aos raquíticos frutos, do que os livros na vasta biblioteca da sua casa, certamente pomar de prazer de leitura para os mais crescidos e interessados. Pois claro, os livros também interessavam às crianças, enquanto blocos de papel almaço, onde se fazem riscos e manchas do estilo dá-gozo-desenhar-sobre - letrinhas-arrumadas-em-colunas ou depois de soltar as páginas se esculpiam aviões e gansos de papel, dobragens aerodinâmicas que aterrorizavam, com os seus voos rasantes, as pacatas populações vegetais e mini-animais do quintal ou jardim.
Luiz Gonzaga Gomes, não sendo propriamente um puericul- tor, deixava-se encantar com toda aquela anarquia primaveril das crianças. O seu sorriso oblíquo, simpático mas ambíguo, o seu olhar ao mesmo tempo profundo e disperso, a sua natural aptidão de se fazer respeitar, formam a aura daquele eminente sinólogo. Não me lembro de, vez alguma, ter tido ele qualquer atitude repressora para connosco. Mesmo quando nós invadíamos as suas possessões do silêncio do seu convívio com as vestais da cultura. "Maxima debe-tur puero reverentia"diria ele para consigo próprio? Não. Nada disso. Luiz Gonzaga Gomes não era só benevolente para com as crianças. Era-o para com todos. Até para aqueles que, não sendo crianças, não tinham crescido, aqueles que não foram crianças em criança, e que, adultos na biologia, man-tinham a "criancice" no estado impuro, porque desfasada no tempo, ou seja, a imbecilidade feita escola. Luiz Gonzaga Gomes foi trabalhando sempre, com aquela quase Kantiana devoção pelas coisas da sua terra, sem nunca des-falecer, aceitando com a sua humildade, as críticas que lhe faziam, mesmo que absurdamente destrutiyas. Aliás, Luiz Gonzaga Gomes não era nenhum gato-- sapato para não lhes poder fazer frente, tanto social como intelec-tualmente. Contudo, ele procurava ressintonizar-se com as valquírias da cultura, reencontrar o silêncio do dito convívio, apenas fugaz-mente interrompido pela aviação de papel, que nós, pequeninos, fazíamos aterrar no seu quintal.
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