Artes e Letras

No Oriente do Oriente

Antonio Manuel Couto Viana

CHEGAS por mar. Ao crepúsculo azulíneo, quando as ondas são breves e a terra desdoba as grinaldas luminosas de cor, dos múl-tiplos anúncios de caracteres enigmáticos, como um labirinto de volutas e traços. O jet de Hong Kong veio a arfar, a espadanar espuma, quase num voo de asa rasante. Atraca, logo, a um cais súbito barulhento e apressado, esvaziando-se dessa febre alta de jogo e aposta, que o afogueara, mal as águas amareleceram o verdor límpido do jade.

Chegas a uma cidade que te encara altiva e te desdenha do cimo dos seus edifícios colossais, como fronteira inacessível e fria de betão, a ocultar, a defender, o tesoiro da sua verdadeira face bela e única na originalidade do perfil de tez pálida e rosada, mesclado de Oriente e Ocidente. E, neste primeiro instante, quase lamentas não ter aportado aqui, muitos séculos atrás, ao asilo da praia acolhedora, penetrado de lenda, trajando uns trapos sujos de cabaia do pescador que, por suprema felicidade, transportara, no seu junco, a divindade de A-Má, a vira dissipar-se na espessura das fragas; a ela, que, mais tarde, viria ocupar, no altar vermelho e oiro, a sua realeza, aplacando as iras do tufão, abastecendo as redes de prata palpitante e fresca, abençoando a terra com o seu nome, unido ao da baía que lhe ondula aos pés. Quase lamentas não ter aportado aqui, já nos finais do século XVI, a bordo da nau que da Índia nossa trouxe a colónia a boa nova da sua elevação a cidade, confirmando-a cristã; a ela que, de há muito, provara a sua crença no Santo Nome de Deus, edificando igrejas, catequizando o gentio, irradiando a fé pelos impérios pagãos, sempre submissa ao báculo do seu pastor de almas, um sábio e piedoso prelado. Quase lamentas não ter aportado aqui quando outra nau empavezada, vinda da distância do Reino liberto, anunciou a mercê do Monarca Restaurador, premiando Macau pela lealdade ao pavilhão das quinas e castelos, jamais arreado dos seus fortes e naus, mesmo durante o domínio castelhano em solo português.

E saudoso desse passado de quatro séculos que, no dia seguinte, buscas as pedras que te falem, ainda, de heroísmo e devoção.

Sais na manhã indecisa, mal afloradas de nácar as águas do rio das Pérolas, e escutas, surpreso, por todo o ar, húmido e morno, um longo gorgeio agudo e doce. Ele não se expande, apenas, do arvoredo que cinge as colinas; sobe, sobretudo, de gaiolas de fino bambu, suspensas em troncos floridos de jardim, poisadas nos parapeitos grossos da marginal, todos os pássaros numa ilusão feliz de liberdade, que lhes ameiga o cativeiro. Vês, depois, na claridade mais viva, desenharam-se gestos leves e elegantes de bailado e acrobacia, no ritual matutino do tai-chi, e começas a entender e sentir a alma do Oriente aqui esparsa. Fascinado, segues o canto solto das mãos sensíveis destes chins, rumo aos seus iam-chá, bebidos e mastigados em antigos recintos de altas colunatas, entre frémitos de asas.

