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LUÍS DE ALMEIDA MÉDICO, CAMINHANTE, APÓSTOLO

Diego R. Yuuki, S. J.*

1525-1552 - DO PORTO DE LISBOA ÀS COSTAS JAPONESAS1

Homenagem a Luís de Almeida em Hondo (Amakusa).

Fróis, no elogio fúnebre de Almeida, ao resumir a sua obra apostólica, assinala-o como o 0promotor da empresa: “Elle foi o que inventou facer o Hospital de Bungo, junto a nossa casa, onde se recolhiam as crian-ças engietadas”.14

Como Fróis une numa só obra o hospital e o hos-pício, o seu testemunho não é de todo claro. Por outro lado, Valignano diz que, ao ver os conhecimentos mé-dicos de Almeida, “determinaron os Padres de facer hum hospital”.15

O Padre Gaspar Vilela, que era um dos membros da casa de Bungo, ao narrar a fundação do hospital, atribui a ideia ao Padre Cosme de Torres, e o trabalho de cuidar dos doentes e levar para a frente a obra, ao Ir-mão Almeida:

“Vendo o Padre (Torres) a necessidade desta terra pareceo que seria serviço de nosso Senhor fazer hum esprital, que he cousa nova entre elles… Acodirao logo muitos a curarse de que tem cuidado hum irmao que aqui se recebeo, he de boas partes e desejoso de seu bem espirital: Home que engeitou muito do mundo por se entregar ao Senhor”. 16

Vilela é o único entre os que escrevem que pre-senciou os factos e, por isso, o seu testemunho tem mais força. Mas, como na obra do hospital houve uma evolução, podemos estabelecer o seguinte processo, de acordo com os dados que nos fornecem os documen-tos:

Almeida, comovido ao ver tantas crianças aban-donadas, assim como o abandono de muitos doentes pobres, oferece-se para custear a casa onde se aco-lhiam essas crianças e pede medicamentos para os doentes. Isto tem lugar em 1555, quando ainda não ti-nha ingressado na Companhia de Jesus e quando ainda podia dispor livremente da sua fazenda. Nas suas deci-sões influi, provavelmente, o seu conselheiro nesse tempo, o Padre Gago. Proposto o plano ao dáimio Otomo Soorin, este aprova-o. Não sabemos até que ponto se desenvolveu essa obra, mas, uma vez se-meada a ideia, o resto segue-se naturalmente. Entre-tanto, Almeida é membro da Companhia, e quem to-ma a decisão é o seu superior, Padre Cosme de Torres, que também é um homem cheio de compaixão pelos necessitados. Ele apresenta o projecto de construir um hospital. As negociações com Otomo Soorin, levou-as a cabo o Irmão Juan Fernández, mas é certo que, sem a presença de Almeida, nem poderia ter ocorrido a ideia, nem a mesma se poderia ter realizado.

Da casa para crianças abandonadas não se volta a falar. Em 1557 não estava, certamente, unida ao hos-pital, pois, conforme escreve Vilela, este só tinha dois departamentos, um para os feridos e outro para os le-prosos e doentes contagiosos.17

1556-1561 - AO SERVIÇO DOS DOENTES18

Os primeiros anos da vida missionária de Al-meida desenvolvem-se em Funai, a capital de Bungo. O seu campo de trabalho são os dois departamentos do hospital. Anos de trabalho silencioso, abnegado, du-rante os quais se vai preparando para o seu futuro apos-tolado. Aprende o idioma, os costumes e, nesse con-tacto diário, íntimo, com os seus doentes, vai pene-trando no coração japonês.

Ao falar do trabalho de Almeida como introdu- tor no Japão da cirurgia e medicina europeia, C. R. Bo-xer tira importância ao facto, pois, segundo a sua opi-nião, a medicina europeia nessa época tinha pouco que ensinar.19 Mas, embora seja assim, Almeida fica sem-pre como o introdutor do que houvesse e como o orga-nizador do hospital. A ressonância que a fundação desse Hospital de Bungo teve, mesmo em regiões muito distantes, indica a novidade da ideia.

“A obra do esprital he hum sino nao pequenho pera tuda esta terra de Japam", escreve o próprio Al-meida; e dá a explicação: porque os japoneses "não tem maneira de cura, principalmente de çururgia, e destes males haono por mal incuravel, e nenhum ha que acabe de sarar que tenho visto, e as nossas mezin-has pola bondade do Senhor he maravilha como obran nelles”.20

O Padre Torres tinha a sua ideia particular acerca dessas maravilhas que operavam as medicinas aplica-das por Almeida: “Ca recebemos hum irmao bom so-geito, que tem 'donum curationis' e o sabe mui bem fa-zer”.21

Ante a necessidade da obra e ao ver que aumen-tava o número dos que a ele vinham, Almeida ocupou--se muito cedo em formar quem o pudesse ajudar e também continuar o seu trabalho. A princípio pensou noutros irmãos da Índia que fossem a Bungo com essa finalidade: “Muito consolado fora de aver hum ou dous irmaos que en mentes o Senhor me da vida aprendes-sen esta arte de curar, con juntamente aprenderem a lingoa, para que ficasse esta obra començada con se continuar”. 22

Mas, como esses irmãos não chegavam, Almeida foi instruindo alguns jovens japoneses, que cedo se tor-naram seus eficazes colaboradores.

Também se interessou por conseguir medica-mentos, que pedia a Goa e Macau; e o seu trabalho foi efectivo, pois o Padre Fróis refere, na sua História, que “tinha alli feita huma botica con tantos materiaes em mezinhas que mandara vir da China, que pera tudo se achava logo remedio en sua caridade”.23

Embora entregue ao trabalho de manhã à noite, curando os numerosos doentes, uns residentes no hos-pital e outros que iam à consulta, Almeida tinha orga-nizado também a administração da obra, seguindo o padrão da bem conhecida Irmandade da Misericórdia. Eram numerosas as esmolas que recebia, tanto de ja-poneses como de portugueses,24 com as quais susten-tava o hospital e ajudava os doentes pobres, supor-tando até parte dos enterros. E, para atender à parte económica, formou uma pequena confraria: “Ha doze japoes irmaos deste esprital, dos quaes dous cada anno tem cuidado delle… tem seu regimento, como hao de receber os enfermos e gastar as esmolas… ”25

Em 1559, o hospital estava em pleno funciona-mento, com um novo edifício. Havia também consultas externas; vários médicos japoneses se juntaram à obra. Entre os colaboradores de Almeida destaca-se o Irmão Duarte da Silva, que, ao mesmo tempo que curava os doentes, sabia falar-lhes de coisas proveitosas à alma.

JUNHO DE 1561-JUNHO DE 1562 - A PRIMEIRA SAíDA26

Em todos esses anos, não sabemos se Almeida fez alguma viagem para fora de Funai, para trabalho apostólico, embora fosse visitar alguns doentes em lu-gares próximos. Vivia consagrado ao seu hospital.

Entretanto, em meados de 1561, uma ordem de Cosme de Torres vem marcar um novo rumo na sua vida: do claustro do hospital para os caminhos de Kyu-shu. As circunstâncias políticas de Kyushu, influencia-das por uma grande vitória militar de Otomo, abriam novas perspectivas à evangelização. Para atender às di-versas comunidades cristãs espalhadas entre Miyako (Kyoto) e Kagoshima, Cosme de Torres dispõe só de seis homens. Cada um deles terá que render o máximo; a mobilidade impõe-se. Graças ao trabalho inteligente realizado por Almeida, o hospital podia prescindir dele.

“Na entrada de Junho me mandou o Padre que fosse a visitar alguns lugares de christaos que nao ti-nham quem os consolase por falta de padres”.27

Passarão muitos anos antes que Almeida possa estabelecer-se num lugar por tempo relativamente lon-go. A preparação tinha sido lenta, profunda; a sua en-trada no campo do apostolado é também progressiva. A sua primeira saída tem como meta um terreno relati-vamente conhecído: a cidade de Hakata e as ilhas de Hirado.

Em Hakata, onde a paz tinha regressado depois de uma revolta que custou a saúde ao Padre Gago, Al-meida começa a exercer a sua profissão de médico, mas, uma vez aberto o caminho, dedica a maior parte do tempo à evangelização. Também se ocupa a pôr em dia a propriedade daquela igreja. O seu trabalho é co-roado de êxito. Deixando atrás um grupo de sessenta novos cristãos, segue o seu caminho até Hirado.

Aqui, realiza um trabalho que mais tarde repe-tirá em diversas ocasiões. Visita as cinco comunidades das ilhas e, em todas elas, com a ajuda dos portugueses da nau que acabava de chegar,28 constrói altares e deixa tudo disposto para quando algum sacerdote aí se possa estabelecer.

O fervor dos cristãos de Ikitsuki e Takushima im-pressiona-o profundamente. A sua cartade 1 de Outu-bro de 1561 contém uma emotiva descrição da vida re-ligiosa nas ilhas; com gosto tinha ficado lá mas, como lhe acontecerá tantas outras vezes, tem que prosseguir com o coração em rebelião. Embora rápida, a sua visita é benéfica. Com a mesma exactidão e sentido geral com que tinha organizado o hospital, Almeida organi-za agora a vida daquelas pequenas igrejas, a fim de que possam continuar, mesmo sem missionário.

Essa longa carta de 1561 marca o começo de uma série de interessantes narrações, ricas em dados e acon-tecimentos. Em questão de datas e locais, são as mais exactas de quantas possuímos sobre o funcionamento da igreja de Kyushu nos anos que durou o governo de Cosme de Torres. Desde logo, muito mais espontâneas e vividas que as recompilações posteriores das cartas Annuas. Basta simplesmente comparar essas cartas de Almeida com a História de Fróis e com o Princípio e Origem de Valignano, para se acreditar que ambos os escritores devem muito a Almeida. Essa achega à his-tória da Igreja no Japão é algo que não se deve passar por alto, ao avaliar a obra global do nosso irmão médi-co.

Das pequenas aldeias das ilhas de Hirado passa à capital, onde leva a cabo um intenso trabalho, apesar do calor de Agosto. Também aqui baptiza uns cinquen-ta, organiza-os, consegue-lhes um lugar onde se pos-sam reunir. E, cumprida a sua missão, empreende a viagem de regresso.

Levava novos planos sobre Hakata, mas nada pôde fazer, pois segue doente. A viagem devia ter sido dura. Ele próprio nos diz: “Comecei a sentir o grande trabalho, e muito mais o mal que trazia, que creceo tanto que cuidei que morrese ”.

Em Bungo, esteve um mês doente e à beira da morte; quando escreve a carta (l de Outubro) ainda está convalescente. Não será esta a última vez que Al-meida regressa doente das suas excursões apostólicas. A sua saúde era débil; o frio, sobretudo, afectava-o muito. Este homem, que a tantos curou e que realizou tão longas e penosas viagens, era um doente de coração gigante; enquanto o coração teve força para bater, foi arrastando o pobre corpo e, ao abrir o sulco, ia se-meando nele, junto com a palavra de Deus, pedaços da própria vida.

