Edições

EDIÇÕES NO TRIMESTRE

João Carvalho

As comemorações coincidentes do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas e do primeiro centenário do nascimento de Fernando Pessoa, já nos finais deste segundo trimestre do ano, foram motivo para outros tantos títulos produzidos pelo Sector Editorial do ICM. Lançados quase em simultâneo, o primeiro veio assinalar a data em que Portugal presta homenagem ao autor de Os Lusíadas e, três dias depois, o segundo surgiu a marcar os cem anos do autor da Mensagem. Camões e Pessoa celebrados, por assim dizer, conjuntamente, com Macau a receber uma delegação representativa da presença portuguesa na Índia, por ocasião do 10 de Junho deste ano. Antes, porém, há a referir uma obra editada no início do trimestre, um novo contributo de um investigador que tem prestigiado Macau e Portugal.

Fazemos ainda menção a um número intercalar desta nossa publicação, bem como ao último trabalho apresentado pelo Arquivo Histórico de Macau. Mas outras publicações houve que vieram a público no mesmo período, conforme adiante aludimos. Finalmente, damos destaque especial ao primeiro título de uma nova colecção que é uma interessante recolha sobre usos e costumes do povo chinês.

EDIÇÕES DO ICM

Reunindo documentação e fontes de informação hoje esparsas, Portugal no Tecto do Mundo leva a conclusões de algum modo inéditas ou, por várias vezes e através dos tempos, polémicas, revelando elementos de valor histórico inegável.

"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce" - escreveu o poeta Fernando Pessoa, no seu livro "Mensagem ", e recorda o autor no seu preâmbulo. Para melhor apreensão do conteúdo desta importante edição assinada por Benjamim Videira Pires, S. J., vale a pena socorrermo-nos das suas próprias palavras. «Neste livro, cujo título parece lendário, vamos relatar, com os documentos na mão, dois dos mais altos empreendimentos da História Missionária de Portugal: o descobrimento do Tibet pelo Pe. António de Andrade, S. J., e a travessia, de Goa a Suchow, no norte da China, pelo Irmão Bento de Góis, também jesuíta».

E o autor apoia-se em meritório trabalho de investigação para poder revelar, reportando-se aos dois jesuítas, que «Portugal, pelos seus pés, foi o primeiro país do Ocidente a atingir as maiores altitudes do globo, nomeadamente, o chamado "Tecto do Mundo" (o Planalto dos Pamires)».

Uma obra que passa, pois, a constituir novo documento para a História de Portugal e do Mundo.

Trabalho que Maria Selma de Vieira Velho, natural de Goa, apresen-tou na Universidade de Bombaím, em 1983, como tese para o grau de doutora-mento em Língua Portuguesa (Ph. D.), A Influência da Mitologia Hindú na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII seria enviada a Portugal para melhor apreciação e, aquando dos exames orais da autora, em 1985, faria deslocar a Goa um examinador do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina da Universidade Técnica de Lisboa.

Colocada perante a falta de documentação indiana, a autora lamenta que a provável «incúria dos tempos e dos homens» a tenham fragmentado, pelo que se baseia «inteiramente na documentação portuguesa». E é essa documentação que utiliza, servindo-se mesmo de obras e autores de que se destacam o Pe. Jacobo Fenício, D. Francisco de Garcia, Gil Vicente, Camões, Garcia de Horta, Fernão Álvares do Oriente e Rodrigues Lobo.

Mas os recursos são bem mais vas-tos. Ali se começa por encontrar a definição de intercâmbio indo-português e apresentar o panorama geral do desenvolvimento da influência indiana na Literatura portuguesa, pontos de partida para uma interessante abordagem dos mitos e filosofia hindús.

Segue-se a chamada aos textos hindús traduzidos na Literatura portuguesa dos séculos XVI e XVII, com especial referência à primeira importante tradução ocidental do Ramaiana, e são apontados significativos exemplos da possível influência dos mitos indianos na Literatura que, na época, autores portugueses historiados produziram.

Prosseguindo no estudo admirável e bem argumentado das repercussões em Portugal da influência indiana, são referidos os primeiros sintomas do que Selma de Vieira Velho chama «estrangulamento do intercâmbio indo-português», analisando o que toma por possíveis exemplos da decadência dessa mesma influência, ao caminhar pelos séculos XVIII e XIX.

