Crónica Macaense

RECORDAÇÕES DE UM MACAU JÁ DISTANTE

Manuel Vilarinho*

A idade permite certas liberda-des. Assim, posso chamar a Macau a cidade dos meus amores, sem que isso leve a interpretações por demais específicas.

De facto há muito que me sinto li-gado e gosto de Macau. Não sei expli-car porquê. Talvez porque, como mui-tos, bebi água do Lilau e voltei várias vezes a Macau.

Hoje dizem que a água do Lilau, está inquinada. Talvez, mas em 1940 não o estava e a água que bebi não me fez mal nenhum.

A minha associação com Macau é porém mais antiga. Meu pai, também oficial de marinha, veio a Macau em 1905 e depois aqui esteve de 1925 a 1927. O que ele contava desta terra e das suas gentes, certamente que me despertou o primeiro interesse em a conhecer, talvez até sem que eu o sentisse.

Vim aqui, como já disse, em 1940 e voltei, por curtos períodos, em 1956 e no princípio de 1987. E aqui estou desde Outubro de 1987, sem o espe-rar, mas apreciando esta cidade que tanto mudou e que cada dia nos apre-senta aspectos novos e inesperados.

Mas não é para falar de mim que alinhavei estas despretenciosas li-nhas.

Quando meu pai esteve em Ma-cau em 1905, era um jovem segundo tenente e tinha 22 anos, quase a mesma idade que eu em 1940, 35 anos mais tarde. Daqui escreveu algu-mas cartas a um grande amigo, des-crevendo o que via e como o interpre-tava. Esse amigo, antes de morrer e como não tinha herdeiros, achou que a correspondência trocada com meu Pai ficaria melhor nas minhas mãos e entregou-a.

Meu Pai, quando começaram a correponder-se, era então o segundo tenente Eduardo Vilarinho; e o seu grande amigo, o tenente do Exército Hélder Ribeiro.

As cartas que trocaram cobrem o período de 1903 a 1940, data da morte de meu Pai, e reflectem de forma muito viva o período do fim da Monarquia, da primeira República e o que se seguiu. São curiosas, não pu-blicáveis na totalidade por terem muita coisa que é pessoal, e se referi-rem, por vezes muito à vontade, a per-sonagens conhecidas e que têm des-cendentes. Mas reflectem uma épo-ca, em particular a da primeira Repú-blica, em que os homens, acima das convicções políticas, punham a ami-zade. Podiam ser adversários na polí-tica, mas a amizade era sagrada.

Meu Pai e o Hélder Ribeiro, trato--o assim porque também herdei e cul-tivei a sua amizade, eram republica-nos. Meu Pai nunca foi, ao contrário de Hélder Ribeiro, um revolucionário. Hélder Ribeiro foi-o, e activo, tomando parte nomeadamente na revolução de 5 de Fevereiro.

Essa revolução não vingou, e teve de se exilar em Paris. Doze dos seus amigos contribuíram então para que aí se pudesse manter e nunca espera-ram que lhes restituísse a ajuda pres-tada. Hélder Ribeiro, logo que refez a sua vida e voltou a Portugal, exigiu que aceitassem a devolução de tudo o que lhe tinham ofertado.

Um dos amigos que ajudou Hél-der Ribeiro foi o general Rui Ribeiro, que por altura do 5 de Fevereiro era Comandante Militar de Lisboa, e pela sua acção contribuíu em larga escala para que a revolução abortasse. Mas o amigo era o amigo.

Eram assim os homens desse tempo.

Perdoem-me esta divagação, que julgo se justifica para nos situarmos no tempo e no espaço, e ilustra o tipo de amizade que existia entre duas pessoas que se correspondiam.

Passemos agora a transcrever as duas cartas que julgo de interesse.

A primeira descreve a Ano Novo Chinês, e reproduz-se a seguir. Nesta carta omitiram-se algumas referên-cias pessoais que, por o serem, não in-teressa publicar.

A segunda carta é datada de 4 de Maio de 1905 e também se lhe omite a última parte, por demasiado pes-soal. Fala-nos da festa do pêssego, que supomos seja uma festa da pri-mavera, e julgamos que já não se pra-tica hoje em Macau.

Não posso deixar de dizer que es-tas cartas têm para mim um valor es-pecial, não só por terem sido escritas por meu Pai, mas até pela influência que a sua vinda a Macau em mim exerceu.

Pode ser que tenham algum inte-resse para os estudiosos de Macau. A eles e ao “Macau dos meus amores” as ofereço.

llustração de Beatriz Cristina da Silva © copyright 1990

* Contra-Almirante (na Reforma desde 1987), tendo desempenhado altos cargos de chefia no Estado-Maior da Armada portuguesa. Membro efectivo da Academia da Marinha (Secção de História Marítima). Desde 1983, é Vice-Presi-dente da Direcção da Associação Internacional dos Museus de Transporte (IATM) É actualmen-te Director do Museu e Centro de Estudos Ma-rítimos de Macau e Presidente da Comissão de Macau para as Comemorações dos Descobrí-mentos Portugueses. Investigador, é autor de conferências e de vários trabalhos e colabora-ções publicados.

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