O mês seguinte à sua doença, emprega-o a prepa-rar cinco pequenas igrejas em povoações perto de Fu-nai. E, mal termina esse trabalho, logo lhe pedem ou-tro, a primeira das três excursões a um dos seus mais di-fíceis campos de apostolado: Kagoshima.

Kagoshima era a primeira terra japonesa evange-lizada por Xavier. Para Cosme de Torres sobretudo, mas também para os seus sucessores, este pormenor pesou sempre quando trataram de planear novas em-presas. Todos os superiores de Almeida - Torres, Ca-bral e Coelho, este último por indicação de Valignano tentaram a entrada em terras de Satsuma; todos eles escolheram Almeida para levar a cabo a empresa.

À esquerda: Oita: evocação do português que introduziu a cirurgia no Japão.

Nesse momento, a ocasião oferecia-se com a che-gada a Kagoshima de um barco português. O capitão Manoel de Mendoza subiu a Bungo para cumprimen-tar os missionários e, cativado pela personalidade do antigo mercador, pediu a Torres que o enviasse para atender à tripulação do seu barco, que estava a passar o Inverno perto de Kagoshima. Em Dezembro, Al-meida estava a caminho.

Podemos seguir a sua marcha passo a passo: vai por terra até Takase, na baía de Ariake; de lá, em barco até Akune, onde encontra o junco de Alfonso Vaz; segue até outro porto, que não refere, treze lé-guas mais abaixo, e daí continua outra vez por terra até ao castelo de Ichiki, onde vê um grupo de cristãos que haviam sido evangelizados por Xavier. Confortado com este encontro, segue até Kagoshima, onde visita o dáimio Shimazu, e, por fim, chega a Tomari, onde es-tava o barco de Mendoza.

Ali, tem de voltar a exercitar os seus conheci-mentos médicos, pois boa parte da tripulação estava doente. Põe em ordem alguns assuntos, conforme as instruções que tinha recebido de Cosme de Torres, e volta a Kagoshima, onde permanece uns cinco meses.

O trabalho de penetração é lento. Trava amizade com o superior do mosteiro budista Fukusho-ji, que tinha conhecido Xavier, e cura-o de uma afecção da vista. Várias vezes se hospeda em sua casa, mantendo com ele longas conversas. Pouco a pouco, o ambiente torna-se favorável. A comunidade cristã é pequena mas fervorosa. No meio destes trabalhos chega-lhe uma carta de Torres, que o chama para uma nova em-presa. Almeida volta a Bungo.

A nova empresa era indubitavelmente de maior transcendência do que a de Kagoshima, mas foi por certo uma pena que Almeida não pudesse desenvolver melhor o seu trabalho em Kagoshima. Quando voltar, ao cabo de uns anos, o ambiente será diferente.

Permanece em Bungo um mês, repondo forças e preparando-se. A 5 de Julho empreende o caminho, com o Irmão Juan Fernández e o japonês Damião. Agora, o objectivo é terra desconhecida.

1562-1563- ESPERANÇA E RUÍNA EM YOKOSEURA29

Após uma breve estadia em Hakata, onde deixou Juan Fernández, Almeida chega a 15 de Julho de 1562 ao pitoresco porto de Yokoseura. Ao pôr o pé na praia estreita, dava começo a uma nova página da Igreja no Japão. Yokoseura é, em pequena escala, o que depois será Nagasaki. O centro de evangelização que, de Ya-maguchi, tinha passado para Bungo em 1556, começa agora a deslocar-se até às terras de Omura.

Almeida ia a Yokoseura em resposta a uma peti-ção do dáimio Omura Mimbu no Kami Sumitada. Le-vava instruções concretas de Torres e põe-se a traba-lhar sem perder um instante. No dia seguinte à chega-da, e depois de ter cumprimentado os portugueses da nau de D. Pedro Barreto Rolin, surta no porto, dirige--se à capital, Omura, onde tem a sua primeira entre-vista com o jovem dáimio Sumitada.

Permanece lá três dias, enquanto negoceia com o governador Ise no Kami. Hospeda-se na casa do irmão deste, Shinzuke Dono, a quem cativa desde o primeiro momento. Baptizado com o nome de D. Luís, Shin-zuke Dono será uma das primeiras figuras da história de Yokoseura.

Almeida volta a Yokoseura e, numa pequena casa, começa a preparar a nova empresa. Algum tem-po depois, chegam Torres e Fernández; escolhe-se o terreno e constrói-se a igreja. Os três missionários re-partem o trabalho. Almeida é encarregado da constru-ção e também de levar por diante as negociações com o dáimio. Estas culminam com a cedência da povoação à Igreja e com o estabelecimento por dez anos do pri-meiro porto franco de comércio português.

Em Novembro, torna a acorrer às ilhas de Hira-do, para preparar o terreno para a visita de Cosme de Torres, e, quando este e Fernández vão para Hirado, Almeida fica à frente de Yokoseura. Organiza as festas do Natal, inicia o ensino das crianças e prepara os pri-meiros grupos de catecúmenos.

Graças às suas cartas, podemos hoje reconstituir a vida daquela comunidade cristã até ao mínimo por-menor. Ele vinculou à topografia de Yokoseura inu-meráveis recordações, que permanecerão enquanto as verdes colinas continuarem a reflectir-se na baía tran-quila: aqui esteve a igreja, ali a cruz, e a ponte, e o em-barcadouro…30

Em Março de 1563, com a comunidade cristãde Yokoseura desenvolvendo-se rapidamente, Almeida começa a afastar-se para abrir novos campos. Uma vi-sita de duas semanas a terras de Arima permite-lhe es-tabelecer uma nova base na cidade de Shimabara. Volta a Yokoseura para a Semana Santa e, depois, com a alegria da festa da Ressurreição, volta novamente ao caminho.

Vai primeiro a Omura, para apaziguar uma dis-córdia, e aproveita a ocasião para uma instrução reli-giosa ao dáimio e sua família. Dali, passa ao acampa-mento do dáimio de Arima, visita a sua recente comu-nidade cristã de Shimabara e segue até Kuchinotsu. Aqui, o seu apostolado rende abundantes frutos: du-. zentos e cinquenta baptismos coroam o esforço das pri-meiras semanas. Quando, a 2 de Julho, chamado por Cosme de Torres, empreende a viagem de volta a Yo-koseura, deixa em Kuchinotsu uma comunidade cristã bem organizada, da igreja à residência para o missio-nário. Em Shimabara, onde a nascente comunidade ti-nha aguentado já uma ameaça de perseguição, os cris-tãos agrupavam-se à volta do terreno que o “tono”, ou senhor da cidade, tinha cedido a Almeida.31

Ao chegar a Yokoseura, encontra lá a nau de D. Pedro da Guerra, na qual tinham chegado os Padres Luís Fróis e Juan Bautista Monti. Parece natural que, depois das duras jornadas por terras de Arima, des-canse por uns dias. Havia, além disso, tantas coisas que perguntar aos recém-chegados: notícias de Macau, da Índia, do longínquo Portugal… Mas o ritmo de vida da-queles homens não admitia muitos compassos de es-pera em silêncio: “Logo ao segundo dia que foi sábado depois da minha chegada, pareceo bem ao Padre Cos-me de Torres que fosse a visitar a Dom Bertolameu, e a hum seu irmao mais moço, e ao senhor de Shimabara, que estavao juntos na guerra… ”32

É a primeira vez que vê Omura Sumitada depois do baptismo deste. O baptismo teve lugar na primeira semana de Junho, em Yokoseura. A primeira semen-te, tinha-a lançado Almeida; outros recolheram o fru-to. Mas Almeida não pensava nisso: os ciúmes não tin-ham cabimento no seu coração generoso. Para traba-lhar com alegria bastava-lhe ver como progredia a Igre-ja.33

Com o dáimio de Omura, numa visita magistral-mente descrita nas suas cartas, fala devagar das coisas de Deus. A conversa com o dáimio de Arima é uma se-mente deixada cair como por acaso, mas que germi-nará a seu devido tempo; um passo mais numa aquisi-ção que o próprio Almeida coroará anos mais tarde.

Dois dias depois dessas visitas, parte novamente de Yokoseura, desta vez rumo a Bungo, para acompa-nhar o Padre Monti. A partir daí, quando Almeida em-preende o caminho até uma cidade mais afastada, será difícil prever quanto demorará a chegar. As suas via-gens alargam-se e a rota vai mudando, segundo um plano cuja norma principal parece ser a de se entregar onde necessitem dele. E são tantos os lugares que re-clamam o seu auxílio! … Desta vez chegou a Bungo um mês mais tarde, depois de visitar as suas comunidades cristãs de Kuchinotsu e Shimabara.

Levava poucos dias em Funai, quando começou a circular a terrível notícia: Yokoseura fora destruída, a igreja queimada, os portugueses abandonaram o por-to, os missionários e o dáimio morreram às mãos dos rebeldes...

Era preciso todo o valor de Almeida para correr ao encontro do perigo. Ele não duvida: põe-se imedia-tamente a caminho “pera os ajudar nos trabalhos se os ouvesse”. Não sabemos o que teria feito no caso de serem verdadeiros todos esses boatos. Felizmente, havia muito exagero neles, mas o valor, a confiança e o es-quecimento de si próprio que Almeida demonstra nes-ta viagem, são realmente heróicos. Um heroísmo real-çado pelo facto do seu coração acusar o impacto dos di-versos perigos e provações do caminho.

Os seus companheiros são hostis mercadores de Bungo, que mais tarde acabarão por atear fogo à po-voação de Yokoseura. As escalas em Shimabara e Ku-chinotsu, com as populações alvoroçadas pelas notícias da revolução de Omura, são, desta vez, estações de uma dura via sacra. Resumidamente, Almeida des-creve-nos a sua chegada aos diversos portos do cami-nho: “O primeiro 'Dios vos salve' com que me recebiao era cheos de contentamento dizeremme: Onde vas?. Ia a igreja he queimada, e padres nem Vocoseura naono ha”.34

Em Yokoseura, porém, quando ele chegou, a vida tinha quase voltado à normalidade: os barcos por-tugueses continuavam ancorados no porto de Nossa Senhora da Ajuda e tudo estava calmo. Dois doentes esperavam Almeida, os Padres Fróis e Torres, esgota-dos pelo calor e pelo trabalho do Verão. Embora Al-meida não nos dissesse nada, podemos imaginar que a eles dedicaria as melhores horas daquele tempo de for-çada inactividade.

Em finais de Novembro, as naves aprontaram-se para voltar a Macau. Os missionários, mesmo que os dois doentes estivessem ainda fracos, voltaram a des-cer a terra. Nessa altura, por um ardil dos inimigos, Yokoseura foi invadida de novo; apenas havia tempo para escapar depressa nos barcos. Da ponte, podiam ver como ardiam as casas da povoação, os armazéns, a igreja...