Na delicadeza de uma tijela de faiança leitosa, começas, também, a absorver o gosto e aroma que, em seguida, no bulício pitoresco do bazar, erguido o sol, te penetram a língua e as narinas, e se evolam das pequenas tendas: umas, álacres de frutos tropicais (a tanjerina, a banana, a manga, a papaia, o ananaz...); outras, rechinando, nas névoas gordurosas, alimentos quase minúsculos, de que não consegues decifrar os ingredientes e os subtis condimentos. E evolando--se, igualmente, dos sacos bojudos das mercearias (frutos secos, raízes, espécies..., de que arbustos mirrados?, de que exuberantes floras?) que alegraram e estimularam o insípido paladar do remoto navegante europeu. Somente alguns dos tais gostos e aromas permanecem encerrados, com ciência e respeito, nos inflados boiões de vidro das farmácias, com inscrições e sentenças medicinais, transmitidas através de milénios de cura e alívio. Também o bruxuleio do incenso liberto, em espirais, dos votivos pivetes, ali, na riqueza barroca e exótica de uma templo budista, te perturba e te incita a subir, hierático, entre dois leões com fauces de feroz arreganho, a breve escadaria; te leva a encarar o sortilégio que habita para além da ampla porta escancarada, sob a alegoria do ovo e dos dragões. Mas um impulso vindo do imo do coração impõe-te que pere-grines, primeiramente, por igrejas povoadas de santos e anjos, de esmaecidas pinturas, de altares" sóbrios de ornatos mas opulentos de orações fervorosas, onde celebraram missa as mãos ungidas dos missionários jesuítas que deram alento espiritual e grandeza arquitectónica à cidade, vultu-ando-a de torres sineiras, de cruzes alçadas, o damasco dos pálios, o palor das velas, o oiro faiscante das custódias, o balsâmico fumo dos turíbulos, processionando pelas ruas serpeantes, ante o pasmo e terror do Oriente e o joelho ver-gado, o recolhimento sacral, do Ocidente.

Depois da cruz, a espada. E galgas as colinas e debruças-te em múltiplas muralhas, onde, a espaços, espreitam canhões de Bocarro, aqui fundidos com primor, para o estrondo mortífero na defensão do porto: vigilantes de bronze, não vá escapar-se-lhes da mira o junco de combate do pirata bárbaro e rapace, a ambição comercial da armada holandesa, à vela pelos mares malaios. Também Bocarro fundiu a sonoridade solene e festiva dos sinos (a cruz e a terraespada), a congregar os braços para protecção da terra e as almas para as preces ao Divino (a espada e a cruz ). Memorando lances de glória, fragores de batalha, arrebatamentos épicos, desces, de novo, ao âmago da cidade que, nos finais da manhã, se prodigaliza em som e cor. Detém-te, um largo instante, o rosto flagelado de uma igreja que o pavor do incêndio tornou espaectral, só alma. Ela não é, unicamente, um cartaz turístico da cidade colado no céu: é, acima de tudo, o seu rosto retalhado de história, com os símbolos que nos perpetuam: a caravela dos descobrimentos, o culto mariano e do Santo Espírito Paráclito, a vitória sobre as forças do mal, através do martírio. Pode ser que, no dia em que aí fores, rasteje ao rés do templo da Mãe de Deus, com ar-ruído de tambores e estrídulo de metais, a forma rompante e garrida de um imenso dragão, para que o pé da Imaculada o subjugue. Decerto te divertirá a dança primitiva que executa, a imagem fascinante e coleante do animal fabuloso, entre o estoirar alegre dos panchões - e, num sorriso, mergulhas, satisfeito, nas vagas agitadas dos ven-dilhões que te fazem sinais, num apelo de que só conheces a intenção, te exibem lembranças sugestivas destas paragens, os rendilhados objec-tos de precioso jade, os tradicionais chapéus de palha de arroz, defendendo da chuva e da canícula o infatigável camponês chim, a vari-edade e fragilidade das loiças debruadas de azul, salpicadas de bagos transparentes, o estendal das roupas de todos os cambiantes e medidas; além, o sapateiro de rua, remendão, acocorado, a bater com perícia uns tacões de borracha; a lentidão pedalada de um triciclo (ontem riquexó), trans-portando compradores empertigados, rodeados de sacos de plástico; o moço, limpador de carros, afanando-se a espanejar cromados com o seu es-panador petulante como um penacho de hus-sardo; os velhos tintins espalhando, sobre desactualizados jornais, a velhice das suas mercadorias (moedas gastas, discos fora de moda, uma xícara esbeiçada, sem valor de antiguidade, muito mate-rial eléctrico já usado, o altar de madeira fendida de um deus hospitaleiro, pó, cinza, nada...). Páras, remiras, avalias o preço de cada coisa exposta, hesitas... e segues de mãos vazias, mas, para tudo, os olhos deslumbrados.