De registar a conclusão de terem sido os primeiros quarenta anos que se seguiram à viagem de Vasco da Gama aqueles em que uma maior influência indiana se viria a reflectir na Literatura portuguesa.

Um contributo para a história da presença portuguesa no Oriente, um importante documento para a preservação do nome de Portugal na Índia - a par do diversificado património existente em Goa, Damão e Diu - uma tese sobre a emanação da Cultura indiana para o mundo ocidental e os primórdios do intercâmbio Oriente-Ocidente, são apenas alguns dos aspectos que facilmente se descortinam num trabalho as-sente em raízes indiscutivelmente históricas.

Colectânea pensada para ajudar a dar de Pessoa um melhor conhecimento ao público leitor chinês, a Antologia de Fernando Pessoa é uma edição bilingue (em chinês e português) que apresenta, desde logo, a condição requerida para satisfazer o objectivo junto desse público primeiro destinatário. De facto, a profusão de anotações que completam a tradução chinesa desta selecção de Zhang Weimin surge como elemento necessário (porventura, indispensável) para o pretendido conhecimento e entendimento da verdade de Pessoa: O poeta é um fingidor/Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente.

Considerado por alguns o único poeta português que se poderia medir com Camões, Pessoa-ele-mesmo aparece ao lado de Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos - conjunto de "autores" que constitui parte significativa dos seus heterónimos - agora traduzidos em poesias e prosas que incluem Quadras ao Gosto Popular, Páginas de Doutrina Estética e Fragmentos do "Livro do Desassossego", entre uma amostragem criteriosa da vastíssima obra que tem vindo a ser traduzida e admirada em diversas línguas. Por outras palavras, poderá dizer-se que esta constitui uma nova resposta dada no Oriente para o Oriente à já consagrada universalidade de Pessoa.

O mês de Junho foi ainda marcado pelo lançamento de um Número Especial da RC (edição em português).

Dedicado à memória da presença portuguesa na Índia e para assinalar as comemorações em Macau do Dia 10 de Junho de 1988 - Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, o Número Especial RC/Índia veio a lume com diversa colaboração interessada na recolha, preservação e recuperação do papel histórico de Portugal na Índia, papel centralizado em Goa, Damão e Diu e, daí, alargado a áreas geográficas em que, hoje, ainda se adivinham marcas da presença lusa.

Ao longo de quase uma centena de páginas, são apresentados diferentes elementos de ligação entre Goa e Macau, Lisboa, Camões, Pessoa, Chaúl e Xavier, num conjunto de trabalhos de investigação histórica e sociológica cuja oportunidade se evidencia por si própria.

No final do trimestre estava também a sair mais um volume dos Arquivos de Macau, correspondente ao ano de 1986. Esta nova edição vem na continuação da anterior, contendo o inventário dos processos do Fundo da Administração Civil, agora compreendidos entre 1921 e 1926.

OUTRAS EDIÇÕES

A Administração surgiu no segundo trimestre deste ano como um espaço aberto para tratamento de todos os assuntos que se prendam com a Administração Pública local, incluindo ainda uma secção de "Consultadoria Jurídica". Trata-se de uma edição bilingue, em português e chinês, completada com um sumário em inglês dos temas abordados, entre os quais ressalta, neste primeiro número, a selecção dos documentos apresentados a um Seminário organizado pelo SAFP no último ano: "O Papel das Câmaras Municipais na Vida do Território". Elaborada por uma equipa coordenada pelo Dr. Guilherme Valente, a Administração, com capa de António Conceição Júnior, promete «quatro números por ano» e apresenta-se numa altura em que ganha novos contornos a política linguística a aplicar em Macau, com vista ao futuro que se desenha. Razões há, portanto, para saudarmos o seu aparecimento, em particular, ao permitir o debate que interessa ao actual período de transição administrativa do território.

Apresentada também neste segundo trimestre, a Revista Jurídica de Macau, além do espaço próprio para "Artigos", contém as secções "Crónicas e Informações" e "Jurisprudência", terminando com "Resumos" nas línguas portuguesa, chinesa e inglesa. De registar que esta nova publicação, resultado de um trabalho do GAJ coordenado pelo Dr. João Miguel Barros, com capa e orientação gráfica de Victor Marreiros, surge num momento de particular importância, quando se pretende garantir a perdurabilidade das leis em vigor e a autonomia legislativa da futura Região Administrativa Especial de Macau, com a respectiva localização do sistema jurídico e ajustamento do Direito às realidades actuais. Saudamos, assim, o nascimento da Revista Jurídica de Macau, pelo papel que lhe cabe desempenhar para mais ampla divulgação das questões que se desenvolvem numa área de extrema relevância para a vida do território.