Poucos dias depois, as naves portuguesas empre-endem a viagem de volta. Enquanto Fróis vai para Hi-rado, o Padre Torres, com Almeida e Jacome Gonzal-vez, parte rumo a Shimabara, num barco que lhe envia-ram de lá. A dor da partida palpita nas frases da carta, de Almeida:

“Certo foi hua das grandes lastimas que se poden dizer, nao somente ver este lugar destruido, que avia tan poucos dias que estivera en tanta prosperidade, onde Deos nosso Senhor de tantos era venerado, cheo de tantos inocentes que cada dia lhe davao louvores com sua doutrina, os quaes como ovelhas sem pastor se embarcarao huns pera hua parte e outros pera outra, mas ver ficar aqueles pobres christaos em poder dos inimigos crueis, carregados de filhos, sem terem que comer e sem lhes podermos valer. Creao carissimos ir-maos que foi isto pera nos hua grande magoa. Deste porto nos fomos assaz desconsolados a recolher ao mais perto porto que achasemos dei Rei de Bungo”. 35

O delicado estado de saúde do Padre Torres obri-gou-os a deterem-se uns dias em Shimabara. Esta para-gem só serviu para aumentar a tristeza dos viajantes: também lá os cristãos eram hostilizados. Mantinham--se firmes e fervorosos, mas não podiam ter com eles nenhum missionário: “Con no pequenã saudade e tris-teza nos embarcamos pera as terras del rei de Bungo, vendo que ficava esta perseguida christandade entre seus inimigos, sem padre nem irmao, nem persoa que os consolasse ”.

Almeida, realmente, vai deixando o coração ao longo do caminho. Sofre com os seus cristãos, chora a ruína do seu trabalho, mas a sua confiança nunca vaci-la. Deixa Torres e Gonzalvez no porto de Takase, já em terras de Bungo, continuando até Funai, para in-formar Otomo Sorrin e negociar uns documentos que Cosme de Torres precisava. Depois de todos aqueles dias de tragédia, a estadia de quatro meses em Bungo, no trabalho exigente mas espiritualmente remunera-dor do seu hospital, deve ter sido para Almeida um bom reconstituinte.

Em Abril, depois dos dias da Semana Santa, vol-tou ao caminho. Desta vez chamava-o a voz de um companheiro doente: em Kawashiri, porto próximo de Takase, estava a morrer, esgotado pelo trabalho, o bom Duarte da Silva. É algo que não admite demora, e Almeida caminha cinco dias debaixo de chuva até chegar junto do doente. Cuida dele o melhor que pode e, logo que o tempo melhora, embarca com ele até Ta-kase, onde continuava Cosme de Torres. Ali, poucos dias depois, confortado com os Sacramentos, morreu Duarte da Silva, o primeiro missionário que entregava o seu corpo à terra japonesa. Almeida chorou esse fiel companheiro dos dias de Bungo e fez dele um grande elogio: “El hermano más fervoroso que nunca vi”.

Uns dias mais tarde, Almeida sai para Arima, onde negoceia uma autorização que imprime nova marcha aos acontecimentos: Torres pode ir estabele-cer-se em Kuchinotsu. Almeida acompanha-o. Até en-tão, nenhum outro missionário tinha actuado ali; por isso, era grande a sua expectativa por ver que impres-são causavam em Torres os seus cristãos. Com legítima alegria, comenta o resultado: “Muito satisfeito ficou o padre da christandade do reino de Arima, porque ate entao nao avia comunicado meudamente con ella”.

Passaram lá juntos os meses de Verão mas, mal diminuiu o calor, Torres enviou Almeida para que, de-pois de recolher o Padre Fróis em Hirado, seguissem para Kyoto. Fróis devia ficar ali para ajudar o Padre Vilela; Almeida voltaria a Kuchinotsu para informar Torres do progresso da Igreja no Japão central.

Numa destas viagens em “zig-zag”, tão típicas dele, Almeida sai de Kuchinotsu em Setembro. Pen-sava ir a Bungo mas, ao chegar a Takase, desvia-se e, depois de visitar todas as comunidades cristãs entre esta cidade e Hirado, só chega após um mês de duro ca-minhar.36

Em Hirado deteve-se uns dezoito dias e, já na companhia de Fróis, empreendeu a viagem até Bungo passando outra vez por Kuchinotsu. Aqui, permanece-ram uma noite, não para descansar mas para uma ani-mada conversa, pois era a primeira vez que Torres via Fróis depois da destruição de Yokoseura. Em Hirado também o horizonte se apresentava claro; uma aura de optimismo corria pela missão japonesa.

Os viajantes detêm-se depois em Shimabara, onde vivem três dias de intenso apostolado. Nos fins de Novembro, entram em Funai. Aqui, permanecem um mês à espera de transporte. Por fim, a 26 de Dezem-bro, embarcam rumo a Kyoto.

1565 - NO JAPÃO CENTRAL37

O Inverno já tinha terminado. Os dois viajantes, à mercê dos proprietários dos pequenos barcos, iam de um porto a outro ou esgotavam-se em longas esperas. Segundo Almeida, empregaram no percurso quarenta dias; porém, como temos as datas certas da partida de Funai e da chegada a Sakai, 27 de Janeiro, o cálculo de Almeida resulta um tanto folgado. Mas não é de estra-nhar que a viagem lhe parecesse tão longa.

O capitão do primeiro barco em que embarcaram decidiu fazer escala no porto de Horie, na costa de Shi-koku. Depois deste desvio da rota habitual, atraves-sam diagonalmente o Mar Interior até ao porto de Shiaku. Aqui, permanecem vários dias à espera de em-barcação. Vêm depois os habituais sobressaltos, ante a proximidade dos piratas que infestavam as ilhas e en-seadas do “mediterrâneo japonês”. Finalmente, che-gam a Sakai no dia seguinte a um grande incêndio.

Aí se separam: Fróis vai a Kyoto e Almeida fica em Sakai, para "negocear alguas cousas". Mas a dura viagem e, sobretudo, o intenso frio, ao qual não estava habituado, abalaram a sua saúde: “Mais foi o Senhor servido como vinha tudo cortado dos grandes frios do caminho, que me dessem pontadas polo corpo e gran-des dores e forao tan grandes que cuidei acabar con el-las”. 38

Um fervoroso cristão trata dele na sua casa; mais de vinte dias dura a doença. Depois, enquanto recu-pera as forças necessárias para continuar o caminho, “determinei que ouvesse pregação pera alguas pessoas que desejavao de ouir”.

Durante os dias de convalescença, Almeida as-siste à cerimónia do chá, na qual aqueles ricos comer-ciantes de Sakai eram especialistas, e deixou-nos uma breve mas interessante descrição dessa cerimónia e de algumas das peças usadas. Almeida adianta-se, assim, um bom número de anos ao clássico tratado do seu compatriota, Padre João Rodrigues.39

Nessa altura, o Padre Vilela foi ao castelo de li-mori, e Almeida, que desejava uma entrevista com ele, decide empreender a viagem. Em limori estava um es-forçado cristão, Yuki Saemon no Jo, que envia o seu fi-lho para que escolte Almeida. O encontro com Vilela, aquele forte missionário que se manteve sozinho du-rante cinco anos na frente de Kyoto, foi de profunda satisfação para ambos. Durante alguns dias, Almeida acompanha Vilela. Juntos visitam Miyoshi Dono, en-tão no apogeu do seu poder. Vão também à ilha de Sanga, onde conhece D. Sancho Sanga, “hum christao de maior fe que eu tenho visto em Japao”.

De Sanga, levam-no em cadeira de mão a Kyoto, onde volta a reunir-se com Fróis; aqui, a sua mal cu-rada doença agrava-se e tem que ficar de cama durante dois meses. Por fim, já em plena Primavera, recobra as forças e pode levar a cabo a missão encomendada pelo Padre Torres.

Mas, antes de sair de Kyoto, os cristãos desta ci-dade, orgulhosos dos seus tesouros artísticos, levam--no a visitar os templos mais famosos. Luís Fróis dei-xou, desta visita, magníficas descrições. Não é menos pormenorizada e viva a relação que Almeida faz dos templos e palácios de Nara, a antiga capital, que é a pri-meira escala do seu percurso.

Os palácios de Dajondono, os templos Kofuki-ji, Kasuga, Hachiman, o colossal Daibutso, todo o as-pecto da cidade entra numa narração que dá crédito aos dotes literários de Almeida, à sua sensibilidade ar-tística, à exactidão histórica das suas observações. É um novo aspecto do seu carácter que se harmoniza com os outros que já conhecemos e os enriquece.

Há, em toda a sua narração, uma sensação de equilíbrio, a "mesura" dos clásicos, que em Almeida não é fruto de uma longa carreira literária, mas reflexo da paz da sua alma e do seu autêntico humanismo. Por meio desse escrito manifesta-se-nos a personalidade de Almeida, com as suas qualidades humanas, e compre-endemos como podia com facilidade ganhar a vontade daqueles com quem tratava.

De Nara continua para Tochi e, daqui, para Sawa, onde conhece Dario Takayama, do qual faz um magnífico elogio. Em cada um desses lugares a sua es-tadia é breve, mas sempre frutuosa: instrui, baptiza, negoceia assuntos difíceis. Nos corações de todos deixa profunda marca: “Como vi tempo, me despedí dos christaos com nao pequena saudade de todos”.40

Em meados de Maio já está de volta a Sakai, onde embarca depois de intensas jornadas.41 Desta vez a travessia é rápida: só treze dias até Bungo. Já em plena forma, sem ter o mínimo descanso, empreende o trabalho. Consegue, em Usuki, entre o castelo e o mar, um novo terreno para a igreja, vai a Shimabara, visita os seus cristãos e segue até Kuchinotsu, onde dá contas a Torres.

A nau de D. João Pereira chegava em Julho ao porto de Fukuda,42 à entrada da baía de Nagasaki, e Almeida vai visitar os portugueses da nau. Uma vez ali, tem ocasião para ir a Omura, onde encontra doente a filha do dáimio. Almeida consegue devolver-lhe a saú-de. Era o primeiro encontro de Almeida e Omura Su-mitada, depois da destruição de Yokoseura; a cura da menina veio juntar nova alegria à reunião dos velhos amigos.

Mas, entretanto, chegam-lhe notícias de que o Padre Torres está doente em Kuchinotsu. Almeida corre para junto dele. Quando Torres se restabelece, marcha outra vez para Usuki, para dirigir a construção de uma igreja no terreno conseguido meses antes.

Em Outubro, encontramo-lo outra vez em Fu-nai, para se despedir da nau de Pereira. Quando as am-plas velas marcadas com a cruz vermelha se perdem no horizonte, Almeida embarca também rumo a Kuchi-notsu, onde, ao lado de Torres, passa os últimos dias desse ano de 1565, tão intensamente vivido. Nesses dias, prepara-se para outra arriscada empresa.

1566 - AS ILHAS DE GOTOO43

Um forte temporal de neve atrasou uns dias a via-gem, mas, a 13 de Janeiro, Almeida estava já embarca-do. Para esta viagem levava um magnífico companhei-ro, o Irmão Lourenço, o antigo trovador baptizado por Xavier e admitido na Companhia de Jesus por Cosme de Torres. Desta vez, o destino dos dois missionários era Ochika (hoje, Fukue), a capital das ilhas de Gotoo.

A estadia de Almeida em Gotoo durará até mea-dos de Maio. Nesses cinco meses terá que enfrentar al-gumas das maiores dificuldades da sua vida. A sua ac-ção realiza-se numa área relativamente pequena, entre Ochika e Okuura. As dificuldades crescem, são violen-tos os contrastes de tribulação e boa sorte; com fino tacto, superando os obstáculos, Almeida segue em frente.