Onde vais, agora? Talvez ao final desta rua, a desembocar numa praça, tendo ao fundo a rudeza de um largo arco, por onde circula uma multidão em vaivém. Acaba-se-te, nessas Portas do Cerco, o território dosselado pela nossa bandeira: para além, a China estende-se, vastíssima e misteriosa. Frente a esse monumento, sem aparente grandiosidade ou beleza, recolhes-te, um momento, em ti, chegam-te da memória, pulsam-te no coração, nomes e datas de bravuria e dignidade portuguesas que estas paredes pre-senciaram, que lhes constelam o peito firme de soldado. Não resistes. A tua mão tem a carícia do orgulho, da gratidão, da reverência, ao tocar-lhes as cicatrizes rebocadas de pintura.

Onde vais, agora? Talvez a outra praça mais nobre no aparato apalaçado, onde sobressai a extensa fachada branca e serena do Leal Senado. Curvas a cabeça em homenagem, ante o significado vivo da legenda e do escudo coroado que dois anjos, como que ajoelhados, sustentam e dir-se-ia quererem arrebatar para mais além, sempre para mais além. E agora, onde vais?

É o sentimento que to exige. Vais, romeiro da poesia, à gruta onde a verdade da tradição viu Camões, tendo o jau a seu lado, imaginar, em reboadas de inspiração genial, inflamadas estrofes de «Os Lusíadas». Ali, não tens palavras: só lágrimas de emoção. E elas não secam, enquanto visitas o lirismo de novos jardins, europeus e orientais, enlaçando estátuas e plácidos lagos, para murmurares versos de Camilo Pessanha, tão de Macau, escutando-lhes a música interior, exígua, discreta, mas profunda. Ávido de águas e ventos, de diferentes paisagens sem ritmos citadinos, sem cadências do contínuo movimento de gentes e de carros buzinando, atravessas a ponte da Taipa, a sugerir-te um dragão que se espreguiça, depois de teres saboreado, com ínfimos cuidados, uma refeição tipicamente chinesa, à mesa redonda, assistindo ao rodar contínuo das iguarias de perfume intenso, que temperas de molhos picantes, com as pontas dos diligentes fai-chi.

Que livres horizontes, os das duas ilhas, Taipa e Coloane! O peito respira-te melhor, atrai-te a areia de duas praias ensolaradas; convives com os pássaros, és quase um deles, num aviário à di-mensão da floresta; convives com a santidade, inclinado diante de ossadas de mártires cristãos que verteram sangue, amor e perdão; convives com a aventura, recordando actos de pirataria, juncos suspeitos desembarcando, pela noite, des-pojos e reféns. Divagas. Mas as sombras da tarde enredomam-te já. Há que regressar ao trepidar tentador da cidade, a experimentar o prazer e a angústia do jogo; a invadir a sofreguidão dos casinos e dos campos de corrida, com suas salas e bancadas pejadas de ansiedade e desespero; a encher as mãos de fichas e de sonho, perturbado por névoas e clarões de superstições ancestrais, por palpites e visões, esperançadas consultas à obscura ciênda do adivinho, à benevolência do deus da fortuna; a recorrer, em hora des-favorável, ao auxílio da casa de penhores, o anel mais rico e estimado em troca de algumas notas enxovalhadas, um punhado de pérolas por meio punhado de oiro a escorrer, depois, em areia vã, entre os dedos do vício.

Énoite fechada. Desvias-te, lento, da verde atracção dessas mesas; dos sofisticados aparelhos tilintantes de me tais, com espasmos arco-irisados e violentos, e encamin has-te, lento, para a aba do mar, a purificares os olhos convul-sos de números e cifras. Então, recortado no es-curo, julgas ver o vago vulto de uma nau, a der-radeira do Império, ainda de velas pandas, ainda o signo da pátria a drapejar à ré, ainda a proa de-cidida, apontando o desconhecido ameaçador. Que mão segura lhe prende o leme? Que gajeiro espreita, na gávea, a traição dos baixios, os abis-mos finais do profundo? Que anjo a tomará nos braços e a fará varar nas areias de Portugal?

Lá, do cimo da colina, jorra uma luz. Foi a primeira que brilhou, nos mares da China, como guia de navegação. Também Macau (adivinhas este nome no costado) foi o primeiro farol cris-tão e civilizador do Oriente do Oriente.

Brilha, do alto, a luz, a iluminar a nau, na, treva do presságio, a dissipar receios dos es-colhos, a rasgar-lhe um caminho certo para um futuro de bonança e de vitória. Como tudo é já nítido, é já resplandecente!

E percebes, então, que é o dia que des-ponta.

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