O segundo trimestre do ano deu ainda lugar à saída dos números 9 e 10 da Macau, publicação mensal do GCS.

A Macau N° 9, reportada a Fevereiro/Março, veio a público com uma capa inspirada no tema "500 Anos dos Descobrimentos", reprodução de um trabalho criado por Victor Hugo Marreiros. Tema, aliás, a merecer destaque, a par de uma referência à passagem dos 63 anos sobre a morte de Sun Yat Sen e do apontamento sobre uma exposição de Mio Pang Fei, completada por um encontro com o próprio pintor. Pela nossa parte, realçamos também os artigos sobre a presença portuguesa no Japão, o papel da Fundação Macau, a obra das Missionárias da Caridade no território e a partida do Raid Terrestre Macau/Lisboa, entre outros trabalhos apresentados.

Referente ao mês de Abril, a Macau N° 10 dava relevo de capa à visita do Governador a Pequim, com chamadas especiais também a um artigo sobre as linhas de acção que orientam o ensino do chinês a portugueses, a presença da Igreja Católica em Macau ao longo dos tempos, as óperas dramáticas na China e o acompanhamento do Raid Terrestre Macau/Lisboa, que chegava ao destino a 5 de Junho. Mas, como habitualmente, esta edição veio a lume com mais uma boa variedade de temas de interesse, da Arte à História, passando pela Religião, Ambiente e outras secções.

DADOS BIBLIOGRÁFICOS**

PIRES, Benjamim Videira, S. J. -Portugal no Tecto do Mundo. - Macau: Instituto Cultural de Macau, 1988. -158 p.; il.; 23 cm. - (Brochado)

VELHO, Selma de Vieira - In-fluência (A) da Mitologia Hindú na Literatura Portuguesa dos Séculos XVI e XVII. - Macau: Instituto Cultural de Macau, 1988. - 2 T.; 929 p.; 25 cm. -(Brochado)

PESSOA, Fernando - Antologia de Fernando Pessoa = 佩索阿選集 / Selecção, tradução e anotações de Zhang Weimin. - Macau: Instituto Cultural de Macau, 1988. - 447 p.; il.; 22 cm. -(Brochado)

- Revista de Cultura. Macau, 1987, N.° especial/Índia [Jun.], 1988 - Prop. e ed. do Instituto Cultural de Macau; dir.: Jorge Morbey, Luís Sá Cunha, Carlos Marreiros.

- Arquivos de Macau: Boletim do Arquivo Histórico de Macau. Macau, 1981, Quarta Série, Vol. VI, T. I e II, 1987 - Prop. e ed. do Instituto Cultural de Macau.

- Macau, Macau, 1987, N.° 9, Fev.-Mar. 1988 - Ed. do Gabinete de Comunicação Social do Governo de Macau; dir.: Miguel Lemos, Helder Fernando.

- Macau, Macau, 1987, N.° 10, Abr. 1988 - Ed. do Gabinete de Comunicação Social do Governo de Macau; dir.: Miguel Lemos, Helder Fernando.

- Administração: Revista de Administração Pública de Macau Macau, 1988, Vol. I, N.° 1, Abr. 1988 - Prop. da Administração Pública de Macau, ed. do Serviço de Administração e Função Pública; dir.: José A. Barreiros, Rui Cabaço Gomes.

- Revista Jurídica de Macau. Macau, 1988, Vol. I, Abr.-Jun. 1988 - Prop. do Território de Macau, ed. do Gabinete dos Assuntos de Justiça; dir.: Secretário-Adjunto para a Administração e Justiça, Director do Gabinete dos Assuntos de Justiça.

JORGE, Cecília, e outro - Fénix (A) e o Dragão: Realidade e Mito do Casamento Chinês / Cecília Jorge, Beltrão Coelho. - Lisboa: Instituto Cultural de Macau, Editorial Publica, 1988.-160 p.; il.; 22 cm. - (Encadernado)

A REALIDADE E O MITO: CASAMENTO OU CONTUBÉRNIO?

A partir da proclamação da República Popular da China, em 1949, e da Revolução Cultural que lhe sucederia, as tradições milenárias do Império do Meio foram sendo cerceadas. O objectivo era retirá-las do véu de mistério que sempre as envolvera, apontá-las com nova e fria determinação e derrubá-las para serem enterradas por um povo que se empenhava na recuperação do tempo real que perdera durante a travessia do mitológico.