Começa com a paragem forçada das festas de Ano Novo, durante as quais o acomete de novo a doen-ça: “muitas pontadas pelo corpo, e dor de estomago, de maneira que tudo vomitaua”. Vêm depois os pri-meiros visitantes, o êxito inicial, o favor do dáimio, a esperança de uma pronta conversão em massa…

Nesse momento, o dáimio Gotoo Sumisada cai gravemente doente. Atribuem a causa ao apoio dado aos missionários, e estes encontram-se de repente no mais completo isolamento, caídos em desgraça. Al-meida dá-se conta da situação perigosa em que se en-contra: “En verdad que me espanto como nos nao ma-tarao, segundo estavao irados contra nos”.

Esta súbita mudança causa-lhe um momento de perturbação interior. Supera a prova tranquilamente, acudindo à oração: “En nao achei repouso ate que nao fui ter con lesu, pera le rogar que nao permitisse que meus pecados estorvassem tanto bem e fossem causa de tanto mal. Depois de lhe pedir com o intimo de min-ha alma a saude espiritual e corporal del Rei, me deu o Senhor hua grande consolaçao… ”

Almeida pede que lhe permitam visitar, como médico, o doente e, como o estado deste se agravava cada vez mais, a visita é concedida. Em nenhuma outra ocasião nos relata Almeida a sua actuação com tanto pormenor: a emoção interior de ir curar o doente, as reacções deste, os remédios que usa. É notável o valor com que este homem caído em desgraça pela predica-ção da sua fé, já desde a primeira visita fala ao dáimio doente sobre temas religiosos.

E quando o dáimio, para agradecer a saúde reco-brada, lhe envia um abundante presente com os melho-res alimentos que as ilhas proporcionavam, Almeida tem o fino rasgo psicológico de organizar um banquete para mostrar a alegria que sente pela saúde de Gotto Dono.

Embora, como ele próprio afirma, não costu-masse dar medicamentos às pessoas notáveis pelo grande perigo que podia haver, a sua estadia em Gotoo é uma completa excepção: não há pessoa na família do dáimio que não tenha que acudir a ele. Além de curar o dáimio em mais duas ocasiões, devolve a saúde a uma tia deste, a seu filho, a uma filha, a um sobrinho, a um irmão… Cada doença é um passo atrás na evangeliza-ção, cada cura um reactivar novamente de relações.

Não podemos passar por alto o suave humorismo que transborda na relação. Ao descrever as visitas ao ilustre doente, escreve: “Me pus eu como de pontifi-cal… ”; “lhe tomei o pulso con toda a cerimonia que el-les ca costumao… ”; “lhe mandei tres pirolas muito ben douradas de hua mezinha mui suave… ”

Almeida não fala só de si; sabe estimar a actua-ção dos seus companheiros. O elogio que faz da actua-ção do Irmão Lourenço durante a sua primeira visita ao dáimio, merece ser transcrito na íntegra:

“Dizer a audacia, graça e soltura de fala, e aquel-las razoes tao clarissimas pera lhes provar hum Cria-dor, causa de todas as cousas, e desfacerle seus deoses provandolhe con muitas razoes como os nao podiao ajudar nesta vida nem na outra, certo que me alembrou aquelle bemaventurado Apostolo; basta que eu fiquei maravilhado, nao do que dizia, que he cousa que conti-nuamente ca praticamos, senao da graça e claridade con que lhe daua a comer tudo e da arte com que os ataua a nao poderem deixar de confessar o que lhes de-cia, e para mais claridade faziase elle gentio e argumen-taba contra suas mesmas razoes, e depois tornaua a de-satar as duvidas con tanta clareza que todos ficarao acabada a pregazao (que duraria tres horas) atonitos ”.

A comunidade cristã de Gotoo vai criando raí-zes. Contra ela se conjuram inúmeras adversidades: doença, um grande incêndio, uma ameaça de guerra com Hirado… Quando tudo isto passa, a saúde de Al-meida volta a falhar. Cosme de Torres é informado e ordena-lhe o regresso a Kuchinotsu. Deixando a comu-nidade nas mãos do Irmão Lourenço, Almeida empre-ende o caminho, fazendo escala em Fukuda.

Na paz de Kuchinotsu, ao lado de Torres, está uns vinte dias doente. Nesse tempo planeiam a nova empresa: Shiki, nas ilhas de Amakusa.44

Agora, a travessia é breve, só umas horas, e o co-meço fácil: Shiki Dono tinha pedido missionários. A sua intenção não é recta, pois só deseja atrair ao seu porto o comércio português, mas, ao convidar os mis-sionários e ao pedir e receber o baptismo, abre a porta da fé aos seus súbditos. Quando faz marcha atrás e chega mesmo à perseguição, conseguirá algumas apos-tasias, mas não conseguirá arrancar a semente se-meada por Almeida. A igreja de Shiki será, daí em diante, uma importante cabeça de ponte, a porta por onde o Cristanismo penetrará em Amakusa.

Em Setembro, faz uma breve visita a Fukuda;45 em Outubro, encontramo-lo outra vez em Shiki. E, junto com a notícia de que, no princípio do Inverno, Torres o enviou a Usuki para que continuasse a cons-trução daquela igreja, termina a relação dos seus traba-lhos desse ano. Ano de intenso apostolado e grandes sofrimentos, que deixaram como fruto a fundação de duas novas comunidades cristãs. Torres, o impulsor e guia de Almeida, resumia em carta enviada a Roma, no seu estilo lacónico:

“Al hermano Luys de Almeida embié este año a dos reynos y en ambos hizo muchos cristianos; en uno de ellos dexó um japón que ha muchos anos que está en nuestra Compañia, grande intérprete y muy virtuoso y entiende muy bien las cosas de Dios. En el otro lugar dei cual el mismo señor se hizo cristiano, deió un her-mano que se llama Arias Sanchez. Todos estos reinos estãn muy apartados”.46

1567 - A FUNDAÇÃO DA IGREJA DE NAGASAKI47

Do acontecimento mais importante destes dois anos, ficam apenas duas alusões deixadas cair por aca-so.'A primeira e mais clara encontramo-la na carta do Irmão Miguel Vaz: “O anno passado mandou o Padre Cosme de Torres ao irmao Luis Dalmeida a Nangaça-qui, o senhor do qual, vasallo de dom Bertolameu ja era christao, onde o irmao fez muitos christaos”.48

Assim, como uma pequena notícia mais, entra Nagasaki na história cristã. Também nesta empresa en-contramos unidos os nomes de Torres e Almeida. Este último informa-nos, por sua vez, da entrada em Naga-saki, ainda que guarde a incógnita:

“Em Nangasaqui que he hua terra de hum vasallo de Dom Bertolameu, se fez este inverno por meio de huns irmaos, que ali forao por diversas vezes, muito serviço a nosso Senhor; porque se converterao a nossa Santa Fe todos os honrados della con obra de quinhen-tos do povo; perse verao em sua vocaçao com muito exemplo de vida, e inteireza de costumes; perto deste estao outros lugares mais pequenos, onde ha muitos christaos que acodem a igreja de Nangasaqui”.49

O trabalho parece ter sido realizado durante uma série de visitas no Inverno de 1567-1568. Era trabalho em terra preparada, pois Bernardo Nagasaki Jinza- emon já era baptizado; recebeu o baptismo, provavel-mente, em Yokoseura, talvez um dos vinte cavaleiros baptizados com Omura Sumitada, naquela inesquecí-vel jornada em começos de Junho de 1563.

Como Almeida fala no plural, podemos supor que Ayres Sanchez ou Miguel Vaz o ajudaram na em-presa. Depois, em 1569, irá o Padre Vilela, que levan-tará a Igreja de Todos-os-Santos e completará a con-versão dos habitantes de Nagasaki; mas é a Almeida que corresponde a glória da fundação dessa igreja, que será cabeça da comunidade cristã no Japão.50

Embora o lugar onde se levantou a Igreja de To-dos-os-Santos fosse mais tarde cedido ao Padre Vilela, Almeida residiria provavelmente em algum lugar per-to, nas casas que rodeavam a residência de Nagasaki Jinzaemon, nos actuais bairros de Fufugawa Machi e Sakurababa Machi.

O resto desse ano empregou-o Almeida entre as igrejas de Kuchinotsu e Shiki. Em Julho, o Padre Tor-res, aproveitando a chegada de novos missionários, convocou uma Consulta em Shiki. Assistiram os Pa-dres Figueiredo, Costa, Vilela, Vallareggio e Torres e os Irmãos Vaz e Almeida. Estiveram duas semanas reunidos e depois partiram aos seus novos destinos.

Almeida volta a Kuchinotsu, onde, pouco de-pois, adoece gravemente. É agora Cosme de Torres quem acode a cuidá-lo.

A doença foi providencial para Torres, pois deu--lhe um pretexto para sair de Shiki, onde o "tono" o queria reter. Uma vez que Almeida ficou fora de peri-go, Torres seguiu por Nagasaki até Omura.

1569-AMAKUSA51

Era uma conquista já há muito tempo planeada. Almeida, que, no princípio do ano, esteve a trabalhar em Shiki, dedica-se-lhe desde 23 de Fevereiro até 17 de Agosto. A acção desenvolve-se em Kawachinoura (hoje, Ichoda), onde residia o senhor da região Ama-kusa Naotane.

O trabalho segue um guião já conhecido. Al-meida ganha a amizade de Amakusa Dono e, para co-meçar, apresenta-lhe um programa de cinco pontos: primeiro, que os senhores das fortalezas (nas mãos dos quais estava grande parte do governo de Amakusa) as-sinem um documento em que digam não ter dificul-dade em que se pregue o Cristianismo; segundo, que o "tono" pessoalmente ouça durante oito dias a explica-ção da doutrina, para saber se é ou não conveniente aos seus vassalos; terceiro, que, se essa doutrina lhe pare-cer bem, faça cristão um dos seus filhos, para ser o apoio dos que venham a converter-se; quarto, que con-ceda no lugar da sua residência um sítio para levantar uma igreja; quinto, uma autorização geral para que, em todo o território entre Kawachinoura e Shiki, os ha-bitantes possam abraçar livremente a religião cristã.

Com esse programa aprovado, Almeida, que até então residia no vizinho porto de Sakitsu, inicia o tra-balho e cedo começavam os baptismos. O primeiro a entrar na igreja, seguido de toda a família, foi o princi-pal regedor de Amakusa, a quem Almeida deu o nome de Leão. "Estava a terra toda mexida e não havia quem não desejasse fazer-se cristão", escrevia Almeida, não sem exagerar. Sem dúvida, estava-se a referir ao povo simples, pois quase ao mesmo tempo surgiu o contra--ataque dos elementos hostis, e com tanta força que, primeiro D. Leão, depois Almeida e por último dois auxiliares que ficaram no seu lugar, tiveram que se reti-rar.

A retirada não é uma fuga, é só uma pausa: a se-mente caiu em boa terra e Almeida sabe que, a seu tempo, germinará.

