Ó CASAS DE MACAU, SENHORIAIS!
Desenho de Ung Wai Meng © Copyright
Casas senhoriais de Macau do passado,
Feitas prà luz azul do mar que a Itália estia,
Mas mergulhando o olhar no jade enevoado
De nácar e topázio das águas da baía.
Viram vossas varandas, nas madrugadas gris,
O oscilar do junco, os remos dos tancares
Que traziam ao porto os aromas, subtis
E activos, a marisco e a distantes pomares.
Viram vossas varandas, no horror de uma tarde,
Eugénia a galopar na espuma de um cavalo,
Quando a fragata régia, na Taipa, explode e arde
E poe fim à novela de Francisco Bordalo.
Viram vossas varandas, nas fomes da merenda,
O I-T'ái apregoar pãezinhos recheados,
Natas, bolos estrelas...-Linda toranja à venda!
(Abriam-se os portais. Corriam os criados.)
Viram vossas varandas, em noites de festins,
Parar as cadeirinhas, riquexós, desdobrando
O cerimonial das sedas chins,
Enlanguescendo os corpos de fino luar brando.
Vibravam as vidraças, nos dedos do tufão.
Cada rosto assomava angústia e palidez.
Fora, árvores, mar, no esgar da convulsão.
E, dentro, o movimento, lento, do xadrez.
Que luxo, os vossos interiores!
O móvel oriental, luzente e grave,
Os jarrões de Cantão, os vidros multicores,
Os quadros onde há flores e esvoaça uma ave.
Os macios tapetes e otomanas,
O piano e o bilhar, sob o fresco pancá.
Colherinhas de prata raspando as porcelanas
Perfumadas de coco, pela hora do chá.
Vossos donos: viscondes e barões,
Algum rico chinês com um gosto escolhido
Nas volutas da valsa, giravam os serõs,
Onde as damas mudavam três vezes de vestido.
Acordastes, um dia, emparedadas
Por blocos de betão e claxons estridentes.
Hoje, as vossas fachadas
Não são mais do que pálpebras fechadas
A ocultar a saudade. E doentes, doentes!
(8.6.86)
A JAU
Sou a tua presença, aos pés, calada, quieta,
Ó jau, com quem me identifico tanto,
Nesta gruta onde estou e escuto o canto
Das cigarras que é, hoje, a voz do teu poeta.
António sou (tenho o teu nome)
E escravo, também, da poesia.
Para ela é que estendo, em cada dia,
A mão à minha fome.
(10.6.86)
NO TEMPLO DE KUN-IAM
À mesa onde, em 1844, foi assinado o tratado comercial sino-americano
Omaterial: a pedra, onde os tempos são lidos.
O formato: redondo (todos, à roda, iguais!).
A dimensão: dois braços estendidos
Para que as mãos se estreitem, fraternais.
O nome: mesa. O símbolo: a aliança,
O convívio fecundo
Entre os povos, que rasga o caminho da esperança No mundo.
Quem aqui se sentar medite longamente
Na harmonia do trato e da amizade.
Só depois é que pode olhar de frente
O rosto pálido e rosado da cidade.
(28.6.86)
NO TÚMULO DE CAMILO PESSANHA
Em campa rasa, a tampa de granito
Afronta-o no brasão de fidalguia,
No nome (com Doutor e com d'Almeida) escrito
Com erros de ortografia.
Quem roubou as correntes que o cercavam de ferro?
(Quieto o coração, no temor das algemas.)
Quem poluiu e rasgou o lençol do desterro
Que lhe envolveu, no enterro, os ossos e os poemas?
Ei-lo, já não ali, liberto da prisão,
Por fim a deslizar (assim outrora o quis)
Sem ruído, a sumir-se, como um verme, no chão.
E vê a treva em um país Perdido de segredo e solidão.
(9.7.86)
NA ESTÁTUA DE JORGE ÁLVARES
Ei-lo, de braço erguido, a saudar terra e gente,
Junto ao aprumo do padrão
Igual ao que plantou na ilha de Tamão
E trouxe Portugal ao Oriente do Oriente.
Veio num junco de que foi feitor
E comprou em Pegu por uns milhares de viças;
Veio sem ódios nem cobiças,
Que o nosso norte é aventura, fé e amor.
No solo que tornara português
Deu sepultura ao filho. E, ali, já velho,
Nos braços fraternais de Duarte Coelho,
Extinguiu-se de vez.
Chegou, sem ter chegado, a esta paragem:
Ele é mais de Macau que Ulisses da Lisboa,
Cantado por Pessoa
Na Mensagem.
(17.7.86)
O LAVADOR DE CARROS
Aprendeu, certamente, a pedalar
Onde a cabra mastiga uma espiga de arroz
Ea rua é um velocípede veloz
Que tem quatro milhões de rodas a rodar.
Percorre, agora, esta cidade inteira
(O balde d'água, o pano e o perfil caricato
Do espanador, alçado como a cauda de um gato),
Em busca do freguês com lama e com poeira.
Sabe as matrículas de cor.
Sofre se vê alguma amolgadela
E molha o pano e passa-o, lentamente, sobre ela,
Como se fora ferida e lhe adoçasse a dor.
Caem as flores, com um perfume cálido,
No espelho do capot recém polido.
Sacode-as, de ciúme! Quer, ali, reflectido,
Só o seu rosto de Narciso pálido.
Depois, volta a montar a bicicleta.
Centauro singular! Eu preferia,
Em vez de o retratar nuns versos sem poesia,
Desenhar-lhe, de um traço, a silhueta.
(13.6.86)

Desenho de Ung Wai Meng © Copyright
desde a p. 68
até a p.