Surgia então o veredicto: o casamento entre a realidade e o mito não mais seria reconhecido. Como qualquer enlace condenável por conceitos civilizacionais ditos de modernidade e de razão - da razão ocidental, afinal - seria visto como uma espécie de concubinato.

Mas não nos habituámos nós a ver contos e lendas de mãos dadas? Não nos surge sempre a ficção concebida com base no conhecimento? Não nos apercebemos a cada passo do encontro tangencial entre a imaginação e criação, e os actos e factos da documentação histórica? Não nos deram amiúde lições de vida com "histórias do tempo em que os animais falavam"?

Deve, pois, ser perpétua e universal a união entre a realidade e o mito, união assim conservada eternamente à ma-neira de cada um e dos povos todos. Indissolúvel também na China, ainda que afastada para a periferia e guardada em Hong Kong e Macau. Sobretudo em Macau, com o carinho que é possível encontrar na vivência tranquila de gerações sucessivas. E o Ocidente continua a olhar esta China imensa na tentativa constante de erguer uma ponta do véu que ainda envolve os seus permanentes mistérios de uma orientalidade que parece jamais se alcançar no seu todo.

Hoje, contudo, a necessidade de um mais profundo conhecimento leva o homem ocidental a querer melhor entender o homem oriental. E Macau está aqui, para contar dos seus quatro séculos de saber, quatro séculos de entendimento feitos. Macau, receptáculo do grande encontro dos mundos, onde os portugueses recolhem elementos desta transculturação de que foram pioneiros e os levam à velha Europa, para que mais estreito seja o relacionamento.

É precisamente esta fase de recolha que marca iniciativas várias, entre elas as pensadas para serem metidas no caminho que vai de Macau a Lisboa. E é com este pensar que o Gabinete de Projectos Especiais do ICM apresentou, no segundo trimestre deste ano, o título A Fénix e o Dragão - Realidade e Mito do Casamento Chinês. Uma obra que é o primeiro passo do projecto chamado Colecção Tradições e Festividades, em que a Medicina Chinesa - Em Busca do Equilíbrio Perdido, As Mil Faces da Lua - Crenças e Superstições em Macau, Do Lado de Cá do Além -Histórias de Vida e de Morte na China Milenar, Kung Hei Fat Choi - As Celebrações do Ano Novo Lunar em Macaue Deuses e Demónios - O Culto dos Chineses pelas Divindades, são os títulos que a irão completar.

Em A Fénix e o Dragão - Realidade e Mito do Casamento Chinês, de Cecília Jorge e Beltrão Coelho, fica gravada uma das muito belas e expressivas manifestações chinesas, no seu todo e em quanto a rodeia, preparada para ir agora ao encontro do leitor português interessado em saber mais do que algumas teorias confucianas, uns tantos retalhos de uma travessia reportada nas estradas sem fim, ou duas horas de imagens filmadas por Bertolucci.

Jornalistas eles próprios, os autores fazem uma abordagem completa do tema em relato claro de objectividade. Começando por referir a simbologia dos sexos - que Dragão e Fénix são figuras mitológicas que representam o casamento nos seus polos de poder cósmico: virilidade e feminilidade, Sol e Lua, luz e trevas...- a superstição, a hierarquia e os métodos que caracterizam a sociedade chinesa, percorrem a Mulher, a Família e o Direito, através dos tempos, enquadrando o casamento em Macau, o casamento na China, o divórcio, a sucessão e os rituais.

O resultado de um texto acessível, acompanhado de boas ilustrações, permite que o leitor tome íntimo contacto com uma das muitas tradições de realidade e de mito do quotidiano do povo chinês, que se tem vindo a alterar lentamente a partir do início deste século, em especial quanto ao papel da Mulher e desde o tempo daquela que foi oficialmente a mãe do último imperador- esse mesmo que Bertolucci retratou.

Um relato que penetra a névoa sem quebrar o fascínio, do mesmo modo que a tradição milenar não se desfez nas pequeníssimas diferenças do antes e do agora, alheia ao crescimento dos blocos de betão armado. Uma viagem que leva ao Ocidente uma parte deste Oriente, que está tão perto e ainda tão longe. •

J. C.

** Da Biblioteca Nacional de Macau.

desde a p. 125
até a p.