Enquanto esse tempo chega, dirije-se a Omura para receber ordens. O seu caminhar nos meses que se seguem está condicionado em parte pelo andamento dos acontecimentos políticos de Bungo. Otomo Soorin está, com o seu exército, acampado em Hita. Um pouco mais a norte, espreitando as costas de Honshu, está Teruhiro Tarazaemon, um aliado de Otomo que aspira ao título de dáimio de Yamaguchi. Outros se-nhores estão também armados. São momentos difíceis; não é muito seguro caminhar de um acampamento para outro, pois no caminho é fácil encontrar um samu-rai com desejos de experimentar o fio da sua espada.

Mas Almeida sabe que, na ociosidade da vida de acampamento, tem uma ocasião única para fazer che-gar a sua mensagem a muitos dos principais samurais. Por isso, lançando sementes que depois voltará a culti-var em tempo de paz, vai do acampamento de Otomo ao de Teruhiro, e deste ao de Akitsuki.52

O Natal é um descanso na casa de Bungo.

1570 - MUDANÇA DE CHEFE; PROSSEGUE O CAMINHANTE53

Apenas passadas as festas do Natal, Almeida re-começa a ronda pelos acampamentos cobertos de neve: Hita, Akitsuki, Takase. Deste porto até Shima-bara, a travessia era um passeio conhecido. Não obs-tante, desta vez Almeida está a ponto de terminar as suas aventuras nas frias águas do Ariake Kai. No meio do caminho o seu barco cai em mãos de piratas, que os despojam até da roupa interior, deixando-os à mercê das ondas, sem velas nem remos.

Passam a noite agrupados sob uma velha esteira, a tremer de frio. No dia seguinte, uns pescadores reco-lhem-nos e levam-nos à sua aldeia. Vestido com roupas emprestadas, Almeida volta a Takase e, com a sua te-nacidade habitual, nessa mesma noite embarca de novo. Desta vez, a travessia termina sem percalços em Kuchinotsu, onde as festas da Ressurreição o consolam dos sofrimentos passados.

A sua rota da Primavera vai por Omura e Naga-saki ao acampamento de Otomo, e daí ao de Akitsu. As suas visitas a Otomo eram como mensageiro de Torres, que pedia que não invadisse com o seu exército nem terras de Omura nem de Arima. Torres retirou-se para Nagasaki depois de festa da Ressurreição e, em-bora no princípio pensasse deixar Almeida no seu lugar em Omura, passados uns dias chamou-o a Nagasaki e dali enviou-o numa missão diplomática, que Almeida realizou com êxito.

Enquanto Torres jazia gravemente doente em Nagasaki, Almeida, no princípio do Verão, visitava os cristãos de Hirado. Aí recebeu a notícia da chegada a Shiki do novo Superior, Padre Francisco Cabral, e a convocatória para uma reunião de todos os missioná-rios.

A reunião teve lugar em Shiki, nos princípios de Agosto; Torres, algo recomposto da sua doença, acu-diu também para entregar o comando. Essa reunião proporcionou a Almeida os últimos dias de convivên-cia com Torres. Ao encerrar a Consulta, o novo Supe-rior, que desejava percorrer todo o território a seu car-go, tomou como companheiro o Irmão Almeida. Cer-tamente, ninguém melhor para orientá-lo que o homem que abriu a maior parte dos sulcos.

O seu percurso é formado por dois circuitos: um menor, que parte de Shiki e vai por Kabashima, Fu-kuda e Nagasaki a Omura e Suzuta, para terminar em Kuchinotsu, e outro mais amplo que, desde Kuchinot-su, sobe pelos acampamentos de Otomo e Akitsuki a Hakata e, daí, a Hirado. De Hirado, Almeida escreve que estão à espera de barco para passar a Gotoo. Nada sabemos desta sua segunda visita às ilhas, onde Gotoo Sumitaka, filho do dáimio, já era cristão. O percurso termina com o ano, nas ilhas de Amakusa.

Enquanto Almeida acompanha Cabral na sua vi-sita aos acampamentos, morre em Shiki o Padre Cosme de Torres, a 2 de Outubro de 1570. Não sabe-mos onde receberia a notícia. Provavelmente em Hira-do. Em nenhuma das suas cartas encontramos alusão ao facto mas, sem dúvida, aquela perda foi muito sen-tida por ele.54

1571 - GERMINA A SEMENTE EM AMAKUSA55

É uma lástima não possuirmos a relação de Al-meida sobre os trabalhos apostólicos que levaram à conversão de Amakusa. Temos de nos apoiar no relato de Cabral, e este, ainda inexperiente e desconhecedor da língua, só nos apresenta uma visão esquemática dos factos.

Começaram por Hondo, “que he de hum senhor seu vasallo, onde nos elle (Amakusa Dono) estava es-perando”. O começo é favorável. São agasalhados com todas as honras, começam as pregações com a assistên-cia de Amakusa Dono e dos principais cavaleiros de Hondo.

Mas, quando parecia que iam começar os baptis-mos, a intervenção de Shiki Dono que, embora bapti-zado, era contrário à evangelização, paraliza tudo. Ca-bral está a ponto de dar por terminada a empresa e abandonar Amakusa. Não obstante, “por nao virmos em balde”, decidem experimentar a sorte em “outra fortaleza deste senhor, que era aonde elle residia conti-nuamente”, ou seja, em Kawachinoura.

Também aqui se faz notar a influência de Shiki Dono. Os missionários vêem o tempo passar sem que a sua obra progrida sensivelmente. A relação de Cabral é demasiado simplista: “e depois de ahi estarmos dous ou tres meses sem fazermos nada… aprouve a nosso Senhor que cuando mais descuidados estavamos, de-pois de passados muitos frios e travalhos, se veo o Tono a fazer christao con quasi os mais da fortaleza e outros, e apos isto se fizerao chirstaos muitos lugares”.

Esta conversão repentina, sem causa aparente, fica explicada com a presença de Almeida. Cabral cita--o unicamente no começo da carta, mas naturalmente o trabalho de evangelização recairia sobre ele: nesses meses "sem fazer nada ", com o seu habitual tacto e ha-bilidade, iria preparando o terreno, realizando amiza-des, instruindo em conversações privadas. Chegado o dia oportuno, Cabral derrama a água baptismal sobre a cabeça de Amakusa Dono, que desde esse momento se chamará D. Miguel.

Ao mesmo tempo foi baptizado um dos filhos de D. Miguel, um jovem de 18 anos. Essa conversão arras-tou com ela uma grande luta, pois a esposa de D. Mi-guel permaneceu à margem do movimento de conver-sões e pressionou o seu filho para que abandonasse a fé recém-recebida. O jovem manteve-se firme, e o movi-mento de conversões estendeu-se também à cidade de Hondo.

1572-1575 - ANOS DE SILÊNCIO

De repente, cessam as notícias sobre Almeida. Provavelmente, perderam-se não poucas cartas, mas as notícias são também escassas no que respeita ao tra-balho dos outros missionários e na História do Padre Fróis nota-se o mesmo vazio

Mas o caso de Almeida é especial: nem uma só vez encontramos o seu nome nos documentos que tra-tam destes três anos, o que nos impossibilita de seguir os seus passos. Parece mais natural que continuasse o seu trabalho por terras de Amakusa e Arima, como fará nos anos seguintes. Quando o seu nome volta a aparecer, em 1575, está em Kuchinotsu, onde atende Amakusa enquanto prepara a conversão do domínio da Arima.

O seu campo de trabalho ficou reduzido. Será isto devido ao seu mau estado de saúde, ou a uma mu-dança de direcção do novo Superior? Ambas as coisas poderiam ter influído. O número de missionários au-mentara e já não eram necessárias as contínuas deslo-cações dos anos anteriores. O Padre Cabral podia via-jar com mais facilidade que o Padre Torres e gostava de se encarregar pessoalmente das empresas. Também é certo que as forças de Almeida se iam abatendo; daí em diante faz-se frequente alusão a isto nas cartas dos ou-tros missionários.

Mas, apesar de tudo, nesta última parte da sua vida, Almeida terá a consolação de recolher com abun-dância o fruto dos seus trabalhos. E, ao mesmo tempo, experimentará duramente a prova dos fracassos e das perseguições.

1575-1577 - APÓSTOLO DE ARIMA56

Em Bungo aconteceu um facto de grande trans-cendência (1575): o segundo filho de Otomo Soorin, Chikaie, recebeu o baptismo. O acontecimento teve grande repercussão mesmo fora de Bungo. Um dos que reagiram mais rapidamente foi o dáimio de Arima, Yoshinao. Primeiro, a conversão do seu irmão Sumi-tada e, depois, o paciente trabalho de Almeida, tinham preparado o terreno. Rompe então com as últimas difi-culdades e chama Almeida para lhe manifestar que de-seja receber o baptismo.

Almeida, desta vez, não se fez rogar: a 8 de Abril de 1576, Domingo da Paixão, baptizou Arima Yoshi-nao, a quem deu o nome de André. O baptismo do dái-mio rompeu o dique e Almeida enfrentou sozinho a avalanche de conversões.

Estas vinham-se realizando pouco a pouco, como podemos ver pela carta que Almeida escreveu em Ja-neiro de 1576. No ano anterior tinha construído, perto de Arima, uma formosa igreja e nela baptizou alguns pequenos grupos. Mas agora era algo diferente: desde o baptismo de Arima Yoshinao até a chegada do Padre Afonso Gonçalves, em 23 de Junho, baptizou uns oito mil naquela região. Com a ajuda do Padre Gonçalves, o trabalho continou ainda durante algum tempo com o mesmo ritmo. Escreve o recém-chegado: “Ao segundo dia que cheguei, que foi dia do glorioso Bautista, bauti-zei duzentas almas, e dalí a poucos dias bautizei mil e cento, e en outro bautismo mil e duzentas… e agora imos fazendo este reino de Arima todo christao, e se-rao bautizadas mais de quince mil almas”.

Ao trabalho de instruir e baptizar acrescentou-se o de adaptar, como igreja e casa dos missionários, o novo local cedido por D. André, na sua residência de Kita-Arima. Gonçalves encerra a carta com um co-mentário que, em primeiro lugar, temos que aplicar ao seu companheiro Almeida: “Hua das cousas que ca muito me consolou he achar tanta virtude em nossos padres e irmaos, que certo me dao esporas con sua vir-tude e recolhimento entre tantas ocupaçoes”.

A esplêndida colheita de Arima parece "que não bastava ao zelo de Almeida, pois as cartas dos seus companheiros dizem-nos que, nesse tempo, ia "por ve-zes"a Amakusa, onde também se apresentava trans-bordante o movimento de conversões e onde recebeu o baptismo o primogénito do dáimio D. Miguel, que re-cebeu o nome de João.

Em finais desse ano de 1576 já se começa a anun-ciar outra expedição de Almeida à região de Kagoshi-ma. Havia indícios de que se tornava favorável o am-biente e deviam ter pensado nele, pois o Irmão Miguel Vaz anunciava a sua ida como algo imediato: “Agora se abren duas portas donde se espera grande conver-sao, hua polo reino de Satcuma, pera onde se ha de partir cedo o irmao Luis de Almeida… ”

A viagem, não obstante, atrasou-se. Durante a maior parte de 1577, Almeida continuou o seu trabalho em Arima e, em seu lugar, o Irmão Vaz foi a Kagoshi-ma. A viagem de Vaz parece que foi só exploratória. Achou que os indícios eram bons e voltou para infor-mar o Padre Cabral. Este enviou Almeida com o Padre Baltazar López. Não sabemos o tempo que ali perma-neceu este último; Almeida perseverou mais de um ano em situação difícil, progredindo no seu trabalho muito lentamente.

1578-1579 - OUTRA VEZ SOB A CRUZ57

Depois das jornadas triunfais de Arima, esse tra-balho de Kagoshima, rodeado por um ambiente hostil, devia ter pesado duramente nele. À sua solidão deve ter-se juntado um sentimento de desolação quando lhe chegou a notícia da prematura morte de D. André de Arima e da perseguição desencadeada pelo seu suces-sor.

Mas Almeida estava empenhado. Nem sequer quando cai novamente doente inicia a retirada: teve de receber uma ordem de Cabral para sair de Kagoshima. E, de repente, Almeida encontra-se num mundo dife-rente.

Estava agora em Bungo, onde poucos dias antes se tinha baptizado por fim o seu velho amigo e protec-tor, o dáimio D. Francisco Otomo Soorin. Com o fer-vor neófito, e apesar dos seus anos, Otomo planeava uma magnífica empresa.

Tratava-se da reconquista do reino de Hyuga, in-vadido pelo exército de Shimazu. A vitória parecia se-gura e Otomo, que tinha cedido o governo ao seu inepto filho Yoshimune, pensava tomar conta de Hyuga para fazer ali uma espécie de "Cidade de Deus", uma comunidade cristã piloto que servisse de modelo para posteriores planos, e cuja fama chegasse até à longínqua Roma.

Sem tempo para recompor-se, Almeida encon-tra-se vinculado à empresa. Otomo pede que o acom-panhe, embora seja só pela amizade que os une. E o Padre Cabral, que vai como capelão do dáimio, não pode negar-se.

Tudo parece uma marcha triunfal: o inimigo re-trocede; parte das suas forças estão cercadas. En-quanto chega a vitória definitiva, Otomo Soorin acampa na região de Tsuchimochi (hoje, Nobeoka) e sonha com a sua "utopia". Almeida continua doente.

De repente, a meados de Dezembro, sucede o imprevisto: um descuido do exército de Otomo, uma derrota inicial, espalha-se o pânico, e a retirada tem to-das as características de uma fuga. Cabral manda a toda a pressa buscar Almeida, que estava num lugar algo retirado. Como nem para andar tem forças, pro-porcionam-lhe um cavalo. Uma marcha penosa entre mil perigos leva os missionários até Usuki, mas mesmo aqui o refúgio é muito relativo.

Levanta-se o boato de que a tremenda derrota é devida ao abandono dos antigos deuses e ao baptismo do dáimio. Teme-se uma revolução dentro de Bungo e o próprio Otomo Soorin prepara-se como se tivesse chegado a sua última hora.

Nesse ambiente passa o Natal e entra o novo ano.

1579-1580 - ATÉ AO ALTAR58

O ano que começava com tão maus auspícios, guardava uma grande surpresa para Almeida. Uma rota luminosa ia abrir-se inesperadamente diante da-quele homem doente, consumido pelo trabalho. A mu-dança, como muitos outros acontecimentos daquele ano de 1579, foi decidida pela chegada da nau de Leo-nel de Faria ao porto de Kuchinotsu. Nesta nau arri-bava ao Japão, pela primeira vez, o Visitador Alejan-dro Valignano.

Pouco sabemos das actividades de Almeida nos primeiros meses do ano. A convalescença da doença deve ter sido longa. Também não sabemos quando se encontrou pela primeira vez com Valignano, mas de-paramos com a notícia de que este, ante a escassez de sacerdotes para atender os novos cristãos de Arima e Amakusa, decidiu enviar a Macau, para que se orde-nassem sacerdotes, quatro dos irmãos que na altura trabalhavam no Japão. Dois eram jovens, Francisco Laguna e Francisco Carrién, mas os outros dois eram veteranos que talvez nem tivessem sonhado com a pos-sibilidade do sacerdócio, Miguel Vaze Luís de Almei-da.

No Outono, a mesma nau de Leonel de Faria que trouxe o Visitador partia, levando os futuros sacer-dotes. O antigo comerciante de Malaca e Lampacau desembarcava agora no Porto Interior de Macau, a sede do comércio português no Extremo Oriente. Passavam vinte e quatro anos desde que deixara pela última vez as costas da China na carraca de Duarte da Gama.

Voltava doente, apenas uma sombra do que fora. Já não era dono daquele capital que antigamente inves-tia em sedas da China, mas nenhum outro mercador ti-nha levado das costas japonesas uma ambição tão limpa e valiosa. As comunidades cristãs fundadas por ele formavam uma longa lista, e somavam milhares os que dele receberam o baptismo.

Enquanto lentamente subia as escadas, que do molhe levavam à Igreja de Santo António, o seu cora-ção devia transbordar de alegria e gratidão.

Agora, por uma especial providência de Deus, a sua vida ia coroar-se esplêndidamente com o sacerdó-cio.59

Pouco depois, ajoelhava-se perante o santo Bispo de Macau, Monsenhor Melchior Carneiro, a quem em diversas ocasiões tinha escrito contando-lhe os seus trabalhos apostólicos.60

Mas, quando o Bispo soube a razão da presença em Macau daqueles quatro missionários do Japão, uma viva contrariedade se manifestou no seu rosto. Em Macau não havia Santos Óleos para a ordenação sacerdotal. Quanto a consagrar novos Óleos, a falta de clero impedia-o, segundo a estrita interpretação da le-gislação eclesiástica, de realizar a cerimónia. Esperar--se que os Óleos chegassem de Malaca, isso supunha uma tal perda de tempo que era preferível que os qua-tro voltassem ao Japão na Primavera seguinte.

Seguem-se uns dias de incerteza e angústia. Caem por terra aqueles sonhos e ideais que floresce-ram na sua alma sem que ele os procurasse. Para Al-meida, sobretudo, pelo seu estado de saúde e a sua ida-de, não parecia haver remédio.

A prova termina tão súbitamente como tinha co-meçado: um grupo de franciscanos, que chegou a Ma-cau procedente da Nova Espanha, trazia os Santos Óleos.

Não sabemos a data exacta; provavelmente nos primeiros meses de 1580, Luís de Almeida e os seus três companheiros foram ordenados sacerdotes.61 A igreja seria a de Santo António ou a de São Lázaro, que naquela altura servia como catedral.

Em Maio ou Junho empreenderam o regresso ao Japão, na nau de D. Miguel da Gama. Em Julho já pi-savam novamente terra japonesa no porto de Nagasa-ki. Sob a acertada direcção de Valignano, a Igreja no Japão estava-se a reorganizar. Novas fornadas de mis-sionários tomavam parte no trabalho. Almeida corre até ao posto que lhe atribuíram entre os cristãos de Amakusa. A 25 de Agosto já o encontramos ali.

1581-1583 - ÚLTIMAS ETAPAS62

Amakusa era já terra cristã. O campo onde o Pa-dre Almeida começava a actuar como sacerdote, cele-brando a Santa Missa e administrando os Sacramentos aos numerosos fiéis, era muito diferente daquele que teve de abandonar a 17 de Agosto de 1569.

Além disso, não se trata só da sua responsabili-dade como sacerdote: Valignano nomeia-o Superior do distrito de Amakusa, confiando-lhe todas as suas igrejas e missionários que nelas residiam. Como Supe-rior de Amakusa, toma parte na Consulta de Nagasaki de Dezembro de 1581, que tanta transcendência teve no desenvolvimento da comunidade cristã japonesa. Um dos temas estudados foi a conveniência de aceitar a doação do porto de Nagasaki, que Omura Sumitada queria ceder à Companhia de Jesus.

Era uma experiência nova para Almeida, que du-rante tantos anos e com tão abnegada humildade se consagrou ao serviço dos seus irmãos, e que tão gene-rosamente havia praticado a obediência. A Consulta termina na véspera do Natal. Almeida volta ao seu ter-ritório de Amakusa; reside umas vezes em Kutama, outras em Kawachinoura.

Em finais de Julho de 1582 encontramo-lo, mé-dico e sacerdote, assistindo o dáimio D. Miguel de Amakusa, que morre antes de 4 de Agosto. O mori-bundo, seguindo um costume japonês, quis fazer doa-ção de umas armas novas à igreja; Almeida foi, prova-velmente, quem as recebeu das mãos do seu antigo dis-cípulo.

Tudo parecia pressagiar que Almeida, já sem sair de Amakusa, seguiria em pouco tempo D. Miguel; mas, de novo, recebe a habitual ordem de se pôr a ca-minho.

Valignano, depois de organizar a missão japone-sa, a qual ficava às ordens de um novo Superior, o Pa-dre Gaspar Coelho, dispunha-se a voltar a Macau, le-vando consigo os quatro jovens legados. E então re-cebe missivas de Kagoshima que parecem indicar no-vas possibilidades de trabalho naquele difícil campo. Valignano indica a Coelho que atenda essas petições, e Coelho decide enviar Almeida, apesar deste estar doente, “por ser conhecido do rei e aceite pelos gran-des”. 63

E Almeida, com a mesma simplicidade com que foi, em 1561, a pedido de Manoel de Mendoza, obe-dece sem vacilar. Arrastando o seu corpo débil, vai para a sua última expedição apostólica. Vai também para a sua última grande prova: o apostolado em Kago-shima apresentava maiores dificuldades que nunca; as guerras com Otomo e em Arima haviam modificado o ambiente.

Graças ao apoio de alguns nobres, que o favore-cem ante Shimazu, consegue estabelecer-se e vai avan-çando entre dificuldades. Mas os adversários são pode-rosos: quando descobrem quem é o intercessor de Al-meida, matam-no. O missionário fica completamente sozinho; ninguém se atreve a ajudá-lo nem a falar por ele ao dáimio. Por fim, vê-se obrigado a retirar-se.

Um ano mais tarde, ainda subsistia em Kagos-hima a casa do Padre Almeida. Era como um convite mudo a voltar, uma última chamada daquela terra pela qual tanto trabalhou e na qual tanto tinha sofrido. Mas as viagens de Almeida tinham terminado; em Outubro de 1583 empreendia a última delas. Era a época do ano em que costumavam zarpar do Japão as naus portugue-sas. Nessa altura, a ordem de se pôr em marcha vinha--lhe do próprio Deus. Almeida, como sempre, pôs-se a caminho sem vacilar.

Foi em Kawachinoura, a residência do dáimio que agora era D. João Amakusa Hisatane. Não sabe-mos pormenores da sua morte, nem sequer a data exac-ta, porque já não havia cronistas tão fiéis como ele. Mas, em compensação, possuímos o magnífico elogio que fez o Padre Luís Fróis na terceira parte da sua His-tória e vamos transcrevê-lo. Ninguém melhor do que Fróis, companheiro de Almeida em Yokoseura, Hi-rado e Kyoto, para encerrar estas linhas.

“O P. Luiz de Almeida havia ja 30 annos que es-tava na Companhia em Japao, e tinha quasi 60 de sua idade. Foi huma das pessoas de que Deos Nosso Se-nhor muito se servio nestas partes; e a elle se pode atri-buir a fundaçao da casa de Bungo, que depois foi colle-gio, e ainda das mais que naquelle tempo havia, porque elle as sostentava todas com a sua fazenda com que en-trou na Companhia, e com sua industria sostentou mui-tos annos os padres e os irmaos e as casas.

«Elle foi o que inventou fazer o Hospital em Bungo junto de nossa casa aonde se recolhian as crian-ças engietadas, filhos de gentios que por sua pobreza tem por melhor remedio matalos quando nascen. Elle curava sendo Irmao por suas maos todos os doentes de chagas e podridoes afistuladas, e de todas as enfermi-dades que alli pela fama concorriao, por ser cousa tao nova em Japao; e os remediava corporal e espiritual-mente, e tinha alli feita huma botica com tantos mate-riaes e mezinhas que mandara vir da China, que pera tudo se achava logo remedio em sua charidade. Elle foi sempre o primeiro descobridor das empresas, e novas missoes que se faziao a christiandades novas, e depois que nellas levava todos os trabalhos, perigos e difficul-tades, e deixava os tonos e pessoas principaes ja con-vertidas, entao entregava o processo de as cultivar aos otros, e tomava de novo outras novas e difficultozas empresas.

«Era en extremo aceito aos Senhores Japoes, as-sim christiaos como gentios, por estar bem instruido em seos costumes, e estranho modo de os conversar e adquirir, e parece nas cousas agiveis terlhe Deos N. Se- nhor comunicada particular graça e talento, pelo muito que suas obras erao aceitas a todos.

«Foi sempre pessoa de grande edificaçao, mui amigo da oraçao pronta e avida, e nao deixava passar as ocasioes em que se podia mortificar; ardia em dezei-jos de se propagar a ley de Deos; e edificou m uitas Igrejas; converteo Deos N. Senhor por elle muitos gentios; destruio grande numero de pagodes, en cujo lugar ale-vantava cruzes em diversas partes, e fez outras obras de tanta charídade e zelo que parece nunca sera posta em esquecimento nesta terra sua memoria e suas religiosas obras e bon exemplo derao sempre /.../havia seo nome de estar escrito no libro da vida; e dos grandes trabalhos que no fiel serviço e bem das almas tinha passado se forao com a idade suas infirmidades acumulando, e agora neste tempo estava recolhido em Amacuza, e pelo grande respeito e amor que os christaos lhe ti-nhan, e elle os tratava sempre como filhos, que tanto a custa de sua vida tinha curados em Christo, como se foi nelle agravando a infirmidade e estando ja propinque a morte, enchiase a pobre casa de christaos, e alhi lhe vi-nhan todos beijar os pes e chorar sobre elle, os quaes por ja nao poder falar consolava com alegre sembrante en seu vulto, de maneira que parecia levalos consigo ou tetos a todos metidos emvuas entranhas. Padeceo muitos grandes e continuas dores em sua infirmidade athe que o Senhor foi servido de o apozentar en seu Reino glorioso.

«Fizeraolhe os Padres hum solemne enterramento, de que os christaos grandemente se edificarao, por ser esta huma das couzas em que os japoes mais poem os olhos". 64

Como no caso do seu guia e mestre Cosme de Torres, nem a campa de Almeida nem o lugar exacto onde foi enterrado foram localizados.

BIBLIOGRAFIA

Não pretendemos aqui dar uma bibliografia com-pleta sobre Luís de Almeida, mas apenas completar e facilitar a leitura das notas.

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NOTAS

1 Para este parágrafo; Cartas, I, 23, Pedro de Alcáçova, Goa, 1554, Bourdon, Luís de Almeida; Ib. uma carta inéita, 186 ss; Fróis, História, 1,27; Ginnaro, I, P. 2a, 264; Okamoto, 340,505; Toyama, 108 ss; Nierenberg, I, 165; Edizawa, 42-43.

2 Cartas, I, 38 v.

3 Datada de 30 de Março de 1546; Bourdon, Luis de Almeida, 71-72.

4 Jap-Sin, Goa, 24,1, f. 125. A data do nascimento de Almeida de-duz-se da sua carta de 16 de Setembro de 1555.

5 Schurhammer, epist. Xav., I, 467-568, n° 13-16.

6 Ginnaro, I, 2a P., 264.

7 MHSI, Documenta Indica, I, 308-309; 382 ss; 394-395.

8 Teixeira identifica-os; Brou distingue-os. Dão o nome do capitão do Santa Cruz: Sebastião Gonçalves (História, 1,405,407); Souza (Oriente Conquistado, I, 627). Em História, II, 366, Gonçalves cita um terceiro Luís de Almeida, capitão de Damão; nas cartas de João de Castro, editadas por Elaine Sanceau, encontramos o capitão Luís de Almeida lutando já em 1546, quando o futuro missionário ainda não tinha saído de Portugal.

9 Bourdon inclina-se pela negativa: a nau de Duarte da Gama, diz, não foi ao Japão esse ano e, portanto, a data de Fróis está enganada (Luis de Almeida, 76). Okamoto, por sua vez, sustenta a viagem de Duarte da Gama, supondo que foi o seu barco que levou Gago e seus companheiros desde Lampacau a Kagoshima. O facto de que Almeida fosse de Hirado a Yamaguchi não supõe que a nau estivesse em Hirado; sabemos por outros meios que os portugueses visitavam o sítio onde estavam os missionários para se confessarrem com eles. Okamoto distingue bem, na viagem de Gago de Malaca a Bungo, três embarcações, como se depreende da carta de Alcáço-va: uma nau de Malaca a Lampacau; outra embarcação daqui a Kagoshima; um barco pequeno de Kagoshima a Bungo. Da mesma forma que Gago transbordou para ir a Bungo, pode tê-lo feito Luís de Almeida para ir a Hirado, onde o barco de Duarte (e talvez Almeida) tinha estado no ano de 1551.

10 As possibilidades de um encontro anterior fundamentam-se em ter convivido em Goa e na possível ida de Almeida a Hirado, em 1551, quando Torres estava lá.

11 Para este parágrafo: Cartas, I, 37, Melchior Nunez, Macau, 23 Novembro 1555; I, 48 v., Conchin, 10 Janeiro 1558; Fróis, História, Bartoli, II, 46; Boxer, The Great Ship, 21; Bourdon, artigos citados; Ginnaro, 265.

12 Esta carta e seu comentário formam o interessante artigo de Bourdon (Uma carta inédita) citado nestas páginas.

13 Sobre o ingresso de Almeida na Companhia de Jesus, há diversas opiniões. Valignano diz que foi admitido pelo P. Nunez, Principio, 359; entre os modernos, Laures segue essa opinião, History, 31. Sendo assim, teria posto essa admissão depois de Julho de 1556. Mas, quando Nunez chegou a Funai, Almeida já estava a viver com os outros jesuítas, como um deles. Bartoli diz que foi admitido pelo P. Cosme de Torres: "II P. Cosimo Torres lungamente provatolo il riceve nell'0rdine 1'anno 1555". A longa provação e a data de 1555 têm que se pôr de parte, pois Torres não estava em Bungo nem viu Almeida até que passou de Yamaguchi a Funai; mas o facto de ser ele quem o admitiu parece ficar fora de dúvidas com a sua carta de 7 de Novembro de 1557: "Aca precebí un hermano que tiene do-num curationis"; Bourdon, Uma carta, 197. Creio que podemos fixar a admissão pelo Padre Torres entre Abril e Junho de 1556, portanto, entre a chegada de Torres a Funai e a visita do Provincial Nunez.

14 Fróis, História, III, 117 v. Devo as citações do manuscrito da terceira parte da História de Fróis à amabilidade do R. P. Schwade, S. J., Universidade de Sophia, Tokyo.

15 Valignano, Principio, 358.

16 Cartas, I, 56.

17 Bourdon, baseando-se no silêncio que guarda Almeida e na falta de notícias posteriores sobre o desenvolvimento dessa casa para crianças abandonadas, dá como certo que a obra não se chegou a começar; a forma de falar de Fróis parece indicar que foi começa-da, mas não basta para resolver a questão.

18 Para este parágrafo: Cartas, 1,48 v., Melchior Nunez, Conchin, 10 Janeiro 1558; I, 52 v., Almeida, Bungo, l Novembro 1557; 1,54-v., Vilela, Hirado, 29 Outubro 1557; 1,62, Almeida, 1550; 1,62 v., Almeida, Bungo, 20 Novembro 1559; I, 63, Gago, Bungo, l Novembro 1559; Toyama, 108-160.

19 Boxer, The Christian Century, 202-203.

20 Cartas, I, 62.

21 Bourdon, Uma carta inédita, 197, n. 2.

22 Cartas, I,62v.-63.

23 Fróis, História, III, 117 v.

24 Cartas, I, 62 v.

25 Cartas, I, 62 v.

26 Para este parágrafo: Cartas, I, 73 v., Cosme de Torres, Bungo, 8 Outubro 1561; I,82 v., Almeida, Bungo, 1 Outubro 1561; I,76 v., Juan Fernández, Bungo, 8 Outubro 1561; I,103, Almeida, Yoko-seura, 25 Outubro 1562; Fróis, História, I, 152-54; Ginnaro, cap. 25; Laures, History, 61-64.

27 Cartas, I,84.

28 Provavelmente, a nau de Fernan de Souza, Boxer, The Great Ship, Lisboa, 1959.

29 Para este parágrafo: Cartas, I,103, Almeida, Yokoseura, 25 Outu-bro 1562; I,115, Fernández, Yokoseura, 17 Abril 1563; 1,118, Al-meida, Yokoseura, 17 Novembro 1563; I, 131, Fróis, Yokoseura, 14 Novembro 1563; 1,145 v., Fróis, Hirado, 3 Outubro 1564; I,154 v., Almeida, Bungo, 14 Outubro 1564; I, 157, Fróis, Shimabara, 15 Novembro 1564; I,159, Almeida, Fukuda, 25 Outubro 1565; Fróis, História, I, 152 ss; Matsuda, Omura Sumitada Den, 42; Ginnaro, cap.26.

30 Graças ao interesse mostrado pelos habitantes de Yokoseura, em 1962, quarto centenário da fundação do porto, levantaram-se flâ-mulas comemorativas nos lugares de maior importância histórica e voltou-se a erigir uma grande cruz no ilhéu São Pedro ou Hachi-noko jima. As cartas de Almeida serviram de guia para localizar es-ses lugares.

31 O local da igreja de Kuchinotsu parece ser o ocupado actualmente pelo templo budista Gyokuhoo-ji. O da igreja de Shimabara é mais difícil de localizar pelas modificações que experimentou a topogra-fia da cidade com a explosão do monte Maiyu-dake, em 1793: se-gundo uns, estava no chamado Parque Reikyu; segundo outros, numa pequena colina que actualmente está dentro da cidade. Na data "7 de Iunho" que Almeida nos dá como a da sua partida de Kuchinotsu (nas Cartas impressas), penso haver um erro, pois na linha anterior diz-nos que "estaria aqui obra de 20 dias” e, a Kuchi-notsu, tinha chegado a princípios de Junho. Por isso, escolho e data 17 de Junho para a cronologia; Cartas, I, 125 v.

32 Também aqui parece haver erro na transcrição das cartas; Cartas, I, 127. Diz o texto: "Cheguei la hua sexta feira de madrugada, que forao cinco de lulho”. O 5 de Julho desse ano foi segunda-feira; a sexta-feira a que se refere devia ser a 9, data que concorda melhor com toda a narrativa.

33 Um dos pormenores que impresionou Almeida nesta visita, foi ver o desenho do nome de Jesus que Omura Sumitada levava estam-pado nos seus vestidos. Ao ano 1562 corresponde uma citação inte-ressante tirada da História de Gonçalves, III, 131: "Em grande au-mento foi este ano a cristandade do Japão, na qual o santíssimo nome de Jesus era muito venerado, como com estas palavras es-creve o P. Cosme de Torres ao Provincial da Índia: O irmão Luis de Almeida manda a V. R. oitenta abanos de oiro, nos quais está es-culpido o santíssimo nome de Jesus, para que todos os padres da Companhia de Roma e Portugal saibam como este bendito nome está já escrito nos corações dos Japoneses. ”

34 Cartas, I, 129 v.

35 Cartas, I, 154 v.

36 Almeida, Cartas, 1159, diz que antes de ir a Bungo foi a Hirado e gastou no percurso um mês. Fróis, História, I, 221, diz que Al-meida foi de Bungo a Hirado gastando um mês no caminho. Há, além disso, uma carta de Almeida datada de Bungo a 14 de Outu-bro; mas sabemos pelo próprio Almeida que nesta data ele estava em Meinohama (159 v.). Pelo contexto, essa carta parece ter sido escrita no Verão, pouco depois de Torres ter saído de Takase, a ca-minho de Kuchinotsu. Como Fróis, nesta parte da sua História, se-gue a relação de Almeida, preferi acreditar neste último.

37 Para este parágrafo: Cartas, I, 159, Almeida, Fukuda, 25 de Outu-bro 1565; I, 172, Fróis, Miyako, 20 Fevereiro 1565; I, 177, Fróis, Miyako, 6 Março 1565; I, 181 v., Fróis, Miyako, 27 Abril 1565; I, 213 v., Almeida, Shiki, 20 Outubro 1566; I,203 v., Figueiredo, Fu-kuda, 22 Outubro 1565; I, 202 v., Costa, Hirado, 22 Outubro 1565; Fróis, História, I, cap. 56 e 57; Ginnaro, cap. 27.

38 Cartas, I, 162.

39 Este tratado foi editado por José Luis Alvarez-Taladriz, Juan Ro-driguez Tsuzu, S. J., Arte del Cha, Sophia University, Tokyo, 1954.

40 Cartas, I, 168 v.

41 Dessas jornadas apostólicas, merece menção o ingresso na Compa-nhia de Jesus de um médico famoso, Paulo Yohoken, baptizado por Vilela (I, 69). Paulo Yohoken acompanhou Almeida na sua viagem de volta e em Kuchinotsu colocou-se sob a direcção do Pa-dre Cosme de Torres. Ocupou um lugar proeminente, com o seu fi-lho, o Irmão Vicente Hoin, na literatura cristã japonesa. Sobre am-bos, cf. Laures, Kirishitan Bunko, 40, n. 122; Alvarez-Taladrid, Sumario, 125 e 415, n. 6; Doi, Kirishitan Bunkenko, 123-130.

42 No Verão, a flotilha de Hirado atacou em Kukuda a nau de Perei-ra, mas foi rechaçada com graves perdas. Nada disto aparece nas cartas de Almeida, pelo que não parece que a batalha coincidisse com alguma das suas visitas a este porto.

43 Para este parágrafo: Cartas, I, 205, Torres, Kuchinotsu, 24 Outu-bro 1566; I, 213 v., Almeida, Shiki, 20 Outubro 1566; I,213 v., Al-meida, Shiki, 20 Outubro 1566; I, 242 v., Figueiredo, Bungo, 27 Setembro 1567; I, 247, Ayres Sanchez, Shiki, 13 Outubro 1567; Fróis, História, I, 291; Ginnaro, cap. 28; Urakawa, Gotoo Kirishi-tan Shi.

44 Em Cartas, I, 213, há uma relação de Almeida datada de Hirado a 17 de Março de 1566. Nesse tempo, Almeida estava nas ilhas de Gotoo. Devemos supor que a data está enganada ou, o que é mais provável, que a carta não fosse escrita em Hirado, mas em Gotoo. A carta é um resumo de notícias sobre Hirado e deve ter relação com a mencionada por Jacome Gonçalves em carta de 3 de Março do mesmo ano. Cartas, I,225v.: "Na carta do mes pasado que pola via de Gotoo escrevimos a V. R… ”

45 Esta viagem não consta nas cartas de Almeida; a notícia é dada por Ayres Sanchez, Cartas, I, 247 v.

46 Cartas, I, 205 v.

47 Para este parágrafo: Cartas, I, 251 v., Miguel Vaz, Shiki, 1568; I,252 v., Almeida, Kuchinotsu, 20 Outubro 1568; I, 301, Vilela, Conchin, 4 Fevereiro 1571; I,254, Vallareggio, Gotoo, 4 Setembro 1568; I,281 v., Um Português, 15 Agosto 1569; Kataoka, Nagasaki no Junkyosha, 72 ss; Guzman, História, 331.

48 Cartas, I, 252, 31.

49 Cartas, I, 253 v.

50 Se lermos a descrição que o Padre Vilela faz do seu apostolado em Nagasaki, temos a impressão de que foi ele o primeiro a evangeli-zar esta povoação; mas ele próprio diz que a sua estadia en Naga-saki foi "o anno de sesenta y nove y de setenta” (Cartas, I, 302 v.). Já antes desta data tinham estado ali Almeida, outros irmãos e Cosme de Torres, que visitou Nagasaki em Setembro de 1568 (Car-tas, I, 252 v.).

51 Para este parágrafo: Cartas, I,268, Miguel Vaz, Shiki, 3 Outubro 1569; I, 279, Hita, 22 Outubro 1569; I, 290, Almeida, Hirado, 25 Outubro 1570; I, 281 v., Um Português, 15 Agosto 1569; Fróis, História, I,344-350; Ginnaro, cap. 29; Shimoda, Amakusa Kirishi-tan Shi, 21 ss,459.

52 Teruhiru Tarazaemon, que nas cartas de Almeida é chamado Ty-roshiro, baseava as suas aspirações em ser descendente dos antigos dáimios de Yamaguchi, os Ouchi; chegou a invadir os domínios de Moori, mas finalmente foi derrotado e morto. Sobre Akizuki Ta-nezane e a comunidade cristã dos seus domínios: Alvarez-Taladriz, Sumario, 97, 425.

53 Para este parágrafo: Cartas, I, 290, Almeida, Hirado, 15 Outubro 1570; I, 296, Figueiredo, 21 Outubro 1570; Fróis, História, I, 405--413; Ginnaro, cap.30.

54 Sobre a morte de Cosme de Torres: Cartas, I, 299, Figueiredo; I,301 Vaz; I,303 v., Vilela. No funeral de Torres, a que acudiram os missionários mais próximos, Vilela foi o encarregado da oração fú-nebre. Apesar de percorrer Shiki e arredores, não foi possível en-contrar a mínima indicação da sua campa.

55 Para este parágrafo; Cartas, I,309 v., Cabral, Kuchinotsu, 22 Se-tembro 1571.

56 Para este parágrafo: Cartas, I, 355 v., Cabral, Kuchinotsu, 9 Se-tembro 1576; I, 370, Almeida, 31 Janeiro 1576; I,371, Vaz, Arima, 3 Setembro 1576; I, 371 v., Gonçalves, Kuchinotsu, 24 Setembro 1576; I, 399, Vaz, Omura, 27 Outubro 1577; I, 410, Almeida, Ka-goshima, 1578; I, 428, Fróis, Usuki, 16 Outubro 1578; Ginnaro, cap.30.

57 Para este parágrafo: Cartas, I,410, Almeida, Kagoshima, 1578; I, 428, Fróis, Usuki, 16Outubro 1578; I,447 v., Carrión, 1579; Fróis, História, II, 33 ss; Ginnaro, cap. 25, 30, 31.

58 Para este parágrafo: Cartas, I, 477 v., Valignano, Arima, 25 Agosto 1580; I,458 v., Mejía, 1580; Fróis, História, II, 120; Teixei-ra, III, 149-156; Boxer, The Great Ship, 41.

59 A residência junto à pequena Igreja de Santo António foi fundada em 1565 pelo Padre Francisco Perez. Era naquela altura Superior o Padre Domingo Alvarez. Em 1572 tinha-se anexado a esta resi-dência uma escola primária. Em 1579 chegou a Macau o famoso Padre Ruggieri, que em 1580 abriu uma casa para catecúmenos chi-neses, dedicada a São Martinho; essa casa estava situada entre Santo António e o lugar que ocupou mais tarde a Igreja da Madre de Deus.

60 D. Belchior Carneiro, S. J. (1513-1583) foi consagrado Bispo, em Goa, em 1560; chegou a Macau em fins de 1568. Foi homem de grande virtude e o seu nome ficou vinculado à História de Macau, não só por ser o seu primeiro bispo, mas também pelas diversas obras que impulsionou: a Santa Casa da Misericórdia, os Hospitais de São Lázaro e São Rafael e o Senado. Almeida escreve-lhe em 1568 (Cartas, I, 252 v.) e em 1569 (I, 279).

61 Teixeira, baseando-se no facto de que o grupo franciscano chegou a Macau a 15 de Novembro de 1579, põe a ordenação sacerdotal de Almeida nesse ano; pode ser assim, mas como os contemporâneos nos dão como data de ordenação o ano 1580 e não há razão especial contrária, creio contudo melhor cingir-me a esta data. Na medida em que a viagem de volta não podia efectuar-se até Maio ou Junho, provavelmente aproveitariam esse tempo para fazer alguns estudos que a agitada vida no Japão não lhes tinha permitido.

62 Para este parágrafo: Cartas, II, 17, Coelho, 16 Fevereiro 1582; II, 47 v., Fróis, Kuchinotsu, 31 Outubro 1582; II, 89 v., Fróis, 2 Ja-neiro 1584; II, 110 v., Fróis, 31 Agosto 1584; Fróis, História, II, 294,296, 299; Fróis, História, III, ms., 117 v.-118; Ginnaro, cap. 31; Boxer, The Christian Century, 45; Alvarez-Taladriz, Sumario, Introdução, 69 ss, 161 ss, 191.

63 Cartas, II, 20, 92.

64 Fróis, História, III, ms., 117 v.-l 18.

*Director do Museu dos Mártires, em Nagasaqui. Investigador da história da presença portuguesa e da Missão dos Jesuítas no Japão. Autor de vasta obra publicada.

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